Da possibilidade de concessão do benefício de prestação continuada aos estrangeiros

Resumo: O presente artigo trata da possibilidade de concessão do benefício de prestação continuada aos estrangeiros, conforme decisão recente do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 587.970/SP e as críticas a este julgamento.

Palavras-chave: Estrangeiros; Benefício de Prestação Continuada; Lei Orgânica da Assistência Social.

Abstract: This article deals with the possibility of granting the benefit of continuous benefit to foreigners, according to recent decision of the Federal Supreme Court in Extraordinary Appeal 587.970/SP and the criticism of this judgment.

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Keywords: Foreigners. Continuous Benefit Benefit. Organic Law of Social Assistance.

Sumário: Introdução. 1. Da Controvérsia. 2. Do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 3. Do Princípio da Igualdade. 4. Dos Demais Fundamentos. 5. Das Críticas. 6. Conclusão.

Introdução.

O presente artigo analisa o Recurso Extraordinário 587.970/SP que trouxe a possibilidade de concessão do benefício de prestação continuada aos estrangeiros. Inicia-se trazendo a controvérsia sobre o tema. A seguir, traz-se os fundamentos da dignidade da pessoa humana e da igualdade. Por fim, pontua-se as principais conclusões do julgado e suas deficiências.

1. Da Controvérsia.

A controvérsia diz respeito à extensão do benefício de prestação continuada, previsto na Lei Orgânica de Assistência Social (lei nº 8.742/1993) e no art. 203, inciso V, da Constituição Federal de 1988, aos estrangeiros.

No próprio Recurso Extraordinário 587.970/SP, inicialmente, a Procuradoria Geral da República apresentou parecer em contrário à extensão do benefício aos estrangeiros residentes, mas posteriormente modificou sua conclusão e opinou pela concessão. Tal fato demonstra a enorme controvérsia que pairava sobre o tema e a complexidade da causa.   

Segundo o Ministro Relator Marco Aurélio, a questão principal é sobre a interpretação da cláusula constitucional “a assistência social será prestada a quem dela necessitar”. Afinal, quem estaria abrangido pela assistência social?

O Decreto 6.214/2007, Regulamento do Benefício de Prestação Continuada, com a redação do Decreto 8.805/2016 responde a tal questionamento da seguinte forma: “Art. 7º O Benefício de Prestação Continuada é devido ao brasileiro, nato ou naturalizado, e às pessoas de nacionalidade portuguesa, em consonância com o disposto no Decreto 7.999, de 8 de maio de 2013, desde que comprovem, em qualquer dos casos, residência no Brasil e atendam a todos os demais critérios estabelecidos neste Regulamento.”.

Assim, percebe-se que a posição clássica era pela impossibilidade de extensão ao estrangeiro, ainda que residente no Brasil, do benefício de prestação continuada.

2. Do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

O fundamento central do acórdão é o princípio da Dignidade da Pessoa Humana. O Ministro Relator Marco Aurélio discorreu que a dignidade possui três elementos: 1) valor intrínseco; 2) autonomia; 3) valor comunitário.

De acordo com ele, como “valor intrínseco”, a dignidade requer o reconhecimento de que cada indivíduo é um fim em si mesmo, nos termos do amplamente divulgado imperativo categórico kantiano
Como “autonomia”, a dignidade protege o conjunto de decisões e atitudes relacionado especificamente à vida de certo indivíduo.

Já em relação ao valor comunitário, a ideia maior de solidariedade social foi alçada à condição de princípio pela Lei Fundamental.

O Ministro prossegue na fundamentação: “Observem a ninguém ter sido oferecida a escolha de nascer nesta quadra e nesta sociedade, mas estamos todos unidos na construção de propósito comum. O estrangeiro residente no País, inserido na comunidade, participa do esforço mútuo. Esse laço de irmandade, fruto, para alguns, do fortuito e, para outros, do destino, faz- nos, de algum modo, responsáveis pelo bem de todos, inclusive daqueles que adotaram o Brasil como novo lar e fundaram seus alicerces pessoais e sociais nesta terra.”.

Dessa forma, de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, positivado no art. 1, inciso III, da Constituição Federal de 1988, a interpretação a ser dada ao dispositivo do art. 203, inciso V, da Constituição Federal de 1988, é que este engloba os estrangeiros.

3. Do Princípio da Igualdade.

Um outro fundamento do julgado é o princípio da igualdade e a necessidade de tratamento isonômico entre brasileiros e estrangeiros residentes no País, conforme o caput do art. 5 da Constituição Federal de 1988.

Ainda de acordo com o Ministro Relator Marco Aurélio, “o  constituinte instituiu a obrigação do Estado de prover assistência aos desamparados, sem distinção. Com respaldo no artigo 6º da Carta, compele-se os Poderes Públicos a efetivar políticas para remediar, ainda que minimamente, a situação precária daqueles que acabaram relegados a essa condição”.

4. Dos Demais Fundamentos.

Do voto do Ministro Relator ainda se infere que a presença do estrangeiro no País, desde a criação da nação brasileira, foi incentivada e tolerada, não sendo coerente com a história estabelecer diferenciação tão somente pela nacionalidade, especialmente quando a dignidade está em cheque em momento de fragilidade do ser humano – idade avançada ou algum tipo de deficiência.
Sobre o benefício de assistência social devem ser cumpridos os requisitos legais.

Conforme o artigo 20 da LOAS, tal benefício assistencial é concedido na quantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos de idade ou mais, que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
 Sendo assim, segundo o Ministro Relator, não basta a hipossuficiência, mas também a demonstração da incapacidade de buscar a solução para tal situação em decorrência de especiais circunstâncias individuais.

Entretanto, saliente-se que no acórdão ficou consignado que somente o estrangeiro com residência fixa no País pode ser auxiliado com o benefício assistencial.

Dentre os principais argumentos para tal conclusão, estão que o estrangeiro residente se encontra inserido na sociedade, contribuindo para a construção de melhor situação social e econômica da coletividade.

Portanto, somente o estrangeiro em situação regular no País, residente, idoso, portador de necessidades especiais será beneficiário da assistência social.

De acordo com esse entendimento, os estrangeiros não residentes ou em situação irregular não farão jus ao referido benefício, tendo em vista o não atendimento às leis brasileiras, fato que, por si só, demonstra a ausência de noção de coletividade e de solidariedade a justificar a tutela do Estado.

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Da leitura do acórdão se extrai os objetivos da assistência social, que por ser tratar de uma política pública de caráter não contributivo, é voltada à satisfação do mínimo existencial, instrumentalizando direitos fundamentais como a vida, a segurança, o bem-estar e a própria dignidade da pessoa humana.

Um outro dado relevante foi o trazido pelo Ministro Alexandre de Morais, ao dispor sobre a questão dos refugiados no Brasil, como se extrai do seguinte trecho: “O Brasil, como foi salientado na ONU, e, também ontem da tribuna, na América do Sul, é o país que mais acolheu os refugiados. (…) Não se pode assumir um compromisso de solidariedade internacional para, a partir do momento em que essas pessoas estrangeiras ingressam e passam a residir no País, seja-lhes conferido um tratamento diferenciado dos demais residentes, sejam brasileiros natos, sejam brasileiros naturalizados, sejam estrangeiros residentes no País.”.

Assim, seria um contrassenso a adoção de políticas públicas de acolhimento de refugiados, grande problemática atual na comunidade internacional, e negar-lhes acesso a direitos básicos, como a assistência social.

Também para o Ministro Alexandre de Morais, a negativa de prestação do benefício de prestação continuada conflitaria seriamente com nossa tradição histórica e constitucional, de nação formada pelo influxo de diferentes povos, raças, credos e origens. Traz como fundamento além da dignidade da pessoa humana, o pluralismo político e os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil tais como a construção de uma sociedade livre, justa solidária, a erradicação da pobreza e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem.

O Ministro Luiz Fux acresce ao debate o seguinte argumento: o já reconhecido direito de estrangeiros em situação de miserabilidade terem acesso aos instrumentos de assistência social. Pontuou o Ministro que, em 2014, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) divulgou que 42.091 estrangeiros em situação de pobreza ou de extrema pobreza recebiam regularmente o benefício Bolsa-Família.

Ademais, os estrangeiros residentes também se encontram submetidos aos mesmos deveres legais, inclusive tributários, de todos os cidadãos.

Ressalte-se que um outro fundamento aventado no acórdão é a recente Lei de Migração (lei 13.445/2017), que dentre os princípios de política migratória traz expressamente a igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante e seus familiares;
a inclusão social, laboral e produtiva do migrante por meio de políticas públicas;
e o acesso igualitário e livre do imigrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social.

Há ainda, ao migrante, de acordo com o  art. 4, o direito ao acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previsão social, além dos direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos.

5. Das Críticas.

A tese do julgamento, por unanimidade e com repercussão geral, assim foi publicada: “Os estrangeiros residentes no País são beneficiários da assistência social prevista no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal, uma vez atendidos os requisitos constitucionais e legais”.

Portanto, percebe-se que houve uma limitação da extensão do benefício aos estrangeiros em situação migratória regular e desde que residentes no país.

Tal conclusão é criticável diante da clareza do dispositivo legal trazido pela Lei de Migração, art. 4, §1º, in verbis: "Art. 4º Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como: I – direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos; (…) VIII – acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social, nos termos da lei, (…) § 1º Os direitos e as garantias previstos nesta Lei serão exercidos em observância ao disposto na Constituição Federal, independentemente da situação migratória, observado o disposto nos §§ 4º e 5º deste artigo, e não excluem outros decorrentes de convenções, tratados e acordos internacionais de que o Brasil seja parte".

Da leitura da lei se infere que a situação migratória não pode ser obstáculo à fruição destes direitos previstos.

Ademais, a doutrina também aponta que, pelos mesmos fundamentos – como a dignidade da pessoa humana e a igualdade, não se pode diferenciar a situação de estrangeiros regulares e irregulares ou residentes e não residentes. Segundo Paulo Henrique Gonçalves Portela, interpretando o caput do art. 5 da Constituição Federal de 1988: “Apesar de a norma mencionar apenas os estrangeiros residentes no Brasil, nada impede que os estrangeiros que não têm domicílio ou residência em território brasileiro também tenham os mesmos direitos quando no brasil, inclusive porque o Estado brasileiro se compromete, por meio de tratados, a assegurar tais direitos a todas as pessoas que se encontram sob sua jurisdição, sem distinção de qualquer espécie, bem como pelo fato de que tais direitos decorrem diretamente do princípio da dignidade da pessoa humana.”.

Prossegue o autor afirmando categoricamente que “o fato de o estrangeiro se encontrar irregularmente no Brasil não o priva do gozo de direitos garantidos na ordem constitucional brasileira”.
Ressalta-se que este também é o entendimento do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus 103.311/PR e do Superior Tribunal de Justiça no  Habeas Corpus 219.017/SP.
Paulo Henrique Portela afirma ainda que “A Constituição Federal não exclui os estrangeiros do gozo dos direitos sociais consagrados entre os artigos 6 e 11”.

Assim, vê-se que o julgado acertadamente estabeleceu a equiparação de brasileiros natos e naturalizados com os estrangeiros residentes, como determina expressamente no art. 5 da Constituição Federal de 1988. No entanto, poderia ter avançado ainda mais, diante da principiologia que rege a relação do Brasil com os estrangeiros e também em razão dos próprios fundamentos do julgado analisado, como a dignidade da pessoa humana e a igualdade.

6. Conclusão.

Conclui-se que, apesar da enorme importância do julgamento do caso do Recurso Extraordinário nº 587.970/SP, em sede de repercussão geral, garantindo a concessão do benefício de prestação continuada aos estrangeiros residentes, o julgado deixou de avançar em uma questão importante já que os estrangeiros não residentes e em situação irregular são os mais vulneráveis aos riscos sociais.

Percebe-se da análise dos fundamentos do julgado que não há nenhuma justificativa para tal diferenciação já que todos os argumentos também se aplicam aos demais estrangeiros, sendo a condição de residência regular no Brasil uma limitação desarrazoada à proteção social daqueles mais necessitados.
 
Referências.
Supremo Tribunal Federal, Órgão Pleno, Recurso Extraordinário nº 587.970/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 19/4/2017 e 20/4/2017.
Supremo Tribunal Federal, 1ª Turma, Habeas Corpus 103.311/PR, Min. Relator Luiz Fux, julgado em 7.6.2011.
Superior Tribunal de Justiça,  5ª Turma, Habeas Corpus 219.017/SP, Min. Relatora Laurita Vaz, julgado em 15/03/2012.
Portela, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado: Incluindo Noções de Direitos Humanos e de Direito Comunitário. Salvador: Jus Podivm, 9ª Edição, 2017.


Informações Sobre o Autor

Maria Pilar Prazeres de Almeida

Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Aprovada nos concursos de Advogada da FINEP Defensora Pública do Estado da Bahia Defensora Pública do Estado do Espírito Santo e Defensora Pública do Estado de Santa Catarina


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