Resumo: No presente estudo procuramos definir o sistema de inclusão previdenciária estabelecido pela Emenda Constitucional nº 47/05 e regulamentado pela Lei nº 12.470/11, bem como analisá-lo de acordo com os princípios constitucionais relativos à Seguridade Social e à Previdência Social.
Palavras-chave: Previdência Social. Inclusão previdenciária.
Sumário: 1. Introdução; 2. O modelo bismarkiano de proteção social: a base da Previdência Social; 3. O modelo Beveridgeano de proteção social: a Seguridade Social; 4. O modelo de proteção social adotado pela Constituição Federal de 1988; 5. Da previdência Social; 6. Do sistema de inclusão previdenciária dos trabalhadores de baixa renda; 7. Dos mecanismos já existentes de inclusão dos trabalhadores de baixa renda; 8. Das alterações legais derivadas da Emenda Constitucional nº 47/05; 9. Análise sistemática dos §§ 12 e 13 do artigo 201 da CF. Da (in)compatibilidade do sistema de inclusão previdenciária com os princípios constitucionais da Seguridade e da Previdência Social; 10. Dos princípios informadores da Seguridade Social; 11. Da universalidade da cobertura e do atendimento; 12. Da Seletividade e Distributividade na prestação dos benefícios e serviços; 13. Da equidade na forma de participação no custeio; 14. Da solidariedade; 15. Do princípio da contrapartida; 16. Do Caráter Contributivo da Previdência Social; 17. Da Preservação do Equilíbrio Financeiro e Atuarial da Previdência Social; 18. Do princípio da equidade no âmbito da Previdência Social; 20. Conclusão.
1. Introdução.
O programa de inclusão previdenciária estabelecido pelas Emendas Constitucionais nº 41/03 e 47/05 e disciplinado pela Lei nº 12.470/11 deu novos contornos ao Regime Geral de Previdência Social, propondo mecanismos de universalização e efetividade normativa desta área de atuação da Seguridade Social.
A Seguridade Social é a fase mais recente e avançada dentro do conceito de proteção social. O sistema de Seguridade Social implantado pela Constituição Federal de 1988 tem como fundamento a solidariedade social e como objetivo a garantia de bem-estar e justiça sociais para toda a população.
O sistema de proteção social previsto na Constituição Federal, sob o título “Da Seguridade Social”, se encontra atualmente em um estágio de transformação, agregando elementos do modelo clássico de previdência social (modelo bismarckiano) bem como princípios e preceitos inerentes ao modelo beveridgeano de seguridade social. É neste contexto de transformações que se insere o sistema de inclusão previdenciária, objeto do presente estudo.
2. O modelo bismarkiano de proteção social. A base da Previdência Social.
O modelo bismarckiano de proteção social surge entre os anos de 1883 e 1889 na Prússia (atual Alemanha) e simboliza o nascimento da chamada Previdência Social, técnica de proteção que garante o direito a prestações reparadoras ao verificar-se um dado evento danoso, antes que este possa determinar o estado de indigência ou privação do segurado.
Segundo Castro e Lazzari,
“Previdência Social é o sistema pelo qual, mediante contribuição, as pessoas vinculadas a algum tipo de atividade laborativa e seus dependentes ficam resguardadas quanto a eventos de infortunística (morte, invalidez, idade avançada, doença, acidente de trabalho, desemprego involuntário), ou outros que a lei considera que exijam um amparo financeiro ao indivíduo (maternidade, prole, reclusão), mediante prestações pecuniárias (benefícios previdenciários) ou serviços”[1].
Almansa Pastor afirma que
“la prevision social constituye un conjunto de medidas o instrumentos protectores de necesidades sociales que el Estado pone a disposicion de, o impone a, los individuos para atender las necesidades sociales de éstos, con la finalidad de cumplir la funcion estatal de liberar a los individuos de las necesidades sociales”[2].
Conforme Fábio Z. Ibrahim, os projetos de Bismarck aprovados no parlamento foram a gênese da proteção garantida pelo Estado, funcionando este como arrecadador de contribuições exigidas compulsoriamente dos participantes do sistema securitário. Para o autor, os elementos que nos permite caracterizar o sistema de seguros sociais previdenciários são: a contributividade e a compulsoriedade de filiação[3].
Daniel Machado da Rocha, por outro lado, afirma que o princípio portador das diretrizes essenciais da chamada previdenciária social é o da solidariedade, o qual se constitui no seu eixo axiológico, podendo ser nominado de princípio estruturante destes sistemas de proteção social. Para o autor, este princípio revela-se apto a catalisar a articulação entre o Estado e a sociedade, “operando como verdadeira bússola condutora da nau da previdência social no revoltoso mar das necessidades sociais”[4].
Diferentemente das técnicas até então utilizadas, que tinham como característica comum a voluntariedade, a previdência social surge como um mecanismo de proteção obrigatório, com presença marcante do Estado, voltado à redução das necessidades sociais dos trabalhadores.
O modelo idealizado por Bismarck foi um dos mais difundidos pelo mundo e, em síntese, caracteriza-se pela: (i) adoção de técnica semelhante à do seguro privado, (ii) filiação obrigatória, (iii) financiamento com base em contribuições dos trabalhadores, empregadores e Estado; (iv) proteção contra os riscos profissionais; (v) segurados limitados aos trabalhadores; e (vi) prestações de caráter indenizatório, substitutivas do salário, caracterizadas como direito subjetivo público do segurado.
Este modelo constitui a base da chamada Previdência Social e, ainda hoje, norteia grande parte dos regimes previdenciários existentes, dentre eles o brasileiro.
3. O modelo Beveridgeano de proteção social. A Seguridade Social.
O modelo Beveridgeano nasce no ano de 1942 a partir do plano de Sir William H. Beveridge, em que se definiu os princípios de estruturação da Seguridade Social na Inglaterra, através de um sistema universal baseado na participação compulsória de toda a população.
Em síntese, este plano apresentou recomendações ao governo inglês com o fim de reformular os mecanismos de proteção da população, destacando-se: a) proteção de toda a população da totalidade dos riscos sociais (proteção do berço ao túmulo); b) prestações em valor uniforme, que corresponda ao suprimento das necessidades vitais; c) o financiamento da seguridade social através de contribuições no que tange às prestações em geral, e impostos, no que diz respeito aos abonos de família e ao tratamento de saúde; d) gestão confiada ao serviço público; e) complemento das medidas por meio de política do pleno emprego, política sanitária e de saúde, com atendimento gratuito a toda a população.
Mattia Persiani leciona que
“independentemente de quais foram as ocasiões de suas primeiras afirmações, a ideia da Seguridade Social exprime a exigência de que venha garantida a todos os cidadãos a libertação das situações de necessidade, na medida em que esta libertação é tida como condição indispensável para o efetivo gozo dos direitos civis e políticos”[5].
“A eliminação das situações de necessidade, como qualquer outra, não pode ser concretizada por indivíduos que são seus titulares, mas deve ser garantida por toda a coletividade organizada no Estado, para a qual, portanto, essa libertação constitui fim a ser visado, recorrendo-se a uma solidariedade que é geral, na medida em que envolve todos os cidadãos”[6].
O conceito da Seguridade Social se desprende da exclusiva preocupação com a renda profissional e orienta-se por amplo conceito das necessidades humanas, apreciadas em virtude da evolução social. A ideia central deste modelo está no ideial de solidariedade social, no pacto entre gerações.
Wagner Balera afirma que o Sistema de Seguridade Social, do ponto de vista sistemático, “visa a implementação do ideal estágio de bem-estar e justiças sociais” [7]. No mesmo sentido, Miguel Horvath Jr. aponta que “a seguridade social como política social é método de economia coletiva. Sendo método de economia coletiva, a comunidade é chamada a fazer um pacto técnico-econômico em que a solidariedade social é o fiel da balança”[8].
Este modelo adota um regime de repartição, onde as contribuições sociais são direcionadas para um fundo único, do qual saem os recursos para a concessão de benefícios e prestação dos serviços. O funcionamento do sistema se operacionaliza através de pacto intergeracional, de forma que a classe trabalhadora e a sociedade de hoje garantem os recursos necessários para a concessão dos benefícios atualmente pagos, sistemática que tende a se estender indefinidamente no tempo.
O modelo adotado por Beveridge priorizou três áreas de atuação, que juntas, seriam capazes de propiciar um mínimo de dignidade humana e bem-estar social, ao garantir uma renda mínima aos necessitados (assistência), mecanismos reparadores para a classe trabalhadora no caso de necessidades sociais (previdência), bem como saúde a toda a população (saúde).
As políticas de Seguridade Social não são uma simples ampliação do programa de seguros sociais proposto por Bismarck; constituem um serviço público de finalidade social. Estão presididas pela ideia de solidariedade e implicam na cobertura de contingências sociais em favor de toda a população. Estas políticas, segundo Daniel Pérez, se concretizam através da redistribuição da renda nacional, como uma das ações preponderantes do Estado[9].
Inicialmente apresentado na Inglaterra, através do Plano Beveridge, este modelo de proteção social buscou ampliar os beneficiários dos programas sociais, universalizando o atendimento através da ênfase ao caráter redistributivo da renda e dos benefícios, com o intuito primordial de redução da pobreza, universalização da saúde pública, proteção face ao desemprego e garantia do bem-estar e justiça social para toda a população, independentemente de contribuição ao sistema, além da proteção dos trabalhadores face às necessidades sociais.
4. O modelo de proteção social adotado pela Constituição Federal de 1988.
O sistema de Seguridade Social implementado pela Constituição Federal de 1988, apesar de uma nomenclatura semelhante à proposta pelo Plano Beveridge (Inglaterra, 1942), possui diferenças marcantes, agregando elementos ao modelo bismarckiano, até então preponderante, características do modelo beveridgeano de Seguridade Social.
O Sistema de proteção Social instituído pela Constituição de 1988 ampliou o horizonte de atuação do Estado visando a promoção do bem-estar e justiça sociais para toda a sociedade, através de um sistema de proteção nas áreas de saúde, assistência e previdência social, que juntos integram a chamada Seguridade Social.
Historicamente se elegeu os direitos sociais atinentes à saúde, assistência e previdência social como sendo os mais relevantes para a proteção da vida e dignidade da pessoa humana. A dignidade é a força motriz do sistema, apta a justificar seu existir e a impulsionar seus movimentos sincrônicos.
Analisada sob um ponto de vista sistemático, a dignidade, objetivo final da Seguridade Social, se entrelaça com outros preceitos e princípios constitucionais, atingindo uma perspectiva peculiar. O primeiro destes preceitos constitucionais que permeiam e amoldam a dignidade é o primado do trabalho.
O trabalho constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º, inciso IV da CF), sendo ainda considerado um direito social (artigo 6º da CF) e a base da ordem social (artigo 193 da CF), cujos objetivos são o bem-estar e a justiça sociais.
Nesta perspectiva, a busca da dignidade dentro da ordem social tem como objetivo essencial a conservação e implemento do trabalho. O trabalho corresponde a uma ferramenta de inclusão social, dignifica o homem, e é um dos pontos fundamentais para a implementação da segurança social e econômica da população.
Segundo Marisa Ferreira dos Santos,
“O primado do trabalho, princípio fundamentador da Ordem Social, prestigia o valor trabalho, que também é fundamento do Estado Democrático (art. 1º, IV, da CF). Impossível a existência de dignidade da pessoa humana onde o trabalho não for valorizado. O trabalho, entendido como toda e qualquer atividade lícita, é o tema central da questão social e, por isso, deve ter justa valorização e recompensa. É o referencial pelo qual as normas da Ordem Social devem ser interpretadas, com o fim de dar dignidade à pessoa humana”[10].
Analisando especificamente um dos subsistemas da Seguridade Social, a Previdência Social, Fábio Berbel aponta que:
“o direito previdenciário gira em torno do trabalho. Todos os fatos jurídicos previdenciários, indistintamente, mantêm relação, direta ou indireta, com o fenômeno do trabalho. Isso se dá porque o objeto de proteção previdenciária é a perda da capacidade laboral que, pela presunção normativa, leva o indivíduo à indigência e, por conseguinte, à indignidade humana”[11].
O trabalho, portanto, é um dos caminhos indicados pela Constituição para a realização do princípio norteador da Seguridade Social, a dignidade da pessoa humana. Ao lado do primado do trabalho, outros dois elementos que amoldam o conceito de dignidade humana: o bem-estar e justiça sociais.
Bem-estar e justiça sociais são conceitos ligados à erradicação da pobreza e da marginalização, redução das desigualdades sociais e regionais e promoção do bem de todos, objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º CF).
Associado ao princípio da dignidade, o princípio do bem-estar social tem por finalidade garantir um padrão mínimo de vida capaz de assegurar saúde, alimentação, vestuário, proteção em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice e outros casos de perda dos meios de subsistência[12].
O bem-estar social é a existência de um padrão mínimo material que garanta ao ser humano um desenvolvimento digno. Como fim da seguridade social, o bem-estar social pressupõe a proteção à saúde, resgate das situações de miséria e marginalização, e garantias de proteção em face da perda ou redução dos ganhos provenientes do trabalho.
O princípio da justiça social, por outra vertente, busca reduzir as desigualdades sociais e fomentar a solidariedade social. Este princípio injeta no sistema de seguridade social a necessidade de promoção e proteção social observando-se as reais necessidades de cada pessoa objeto de proteção, bem como o equacionamento do sistema de proteção de forma a direcionar os seus recursos, preponderantemente, aos mais necessitados.
Nesta perspectiva, a Seguridade Social, compreendida como conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, tem na dignidade da pessoa humana seu princípio norteador, orientando a atuação do sistema em todas as suas áreas, dentre elas a Previdência Social, objeto de estudo no tópico seguinte.
5. Da previdência Social.
A Previdência Social, enquanto subsistema da Seguridade Social brasileira, possui contornos bem definidos a fim de, em conjunto com os demais subsistemas (assistência social e saúde), concretizar o ideal constitucional de proteção social universal.
A Previdência Social é o ramo de atuação estatal que visa a proteção de todo indivíduo ocupado numa atividade laborativa remunerada e de seus dependentes em face de necessidades sociais advindas, em sua maioria, da perda ou redução, permanente ou temporária, das condições para obter o próprio sustento.
Não obstante integre a Seguridade Social e a auxilie na consecução de seus fins, a Previdência Social, com ela, não se confunde. Esta, a Seguridade Social, tem por fundamento a universalidade de cobertura e atendimento, outorgando um mínimo de proteção social a toda a população indistintamente.
A Previdência Social, especialmente através do Regime Geral de Previdência Social, de caráter contributivo, dentro do seu escopo constitucionalmente desenhado, tem limitada, no âmbito objetivo e subjetivo, a sua atuação.
Heloísa H. Derzi aponta que
“Justamente para construir e ordenar o sistema de proteção social, o constituinte de 1988 optou por implantar o abrangente Sistema de Seguridade Social, no qual a Previdência Social é um subsistema destinado a cumprir o relevante papel de segurança econômica daqueles que exercem atividade laboral, dela retiram o seu sustento e, nas eventuais situações de impedimento de seu exercício, podem lançar mão de um mecanismo idealizado para abrandar os estados de necessidade possivelmente gerados pela inatividade”[13].
Seu caráter contributivo e a limitação no âmbito subjetivo de proteção na esfera previdenciária (destinada aos trabalhadores[14] e seus dependentes), no entanto, não incorre em contradição perante a Seguridade Social. A universalidade de cobertura e atendimento (princípio constitucional da Seguridade Social previsto no artigo 194, inciso I da CF) se dirige ao Sistema de Seguridade Social como um todo; a Previdência Social corresponde a uma de suas esferas de atuação, e junta com as ações nas áreas de saúde e assistência social, possibilita que o sistema atinja um amplo universo de proteção social.
Atualmente, a Previdência Social tem seus objetivos bem definidos dentro do Sistema de Seguridade Social, cabendo a ela a substituição da renda do trabalhador quando este se encontra em uma das situações previstas no artigo 201 da Constituição e outras eventualmente eleitas pelo legislador ordinário como dignas de amparo.
É dentro deste contexto que se insere o sistema especial de inclusão previdenciária para os trabalhadores de baixa renda.
6. Do sistema de inclusão previdenciária dos trabalhadores de baixa renda.
Originariamente estabelecido pela Emenda Constitucional nº 41 de 19/12/2003[15], o sistema de inclusão previdenciária abriu a possibilidade de o legislador estabelecer um regime especial de proteção do trabalhador de baixa renda, garantindo-lhe acesso a benefícios de valor igual a um salário-mínimo.
Em 05 de julho de 2005 foi promulgada a Emenda Constitucional nº 47 que, dentre seus dispositivos, deu nova redação ao § 12 do artigo 201 da CF:
“§ 12. Lei disporá sobre sistema especial de inclusão previdenciária para atender a trabalhadores de baixa renda e àqueles sem renda própria que se dediquem exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência, desde que pertencentes a famílias de baixa renda, garantindo-lhes acesso a benefícios de valor igual a um salário-mínimo.”
Referida emenda identificou como beneficiários deste novo sistema de inclusão previdenciária os trabalhadores de baixa renda e as “donas de casa” pertencentes a famílias de baixa renda, esta última qualificada como segurada facultativa do Regime Geral de Previdência Social.
Além da ampliação do âmbito subjetivo de abrangência deste regime diferenciado, o constituinte derivado estabeleceu o mecanismo pelo qual se daria esta inclusão destes segurados, dispondo no § 13 do artigo 201 que:
“§ 13. O sistema especial de inclusão previdenciária de que trata o § 12 deste artigo terá alíquotas e carências inferiores às vigentes para os demais segurados do regime geral de previdência social.”
Desta forma, sanando a omissão existente na Emenda Constitucional nº41/03, o poder constituinte derivado expressamente estabeleceu os mecanismos a serem utilizados para fins de implementação desta política de inclusão social: redução de alíquotas das contribuições devidas, redução da carência para a concessão de benefícios e garantia de renda no valor de um salário mínimo. A implementação deste sistema, no entanto, ficou a cargo do legislador infraconstitucional, conforme veremos abaixo.
7. Dos mecanismos já existentes de inclusão dos trabalhadores de baixa renda.
Não obstante o avanço social introduzido no ordenamento jurídico pela Emenda Constitucional nº47/2005, destaca-se que não se trata de um mecanismo inédito em nosso ordenamento jurídico no que diz respeito à inclusão de segurados considerados de baixa renda.
A legislação previdenciária desde a Constituição Federal de 1988 apresenta dispositivos direcionados à inclusão destes trabalhadores, muito embora não utilize esta nomenclatura.
Como exemplo, podemos citar o tratamento dado aos denominados segurados especiais[16], cuja contribuição atinge 2,1% do valor bruto da comercialização de sua produção (artigo 25 da Lei nº 8.212/91).
Para esta categoria, a concessão de benefícios no âmbito da Previdência Social não está condicionada à comprovação da efetiva contribuição, mas tão somente à demonstração do efetivo exercício de atividade rural em número de meses idêntico à carência necessária para a obtenção do benefício (conforme dispõe os artigos 39, inciso I e 143 da Lei nº 8.213/91).
Encontramos também tratamento especial aos segurados de baixa renda no artigo 20 da Lei nº 8.212/91, que estabelece alíquotas diferenciadas para os segurados empregados, empregados domésticos e trabalhadores avulsos, de acordo com a renda mensal auferida, variando de 8% a 11%.
Fora destas hipóteses, no entanto, a legislação não previa outros mecanismos concretos destinados à inclusão de trabalhadores de menor poder aquisitivo, especialmente aqueles que se enquadram na categoria de segurados contribuintes individuais, bem como aos segurados facultativos, cuja alíquota até então vigente, inviabilizava o acesso de inúmeros trabalhadores ao Regime Previdenciário.
Para estas duas categorias, independentemente do valor do salário de contribuição, a alíquota, via de regra, era de 20% (artigo 21 da Lei nº 8.212/91) sobre o salário de contribuição.
A contar da Emenda Constitucional nº 47/05, abriu-se a possibilidade do legislador ordinário identificar, dentro da categoria dos segurados contribuintes individuais e dos segurados facultativos, as situações que se enquadram no conceito de baixa renda e ofertar a estas categorias regimes diferenciados de contribuição e de concessão de benefícios.
8. Das alterações legais derivadas da Emenda Constitucional nº 47/05.
Com arrimo nas alterações introduzidas no artigo 201 §§ 12 e 13 da CF, o legislador infraconstitucional implementou através da Lei Complementar nº 123/06 alterações na Lei nº 8.212/91 estabelecendo os primeiros mecanismos de inclusão previdenciária direcionados aos contribuintes individuais e segurados facultativos:
“Art. 21. § 2º. É de 11% (onze por cento) sobre o valor correspondente ao limite mínimo mensal do salário de contribuição a alíquota de contribuição do segurado contribuinte individual que trabalhe por conta própria, sem relação de trabalho com empresa ou equiparado, e do segurado facultativo que optarem pela exclusão do direito ao benefício de aposentadoria por tempo de contribuição.
§ 3o O segurado que tenha contribuído na forma do § 2o deste artigo e pretenda contar o tempo de contribuição correspondente para fins de obtenção da aposentadoria por tempo de contribuição ou da contagem recíproca do tempo de contribuição a que se refere o art. 94 da Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991, deverá complementar a contribuição mensal mediante o recolhimento de mais 9% (nove por cento), acrescido dos juros moratórios de que trata o disposto no art. 34 desta Lei.” (NR)
A contar da entrada em vigor de citada Lei Complementar (14/12/2006), ao segurado contribuinte individual que trabalhe por conta própria, sem relação de trabalho com empresa, e ao segurado facultativo que opte pela exclusão do direito ao benefício de aposentadoria por tempo de contribuição, facultou-se a redução da alíquota da contribuição social devida de 20% para 11% incidente sobre o salário mínimo.
Para as contribuições cuja base de cálculo (salário de contribuição) fosse superior ao salário mínimo ficou vedada a adoção da nova alíquota.
A Medida Provisória nº 529 de 07/04/2011 estendeu este mecanismo de inclusão previdenciária aos microempreendedores individuais[17], reduzindo a contribuição devida por estes segurados para o patamar de 5% incidente sobre o salário mínimo. Neste sentido dispõe citada MP:
“Art. 1o Os §§ 2o e 3o do art. 21 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, passam a vigorar com a seguinte redação:
§ 2o No caso de opção pela exclusão do direito ao benefício de aposentadoria por tempo de contribuição, a alíquota de contribuição, incidente sobre o limite mínimo mensal do salário de contribuição, será de:
I – onze por cento, no caso do segurado contribuinte individual, ressalvado o disposto no inciso II, que trabalhe por conta própria, sem relação de trabalho com empresa ou equiparado e do segurado facultativo; e
II – cinco por cento, no caso do microempreendedor individual, de que trata o art. 18-A da Lei Complementar no 123, de 14 de dezembro de 2006. (…)
Art. 2o Esta Medida Provisória entra em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos a partir do dia 1o de maio de 2011.”
Referida Medida Provisória foi convertida na Lei nº 12.470/2011 que, por sua vez, ampliou o rol de segurados sujeitos à contribuição com base na alíquota de 5%, incluindo, além do microempreendedor individual, o segurado facultativo sem renda própria que se dedique exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência, desde que pertencente a núcleo familiar de baixa renda[18]. Neste sentido dispõe a lei nº 12.470/2011:
“Os arts. 21 e 24 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, passam a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 21. § 2o No caso de opção pela exclusão do direito ao benefício de aposentadoria por tempo de contribuição, a alíquota de contribuição incidente sobre o limite mínimo mensal do salário de contribuição será de:
I – 11% (onze por cento), no caso do segurado contribuinte individual, ressalvado o disposto no inciso II, que trabalhe por conta própria, sem relação de trabalho com empresa ou equiparado e do segurado facultativo, observado o disposto na alínea b do inciso II deste parágrafo;
II – 5% (cinco por cento):
a) no caso do microempreendedor individual, de que trata o art. 18-A da Lei Complementar no 123, de 14 de dezembro de 2006; e
b) do segurado facultativo sem renda própria que se dedique exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência, desde que pertencente a família de baixa renda. (…)
§ 4o Considera-se de baixa renda, para os fins do disposto na alínea b do inciso II do § 2o deste artigo, a família inscrita no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal – CadÚnico cuja renda mensal seja de até 2 (dois) salários mínimos.” (NR)
Desta forma, a partir da publicação da Lei nº 12.470/11 (31/08/2011) restou implementado, ainda que parcialmente, o sistema de inclusão previdenciária, possibilitando a redução da alíquota da contribuição social devida pelos microempreendedores individuais e às pessoas que se dediquem ao trabalho doméstico em sua própria residência, desde que se enquadre no conceito de família de baixa renda.
Este sistema surge como um verdadeiro mecanismo de inclusão previdenciária, buscando efetivar a universalidade de cobertura dentro do universo de possíveis segurados do Regime Geral de Previdência Social.
Não se vislumbra, no entanto, uma completa regulação legal dos preceitos constitucionais, na medida em que não se implementou alterações no sistema previdenciário no que tange à redução da carência para a concessão de benefício a esta parcela de segurados, matéria que atualmente se encontra em discussão no congresso nacional[19].
9. Análise sistemática dos §§ 12 e 13 do artigo 201 da CF. Da (in)compatibilidade do sistema de inclusão previdenciária com os princípios constitucionais da Seguridade e da Previdência Social.
Não resta dúvida que as alterações formuladas pelo legislador infraconstitucional na Lei nº 8.212/91 com vistas à inclusão dos segurados de baixa renda encontra respaldo nos §§ 12 e 13 do artigo 201 da CF.
No entanto, não se pode negar que a correta interpretação da validade e constitucionalidade de determinada norma se condiciona a uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico e, no caso em tela, do sistema de Seguridade Social e de seu subsistema, a Previdência Social.
10. Dos princípios informadores da Seguridade Social e da Previdência Social.
O parágrafo único do artigo 194 da CF aponta os princípios fundamentais do sistema de Seguridade Social Brasileiro:
“I- universalidade da cobertura e do atendimento;
II- uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais;
III- seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços;
IV- irredutibilidade do valor dos benefícios;
V- eqüidade na forma de participação no custeio;
VI- diversidade da base de financiamento;
VII- caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.”
Como princípio implícito, a solidariedade social complementa este quadro, pois inspira a organização de um sistema oficial de proteção aos necessitados, conforme preceitua o artigo 3º da Constituição, representando a solidariedade entre os membros da sociedade[20].
Soma-se a estes o princípio da contrapartida, constitucionalmente previsto no artigo 195 §5º e que estabelece a impossibilidade de criação, majoração ou ampliação de benefícios ou serviços no âmbito da seguridade social sem a correspondente fonte de custeio prévia.
E, especificamente no âmbito da Previdência Social, interessa-nos a análise do caráter contributivo e a manutenção do equilíbrio financeiro e atuarial do sistema (artigo 201 da CF).
Nos tópicos seguintes analisaremos os princípios mais relevantes e que diretamente se relacionam com o sistema de inclusão previdenciária instituído pela Lei nº 12.470/11.
11. Da universalidade da cobertura e do atendimento
A universalidade da cobertura e do atendimento da Seguridade Social é, sem dúvida, ao lado do princípio da solidariedade, o mais importante princípio do sistema de proteção social. Essencialmente, o princípio determina ao poder público o dever de amparar a todas as pessoas que se encontrem em estado de necessidade e, por outro lado, garante às pessoas o direito de serem protegidos pelo Sistema de Seguridade Social.
Trata-se de um princípio movido pela ideia de inclusão, tendo por desiderato tornar acessível a Seguridade Social à todos, buscando a efetiva proteção da população diante das contingências que lhe retirem a capacidade para o trabalho ou, simplesmente, diante de uma situação de necessidade social.
Por superar a concepção estrita de um seguro, que somente beneficia aos que a ele adere mediante contribuições adrede pactuadas, a seguridade social tem como pedra angular a universalidade. “Trata-se de um esquema protetivo amplo, moldado a partir da constatação, até certo ponto óbvia, de que sem a superação da miséria e das desigualdades não há bem-estar nem justiça social”[21].
Através da conjugação de ações e esforços nas áreas de saúde, assistência e previdência, o Estado tem o dever de atender toda a população, garantindo uma tutela de base, um padrão mínimo de vida capaz de garantir a dignidade da pessoa humana, sendo esta a essência do princípio da universalidade.
O princípio pode ser analisado sob duas perspectivas. A objetiva traduz a previsão de universalidade de cobertura dos riscos e contingências sociais, devendo as prestações abranger o maior número possível de situações geradoras de necessidades sociais, dentro da realidade econômica e financeira do Estado.
O aspecto subjetivo traduz-se na possibilidade de todos os integrantes da sociedade brasileira ter acesso às prestações de seguridade social, o que se traduz na universalidade de atendimento, inclusive no subsistema previdenciário, observado os requisitos legais.
Assim, como integrante do Sistema de Seguridade Social, a Previdência Social também deve objetivar este princípio observando-se, evidentemente, suas peculiaridades, dentre as quais o caráter contributivo, a filiação obrigatória e a manutenção do equilíbrio financeiro e atuarial.
Especificamente no que tange ao regime de inclusão previdenciária estabelecido pela Emenda Constitucional nº47/2005, observa-se a total compatibilidade das alterações constitucionais com a universalidade de cobertura proposta pelo poder constituinte originário.
Através das alterações introduzidas no ordenamento jurídico pela Lei complementar nº 123/06 e pela lei nº 12.470/11, deu-se efetividade normativa a regras já existentes no que se refere à obrigatoriedade de filiação dos contribuintes individuais, bem como se ampliou o universo de atendimento para os chamados segurados facultativos previstos no artigo 14 da Lei nº 8.212/91.
12. Da Seletividade e Distributividade na prestação dos benefícios e serviços
O princípio da seletividade direciona-se ao legislador infraconstitucional e impõe ao mesmo que defina os benefícios e serviços mais aptos a concretizar o ideal de proteção social dentro das possibilidades existentes. A seletividade aponta quais são as contingências e necessidades objeto da relação jurídica de seguridade social.
Segundo Marisa Ferreira dos Santos,
“a universalidade e a seletividade não se excluem, complementam-se, de acordo com a justiça distributiva. A seletividade e a distributividade são redutores da universalidade, por expressa autorização constitucional. Selecionando e distribuindo prestações de seguridade, o legislador proporciona um mínimo de bem-estar aos mais necessitados de proteção social, reduzindo a desigualdade que os atinge dentro do grupo social”[22].
O princípio da distributividade, também direcionado ao legislador, possibilita a identificação das prestações mais adequadas a amparar de forma eficiente um maior contingente populacional. A distributividade fixa o grau de proteção a que terão direito os beneficiários das prestações previamente selecionadas.
A seletividade e a distributividade são instrumentos que, no campo da seguridade social, viabilizam a consecução dos objetivos da ordem social insculpidos no artigo 193 da Constituição Federal.
Wagner Balera leciona que,
“Instituindo um elenco de prestações que, consideradas em seu conjunto, proporcionam aos beneficiários a justa situação social que lhes assegura o Estado Supremo, o legislador – animado por critérios de política social que escapam ao conhecimento do jurista – esgota o momento da seletividade. É, em suma, o próprio direito positivo quem terá cumprido o objetivo da seletividade. (…) A distributividade consiste na identificação daqueles bens que, mais do que por um direito próprio do indivíduo, são devidos por serem comuns”[23].
Estes princípios buscam imprimir racionalidade à distribuição da proteção social, cabendo ao legislador definir critérios com maior potencialidade de efetividade social, dentro dos limites financeiros e atuariais do sistema.
Segundo Marisa Ferreira dos Santos
“As políticas sociais, nessa parte, devem estar voltadas para a realização dos objetivos da Ordem Social: proporcionar bem-estar e justiça sociais. Devem promover a redução das desigualdades sociais e regionais, o que só pode ocorrer se a proteção social for racionalmente selecionada e distribuída entre os que dela necessitem”[24].
Neste contexto, o sistema de inclusão previdenciária, mais do que compatível com os princípios da seletividade e da distributividade, tem neles seu fundamento de validade. Ao legislador compete verificar os atores sociais que mais necessitam do amparo da Seguridade Social e propiciar, dentro das possibilidades legais e orçamentárias, a melhor proteção social possível.
A identificação desta parcela de segurados de baixa renda, até então excluída da proteção previdenciária ante a falta de capacidade contributiva, revela-se o mais puro exemplo da utilização dos princípios da seletividade e distributividade pelo legislador infraconstitucional.
13. Da equidade na forma de participação no custeio.
Dentro do estudo sistemático do novo regime de inclusão previdenciária estabelecido pela Lei nº 12.470/11, assume especial relevo o princípio na equidade na forma de participação no custeio da Seguridade Social.
Sobre o princípio, José A. Savaris escreve que
“esta equidade, bem de ver-se, mais do que igualdade e, para além de apenas reafirmar o princípio fiscal da capacidade contributiva, carrega a idéia de que no domínio do financiamento da Seguridade social, o conteúdo da obrigação de recolhimento das contribuições leva em consideração a capacidade de prestar solidariedade (superioridade ou inferioridade econômica) e, também, a probabilidade de a atividade produzida gerar riscos de subsistência”[25].
Este princípio norteia a instituição das contribuições sociais, relacionando-as à capacidade de determinada categoria ou contribuinte prestar solidariedade, bem como ao risco social referente a cada contribuinte. Nesta perspectiva, este princípio é considerado um reflexo da isonomia tributária no Sistema de Seguridade Social.
Quanto ao princípio da isonomia Celso Antônio Bandeira de Mello leciona que
“A lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos. Este é o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo modo assimilado pelos sistemas normativos vigentes”[26].
Por meio deste princípio, o que a ordem jurídica pretende firmar é a impossibilidade de desequiparações fortuitas ou injustificadas. Visa propiciar garantia individual e tolher favoritismos[27].
Alexandre de Moraes faz considerações importantes quanto ao tema:
“A Constituição Federal de 1988 adotou o Princípio da Igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito”[28].
No Sistema de Seguridade Social a equidade impõe, além da consideração da capacidade contributiva do contribuinte, considerações acerca do risco social provocado pelo sujeito passivo[29].
Segundo Wagner Balera,
“o legislador deverá, sempre e necessariamente, em nosso entender, encontrar técnicas de tributação que não apenas revelem as riquezas existentes, mas, além disso, identifiquem nelas parcelas que, excedendo o necessário, devem ser repartidas com a comunidade na qual se insere o contribuinte”[30].
Não restam dúvidas, portanto, que as regras previstas no §12 e §13, primeira parte, do artigo 201 da CF, regulamentadas pela Lei nº 12.470/11, identificam-se plenamente com o princípio da equidade na forma de participação no custeio do sistema, na medida em que desonera os trabalhadores de acordo com os seus rendimentos ou situação econômica familiar.
14. Da solidariedade.
A solidariedade, princípio informador da Seguridade Social como um todo, se expressa preponderantemente no campo do custeio através do seu financiamento por toda a sociedade, conforme preceitua o artigo 195 da Constituição Federal.
Nas palavras de Leandro Paulsen,
“podem as pessoas físicas e jurídicas ser chamadas ao custeio em razão da relevância social da seguridade, independentemente de terem ou não relação direta com os segurados ou de serem ou não destinatárias de benefícios. A Seguridade social, pois, tal como organizada no Brasil, é inspirada no princípio da solidariedade”[31].
O princípio da solidariedade caracteriza-se pela cotização coletiva em prol daqueles que, participando do sistema, se encontram em necessidade social, justificando um sistema de desoneração dos segurados de baixa renda, que possuem uma reduzida capacidade contributiva.
15. Do princípio da contrapartida.
O princípio da contrapartida, constitucionalmente previsto no artigo 195 §5º, estabelece a impossibilidade de criação, majoração ou ampliação de benefícios ou serviços no âmbito da seguridade social sem a correspondente fonte de custeio prévia. Trata-se de princípio direcionado ao legislador infraconstitucional e demanda, quando da criação, majoração ou ampliação de qualquer benefício ou serviço, a identificação da correspondente fonte de custeio, sob pena de desequilíbrio financeiro do sistema de seguridade social (e evidente inconstitucionalidade da norma instituidora ou ampliadora da benesse).
Especificamente no que tange à lei 12.470/2011, duas questões devem ser levantadas. A primeira diz respeito à subsunção do sistema de inclusão previdenciária ao disposto no artigo 195 § 5º da CF. A segunda se refere à existência de previsão legal quanto às fontes de custeio deste novo sistema.
A dificuldade na elaboração de uma resposta no que diz respeito ao cumprimento do princípio da contrapartida se deve ao fato de não se visualizar na lei nº 12.470/11, de plano, uma das situações estabelecidas no artigo 195 §5º da CF. Com efeito, a redução de alíquota da contribuição social não corresponde, ao menos diretamente, à criação, majoração ou extensão de benefício ou serviço.
Trata-se, como exposto, de uma redução constitucionalmente prevista da contribuição devida por específica classe de segurados. Por outro lado, não há dúvida de que se trata de uma hipótese legal de renúncia fiscal por parte do Estado, na medida em que se desonera parcela dos segurados do sistema previdenciário.
Deste ponto de visto, no nosso entendimento, a redução de alíquotas para os segurados de baixa renda deve observar o disposto no artigo 195 §5º da CF, na medida em que gera uma redução de receitas e conseqüente desequilíbrio financeiro, o que demanda a indicação, pelo legislador, de fonte de custeio prévia apta a equilibrar o sistema.
Quanto ao tema, a mensagem nº 93 da Presidência da República, relativa à Medida Provisória nº 529, de 7 de abril de 2011 (que reduziu a alíquota da contribuição social do microempreendedor individual para 5%) afirma que
“com relação ao art. 14 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), cabe informar que a renúncia de receita decorrente do disposto nesta Medida Provisória será de R$ 276 milhões para o ano de 2011 e R$ 414 milhões nos anos de 2012 e 2013. A renúncia será compensada com o aumento de arrecadação de R$ 140 milhões decorrente da edição dos Decretos nº 7.455, de 25 de março de 2011, e nº 7.456, de 25 de março de 2011, remanescente da compensação efetuada com a estimativa de renúncia da Medida Provisória nº 528, de 25 de março de 2011. Já os R$ 136 milhões restantes serão advindos da edição do Decreto nº 7.457, de 6 de abril de 2011.”
Portanto, não resta dúvida quanto a necessidade de observância do princípio da contrapartida nas hipóteses de renúncia fiscal através de redução de alíquotas, na medida em que se visualiza um desequilíbrio financeiro e atuarial do sistema previdenciário, o que, inclusive, foi observado quando da edição da Medida Provisória nº 529/11.
No entanto, quando da conversão de citada Medida Provisória em lei, acolheu-se a Emenda nº 2, de autoria das Senadoras Gleisi Hoffmann, Ângela Portela, Ana Rita, Luci Choinacki e Benedita da Silva, com a conseqüente extensão da alíquota de 5% também para as donas de casa de baixa renda. Quando da apreciação de referida emenda, o relator assim dispôs:
“A emenda nº 2 é oportuna e meritória, pois visa suprir lacuna de regulamentação de dispositivo constitucional. Quanto à adequação orçamentária e financeira, entendemos que não haverá redução na receita previdenciária, pois, se de um lado, alguns segurados facultativos passarão a recolher sobre valor inferior, de outro, haverá milhares de novos segurados que não tinham condições de contribuir e, agora, com a alíquota reduzida, terão condições de contribuir para o sistema previdenciário.”
Não obstante no entendimento exposto no relatório final que precedeu a conversão da Medida Provisória nº 529/11 na Lei nº 12.470/11, evidente que a redução das alíquotas para os segurados facultativos de baixa renda arrolados no §12 do artigo 201 da CF constitui uma renúncia à contribuição social e gera um desequilíbrio no sistema, na medida em que se reduz o montante dos ingressos e se amplia o número de futuros beneficiários.
Evidencia-se, portanto, uma afronta ao princípio da contrapartida, na medida em que se amplia o rol de segurados (e futuros beneficiários) e, por outro lado, se reduz o valor da contribuição.
Reflexamente, a redução da contribuição implica em um desequilíbrio do sistema previdenciário nacional, matéria que analisaremos a seguir, relativa aos princípios específicos da Previdência Social.
17. Do Caráter Contributivo da Previdência Social.
A contributividade na Previdência Social impõe que os próprios beneficiários e demais atores sociais envolvidos na relação de trabalho sejam chamados a financiar este sistema de proteção social de forma preponderante. Trata-se de uma característica exclusiva da Previdência Social, não sendo aplicada às áreas da Saúde e Assistência Social.
Segundo Paul Durand,
“o pagamento de uma contribuição especial, distinta dos impostos gerais, produz nos beneficiários um claro sentido de que estão participando nos gastos de cobertura dos riscos sociais. A contributividade impede a crença de que as prestações são benefícios gratuitos concedidos pelo Estado, sendo este aspecto psicológico um elemento que não pode ser minimizado”[32].
Assim, o caráter contributivo colabora para o envolvimento direto de toda a sociedade na proteção social e enfatiza o direito à Previdência Social como um direito público subjetivo.
O contributividade não impõe um caráter bilateral, sinalagmático, à previdência social. Esta característica do sistema previdenciário apenas coloca o trabalhador como um dos alicerces do sistema de financiamento da Previdência Social e condiciona a concessão de alguns benefícios à comprovação de um determinado número de contribuições, como forma de manutenção do sistema pelos próprios beneficiários.
Este princípio não impõe ao segurado a obrigatoriedade de arcar com todo o custo da manutenção futura de seu benefício (o que se relaciona com a noção de capitalização). Impõe, tão somente, que o segurado seja também chamado a contribuir para o Regime previdenciário de proteção.
Nesta medida, considerando o universo de atores sociais que são chamados a financiar a seguridade social (artigo 195 da CF), não se afigura uma afronta ao caráter contributivo a redução da alíquota para os microempreendedores individuais e donas de casa de baixa renda.
18. Da Preservação do Equilíbrio Financeiro e Atuarial da Previdência Social.
A introdução do preceito da necessidade de equilíbrio financeiro e atuarial no artigo 201 da CF por meio de Emenda Constitucional nº 20/98 teve como propósito direto estabelecer uma meta de equilíbrio entre as receitas e despesas do sistema previdenciário.
Este preceito vai além do princípio da contrapartida, estabelecido no artigo 195 §5º da CF, tendo em vista que busca equacionar as receitas e despesas do sistema em uma perspectiva dinâmica, ou seja, ao longo do tempo, ao contrário do princípio da contrapartida, focado preponderantemente no momento da criação ou majoração de benefício ou serviço.
O equilíbrio financeiro e atuarial visa essencialmente manter, ao longo do tempo, o equilíbrio entre os valores arrecadados pelo sistema e as respectivas despesas.
Este preceito, no nosso entendimento, é intrínseco aos modelos de proteção social que adotam um regime de repartição, baseado no pacto intergeracional. Isto porque, nestes modelos, o pagamento de benefícios atuais é financiado pelas contribuições vertidas pelos trabalhadores e demais segurados em atividade. O contínuo desequilíbrio tem como consequência inevitável a ruptura do modelo ou sua incapacidade de arcar com as despesas de pagamento dos benefícios.
Desta forma, o preceito insculpido no artigo 201 da Constituição Federal veio tão somente reafirmar a necessidade de manutenção do equilíbrio entre receitas e despesas no âmbito da Previdência Social e, somado ao princípio contido no artigo 195 § 5º da CF, procura preservar o sistema protetivo para as futuras gerações.
Neste ponto reside um dos principais problemas do novo sistema de inclusão previdenciária estabelecido pela Lei nº 12.470/11. Isto porque, como exposto, há por parte do Estado uma renúncia à arrecadação, reduzindo-se a alíquota das contribuições sociais devidas pelo microempreendedor individual e da contribuição facultada às donas de casa de baixa renda.
Não resta dúvida que este mecanismo, num primeiro momento, amplia o número de segurados e, consequentemente, das receitas previdenciárias. No entanto, num médio e longo prazo, este grupo de contribuintes tende naturalmente a se tornar beneficiário do regime, ampliando as despesas sem um correspondente e adequado aporte financeiro ao sistema.
Além disso, este necessário equilíbrio deve existir especificamente dentro do orçamento da seguridade social, indicando-se novas fontes de receitas aptas a cobrirem a renúncia fiscal derivada da Lei nº 12.470/11, o que não se visualiza na análise de referida lei ou da medida provisória precedente[33].
No entanto, em razão da atual organização orçamentária, da inexistência de um orçamento específico da Previdência Social, da existência da chamada desvinculação de Receitas de União, entre outros fatores, o que se observa é a impossibilidade de verificação e controle do equilíbrio financeiro e atuarial da Previdência Social. Este fato leva a um crescente discurso de déficit previdenciário e sistemática criação de mecanismos redutores dos benefícios previdenciários com valor superior ao salário mínimo, tendo como fundamento, justamente, a falta de recurso para a manutenção de um sistema protetivo integral que dê segurança econômica a todos os segurados, segundo seu histórico contributivo.
Ainda mais polêmica, a redução da carência para a concessão de benefício aos segurados microempreendedores individuais e às donas de casa de baixa renda (medida ainda não implantada pelo legislador infraconstitucional). Isto porque, esta medida inegavelmente ampliará as possibilidades de concessão de benefícios no âmbito do Regime Geral de Previdência Social e, consequentemente, terá como reflexo a majoração das despesas do regime, devendo, portanto, ser respaldada por mecanismos compensatórios (artigo 195 §5º da CF). Quanto à redução da carência no sistema de inclusão previdenciária, trataremos melhor do tema no item seguinte.
19. Do princípio da equidade no âmbito da Previdência Social.
Por fim, encerrando a análise constitucional do sistema de inclusão previdenciária introduzido pela Lei nº 12.470/11, chegamos ao artigo 201, §1º da Constituição Federal que dispõe:
“§ 1º. É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral de previdência social, ressalvados os casos de atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física e quando se tratar de segurados portadores de deficiência, nos termos definidos em lei complementar[34].”
A análise deste dispositivo é de suma importância, pois nos leva a uma aparente afronta com a parte final do §13 do artigo 201 da CF que dispõe sobre a redução da carência no sistema de inclusão previdenciária:
“§ 13. O sistema especial de inclusão previdenciária de que trata o § 12 deste artigo terá alíquotas e carências inferiores às vigentes para os demais segurados do regime geral de previdência social.”
Conforme exposto anteriormente, a redução da alíquota da contribuição social devida pelos segurados de baixa renda se justifica com base em inúmeros princípios constitucionais, dentre os quais se destacam a equidade na forma de participação no custeio, solidariedade social, a capacidade contributiva, a universalidade de atendimento, a seletividade e a distributividade.
O mesmo não se pode dizer quanto à redução da carência para a concessão de benefícios a estes segurados[35].
Isto porque, em primeiro lugar, há expressa vedação no §1º do artigo 201 da CF quanto a adoção de critérios diferenciados para a concessão de aposentadorias dentro do RGPS (ressalvado as hipóteses de condições especiais de trabalho e segurados portadores de deficiência).
Ademais, a redução da carência para a concessão de benefícios aos segurados de baixa renda representa afronta ao princípio da isonomia, na medida em que facilita o acesso a benefícios apenas para parte dos segurados do Regime, mantendo-se os atuais critérios de concessão para os demais, independentemente da renda auferida.
Do ponto de vista lógico, o fato do segurado se enquadrar na condição de microempreendedor individual ou segurado facultativo pertencente a família de baixa renda, sem renda própria que se dedique exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência não justifica a redução da carência para a concessão de benefícios. Isto porque, ao contrário do que ocorre quanto se fala em redução de alíquota contributiva, não existe uma correlação lógica, direta e necessária entre ser o segurado uma pessoa de baixa renda ou um microempreendedor individual e a necessidade de redução dos requisitos para a concessão de benefícios.
A baixa renda do segurado, do ponto de vista lógico, evidentemente, justifica apenas a redução da alíquota contributiva, estando este mecanismo amparado pelos princípios da equidade na forma de participação do custeio, observância de sua capacidade contributiva e da solidariedade social.
A instituição de um sistema que englobe redução de alíquota somada à redução de carência inegavelmente cria uma classe diferenciada de segurados que não se justifica quando analisada com base no princípio constitucional da isonomia e no próprio caráter contributivo da Previdência Social.
Soma-se a estes argumentos o fato de que a redução da carência para a concessão de benefícios aos segurados de baixa renda, sem sombra de dúvidas, corresponde à criação de um novo benefício, com um incremento de despesas por parte do Regime Geral de Previdência Social, o que demanda observância do disposto no artigo 195 §5º da CF (acima analisado) e do equilíbrio financeiro e atuarial do RGPS (artigo 201 da CF).
Portanto, no nosso entendimento, a redução da carência prevista no sistema de inclusão previdenciária não se compatibiliza com os princípios constitucionais da Seguridade Social e da Previdência Social.
20. Conclusão.
Conforme demonstrado, a política de inclusão dos segurados de baixa renda visa, essencialmente, dar efetividade normativa ao princípio da universalidade no âmbito da Previdência Social, de forma a inserir no sistema pessoas que, muito embora sejam considerados segurados (obrigatórios ou facultativos), não possuem capacidade contributiva para arcar com o ônus desta condição.
A política indicada pelo constituinte para a efetiva inclusão destes segurados no sistema se ampara em duas bases: na redução de alíquotas contributivas e na redução da carência para a concessão de benefícios.
No que diz respeito à redução da alíquota da contribuição social devida pelos segurados arrolados no § 12 do artigo 201 da CF, ficou demonstrado que esta política se mostra compatível com os princípios constitucionais que regem a Seguridade Social e o subsistema de Previdência Social.
A redução da carga contributiva destes segurados de baixa renda se amolda aos princípios constitucionais da equidade na forma de participação do custeio, isonomia tributária e solidariedade social, além de dar efetividade normativa ao princípio da universalidade de cobertura e atendimento.
Quanto à política de redução da carência para a concessão de benefícios dentro deste sistema de inclusão previdenciária, no entanto, entendemos que referida política, ainda não regulamentado pelo legislador infraconstitucional, fere o § 1º do artigo 201 da CF que veda a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral de previdência social.
Além disso, a fato do segurado se enquadrar na condição de microempreendedor individual ou segurado facultativo sem renda própria que se dedique exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência, no nosso entendimento, não justifica a redução da carência para a concessão de benefícios, não sendo esta situação jurídica apta para justificar a inclusão de critérios diferenciados no sistema previdenciário.
Por fim, procuramos demonstrar que a implementação deste novo sistema de inclusão previdenciária de segurados de baixa renda, baseado na redução de alíquota e de carência deve ser acompanhado de expressa previsão de fontes de custeio prévias (art. 195 §5º da CF), sob pena de desequilíbrio do já deficitário Regime Geral de Previdência Social.
Desta forma, não obstante a importância deste novo sistema de inclusão previdenciária implantado pela Lei nº 12.470/11 e sua compatibilidade com os princípios da Seguridade Social, devemos estar atentos às características de nosso sistema previdenciário, de forma a preservar, no curto, médio e longo prazo, o equilíbrio financeiro e atuarial da Previdência Social.
Informações Sobre o Autor
José Francisco Furlan Rocha
Procurador Federal, bacharel em direito pela UNESP, mestrando em Direito Previdenciário pela PUC/SP.