A colaboração processual como firme instrumento à consecução do acesso à justiça

Resumo: O presente ensaio visa analisar a temática do acesso à justiça sob ângulo próprio e desafiador: a repercussão da atuação colaborativa no campo processual. Sabe-se que no atual estágio em que se encontra o direito, o princípio do acesso à justiça, insculpido no artigo 5°, inciso XXXV da Constituição, passa a ganhar novos contornos. Muito mais que um dever de acessar o Judiciário, o dispositivo informa genuíno direito posto a favor do jurisdicionado que, ao exercitá-lo, deverá fazê-lo com racionalidade e de forma devida, é dizer, sem qualquer abuso. Desta feita, é evidente o interesse público existente no adequado desenvolvimento do processo, cuja finalidade última consiste justamente na prestação de uma tutela jurisdicional efetiva e justa, capaz de solucionar o litígio instaurado em prazo razoável, por meio da adequada aplicação da regra material. Imaginar um ambiente processual em que todos os atores agem com objetivos comuns, unindo esforços para a rápida terminação do litígio via tutela estatal, perpassa, necessariamente, pela escorreita assimilação do dever de cooperação por todos aqueles sujeitos que interferem no andamento processual. Pois bem, é dentro desse contexto, por meio de aportes trazidos especialmente pela doutrina e jurisprudência que se desenvolverá o tema ora proposto. 

Palavras-chave: Colaboração processual. Acesso à justiça. Repercussões. Gratuidade. Direito ao recurso.

Abstract: The present research aims to examine the theme of access to justice from a specific and challenging angle: the impacts of collaboration in the procedural. The current state whereby law in which it is, the constitutional right of access to justice, expressed under article 5, XXXV of Federal Constitution got new outlines. Much more than a simple duty to access Judicial System the device provides a genuine right in favour of litigant which must exercise it with rationality and without abuse. Therefore public interest´s is clear about regular development of process whose main purpose is to provide a fear and active judicial protection able to solve the controversy on time and apply the correct regulation. Imagine a setting where the litigants act in concert and try hard to finish the conflict presume a necessary cooperation´s assimilation by everyone which participate on procedural. In such context, will be developed the present investigation by a doutrinary and jurisprudence research.      

Keywords: Procedural Collaboration. Access to justice. Effects.  Gratuitousness. Right to appeal.

Sumário: Introdução. 1. Princípio da cooperação: Generalidades. 2. A aplicação concreta da cooperação no seio processual. 2.1 A interferência da cooperação no comportamento dos sujeitos. 3. A legislação processual vigente: análise de temas correlatos à luz da colaboração. 3.1 A temática do benefício da gratuidade da justiça.  3.2 A cultura da recorribilidade. À guisa de conclusão. Referências.  

Introdução

Dezenas de razões podem ser adequadamente indicadas para se explicar a gravíssima situação na qual se insere o Poder Judiciário Brasileiro. Dentre elas, citam-se, apenas à guisa de exemplo, o espírito beligerante da sociedade moderna, ávida por um pronunciamento judicial acerca do conflito envolvido (crise de mentalidade, resultante da denominada cultura da sentença, em detrimento da cultura da pacificação).

Além disso, a falta de estrutura física, material e humana, aptas a suportar o indigitado demandismo, revelam a verdadeira calamidade instaurada dentro do sistema pátrio.

Não raro, nos deparamos com escritos que identificam os problemas da falta de efetividade e da má distribuição do ônus do tempo processual como os fatores preponderantes para que se atribua a pecha de ineficiência à atividade jurisdicional prestada pelos órgãos estatais.   

É indubitável que tais dificuldades tisnam o que hodiernamente se compreende por um acesso à justiça legítimo e eficaz. Na adjetivação consagrada pelo Professor Kazuo Watanable, o acesso do jurisdicionado deve ocorrer, sobretudo, a uma ordem jurídica justa.

Desenvolvendo os ensinamentos do processualista, adequação, efetividade e tempestividade passaram, de igual modo, a gravitar de maneira intensa e concreta em torno do ideário revelador do direito de acessar a justiça.

A despeito de se reconhecer, com absoluta tranquilidade, que o quadro desanimador acima gizado não evidencia uma realidade que afeta exclusivamente o modelo brasileiro, visto que constitui pauta de enfrentamento de diversos sistemas jurídicos, torna-se oportuno propor o exame da dita problemática sob uma perspectiva própria: os reais influxos resultantes da atuação colaborativa dos atores processuais na temática do acesso à justiça.

Em outras palavras e de maneira mais simplória, cumpre verificar se e de que modo o comportamento dos sujeitos, acaso condizentes com o dever da cooperação processual, pode repercutir no efetivo alcance do acesso à justiça, tal como já preconizado e difundido alhures.

1 Princípio da cooperação: Generalidades

Como é sabido, o alcunhado modelo cooperativo ou colaborativo de processo decorre de um fenômeno de clara aproximação do direito processual com a matriz insculpida pelo festejado Estado Constitucional, passando-se a exigir do operador uma compreensão atualizada (e alterada) do processo como um todo.

Em síntese, o referido modelo implica uma percepção mais humanizada do conflito instaurado – que se apresenta cada vez mais complexo ante as infindáveis relações a que estamos sujeitos – reverberando série de técnicas postas à disposição pelo ordenamento, tudo em ordem a tornar o sistema processual uma ferramenta capaz de assegurar seu escopo social, é dizer, a pacificação. Aliás, muito oportuna a transcrição de passagem constante em obra de Daniel Mitidiero, que assim discorre acerca do modelo cooperativo:

“O processo cooperativo parte da ideia que o Estado tem como dever primordial propiciar condições para organização de uma sociedade livre, justa e solidária, fundado que está na dignidade da pessoa humana. Indivíduo, sociedade civil e Estado acabam por ocupar assim posições coordenadas. O direito a ser concretizado é um direito que conta com a juris prudentia, nada obstante concebido, abstratamente, como scientia juris. Por essa vereda, o contraditório acaba assumindo novamente um local de destaque na construção do formalismo processual, sendo instrumento ótimo para viabilização do diálogo e da cooperação no processo, que implica de seu turno necessariamente a previsão de deveres de conduta tanto para as partes como para o órgão jurisdicional” (MITIDIERO, 2007, p. 74).

Nessa senda, deverão emergir da relação processual posta vetores axiológicos a incidir diretamente não apenas sobre a autoridade julgadora, cuja tarefa de bem conduzir o processo constitui escopo inafastável; mas também sobre as partes conflitantes, intensamente afetadas, na medida em que necessitam atuar em juízo, despidas de interesses escusos, pequenos e insidiosos; e, ainda, sobre todos aqueles que, de alguma forma, influem no desenvolvimento da relação instaurada, aqui compreendidos os serventuários da justiça, os profissionais nomeados pelo juízo para funcionarem como peritos da causa, dentre outros de idêntica relevância.  

Destarte, a observância de valores caros como boa-fé, tratamento paritário ou isonômico, garantia de um contraditório prévio, efetivo e participativo, flexibilização procedimental, máximo respeito à motivação dos pronunciamentos judiciais e ampla atuação da figura do amicus curiae[1], constitui clara tendência a ser enaltecida pela colaboração no palco do processo. Este, aliás, conforme oportuna advertência de Ovídio A. Baptista da Silva, só pode ser concebido como um espaço autêntico e fértil para o pleno exercício da cidadania.    

Á toda evidência, a colaboração processual passou a ser uma constante nos diplomas instrumentais civis mundo afora. No Brasil, o modelo implementado pela Lei 13.105/2015 seguiu idêntica trilha, não perdendo de vista a necessidade de tutelar explicitamente o dever de ampla cooperação e a temática da efetividade. Tal constatação se extrai da leitura do artigo 6º da mencionada lei.[2] Ainda, o esmero legislativo com a cooperação processual traduz-se, verdadeiramente, em importantíssimo mecanismo aceleratório de resolução de conflito.

Em que pese não constituir tarefa deste autor a análise aprofundada do princípio da cooperação à luz do Código de Processo Civil de 2015, vale mencionar, apenas para fins de registro, que o tratamento conferido pelo ordenamento pátrio poderia ser melhor desenvolvido, especialmente se confrontado com a regulamentação existente em outras nações, tais como nos Estados Unidos, Itália e Portugal.

2 A aplicação concreta da cooperação no seio processual

Óbvio que a tendência já verificada e consistente na inserção do princípio da colaboração processual nos diversos ordenamentos ao redor do mundo representa fator de evolução e mudança de pensamento entre os processualistas. Sem embargo, o papel de destaque que se vem conferindo ao princípio em exame não decorre unicamente da opção em prevê-lo expressamente no texto legal.

Ora, de nada adiantaria incluí-lo no catálogo de princípios expressos, se os atores que impulsionam efetivamente o processo não orientam seus respectivos comportamentos de acordo com a cooperação. De igual modo, sentido nenhum haverá se, a despeito do mandamento legislativo que invoca a cooperação como caminho a ser trilhado, o seu menosprezo não repercutir negativamente na esfera de direitos da parte recalcitrante.    

Não obstante a legislação atual já preveja instrumentos concretos para repelir comportamentos desonestos dos litigantes, deve ser ressaltado que também constitui dever do órgão judicial aplicá-los com mais rigor.

Nessa senda, mostra-se evidente a necessidade de se pensar o processo com nova roupagem, a partir da repercussão do modelo cooperativo na atuação dos sujeitos que nele atuam.

2.1 A interferência da cooperação no comportamento dos sujeitos

Partindo da sistemática posta, torna-se forçoso identificar como a atividade cooperativa, compreendida como a efetiva utilização dos mecanismos postos à disposição pelo ordenamento, reverbera no legítimo direito de acessar a justiça.

Assim, sendo, o que se pretende, nessa quadra, é evidenciar a necessidade de se estreitar o vínculo entre o modelo cooperativo a ser buscado pelas partes e a consecução do escorreito direito de acesso à jurisdição.

Com efeito, inicia-se a análise proposta a partir do órgão judicial, cujo comportamento, à luz do princípio da cooperação, é sobremaneira afetado.  Nessa perspectiva, ao magistrado é franqueado novo papel, saindo de cena o denominado juiz espectador ou juiz estátua, dando azo a uma nova função, de evidente protagonismo.

De tal arte, a atividade judicial, marcada por uma atuação proativa e pelo diálogo judiciário, exige do magistrado da causa um olhar diferente na condução do feito e também na terminação do litígio. Em nome da cooperação, não pode o juiz se esquivar do dever de máxima observância ao dever de consulta às partes.[3]

Nessa trilha, o provimento jurisdicional deve representar a soma dos esforços de todos aqueles que de algum modo participaram da demanda, não sendo ato que deriva unicamente da criação do magistrado.

Para tanto, exige-se do órgão estatal nova postura no campo processual, próximo das partes e mais participativo, promovendo de forma incessante o debate processual, em ordem a viabilizar o que outrora de denominou de diálogo judiciário. A este ponto, indispensável a contribuição de Yago de Carvalho Vasconcelos:

“(…) Ora, as partes não vêm a juízo simplesmente para apesentar fatos e indagar por suas repercussões jurídicas. Elas pretendem um resultado, e, dentro de um sistema legal democrático, têm todo o direito de participar ativamente de sua produção. Por essa razão, não se pode enxergar o magistrado como o senhor absoluto do processo que, do alto de sua onisciência jurídica, diz o direito aplicável aos fatos narrados pelas partes, meras expectadoras da atuação jurisdicional.”[4]

 Por meio do dever de consulta viabiliza-se a oportunidade aos litigantes de se manifestarem sobre determinado fundamento jurídico ou fático que entenda ser relevante. Caso contrário, estará o juiz agindo ao arrepio da nova sistemática processual, e, sobretudo, ao princípio da colaboração. Para arrematar tal linha argumentativa, impõe-se perfilhar o entendimento manifestado pelo Egrégio Tribunal Regional Federal, que sintetizou com bastante felicidade a temática do dever de consulta às partes, in verbis:

“APELAÇÃO CÍVEL. EXPURGOS INFLACIONÁRIOS. AÇÃO DE COBRANÇA. DOCUMENTOS INDISPENSÁVEIS À PROPOSITURA DA AÇÃO. PRINCÍPIO DA NÃO SURPRESA. 1. (…). 2. Conforme o princípio da não surpresa, positivado nos arts. 9 e 10 do novo código de processo civil, às portas de entrar em vigor, é vedado ao juiz decidir com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar. 3. A extinção do processo, sem resolução do mérito, tendo por fundamento fato ao qual o juiz não oportunizou manifestação, ou, ainda, quando aparentemente sanado o vício, caracteriza violação ao devido processo legal e, por consequência, ao Princípio da Não Surpresa, base da nova ordem legal processual civil. APELAÇÃO PROVIDA.” (Apelação Cível Nº 70040791626, Vigésima Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Paula Dalbosco, Julgado em 18/02/2016, grifos deste autor).[5]

Ainda sob a ótica da cooperação processual aplicada ao órgão judicial, incumbe ao magistrado a realização da gestão ou gerenciamento do processo – case management, aqui entendido na sua acepção estrita, isso é, como atividade judicial cognitiva implementada dentro do feito com vistas a solucionar adequadamente a contenda.

Nessa quadra, ganha bastante relevo a temática da instrumentalidade das formas, isso é, o desapego a formalidades excessivas em prol da efetividade e do atingimento de um provimento meritório, que consiga verdadeiramente desatar o litígio travado.

Trata-se de evidente manifestação de mais um viés do princípio cooperativo, consistente no dever que recai para o juiz de sanar eventuais defeitos que se manifestem no processo, conferindo, desse modo, máximo aproveitamento aos atos processuais realizados.

Para fins de melhor esclarecimento, convém repisar o comando esposado no artigo 321 do atual Código de ritos, ao tratar da emenda à peça inicial e cujo determinação ao juiz é muito clara no seguinte sentido: Não basta, Sr. Juiz, determinar à parte a emenda, sendo igualmente necessário que seja apontado, com precisão, o que deve ser corrigido.

Portanto, o que pretende o legislador de 2015 nessa passagem e em dezenas outras é propugnar uma nova forma de compreender o direito processual civil, tendo a cooperação como espécie de princípio a orientar todo o ordenamento processual vigente.  

Sob a perspectiva das partes e dos procuradores, a colaboração funcionará como seguro instrumento de garantia do acesso à justiça a partir do momento em que o Poder Judiciário não for identificado como seara adequada para a veiculação de demandas aventureiras, temerosas e espúrias, desprovidas de uma motivação mínima razoável.

Não custa repisar que o Judiciário brasileiro está abarrotado de demandas nos termos acima mencionados. Destarte, conclui-se que a consciência do jurisdicionado deve, necessariamente, evoluir sob o ponto de vista cultural, sendo certo dizer, ainda, que revela-se como imperiosa a necessidade de se estabelecer balizas ao preceptivo que garante a inafastabilidade do controle jurisdicional (Artigo 5º, inciso XXXV, CF88).

A plena garantia do acesso ao judiciário, consoante gizado alhures, não dispensa a necessidade de o cidadão, usuário do serviço judiciário, utilizá-lo apenas quando preciso for, sob pena do uso trasmudar-se em verdadeiro abuso, tudo em razão de uma assimilação divorciada do aludido direito.

Com efeito, a expressiva litigiosidade identificada no cenário brasileiro reverbera de forma deletéria na prestação do serviço judiciário, propiciando um ambiente de extrema insegurança, repleto de provimentos pouco efetivos, arbitrários e não satisfativos. O resultado é certo: interposição de recursos desenfreados e agravamento de todo o sistema judicial, que acomete desde o juiz de piso da pequena comarca do interior até as altas cortes do País.    

Dentre os comportamentos que podem ser identificados como aplicáveis às partes em decorrência do princípio cooperativo, pode-se registrar a necessidade de as grandes empresas, intensamente acionadas nas demandas massificadas, organizarem melhor seus respectivos departamentos jurídicos, a fim de que as peças processuais apresentadas nesses tipos de ações deixem de ser singelas padronizações produzidas em escala. Como consequência, espera-se do gestor um olhar atento e individualizado, que passe a enxergar em cada demanda a possibilidade concreta de resolução de um litígio, atendo-se às circunstâncias fáticas que envolvem o caso apreciado.

Ademais, a ampliação das hipóteses de negociação processual, bem assim da calendarização, admitida a partir da novel legislação adjetiva, em seus artigos 190 e 191, conferem às partes a possibilidade de também buscarem a efetividade do processo, seja na acepção da duração razoável, seja no desenvolvimento de uma relação processual que se amolde de forma adequada ao direito material vindicado.

 Demais disso, a utilização do Judiciário deve ser verificada pelos contendores não como o caminho natural para a resolução do litígio, mas como via alternativa. Tal conclusão somente será corretamente apreendida em um ambiente de incentivo e fortalecimento dos denominados meios adequados de resolução de conflitos (Sistema Multiportas, fruto da experiência norte americana denominada Multi-Door Dispute Resolution Division).

A decisão que resulta de acordo, não custa o registro, propicia um grau bem maior de legitimidade ao pronunciamento, mormente se comparada com aquela proveniente de comando impositório de terceiro.

3 A legislação processual vigente: Análise de temas correlatos à luz da colaboração

Dentro do contexto acima desenvolvido, cumpre, a partir deste momento, examinar dois importantes temas do Direito Processual Civil, já sob as lentes da nova codificação vigente. Espera-se, com isso, traçar um link com a cooperação processual, em ordem a promover uma reflexão acerca dos reais estímulos (se é que existem) sentidos pelo jurisdicionado que intenciona cooperar em juízo. Demais disso, imprescindível verificar se as punições previstas são condizentes, é dizer, proporcionais e efetivas, ao prejuízo causado por aquele que se desvirtua da cooperação e atua tumultuando ou procrastinando o feito.

3.1 A temática do benefício da gratuidade da justiça 

Dentre as mais variadas alterações promovidas pela atual sistemática processual, advinda com a Lei 13.105/15, a matéria da gratuidade da justiça desponta como pauta da ordem do dia. Isso porque a legislação que dantes a regulamentava foi redigida na metade do século passado (Lei 1.060 de 1950), o que, por si só, já evidencia o seu descompasso com a realidade ora manifestada, gerando, por essas razões, intensas críticas e reclamos.

Com efeito, traz o CPC de 2015 uma seção própria destinada ao exame do benefício da justiça gratuita (artigos 98 ao 102), tendo, inclusive, derrogado a vetusta lei (VIDE artigo 1.072, inciso III). Nesse cenário, calha informar que o novo código conferiu percepção bastante clara e objetiva ao instituto da justiça gratuita. Questões referentes à abrangência do benefício, momento e forma adequados para a sua formulação, hipóteses de aviamento de recursos e modo de exercício do contraditório foram devidamente concebidas no texto legal.

No que atine à compreensão já existente (a Lei 1.060/50, em seu artigo 4º, já veicula previsão nesse sentido) de que à pessoa natural bastaria simples alegação de hipossuficiência financeira, inexiste qualquer mudança.

Na verdade, a redação do dispositivo correspondente (artigo 99, §3º, CPC15) mostra-se mais coerente e consentânea ao atual entendimento jurisprudencial consolidado, no sentido de que a presunção relativa de hipossuficiência, obtida com a mera alegação, possui aplicação restrita à pessoa natural.

Advirta-se que o próprio STJ, por meio da Súmula 481, já vaticinou vez que em se tratando de pessoa jurídica, a regra é diversa, na medida que guarda observância ao regramento comum do ônus da prova. Nesse segundo caso, portanto, a necessidade da suficiente demonstração da inexistência de recursos financeiros é uma tônica.

 No ponto da gratuidade judiciária, o CPC15 conferiu tratamento harmônico ao modelo constitucional de processo civil. De forma equilibrada, garantiu o legislador máximo acesso ao Poder Judiciário, inegável faceta do Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional, sem perder de vista, contudo, o compromisso com os deveres da verdade, lealdade, boa-fé e da efetividade no processo. Explica-se: Dentre as mais importantes inovações, uma é de apreensão obrigatória:

A partir da nova regulamentação, a imposição de multa ao sujeito que atua de forma ardilosa e imbuído de objetivos insidiosos passa a ser realidade que não pode ser desconsiderada pelo órgão judicial, ao verificar que a concessão do benefício em comento se deu mediante comportamento fraudulento e astucioso do requerente.

A multa, que pode chegar até 10 (dez) vezes o valor das despesas processuais (que não deixam de ser devidas, sendo, portanto, verbas cumulativas) será determinada nas hipóteses em que o sujeito, não obstante dispunha de recursos financeiros para suportar os custos do processo, agiu mediante farsa e buscou ludibriar o magistrado.

Tal dispositivo, muito bem-vindo, aliás, foi encartado no artigo 100, parágrafo único do CPC15, e visa rarear o que hoje se denomina de abuso do direito à gratuidade da justiça, consistente em verdadeira epidemia que acomete os jurisdicionados e que se traduz na generalizada formulação, perante o juízo estatal, do pleito de concessão de gratuidade, muitas vezes sem que exista a necessidade concreta em usufruir do benefício pretendido.

A delicadeza do tema não afasta o necessário dever de expô-lo com a devida retidão: O princípio insculpido no artigo 5º, inciso XXXV da CF88, de inesgotável valor e importância para o jurisdicionado, não pode servir de fundamento para legitimar a aplicação irracional e imprópria da gratuidade, instituto previsto apenas e tão somente aos que realmente não possuam condições de suportar os ônus do processo.

Assim sendo, com a expressa inclusão da possibilidade de aplicação de multa ao hipossuficiente dissimulado, bem assim da necessidade de recolhimento de todas as despesas que porventura tenha deixado de recolher (quando tiver sido revogado o benefício), espera-se que o quadro desanimado acima traçado seja modificado.[6]

Na verdade, exsurge, in casu, o princípio da colaboração processual como vetor de modulação comportamental das partes. Sem dúvida, a utilização escorreita da gratuidade da justiça no palco processual perpassa pelo cumprimento do dever de agir de forma colaborativa no foro.

3.2 A cultura da recorribilidade

Não representa mais novidade alguma a difusão de notícias dando conta que, anualmente, os Tribunais Brasileiros vêm sendo cada vez mais acionados, com vistas a reexaminar as demandas já apreciadas e sentenciadas durante longo trâmite operado em primeiro grau.

 Em que pese não ter sido contemplado expressamente em um preceptivo constitucional, o duplo grau de jurisdição decorre da própria noção de devido processo legal, funcionando como imprescindível instrumento de aprimoramento qualitativo das decisões, geralmente a cargo de órgão superior, composto por magistrados mais experientes e que, em tese, possuem maior capacidade para a análise da contenda posta.

Ainda, convém mencionar que a previsão de uma sistemática recursal, tal como estabelecido no modelo constitucional pátrio (inclusive com a previsão de tribunais superiores, cuja envergadura é de âmbito nacional), pressupõe a existência sólida do direito ao duplo grau (ou ao reexame, segundo proclamam alguns).

Nada obstante a indispensabilidade do princípio do duplo grau de jurisdição, mormente no Estado Democrático de Direito, a sua aplicação deve se operar com parcimônia e idêntico equilíbrio, sob pena de sempre se considerar o recurso como via idônea e legítima de se prolongar indefinidamente o feito. Não se pode esquecer que a celeridade, insculpida no artigo 5º, inciso LXXVIII da CF88, é intensamente violada na hipótese em que o recurso é lançado como instrumento de procrastinação.

Explica-se: Muitas das vezes, o recurso é manejado não em razão de uma dúvida razoável apta a alterar a orientação emanada pelo juízo de piso, mas como um direito de resistência, desprovido de qualquer fundamento, ao comando judicial proposto. Não por outro motivo que nos deparamos, aos montes, com feitos que tramitam há várias décadas. E o que é pior, sem qualquer expectativa de encerramento da discussão.

 Superando a malfadada e tão debatida crise ética que assola o cidadão em geral (e aqui, ouso incluir não apenas as partes, movidas pelo espírito beligerante e pela cultura da litigiosidade, mas os próprios advogados, que insistem no patrocínio de causas fadadas ao insucesso), propõe-se focar a lente, uma vez mais, na colaboração processual.

Nos termos do que já fora explicitado, enaltecer a cooperação no ambiente processual

propicia a qualificação no provimento a ser entregue ao jurisdicionado. Ora, ao atuarem de forma leal e respeitosa, contribuindo mutuamente e de maneira efetiva ao desate do litígio, tem o magistrado enormes possibilidades de compreender melhor o caso travado e, como consequência, proferir a decisão mais acertada.

E é justamente disso que se trata a cooperação: de uma banda, juiz auxiliando e viabilizando que as partes desenvolvam plenamente suas faculdades no âmbito processual. De outra, partes contribuindo de forma efetiva para a construção da orientação ao final encampada pelo órgão jurisdicional, acorde com os ditames legais e obtida em prazo razoável.

Nesse diapasão, verifica-se que o satisfatório atendimento do princípio da colaboração processual nos feitos em trâmite na 1ª instância repercute intensamente (e positivamente, diga-se de passagem) na problemática do assoberbamento presente nos mais diversos tribunais, visto que incute no usuário da justiça um sentimento de conformação em relação ao provimento exarado. Ora, sendo a decisão a mais adequada, a possibilidade de impugnação se estreita, e o revolvimento da matéria por outro órgão judicial não passaria de uma atividade onerosa, inútil e, sobretudo, demorada.

Não se afigura de menor importância o realce à codificação processual vigente que em diversas oportunidades confere severo tratamento ao litigante que lança mão do instrumento recursal para atender a objetivos espúrios, isso é, para prolongar injustificadamente o desfecho do feito, visando combater o denominado abuso de recurso protelatório.

Com efeito, pela leitura do artigo 77, verifica-se que o legislador de 2015 enquadra como violação a dever processual, atribuído a todos os que participam do feito, a apresentação de pleitos desprovidos de motivação razoável, assim como a prática de atos inúteis ou desnecessários no processo. Assim sendo, a interposição desenfreada de recursos, nos termos dantes mencionado, importa claro e inequívoco descumprimento ao dispositivo em apreço, restando evidenciado, ademais, comportamento processual malicioso.    

Não por outra razão, o artigo 80, inciso VII do CPC15 caracteriza como litigância de má-fé aquele que interpõe recurso com intento manifestamente protelatório.[7] Na via idêntica, é o teor dos §§ 2º e 3º do artigo 1.026 do CPC15, ao estabelecerem a incidência de multa na hipótese dos embargos declaratórios serem considerados meramente protelatórios, inclusive sendo impedida a sua reproposição caso antecedido de dois recursos já compreendidos como procrastinatórios (1.026, §4º CPC15).

   Desta feita, inexiste qualquer resquício de dúvida hábil a suportar alegação no sentido de que a legislação pátria não disciplina de forma rigorosa o abuso do direito recursal. Ao revés, há inúmeras passagens em que fica patente o desejo do legislador em combater, com veemência o destempero no tocante à interposição desenfreada de recursos pelos contendores.

À guisa de conclusão

Ao longo da presente dissertação, buscou-se destacar que a utilização da colaboração ou cooperação pelos sujeitos do processo pode funcionar como poderoso mecanismo para a efetiva realização do direito vindicado no Judiciário, tornando o aparelho judiciário capaz de exercer com eficiência a missão a qual lhe foi atribuída.

Demais disso, concluiu-se que o desrespeito ao princípio ou dever de cooperação implica verdadeiro obstáculo ao pleno exercício do acesso à justiça, que não pode ser examinada sob uma perspectiva dissociada da realidade.

Nesse sentido, oportuno constatar que o tema da gratuidade da justiça ganha novos contornos a partir de 2015, cujo tratamento, importante frisar, se opera de maneira mais esclarecedora, inclusive com a positivação de entendimentos jurisprudenciais, bem assim com a expressa previsão de incidência de multa ao que se apresenta como merecedor do benefício, caso se desvirtue da real finalidade do instituto. A prevalecer a orientação legislativa, deve o aplicador da lei analisar o comportamento das partes sob prisma eminentemente cooperativo, pena de o autorizativo legal não provocar qualquer repercussão no seio prático.

Por fim, também foi objeto de análise a questão recursal, pauta do dia e que evoca vozes nos mais diversos segmentos. De igual modo, buscou-se clarividenciar a necessidade de se promover um processo que tramite em primeira instância em plena sintonia à matriz axiológica que decorre da colaboração processual, de modo a propiciar o surgimento de sentenças judicias que despertem no jurisdicionado verdadeiro sentimento de conformação e, ainda, de satisfação.

 

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Notas
[1] É indispensável o aporte trazido por Oreste Laspro, ao declarar a participação do amicus curiae como mecanismo de pluralização democrática do tema debatido, ocasionando o aprimoramento qualitativo do provimento judicial.

[2] Art. 6º, CPC2015: Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

[3] Na doutrina de Cássio Scarpinella Bueno, indispensável a referência aos estudos do Professor Português Miguel Teixeira de Sousa, que elenca quatro deveres que incidem sobre a atividade judicial e cuja raiz é a colaboração processual, sendo eles os seguintes: dever de consulta, dever de esclarecimento, dever de prevenção e dever de auxílio (BUENO, 2016, p. 95-96).

[4] Nada obstante tenha o autor piauiense tratado especificamente sobre a necessidade em se fixar novo alcance ao princípio Iuri novit curia, também lança luzes sobre as novas tendências implementadas pelo modelo cooperativo de processo civil. No dito modelo, o processo passa a ser concebido como uma verdadeira comunidade de trabalho (consoante locução assaz expressiva de Cássio Scarpinella Bueno), em regime muito bem definido de divisão de tarefas por aqueles que dele participam.

[5] Em idêntico sentido, cf.: Ag. Interno no Agravo de Instrumento nº 20160001001026-8. 1ª Câmara de Direito Público, TJPI. Relator: Haroldo Oliveira Rehem. Julgado em 28/09/2017.; Recurso Inominado nº 2015300701-0. Terceira Turma de Recursos, TJRS. Relator: Marcio Rocha Cardoso. Julgado em 08/04/2016.

[6] Outro instrumento previsto pelo legislador de 2015 para conferir maior racionalidade e legitimidade ao benefício da gratuidade diz respeito ao comando inserto nos §§ 2º e 3º do artigo 98, cujo teor estabelece a possibilidade de o vencido na causa, acaso figure como beneficiário da justiça gratuita, poder ser obrigado ao pagamento da verba honorária sucumbencial e demais despesas processuais, na hipótese de o credor da respectiva verba comprovar, nos cinco anos posteriores ao trânsito em julgado do decisum que fixou a dita verba, mudança na situação econômico-financeira do então hipossuficiente.

[7] Em complemento, o artigo 81 do CPC15 vaticina ser cabível, de ofício ou a requerimento, a imposição de multa, fixada entre 1-10 % do valor da causa (salvo se esta for irrisória ou inestimável, quando será arbitrada em até 10 vezes o valor do salário mínimo), bem como de indenização à parte contrária pelos danos suportados, sem prejuízo, ainda, do pagamento da verba honorária e demais despesas assumidas em razão da má-fé.


Informações Sobre o Autor

Pedro Henrique Alencar Rebelo Cruz Lima

Advogado Graduado em Direito pelo Instituto Camillo Filho-PI Especializando em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica – SP e Especializando em Advocacia Imobiliária Notarial e Registral pela Universidade Santa Cruz do Sul – RS


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