O ativismo judicial como meio para efetivação da função social do processo

Resumo: O ativismo judicial como meio para efetivação da função social do processo. A crise do pós-positivismo, instaurada também em razão das diversas transformações sociais, impulsionadas especialmente pelas Revoluções Francesa e Industrial, bem como pelas barbáries da Segunda Grande Guerra Mundial, levam à necessidade da revisitação do papel do Estado na regulação das relações privadas, bem como à revisão dos próprios poderes outorgados aos agentes e servidores públicos, eleitos ou não pelo sufrágio popular. A doutrina kelseniana do culto à norma é posta em xeque pelas escolas defensoras da hermenêutica funcionalizada, contando com Norberto Bobbio como um de seus defensores mais ilustres. Da estrutura à função, não apenas as normas ganham novas cores, em prol de sua efetividade, mas também o Poder Judiciário se vê desafiado a uma participação comissiva, proativa, para a realização da plenitude constitucional, visando à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, no chamamento do denominado ativismo judicial. Nos desafios propostos pela função social do processo, o ativismo judicial pode se constituir em um de seus mais virtuosos instrumentos concretizadores, desde que não ultrapasse aos limites da legitimidade democrática. O artigo resta estruturado em três capítulos, abordando, respectivamente, os aspectos históricos e a contextualização temática; a função social do processo, o ativismo judicial e os limites da legitimidade democrática; e, por fim, adentrando-se ao principal debate, busca-se resposta para a pergunta: o ativismo judicial atende à função social do processo? Para a consecução deste trabalho adotou-se o método dialético e a metodologia da revisão bibliográfica.[1]


Palavras-chave: Ativismo Judicial. Função Social do Processo. Constitucionalização. Legitimidade Democrática.


Abstract: The judicial activism as a tool for carryng out the cosial function of process. The crisis of post-positivism, also introduced because of various social changes, driven especially by the French and Industrial Revolutions, and the barbarity of the Second World War, leading to the necessity of revisiting the state’s role in the regulation of private relationships, as well as the revision of their own powers granted to the agents and servants, elected or not by popular vote. The doctrine of kelsen of the standard rules is called into question by the advocates of hermeneutics functionalized schools, with Norberto Bobbio as one of its most distinguished defenders. The structure to the function not only gain new color standards, to support its effectiveness, but also the Judiciary finds himself challenged to a commissive participation, proactive, to perform the full constitution, aimed at building a free and fair society and uniter by the calling judicial activism. Challenges proposed by the social function of the process, judicial activism can be in one of his most righteous instruments realized, but may not exceed the limits of democratic legitimacy. The article remains structured in three chapters, dealing, respectively, the historical and thematic context, the social function of the process, judicial activism and the limits of democratic legitimacy, and, finally, entering to the main discussion, we seek to answer to the question: judicial activism serves the social function of the process? To achieve this work we adopted the dialectical method and methodology of the review.


Keywords: Judicial Activism. Social Function of the Process. Constitutionalization. Democratic Legitimacy.


Introdução


As transformações sociais ocorridas, notadamente no mundo moderno e contemporâneo, influenciaram de forma definitiva aos rumos evolutivos do Direito, desconstruindo paradigmas e revisitando a outros, por meio de técnicas hermenêuticas valorativas do conteúdo e da aplicabilidade prática das normas.


Nenhum ramo do Direito restou incólume, com destaque especial para as reestruturações hermenêuticas do Direito Constitucional, Civil e Processual Civil, cujos frutos virtuosos acaba por afetar também a atividade judicial, cujo papel no Estado tem se adequado às demandas da sociedade contemporânea. Conquanto não se possa afirmar, por certo, que se tenha alterado a função precípua do Estado-Juiz, contudo seu exercício também tem sido revisitado, levando ao gradativo abandono da tecnocracia jurídica, para lhe conferir maior participação tanto na própria construção das normas, quanto na proatividade para o atingimento da efetividade da letra da lei e da prestação jurisdicional, em um movimento que se denomina de “ativismo judicial”, cooperando para a instrumentalização e consecução da função social do processo.


Contudo, é de se indagar: ao deixar seu papel de aplicador da lei e passar a desempenhar uma função na cadeia legislativa, o juiz não estaria infringindo o princípio da independência dos poderes? E quanto ao processo, saindo do instrumental para desempenhar função determinante na formação da norma, ainda assim estaria atendendo à sua “função social”?


O presente artigo pretende lançar luz sobre essas questões, trazendo elementos que possibilitem analisar criticamente a atuação legiferante do Poder Judiciário, em consonância com o atendimento da função social do processo.


Metodologicamente, adotou-se a dialógica problematizante, cujos fundamentos doutrinários e conclusões se extraíram de revisão bibliográfica.


Para melhor compreensão didática, o presente trabalho resta estruturado em três capítulos, abordando, respectivamente, os aspectos históricos e a contextualização temática; a função social do processo, o ativismo judicial e os limites da legitimidade democrática; e, por fim, adentrando-se ao principal debate, busca-se resposta para a pergunta: o ativismo judicial atende à função social do processo?


1 aspectos históricos e contextualização temática


Contextualizando, sumularmente, os principais eventos históricos do mundo moderno e contemporâneo, bem como os seus reflexos jurídicos essenciais, leia-se:


“Nos antecedentes fáticos, tem-se que a autonomia da vontade (atualmente a melhor expressão para explicar tal instituto é a de ‘autonomia privada’, visto que aquela expressão designava um valor excessivo à vontade, como se fosse, o que a história demonstrou que não era, verdadeira fonte do direito. A expressão ‘’autonomia da vontade’’ contudo, é a que melhor expressa a visão de mundo existente por ocasião do estado liberal) se tornou a vedete das figuras jurídicas a partir de Napoleão, consagrando-se sobre a ingerência do Estado. Mas a Revolução Francesa deu lugar à Revolução Industrial, e uma brusca alteração nos regimes de trabalho afetou, perenemente, até a estrutura da célula familiar, desvirtuando a ideologia da igualdade formal entre os indivíduos, por ter sido posta a serviço do lucro exorbitante, avassalando a necessária liberdade real entre os partícipes da relação negocial e requerendo do Estado uma “flexibilização” da idéia de abstencionismo estatal, ou seja, a percepção de Estado Liberal. Como diria Lacordaire (1802-1861), “entre o forte e o fraco, é a lei que liberta e a liberdade que escraviza”.  Inicia-se, a partir destas circunstâncias históricas – inauguradas por ocasião da Revolução Industrial e consolidadas a partir da 1ª Grande Guerra – o agonizar do papel do Estado assistente, no sentido de mero expectador.


O Século XX seria construído sobre a carcaça do modelo humanista, guardando as sombras do Iluminismo. Do lucro vil às guerras, vê-se que o exercício irrefreado das liberdades individuais havia levado a sociedade mundial a graves desequilíbrios, notadamente porque prevalecera a Liberdade sobre a Igualdade – o conferimento de privilégios e oportunidades mais benéficos aos mais poderosos, regando a semente da injustiça social, que, no fim do dia, é ainda mais prejudicial para a própria classe dominante, em um ciclo vicioso.


O retrocesso do desenvolvimento humano precisou ser bruscamente freado por corajosos movimentos sociais, inconformistas do status quo, no enfrentamento dos poderosos gigantes estatais e privados, com destaque para as feministas, os trabalhistas, os pacifistas e defensores dos direitos humanos, dentre outros; além do nascimento de importantes entidades, como a Cruz Vermelha Internacional. A coroação das vitórias se dá em 1948, pela aprovação das já mencionadas Declarações que, na porção em que cominam preceitos idênticos aos napoleônicos, na verdade reafirmam as garantias básicas, dantes conquistadas a preço de sangue, mas abafadas pelo suor dos trabalhadores nas fábricas e pelo totalitarismo dos Estados.


A publicização e a constitucionalização foram, de certa forma, uma resposta aos efeitos jurídicos decorrentes da Revolução Industrial, gerando focos de intervencionismo estatal – a fim de equilibrar as desigualdades –, fruto de reclames sociais, de forma a limitar o poder coercitivo dos fortes, impedindo, como diria João Calvão da Silva (2006, p. 50) “que os mais fracos sejam obrigados a querer o que os mais fortes são livres de lhes impor”. Por outro lado, a esta socialização do Direito Privado (expressão critica por Calvão, 2006, p. 46) mais à frente, já no final do Século XX, contrapõe-se uma privatização do Direito Público (PARODI, 2009, p. 20).”


Em 1934, Hans Kelsen inaugurava um novo período na história do Direito, ao publicar a Teoria Pura do Direito, que se tornou um clássico da escola juspositivista, cujo escopo era estabelecer, metodologicamente, o estudo autonômo da Ciência Jurídica, tendo como objeto de estudo precípuo a norma jurídica, destacada da moral, da justiça ou mesmo da interpretação da própria norma por vias hermenêuticas tendentes a lhe desviar a aplicabilidade para uma prospeccao de conteúdo, valor ou finalidade, divergindo, por evidente, das teorias apregoadas, por exemplo, por Norberto Bobbio, como se verá a seguir.


Ainda que o autor justifique a distinção que, a seu ver, ele operava, entre Ciência Jurídica e Direito (2009, p. 7), de toda sorte, sua influência sobre o Direito como um todo foi bombástica e por muito anos responsável por justificar o engessamento hermenêutico do universo jurídico. 


Em contraposição, Norberto Bobbio, ilustre filósofo italiano do Direito, publica, especialmente no período compreendido entre 1969 e 1977, artigos que, em 1977 seriam compilados na coletânea Da Estrutura à Função. Comentando a obra e estabelecendo paralelo com a visão kelseniana, Parodi (2009, p. 26-29) resume as lições do mestre italiano, e aduzindo a relevantes autores do cenário nacional, também contextualiza a importância desse marco teórico para a conceituação de “função social”, expressão que se tornou sinônimo do contemporâneo método hermenêutico:


Fixando marco teórico, Bobbio (2007, p. 85-137) ensina que, por função se entende a prestação continuada que um determinado órgão dá à conservação e ao desenvolvimento, conforme um ritmo de nascimento, crescimento e morte, do organismo inteiro, isto é, do organismo considerado como um todo. E entende que o escasso interesse pela função social, na (então) prevalente teoria geral do Direito, resta vinculada ao destaque que os grandes juristas deram às Ciências Jurídicas como um instrumento “cuja especificidade não deriva dos fins a que serve, mas do modo pelo qual os fins, quaisquer que sejam, são perseguidos e alcançados”.


A razão positivista implica no estudo e aplicação do Direito a partir de sua estrutura, visando a uma compreensão de sua formação, a desprezo da serventia de seu conteúdo; ou, privilegiando a estrutura sobre a função. E para muitos autores, a exemplo de Kelsen, a análise funcional estaria restrita à produção científica de sociólogos e filósofos, cuja visão do Direito é exteriorizada; o jurista por sua vez, analisaria o Direito como meio e não como fim, compreendendo-o como mecanismo de consecução da paz social, ou da segurança coletiva.


Bobbio desafia a visão kelseniana de um ordenamento coativo, passando ao entendimento do Direito promocional, que não elide a concepção da juridicidade como um meio coativo, mas o expande para um meio de estímulo e promoção das boas condutas, direcionando os comportamentos para determinados objetivos preestabelecidos, cuja obtenção pode ser prospectada de técnica legiferante que coaduna com as sanções positivas e os incentivos.


E afirma que a função do Direito – em relação à sociedade como totalidade ou em relação aos indivíduos que dela fazem parte – não teria sentido revolucionário, se o termo “Direito” for entendido como meio de coação, adquirindo sentido apenas se pretende falar das mudanças sociais, que, na conformidade do mecanismo podem ser produzidas, e, portanto, dos conteúdos políticos, econômicos e sociais que, um a um, possam vir a ser reduzidos àquela forma. Eis aí a função social em sentido amplo, podendo se revestir de seu aspecto – ou fim – social estrito, econômico, político, dentre outras expressões (e assim, elide qualquer argumento que vise a desmerecer a existência de uma função social da empresa, como se a mesma existisse unicamente com a missão de dar lucro para o empreendedor, visto que a concepção da função social parte do gênero, que em si abarca a espécie social estrita e a econômica). E assevera, ainda, o autor que as modificações funcionais e estruturais devem ser, igualmente, alimentadas, de maneira proporcional.


A função social é um mecanismo interpretativo pré e/ou pós-efetividade, em sentido revisional, modificando seu conteúdo classicamente conhecido ou limitando seu campo de atuação. Busca uma nova paradigmática hermenêutica, promovendo uma travessia dos significados modernos para os significantes contemporâneos, ancorando no solidarismo ético. Ensina Paulo Nalin (2001, p. 125-200) que o solidarismo é um espírito, um princípio de justiça, e não um simples regramento. Generalismo consistente, que permite, inclusive, o tutelamento das questões genéticas; a dignidade da pessoa humana é um princípio fonte, que influencia, de modo irrevogável, a todas as relações particulares (a este respeito Carlyle Popp, O Direito em Movimento. Curitiba : Juruá, 2007. p. 62). Do personalismo ético emanam novos princípios orientadores das relações privadas, a saber, a Boa-Fé (objetiva) Negocial, o Equilíbrio das Prestações, a Transparência, entre outros. Tudo se resumindo na solidariedade, fruto do espírito ético, apregoado nesta era. Novos princípios? Nem tanto. Mais valorizados e explicitados no ordenamento? Sem dúvida.


A intervenção estatal interessa à sociedade, para que sejam regulados os limites básicos das relações, em prol de que o equilíbrio material e moral entre as pessoas seja preservado, visando ao atingimento do ideário humanista: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos. Estimula-se o comportamento solidário, ajustado o conteúdo dos institutos à sua finalidade constitucional. O contrato deixa de ser um mecanismo de troca, para significar um instrumento de consolidação socialmente responsável de direitos materiais, o que equivale a dizer que a transação é efetuada sem lesão financeira ou moral para ambas as partes, desequilíbrio que refletiria, inevitavelmente, em toda a comunidade, a qual é natural e mecanicamente interdependente.


Solidarismo não é perfumaria, servindo a Carta Constitucional como patamar teórico das relações privadas, donde se extraem os valores que embalam o sistema jurídico. Para a dignificação contratual do homem, é eleito o valor da solidariedade, como fio condutor que refunda um contrato. A nova paradigmática atinge a todos os conceitos jurídicos, inclusive os clássicos, impondo-lhes nova leitura.”


 Atualmente, as novas teorias da construção legislativa têm, cada vez mais, ganhado distância do conceito estático concebido por Kelsen (2009), aproximando-se de novos métodos de interpretação da lei, pela valorização da hermenêutica teleológica e finalística, baseados na evolução dos fatos sociais e na aplicação das normas dosadas da maneira em que os conflitos se apresentam ao Judiciário, verdadeiramente funcionalizando, como desejaria Bobbio, a técnica da subsunção do fato à norma.


Os sistemas da “common law” e “civil law” nunca estiveram tão próximos, principalmente ao se analisar as questões que envolvem a aplicação de cláusulas abertas[2] como a boa-fé objetiva, o abuso de direito e a função social, trazidas pelo Código Civil vigente no Brasil, respectivamente contempladas, tais figuras, nos artigos 113, 187 e 422, do reformado Codex.


Na América do Sul, mais precisamente na Argentina, há exemplos em que a civil law é aplicada em matéria privada e legislação infraconstitucional, enquanto que a common law se aplica em nível constitucional, resultando em um multiculturalismo na aplicação da Lei, conforme ressalta Ricardo Luiz Lorenzetti (2009, p. 62):


O direito foi idealizado para ser aplicado a um Estado cujos habitantes tenham raízes e ideais em comum, ou seja, uma base cultural homogênea. Na atualidade existem sociedades multiculturais, na quais resulta difícil afirmar o predomínio de um grupo de pessoas que pensem do mesmo modo em todos os temas, o que faz com que tanto a lei, quanto a decisão judicial se concentrem antes nos procedimentos que nas decisões substantivas.


Na Argentina o problema da diversidade foi exposto desde as suas origens, inclusive no âmbito jurídico, já que no direito público houve uma forte influência anglo-saxônica, enquanto no direito privado obedeceu-se a uma larga construção baseada na tradição européia. Essa convivência de culturas jurídicas bastante diferentes transformou-se em um problema global, em vista dos fenômenos da imigração e do multiculturalismo, passando a expor problemas altamente complexos de inter-relação cultural.”


Assim, cada vez mais se pode observar a aplicação dos Princípios Gerais de Direito, ao invés do mero subsumir-se dos fatos às normas, de maneira tecnocrata, atraindo novo viés ao Processo Civil, qual seja, conferir conteúdo prático e valorativo, frente ao caso concreto, à letra da lei.


Também o campo do Processo Civil tem sido revisitado pelas mencionadas transformações técnico-jurídicas e gradativamente se desliga de uma função meramente instrumentalizadora, para dotar-se de verdadeira capacidade legiferante, passando a assumir papel determinante na própria construção normativa, na medida em que surgem teorias que entendem que a norma somente se constitui a partir de sua aplicação à situação fática.


A esse respeito, destacam-se as teorias pós-positivistas, cujos antecedentes históricos já foram abordados no capítulo anterior, e da qual é uma vertente a obra de Friedrich Muller (2007, p. 148-149), com a Teoria Estruturante do Direito, que assim se resume:


 “Em oposição a esse mito a teoria estruturante do direito desenvolveu desde meados dos anos 60 uma concepção nova, pós-positivista da teoria do direito: a norma não está já contida no código legal. Este contém apenas formas preliminares, os textos das normas. Eles se diferenciam sistematicamente da norma jurídica, que deve ser primeiramente produzida em cada processo individual de decisão jurídica, i.e., “trazida para fora” [hervorgebracht]. Além disso o âmbito da norma [Normbereich] pertence constitutivamente a ela. A “norma jurídica”se transforma assim  em um conceito complexo, composto de programa da norma e de âmbito da norma. E “atividade concretizante” não significa mais tornar mais concreta uma norma jurídica genérica, que já estaria contida no código legal, mas significa, a partir de uma ótica e uma reflexão realistas, construção da norma jurídica no caso decisório individual, sendo que os elementos do trabalho textual se tornam cada vez “mais concretos”, de uma fase a outra. Isso dinamiza ao mesmo tempo o trabalho dos juristas no eixo norma-caso, apreende esse trabalho de modo realista do caso e textos das normas na codificação, textos do programda da norma e do âmbito da norma, texto da norma jurídica e da norma decisória ( a parte dispositiva da decisão). Mas a dinamização próxima à realidade apreende também o eixo-norma-realidade: o âmbito da norma co-constitui a norma jurídica. Ele é desenvolvida a partir do âmbito da coisa [Sachbereich] e do âmbito do caso, i.e., diferenciado e operacionalizado. Além disso, os elementos de trabalho são hierarquizados: no caso do conflito entre eles, impõe-se por razões ligadas à democracia ou ao Estado de Direito os dados lingüísticos; não deve existir nenhuma “força normativa do fático” (Georg Jellinek). Em casos de conflito metodológico entre os elementos individuais da concretização temos à disposição um catálogo de regras de preferência. O primado cabe aqui grosso modo aos respectivos argumentos mais próximos do texto da norma.”


Segundo essa nova perspectiva, o juiz deixa de ser apenas o aplicador do direito positivado e passa a ter papel fundamental na construção normativa, pois não só faz incidir a norma ao caso concreto, mas também “cria” o direito, a ponto de Mauro Capelletti (1999, p. 42) afirmar que “toda interpretação é criativa, e sempre se mostra inevitável um mínimo de discricionariedade na atividade jurisdicional.”


A esse respeito, destacam-se os comentários de Eduardo Cambi (2009, p. 176-177):


“A jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal, já incorporou os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, tanto em relação ao controle dos atos legislativos (p. ex.: considerou inconstitucional Lei do Estado do Paraná, que determinava a pesagem de butijões de gás, no ato da venda para consumidor, em face da imensa dificuldade material, quando não da impossibilidade, de fazê-lo, entendendo se o ato legislativo não razoável, julgou inconstitucional ato normativo do Estado do Piauí, que permitia que pessoa estranha à carreira de delegado de polícia exercesse esta função) quanto dos administrativos (p. ex., determinou que candidato aprovado em concurso para delegado de polícia não poderia ser reprovado na prova de esforço físico, por ser os agentes policiais que fazem as perseguições; também, reconheceu que candidato à escrivão de polícia não poderia ser reprovado por não possuir altura mínima; ainda, considerou inadmissível o “julgamento de consciência” de candidato à magistratura, aprovado no certame, para excluí-lo do concurso público, com base em decisão secreta sobre sua vida pública e privada; por fim, julgou irrazoável Edital de concurso público que atribuía ao tempo de serviço público pontuação superior a títulos referentes à pós-graduação). “


O processo como instrumento, também deve, por sua vez, atender à sua função social. Em que pese o artigo conferir melhor tratamento à temática, na sequencia, cabe, desde já, inserir as lições do Professor Barbosa Moreira (1989, p. 67-68), em cuja visão, a função social do processo visa a dois objetivos primordiais, quais sejam:


i. A promoção da igualdade, pela eliminação ou atenuação das diferenças de tratamento entre os membros da sociedade, em razão da diversidade de condição econômica, posição social, cultural, racial, religiosa ou política;


ii. A otimização do sistema jurídico, a fim de assegurar, na medida necessária, a primazia dos interesses da coletividade sobre os estritamente individuais.


Passa-se, então, à analise das questões propostas na Introdução: ao deixar seu papel de aplicador da lei e passar a desempenhar uma função na cadeia legislativa, o juiz não estaria infringindo o princípio da independência dos poderes? E quanto ao processo, saindo do instrumental para desempenhar função determinante na formação da norma, ainda assim estaria atendendo à sua “função social”?


2 Função Social do Processo, Ativismo Judicial e sua Constitucionalidade


2.1 O ATIVISMO JUDICIAL


De acordo com o Ministro Evandro Guerios Leite (2009, p. 1)[3], o ativismo judicial[4] é um princípio do Direito Processual Civil, integrando o compêndio dos norteadores jurídicos “que regulam o processo e disciplinam a atividade jurisdicional do Estado”. E explica (2009, p. 2-3):


“O comportamento tem que ver com a habitualidade de certa conduta (…) O ativismo, como conduta habitual, torna-se princípio e caminha para a formação de material jurídico positivo. A aplicação do direito é produção de direito como norma agendi. O ativismo condiz, pois, com a contextualidade do Direito Processual Civil, no pertinente à atividade jurídica e à ação judiciária: atuação de um Poder (política); função do jus dicere (finalidade); processo e organização (instrumentalidade). Dentro desse quadro, o estudioso pode aderir a um novo princípio de legitimidade ou a uma nova idéia de direito, com o juiz como figura principal, segundo a lição de A. Peyrefitte. Também de Antonio Escostegury Castro (grifos do autor).”


Acerca da concretização do ativismo judicial, Luis Roberto Barroso (2009, p. 6) delimita:


“A idéia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas.”


O professor Barroso (2009, p. 6) explica que o ativismo judicial é “primo” da “judicialização da vida”, a qual, em sua concepção, significa:


 “que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo – em cujo âmbito se encontram o Presidente da República, seus ministérios e a administração pública em geral. Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial; outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro.”


Ainda de acordo com o autor (2009, p. 3-4), a “judicialização” no Brasil, foi impulsionada por três fatores determinantes: a redemocratização do país, a constitucionalização abrangente e o modelo do sistema de controle da constitucionalidade brasileiro.


Operando distinção entre ambos, explica (2009, p. 6-7) que, nos atos típicos da “judicialização”, o Poder Judiciário atuou compelido por seu dever precípuo, não lhe cabendo escolha volitiva, que justificasse a sua omissão, na apreciação da matéria. Contudo, na operação do ativismo judicial, vislumbra-se coligada “uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance”, instalando-se em questões típicas derivadas da hipoatuação do Poder Legislativo, que ensejam inefetividade ao atendimento das demandas sociais. Em igual nível de relevância, consigna (2009, p. 7) um conceito oposto ao de ativismo judicial, qual seja, a “auto-contenção judicial”:


“conduta pela qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes. Por essa linha, juízes e tribunais (i) evitam aplicar diretamente a Constituição a situações que não estejam no seu âmbito de incidência expressa, aguardando o pronunciamento do legislador ordinário; (ii) utilizam critérios rígidos e conservadores para a declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos; e (iii) abstêm-se de interferir na definição das políticas públicas. Até o advento da Constituição de 1988, essa era a inequívoca linha de atuação do Judiciário no Brasil. A principal diferença metodológica entre as duas posições está em que, em princípio, o ativismo judicial procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, sem contudo invadir o campo da criação livre do Direito. A auto-contenção, por sua vez, restringe o espaço de incidência da Constituição em favor das instâncias tipicamente políticas.”


Segundo se infere do ordenamento constitucional, ao juiz é atribuído o poder jurisdicional e não o legislativo, nos exatos termos da dicção do artigo 2º da Constituição Federal de 1988. José Afonso da Silva (1992, p. 481) diferencia legislação de jurisdição:


“Não é difícil distinguir jurisdição e legislação. Esta edita normas de caráter geral e abstrato e a jurisdição se destina a aplicá-las na solução das lides. Veja-se, p. ex., um ato jurisdicional típico: a sentença. Esse ato, em termos muito simplificados, declara: “Condeno Fulano a restituir a Beltrano determinado imóvel, e mais os honorários do advogado e os frutos do imóvel pelo tempo que indevidamente o ocupou”. Está aí o dispositivo de uma sentença. Dirige-se a determinada pessoa, com determinada ordem individualizada e concreta sobre um bem especificado. Compare-se com o ato legislativo, a lei, que diz, p. ex.: “Aquele que por vinte anos, independentemente de justo título e boa-fé, possui imóvel como seu, adquirir-lhe-á o domínio”. Dirige-se, indistintamente, a todas as pessoas. Não dá nada a ninguém especificamente. Confere a todos um direito abstratamente, e aquele que vier a encontrar-se na situação de fato descrita no texto da lei terá um direito subjetivo ao objeto nela indicado.”


O ativismo judicial desvirtuaria essa explicação, pois confunde o poder judicante com o legiferante, porém, diferentemente da corrente do direito alternativo[5], caracteriza-se por defender a aplicação imediata dos postulados e princípios constitucionais.


A esse respeito, destaque-se as orientações de J. E. Carreira Alvim (2008, p. 320) a respeito do tema:


“O ativismo judicial, de um lado, põe em realce a instrumentalidade do processo, possibilitando ao juiz chegar à verdade real em vês de contentar com verdade apenas formal, e, de outro, exorciza alguns mitos processuais como a neutralidade do juiz e o quod non est in actis non est in mundo. O ativismo judicial traduz também a posição do juiz no processo, tendente a suprir a desigualdade processual das partes, decorrente de omissões processuais de seus patronos, com o objetivo de concretizar o princípio da igualdade material das armas. “


Segundo José Augusto Delgado, “o ativismo judicial afasta o juiz do posicionamento de ser escravo do texto literal da lei”. Contudo, esse poder não pode exacerbar o poder discricionário que é conferido ao magistrado, ferindo assim o disposto no artigo 2º da Carta Constitucional. Retornando às lições do Ministro Evandro Leite (2009, p. 3):


 “O ativismo do juiz atua sobre o comportamento deste no processo, em busca de um direito judicial, menos submisso às leis ou à doutrina estabelecida e às convenções conceituais. Não importa numa simples, embora ágil, aplicação da norma e que a deixe inalterada. Nem é atitude voluntariosa, mas tomada de consciência no presente e diretriz de decisões futuras. O ativismo não é, porém, um novo sistema fora da realidade do processo, como pareceu a M. Cappelletti, ao perguntar por que os tribunais não poderiam atuar como legisladores na criação e adaptação constante das suas próprias regras processuais técnicas, pois que com elas lidam diuturnamente. Citou o exemplo da Corte Européia de Strasbourg, que, todavia, não é um tribunal de jurisdição ordinária ou comum.”


O magistrado não pode interceder na legislação a ponto de interferir no equilíbrio dos poderes, cabendo ao juiz, portanto, encontrar a exata medida entre as funções estatais, ou seja, entre a interpretação da legislação em consonância com os princípios da função social, solidariedade, razoabilidade e proporcionalidade, sem propriamente criar uma nova lei.


Cabe ao juiz dar corpo à legislação por meio de sua aplicação e não se exceder no poder judicante, fazendo emanar de uma decisão judicial o próprio conteúdo abstrato da norma.


No aspecto da legitimidade democrática do ativismo judicial, segundo Inocêncio Mártires Coelho (2001), o ativismo judicial não se constituiria em uma violação da constituição, mas sim uma nova maneira de interpretá-la:


“Em primeiro lugar − citando o mesmo CANOTILHO − devemos salientar que, atualmente, a interpretação das normas constitucionais é um conjunto de métodos, desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência com base em critérios ou premissas (filosóficas, metodológicas, epistemológicas) diferentes mas, em geral, reciprocamente complementares, o que realça o caráter unitário da atividade interpretativa, em geral. Tais métodos, como referidos pelo ilustre constitucionalista português, são o jurídico ou clássico; o tópico-problemático; o hermenêutico-concretizador; o científico-espiritual; e o normativo-estruturante, cujos traços mais significativos podem ser resumidos nos termos seguintes: a) método jurídico (…) b) método tópico-problemático (…) c) método hermenêutico-concretizador (…) d) método científico-espiritual (…) e) método normativo-estruturante. (…) Finalmente, a título de conclusão, merecem referência os chamados princípios da interpretação constitucional, os quais − à semelhança dos métodos acima apontados − também devem ser aplicados conjuntamente, como condição indispensável a que o ato de interpretação constitucional se revele em toda a sua extensão e complexidade. Tais princípios, para a generalidade dos autores, são fundamentalmente os seguintes: a) princípio da unidade da constituição (…) b) princípio do efeito integrado (…) c) princípio da máxima efetividade (…) d) princípio da conformidade funciona (…) e) princípio da concordância prática ou da harmonização (…) f) princípio da força normativa da constituição (…) g) princípio da interpretação conforme a constituição (…). Apresentados assim − ou, digamos, meramente enunciados − esses princípios revelam pouco ou quase nada do alcance, praticamente ilimitado, de que se revestem para a solução dos problemas que, a todo instante, são colocados aos aplicadores da Lei Maior por uma realidade constitucional em permanente transformação.”[6]


Desta forma, desde que ao agir discricionariamente o juiz observe estritamente a aplicação dos princípios e regras constitucionais, não haverá inconstitucionalidade na decisão judicial baseada em ativismo.


Contrariamente, não pode o juiz deixar de dar ao jurisdicionado o devido amparo em razão da ausência de previsão legal ou simples omissão, ou ainda, deixar de contemplar a evolução social para albergar determinada interpretação, ou método interpretativo, que esteja em dissonância com a atualidade.


Portanto, não havendo intervenção direta, ou seja, não emanando da decisão judicial uma ordem legal em abstrato, mas sim simples interpretação da lei segundo a norma constitucional, não haveria ilegalidade.


Contudo, retomando as lições consignadas de Barroso, analisado na prática, o próprio movimento de auto-contenção judicial também pode ensejar inconstitucionalidades, pela negativa prática de efetividade, provocando conflitos, por exemplo, entre as normas e os princípios da Carta Magna, ou entre as normas de cunho dispositivo e os preceitos de natureza fundamental.


Por fim, seguindo a linha de pensamento de Barroso (2009, p. 8-12), oscilar entre o ativismo e a auto-contenção é o destino certo dos países que adotam o sistema de controle de constitucionalidade, por tribunais especializados, das leis e atos do Poder Público, expondo o índice de prestígio e credibilidade pública dos poderes. E “nos últimos anos, uma persistente crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade no âmbito do Legislativo tem alimentado a expansão do Judiciário nessa direção, com a prolação de decisões” que tanto suprem a ausência legislativa, quanto promovem inovações no universo jurídico, conferindo “caráter normativo geral”. Contudo, como assevera o autor, em sua face positiva, o Judiciário dá atendimento à necessidade social; mas, provoca riscos diversos para a legitimidade democrática e, pela limitação espacial, pense-se em apenas dois deles: a) a segurança jurídica e previsibilidade do decisio (considerada em razão, logicamente, não da leniência, mas da aplicação literal da letra da lei) b) considerado que o Judiciário é um órgão não eletivo, como poderia concentrar em si o poder revogatório das decisões do Executivo (BICKEL, 1986, p. 16 e ss)? Quanto a esse segundo ponto, a estes autores parece uma questão vencida, notadamente do ponto de vista normativo, posto que a própria Constituição Federal atribuiu tal poder ao Judiciário


“Na medida em que lhes cabe atribuir sentido a expressões vagas, fluidas e indeterminadas, como dignidade da pessoa humana, direito de privacidade ou boa-fé objetiva, tornam-se, em muitas situações, co-participantes do processo de criação do Direito.” (BARROSO, 2009, p. 11)        


2.2 funçÃo social do processo


Ensina J. J. Calmon de Passos que é essencial para a boa comunicação, que os interlocutores compreendam o significado e o sentido empregado às palavras escolhidas. E por essa razão, ao tratar da função social do processo (2002)[7], reclama a necessidade inicial de fixar sua compreensão do que vem a ser “função”, discorrendo sobre o tema com base inclusive em autores já adotados por estes autores. E conclui essa etapa, afirmando:


 “A palavra função, no campo do direito, adquiriu relevância com o chamado Estado de Direito Democrático. A igualdade essencial de todos os homens -postulado básico da democracia – implica a resultante, necessária, de que todo poder humano é fruto de outorga, formaliza-se como competência e efetiva-se como serviço. Esse pensamento representou um ganho no esforço civilizador de eliminar da convivência social toda e qualquer forma de arbítrio. O processo civilizatório deu à força bruta o caráter de dominação necessitada de justificação, transmudou a dominação em poder como serviço aos homens, segundo a vontade (lei) divina, fundamento de sua legitimação, até aos nossos dias em que todo poder só se legitima como serviço aos homens – função – exercido nos estritos termos da competência e da legitimação formalmente postas pela vontade geral, expressa nas leis (humanas) O agente público passou a não ter vontade própria, sim a da lei – competência ( atribuição) que se faz dever (retribuição) pelo que se fala hoje, não em poder, sim, mais adequadamente, em função legislativa, executiva e jurisdicional. A própria autonomia privada teve suas fronteiras delimitadas pela lei – o agente privado não pode querer o que a lei lhe proíbe nem omitir-se de querer o que ela lhe impõe.”


“Nosso século transportou para a área privada reflexão que fora feita para o setor público. Passou-se a falar em função social da propriedade, função social da empresa, função social do capital etc. As forças que haviam aberto brechas na muralha política também agora tentavam fazê-las na muralha econômica. E essa reflexão produziu frutos em nosso século, do Estado intervencionista e do dirigismo contratual, inclusive tentando-se definir a função social dos meios de comunicação Já não é apenas o agente público que deve exercitar os poderes que lhe são reconhecidos como dever de servir nos limites da outorga que lhe foi conferida, também aos agentes privados se interdita o exercício das faculdades que decorrem da liberdade que lhes é reconhecida e assegurada de modo a determinarem um desserviço aos interesses sociais.”


O autor prossegue, afirmando que essa preocupação emergente com a “função social do agir humano” é fruto induzido pelo Iluminismo e suas reverberações humanistas, laicizadas, valorativas da proteção das garantias fundamentais, dentre elas, notadamente, a proteção da autonomia, da vontade e da propriedade privada. Reage em firme limitação do poder público e, de acordo com Passos (2002), “no âmbito do direito privado, só comporta concreção de seu conteúdo mediante uma formulação negativa”, restando difícil afirmar “satisfatoriamente, qual seja a função social de qualquer indivíduo ou organização, traçando-se-lhes exaustivamente o seu agir, ou simplesmente se enunciando princípios, por mais numerosos e genéricos que sejam”. E segue: “Enquanto liberdade, poder de atuar sobre as coisas e sobre outros homens, o homem não tem limites intrínsecos, salvo os naturais”. Quanto a limitar a liberdade, “o poder em que ela se traduz, é torná-la função, vinculá-la a determinados objetivos”. E assim, de relevantíssima importância para o presente estudo, “definir a função social de uma função pública é, em verdade, traçar-lhe o espaço que, no universo do interesse coletivo, lhe é particularmente reservado. Muito mais delimitação que definição”.


Adentrando às searas da função social do processo, propriamente dita, indaga Passos de qual processo se cuida… “A resposta esclarecedora é a de que apenas trataremos do processo de produção do direito, particularmente daquele processo de produção do direito que oferece como produto uma decisão judicial”. Atingindo à diferenciação entre as funções precípuas dos Poderes da República, afirma:


“Fundamental para nossa reflexão atentarmos para o fato de que a convivência humana não se dá em termos de uma “ordem” predeterminada e necessária, antes se revelando, também ela, como algo construído pelo homem, fruto, em sua dimensão mais significativa, de deliberações humanas, motivadas por uma complexa gama de interesses, insuscetíveis de serem colocadas geneticamente como disciplinados pelo Direito, mas apenas suscetíveis de se inserirem em seu espaço regulador em termos de conseqüências, na medida em que configurarem um conflito irresolvido socialmente. Isso nos autoriza a concluir que o Direito não está na matriz do comportamento humano, pelo que ele é apenas um espaço da ética, não a própria ética, que o ultrapassa e inclui. Assim sendo, ao Direito não cabe a função de informar e conformar o comportamento humano, em sua dimensão social, sim e exclusivamente a função de solucionar os conflitos que decorram dessa convivência e escapem à composição pelos próprios interessados. Essa função ele a cumpre de dois modos ; colocando expectativas compartilháveis, que permitam um mínimo de previsibilidade de como serão compostos os conflitos que vierem a se instaurar na convivência social (o denominado direito material) e definindo o modo pelo qual os interessados e os agentes públicos devem atuar para solução dos conflitos de interesses não compostos ou insuscetíveis de ser compostos pelos próprios interessados (o denominado direito processual). Nessa perspectiva, distinguiu-se o processo legislativo do processo jurisdicional, delimitada a função de cada qual deles no espaço amplo da disciplina da solução dos conflitos, específica do Direito.”


Eis aí está mais do que demonstrada, pelo jurista e mestre baiano, a evidente conexão temática com os movimentos de ativismo judicial.


Veja-se, ainda, na dicção de Eduardo Cambi (2009, p. 168), que o Processo Civil deve ter uma nova interpretação, mais voltada para o social:


“Assim, o estudioso do processo civil não pode tomar como objetivo exclusivo de suas análises e de suas pesquisas apenas as regras processuais, consideradas, apenas, como uma parcela do sistema jurídico. Os dispositivos processuais devem ser compreendidos à luz da realidade social para as quais foram predispostos, o que impõe aos processualistas e aos operadores jurídicos deixar de lado a pureza e a cientificidade de sua disciplina para se ocupar dos problemas da administração da justiça. Essas questões tocam diretamente o processo civil, devendo ser estudadas pelos juristas e não apenas pelos políticos, sociólogos e filósofos do Direito. Entretanto, a maioria dos nossos Manuais de Processo Civil trata apenas de uma abordagem estritamente dogmática (tecno-jurídica) dos institutos processuais, deixando-os de contextualizá-los com a realidade social em que são aplicados, o que levam muitas vezes a caírem no equívoco de calcarem a ciência processual em conceitos que, não raro, encontram respaldo na dinâmica da vida. Essa visão estreita incorre, fechando no hernetismo técnico-jurídico das regras processuais, em um grave equívoco, uma vez que o processo, como todo fenômeno jurídico, antes de assim ser, é um fenômeno social, que serve como um instrumento ou um meio (não como um fim) para realização da justiça, que é um valor eminentemente social.”


Conclui o autor, portanto, que deve o magistrado sair do contexto hermético em que se encontra o atual processo civil para, como aplicador do direito, buscar meios de se atingir a o objetivo social do processo.


Nesse contexto, poderia o ativismo judicial ser um meio de busca à plena função social do processo?


3 O Ativismo Judicial Atende à Função Social do Processo?


De acordo com Ronald Dworkin (1999, p. 271-272), “o direito como integridade nega que as manifestações do direito sejam relatos factuais do convencionalismo, voltados para o passado, ou programas instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados para o futuro”. Na justa sequencia, complementa o autor:


Insiste em que as afirmações jurídicas são opiniões interpretativas que, por esse motivo, combinam elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro; interpretam a prática jurídica contemporânea como uma política em processo de desenvolvimento. Assim, o direito como integridade rejeita, por considerar inútil, a questão de se os juízes descobrem ou inventam o direito; sugere que só entendemos o raciocínio jurídico tendo em vista que os juízes fazem as duas coisas e nenhuma delas.”


“Integridade e interpretação


O princípio judiciário de integridade instrui os juízes a identificar direitos e deveres legais, até onde for possível, a partir do pressuposto de que foram todos criados por um único autor – a comunidade personificada –, expressando uma concepção coerente da justiça e equidade. (…) O direito como integridade é, portanto, mais inflexivelmente interpretativo do que o convencionalismo ou o pragmatismo. Essas últimas teorias se oferecem como interpretações. São concepções de direito que pretendem mostrar nossas práticas jurídicas sob sua melhor luz, e recomendam, em suas conclusões pós-interpretativas, estilos ou programas diferentes de deliberação judicial. Mas os programas que recomendam não são, em si, programas de interpretação; não pedem aos juízes encarregados da decisão de casos difíceis que façam novos exames, essencialmente interpretativos, da doutrina jurídica. O convencionalismo exige que os juízes estudem os repertórios jurídicos e os registros parlamentares para descobrir que decisões foram tomadas pelas instituições às quais convencionalmente se atribui poder legislativo”.


E continua Dworkin (1999, p. 272-273):


É evidente que vão surgir problemas interpretativos ao longo desse processo: por exemplo, pode ser necessário interpretar um texto para decidir que lei nossas convenções jurídicas constroem a partir dele. Uma vez, porem, que um juiz tenha aceito o convencionalismo como guia, não terá novas ocasiões de interpretar o registro legislativo como um todo, ao tomar decisões sobre casos específicos. O pragmatismo exige que juízes pensem de modo instrumental sobre as melhores regras para o futuro. Esse exercício pode pedir a interpretação de alguma coisa que extrapola a matéria jurídica: um pragmático utilitarista talvez precise preocupar-se com a melhor maneira de entender a idéia de bem-estar comunitário, por exemplo. Uma vez mais, porem, um juiz que aceite o pragmatismo não mais poderá interpretar a prática jurídica em sua totalidade.”


“O direito como integridade é diferente: é tanto o produto da interpretação abrangente da prática jurídica quanto sua fonte de inspiração. O programa que apresenta aos juízes que decidem casos difíceis é essencialmente, não apenas contigentemente, interpretativo; o direito como integridade pede-lhes que continuem interpretando o mesmo material que ele próprio afirma ter interpretado com sucesso. Oferece-se como a continuidade – e como origem – das interpretações mais detalhadas que recomenda.”


O artigo 3º da Constituição Federal tem por finalidade elencar os objetivos fundamentais da República, dentre os quais se destaca aquele citado no inciso I, que visa a construir uma sociedade livre, justa e solidária, em pleno atendimento da ideologia preambular do Estado Democrático, neste contrato social constituído, que se afirma:


 “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.”


Uma sociedade livre implica, dentre outros, em assegurar ao cidadão o direito à propriedade, a inviolabilidade de seu domicílio, a liberdade de manifestação de pensamento, o direito de culto, de eleger seus representantes, mas, acima de tudo, assegurar a este mesmo cidadão o direito de se amparar no Judiciário quando houver violação desses direitos.


Uma sociedade justa, por sua vez, é aquela que busca a igualdade entre seus cidadãos, garante-lhes o acesso à educação, à saúde, à alimentação, uma melhor distribuição da renda, mas também o pleno acesso à justiça, a fim de igualar eventuais discrepâncias e assegurar o cumprimento dos deveres do Estado.


Já a solidariedade referida não é só aquela sinônimo de filantropia, que vem a lume quando se estende a mãos aos desvalidos, mas também se importar, motivar-se e movimentar-se para evitar o predomínio das iniqüidades e mazela sociais, do oportunismo, da corrupção, da lesão aos direitos de todo e qualquer cidadão, em um verdadeiro comportamento proativo, dando voz e efetividade aos princípios e valores constitucionais, notadamente ao valor-fundamente da Dignidade da Pessoa Humana, conforme já citada doutrina, de Parodi, Nalin e de Popp, em linhas consignadas no primeiro capítulo. 


Mas qual seria o papel da função social do processo, nesse contexto? É justamente assegurar que toda essa pretensão jurídico-ideológica seja cumprida, ou seja, que o processo se converta em instrumento que possibilite ao cidadão buscar e conquistar – para si e para todos –, uma sociedade livre, justa e solidária.


Então, é de se indagar: o atendimento da função social do processo não seria justamente o objetivo do ativismo judicial? De fato, a resposta parece ser positiva, desde que atenda às normas constitucionais e não haja violação do princípio da independência dos poderes.


Eduardo Cambi (2009, p. 179-180) faz uma pontual observação acerca da acertada forma de se atender a função social do processo por meio do ativismo judicial:


 “A necessidade desse ativismo judiciário também se faz presente para dar efetividade aos direitos sociais contidos no artigo 6º da Constituição Federal, o qual abrange a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, à proteção à maternidade e à infância, além da assistência aos desamparados. Tais direitos fundamentais são característicos do Estado de Bem Estar Social, o qual se difere radicalmente o Estado Liberal, porque, enquanto este se contentava em impor prestações negativas ao Estado, aquele determina a imposição de prestações positivas, no campo dos direitos sociais. Nas hipóteses de negação de prestação dos serviços sociais básicos, tem-se admitido que o Judiciário atue, ainda que isto implique uma decisão sobre a aplicação de recursos públicos. Nesse sentido, cabe ao Poder Judiciário, por exemplo, assegurar a paciente com HIV/AIDS o fornecimento gratuito de medicamentos, por ser dever do Poder Público dar efetividade ao direito público à saúde, contido no artigo 196 da CF e regulamentado na Lei 9.313/96, sob pena de grave comportamento inconstitucional. Do mesmo modo, o Superior Tribunal de Justiça assegurou a paciente o direito a receber auxílio financeiro do Poder Público para prosseguir tratamento médico em Cuba, por ser portador de retinose pigmentar, doença que ataca a retina e diminui progressivamente o campo de visão até a cegueira completa, sendo recomendável, pelos médicos brasileiros, tratamento na clínica Camilo Cienfuegos, sediada em Havana, por seu o único centro mundial em que os estudos para o tratamento desta doença se encontram mais adiantados. Essas situações são compatíveis com a Constituição Federal brasileira que impõe um modelo de Estado Social intervencionista, cujos objetivos fundamentais estão no seu artigo 3º, destacando-se, entre outros, o inciso I, o qual proclama a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Esses vetores político-jurídicos, contidos na Lei Fundamental brasileira, diante da ausência de implementação das condições mínimas do Estado do Bem Estar Social, não retiram da Constituição de 1988 o seu caráter dirigente e compromissório. Com efeito, a Constituição dirigente, no Brasil, não morreu, uma vez que as promessas do Estado de Bem Estar Social ainda não se cumpriram em nosso país.”


Porém, as decisões judiciais, mesmo baseadas em ativismo, muitas vezes restam maculadas pelo desequilíbrio jurídico, técnico e financeiro, que há entre as partes que litigam em determinado processo, impendendo a uma espécie de resultado “falso-positivo”, artificialmente induzido pela melhor condição financeira e de assistência jurídica da parte economicamente hipersuficiente, o que lhe confere melhores condições de defesa e de instrução processual, tantas vezes “maquiando” a verdade real.


Muito embora tenha o magistrado o dever de se manter isento e imparcial ao solucionar uma lide, o que se percebe, nesses casos, é o predomínio do poder econômico sobre o direito invocado por meio do processo, não por interesses escusos do juiz, mas simplesmente pela cortina de fumaça deliberadamente lançada sobre o juízo.


O que muitas vezes predomina no processo, infelizmente, é a igualdade formal, em detrimento da igualdade em abstrato. Nesse sentido, se destacam os ensinamentos de Barbosa Moreira (1989, p. 67)[8]:


“Sin enbargo, la experiência histórica enseña cuan ilusoria suele mostrarse la solemne proclamación de la igualdad in abstract. Es hoy en día una verdad de Perogullo la distinción entre la igualdad de derechos y deberes otorgados por los textos legales a los miembros de la comunidad, y la igualdad material, que tiene en cuenta las condiciones concretas bajo las cuales, hic et nunc, se ejercen los derechos y se cumplen los deveres. En muchas leyes modernas, el designio de promover la igualdad material se sirve exactamente de derogaciones impuestas a la igualdad formal. Ello es evidente en algunas normas notoriamente destinadas a proteger ciertos interesses de personas que, a raiz de su inferior posicón económica o social, corren el riesgo de sufrir um tratamiento injusto (obreros, inquilinos etc).”


Assim, na lúcida visão de Barbosa Moreira, aqueles que não possuem as mesmas condições econômicas, políticas, sociais e culturais, não podem litigar em pé de igualdade, havendo discrepância no deslinde processual, independente do ativismo ou da auto-contenção do Judiciário.


Uma parte economicamente inferior à outra não teria a mesma qualidade técnica no atendimento de seu litígio, ou ainda, seria irremediavelmente lesionada pela demora processual, enquanto a outra parte, economicamente prevalente, se vale de todo e qualquer meio processual ao seu alcance, para prorrogar a demanda. De igual sorte, aquela parte que tiver maior expressão política e social tende a receber melhor tratamento – desde o balcão da serventia – do que o simples cidadão.


A busca dessa equalização também deve ser uma das metas concretivas da função social do processo, ou seja, dotar o Judiciário de meios que possam garantir à parte a exata medida de sua pretensão, disponibilizando-lhe todos os direitos ou maneiras de comprovar sua tese.


Não pode o juiz ficar inerte ante uma situação na qual a parte, desprovida do devido aparelhamento técnico judicial, venha a ter seu pleito comprometido ou corrompido pela força política e econômica da parte contrária.


Um exemplo reside na produção de uma determinada prova técnica ou científica, que exija a análise de fatos além dos conhecimentos jurídicos, quando se faz necessária a nomeação de um perito, onde ambas as partes estivessem amparadas por assistentes técnicos, que lhes dotassem de meios para interpretar determinadas linguagens utilizadas pelo perito judicial.


Nesse contexto, poderia haver discrepância, pois a parte litigante, não raras vezes, sequer tem condições de arcar com as custas periciais, que dirá pagar além disso um assistente técnico pra lhe assessorar. No caso, a parte economicamente privilegiada estaria resguardada por seu poderio econômico, contratando talvez perito tecnicamente melhor que o judicial, capaz de conduzir o laudo a ser produzido a seu favor.


Assim, ao se basear unicamente na igualdade formal, o juiz simplesmente analisaria o laudo e, muito embora lhe seja facultado adotar ou não o laudo (artigo 436, CPC), fatalmente favoreceria à parte que melhor foi instruída na formação da prova. Poderia, porém, ao constatar a violação da igualdade processual, solicitar melhores esclarecimentos ou, até mesmo, nomear um assistente técnico para a parte, como forma de equalizar a constituição da prova.


Não se trata aqui da formação de uma nova regra processual, mas sim da simples aplicação do princípio da isonomia na sua exata concepção, ou seja, igualar os iguais e desigualar os desiguais, em um nítido exemplo de ativismo judicial na busca da função social do processo.


Existem outras formas de se buscar a igualdade das partes, assim como outros exemplos de desigualdade processual, mas o que importa é que para se atender a uma finalidade social, deve o processo dotar as partes de uma igualdade material.


Desta forma, o ativismo judicial pode consistir em um meio de se atender à igualdade material, conferindo-lhe efetividade, produzindo-se decisões que não estarão livres de dar margem à polêmica, porém, que em seu escopo visam a atender melhor à sua finalidade social, que é a de assegurar o uma justiça equânime, imparcial e focada no bem estar social.


A exemplo disso, considerando a ausência de um sistema integrado que demonstre a existência de ação pendente contra proprietário de imóvel que o aliena no curso de processo, o Superior Tribunal de Justiça deu nova interpretação à questão de alienação de bem imóvel em fraude à execução, conforme se lê na seguinte ementa:


PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. EMBARGOS DE TERCEIRO. FRAUDE À EXECUÇÃO. ART. 185, CTN. PENHORA DE BEM ALIENADO A TERCEIRO DE BOA-FÉ. AUSÊNCIA DE REGISTRO. 1. A fraude à execução inocorre quando a alienação do bem opera-se antes de ajuizada a execução fiscal e, a fortiori, precedentemente à penhora. Precedentes da Corte. (REsp 211118/MG, DJ 16.11.2004; REsp 811898/CE, DJ 15.10.2006; AgRg no Ag 480706/MG, 26.09.2006, DJ 26.10.2006). 2. A novel exigência do registro da penhora, muito embora não produza efeitos infirmadores da regra prior in tempore prior in jure, exsurgiu com o escopo de conferir à mesma efeitos erga omnes para o fim de caracterizar a fraude à execução. 3. Aquele que não adquire do penhorado não fica sujeito à fraude in re ipsa, senão pelo conhecimento erga omnes produzido pelo registro da penhora. Sobre o tema, sustentamos: “Hodiernamente, a lei exige o registro da penhora, quando imóvel o bem transcrito. A novel exigência visa à proteção do terceiro de boa-fé, e não é ato essencial à formalização da constrição judicial; por isso o registro não cria prioridade na fase de pagamento. Entretanto, a moderna exigência do registro altera a tradicional concepção da fraude de execução; razão pela qual, somente a alienação posterior ao registro é que caracteriza a figura em exame. Trata-se de uma exceção criada pela própria lei, sem que se possa argumentar que a execução em si seja uma demanda capaz de reduzir o devedor à insolvência e, por isso, a hipótese estaria enquadrada no inciso II do art. 593 do CPC. A referida exegese esbarraria na inequívoca ratio legis que exsurgiu com o nítido objetivo de proteger terceiros adquirentes. Assim, não se pode mais afirmar que quem compra do penhorado o faz em fraude de execução. ‘É preciso verificar se a aquisição precedeu ou sucedeu o registro da penhora’. Neste passo, a reforma consagrou, no nosso sistema, aquilo que de há muito se preconiza nos nossos matizes europeus.” (Curso de Direito Processual Civil, Luiz Fux, 2ª Ed., pp.


1298/1299). 4. Agravo regimental desprovido. (AgRg no Ag 1225829/PR, Rel. Ministro  LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 11/05/2010, DJe 24/05/2010)


Aqui, a regra formal que deveria ser observada é a que dispõe o artigo 593 inciso II[9], que prevê tratar-se de hipótese de fraude à execução, porém, contemporizando essa previsão legal, o Superior Tribunal de Justiça certamente compreendeu que o terceiro de boa-fé não tem meios de conhecer toda e qualquer espécie de processos que pendem sobre o proprietário alienante em todo o território nacional, inserindo a regra de que a hipótese legal só é válida se na matrícula do imóvel estiver registrada a penhora.


Dessa forma, o ativismo judicial vem dotar o magistrado de meios de atender à função social do processo, quer seja pela análise fático-probatória, de maneira a equilibrar as partes, ou interpretar a legislação infraconstitucional segundo os princípios insculpidos no artigo 3º, inciso I, da Carta Magna.


Conclusão


Conjugando o princípio da função social do processo com o ativismo judicial, percebe-se que o magistrado recebe verdadeiro instrumento proativo, com capacidade efetiva de concretizar a função social do processo civil e, via de conseqüência, concretizando a efetividade das garantias fundamentais constitucionais.


O juiz já pode optar – e assim desejável é que proceda – por não mais ficar adstrito ao formalismo da norma, podendo – e devendo, crêem os autores – adentrar ao conteúdo material, perseguindo o objetivo, a finalidade do dispositivo de lei, dando corpo à sua decisão, de forma a contemplar o intuito primordial do legislador.


A norma não mais se apresenta imutável, ela sofre alterações, seja na sua interpretação, na sua aplicação, ou ainda, em sua adequação ao conteúdo principiológico constitucional.


A função social do processo também se constrói por meio do ativismo judicial, desde que este não se furte aos princípios constitucionais que devem lhe dar sustentação.


Portanto, não só é possível como também é finalidade do ativismo judicial buscar a função social do processo, e ainda dando pacífico atendimento à legitimidade democrática.


 


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Notas:

[1] Artigo selecionado e apresentado no XIX Congresso Nacional do CONPEDI – realizado nos dias 13 e 16 de outubro de 2010 em Frorianópolis – SC.

[2] As cláusulas abertas consistem em técnica legiferante similar à das “normas penais em branco”, sendo instrumento relevante para a democracia e para a manutenção de um refrigerado Direito aplicado.  De acordo com Alberto Gasson Jorge Junior (2004, p. 10): “Transitando entre a generalidade, a vagueza e os valores, inseridas numa roupagem de proposição prescritiva escrita, as cláusulas gerais afirmam o objetivo de dotar o sistema de normas com características de mobilidade, que propiciem abertura ao ordenamento jurídico, evitando-se a tensão entre preceitos normativos rígidos e valores em mutação a implicar um indesejável mal-estar decorrente de um embate sem solução sistêmica. Seria, ademais, o alto teor valorativo nas cláusulas gerais o elemento caracteristicamente diferenciador destas normas perante o ordenamento jurídico, o nódulo essencial que faria com que as cláusulas gerais fossem aquilo que são”. 

[3] LEITE, Gueiros Evandro. Ativismo Judicial. Disponível em: http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/16980/Ativismo_Judicial.pdf?sequence=1. Acesso em: 20 de agosto de 2010.

[4] Acerca do ativismo judicial, no âmbito histórico, leia-se: “As origens do ativismo judicial remontam à jurisprudência norte-americana. Registre-se que o ativismo foi, em um primeiro momento, de natureza conservadora. Foi na atuação proativa da Suprema Corte que os setores mais reacionários encontraram amparo para a segregação racial (Dred Scott v. Sanford, 1857) e para a invalidação das leis sociais em geral (Era Lochner, 1905-1937), culminando no confronto entre o Presidente Roosevelt e a Corte, com a mudança da orientação jurisprudencial contrária ao intervencionismo estatal (West Coast v. Parrish, 1937). A situação se inverteu completamente a partir da década de 50, quando a Suprema Corte, sob a presidência de Warren (1953-1969) e nos primeiros anos da Corte Burger (até 1973), produziu jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais, sobretudo envolvendo negros (Brown v. Board of Education, 1954), acusados em processo criminal (Miranda v. Arizona, 1966) e mulheres (Richardson v. Frontiero, 1973), assim como no tocante ao direito de privacidade (Griswold v. Connecticut, 1965) e de interrupção da gestação (Roe v. Wade, 1973) (BARROSO, 2009, p. 7)”.

[5] De acordo com Amilton Bueno de Carvalho (apud Diniz, 1998:141), “direito alternativo é o movimento voltado à busca de um instrumental prático-teórico a ser utilizado pelos aplicadores do direito, que visam colocar seu saber ou sua atuação sob a perspectiva de uma sociedade democrática, libertando-a da dominação injusta”.  

[6] COELHO, Inocêncio Mártires. Repensando a interpretação constitucional. Revista Diálogo Jurídico, Ano I, Vol. I, nº 05, Salvador-BA, disponível em http://www.direitopublico.com.br/pdf_5/DIALOGO-JURIDICO-05-AGOSTO-2001-INOCENCIO-MARTIRES-COELHO.pdf

[7] PASSOS, J. J. Calmon de. Função social do processo. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3198. Acesso em: 20 de agosto de 2010.

[8] Em livre tradução: Sem embargo, a experiência histórica mostra quão ilusório se mostra a proclamação solene da igualdade em abstrato. Hoje é uma verdade corrente a distinção entre a igualdade de direitos e deveres conferidos pelo texto legal aos membros da comunidade e a igualdade material, que leva em conta as condições específicas em que, hic et nunc, se exercem os direitos e se cumprem os deveres. Em muitas legislações modernas, com o objetivo de promover a igualdade material se serve de exceções impostas à igualdade formal. Isto é evidente em algumas regras conhecidas para proteger interesses de certas pessoas, em razão de sua posição econômica ou social, corre o risco de um tratamento injusto (trabalhadores, inquilinos, etc). 

[9] Art. 593. Considera-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens: I – quando sobre eles pender ação fundada em direito real; II – quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência; III – nos demais casos expressos em lei. 


Informações Sobre os Autores

Neimar Batista

Advogado, Pós Graduado em Direito Processual Civil pelo IBEJ – Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos, Pós Graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Mestrando em Direito Empresarial e Cidadania pela UNICURITIBA. Membro do Projeto de Pesquisa “Livre Iniciativa e Dignidade Humana – Ano II”, do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário de Curitiba – UNICURITIBA.

Ana Cecília Parodi

Mestre em Direito Econômico e Socioambiental (PUCPR). Especialista em Direito Civil e Empresarial (PUCPR). Especialista em Direito Aplicado (Escola da Magistratura do Paraná). Advogada. Conferencista. Professora, com atuação precípua em cursos de pós-graduação no âmbito nacional; líder II do Projeto de Pesquisa CAPES “Livre Iniciativa e Dignidade Humana – Ano III”; editora científica da Revista Diálogos pelo Desenvolvimento; co-editora da coluna jurídica “Livre Iniciativa e Dignidade Humana” do Jornal O Estado do Paraná. Autora de diversas obras jurídicas


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