Resumo: Um dos mecanismos mais utilizados pelos Estados-Membros brasileiros para atraírem investimentos para seu território é a concessão de incentivos fiscais. Nessa toada, o principal tributo alvo das desonerações é o imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação – ICMS. Todavia, para ele, o regime jurídico aplicável traz requisito específico para a instituição de benefícios, qual seja, a exigência de celebração de convênio unânime entre Estados e Distrito Federal. Tal requisito é alvo de grande controvérsia jurisprudencial e doutrinária, estando no centro dos debates sobre guerra fiscal.
Palavras-chave: ICMS, Guerra Fiscal, Confaz, Incentivos Fiscais.
Abstract: One of the most widely spread mecanism used by the brazilian Member-States to atract investiments towards their territory is the granting of tax incentives. This way, the main tax subject to such reliefs is the tax on the circulation of goods, interstate and intercity transportation and communication services. However, for this, the applicable legal regime imposes a specific requirement for the institution, which is the celebration of an unanimous covenant between all States and the Federal District. Such requirement is the target of several jurisprudential and doctrinarie controversy, being in the center of the debates about the fiscal war.
Sumário: Introdução. 1. Regime jurídico de concessão de incentivos fiscais. 1.1. Considerações terminológicas 1.2.Requisitos gerais para concessão de incentivos fiscais. 1.3. Incentivos fiscais no âmbito do ICMS. 2. Argumentação deduzida na ADI 5.244/PE. 2.1. Manifestações dos autos. 2.2. Ofensa reflexa à constituição. 3. Recepção da unanimidade estipulada na lei complementar Nº 24/75 e ADPF Nº 198/DF. 3.1. Considerações gerais. 3.2. A arguição de descumprimento de preceito fundamental Nº 198/DF. 3.3.Segurança jurídica e modulação de efeitos. Conclusões.
Introdução
O ICMS hoje representa o imposto de maior arrecadação dos Estados e Distrito Federal, sendo também exação de elevada complexidade, com extensa regulamentação em nível constitucional, legal e infralegal.
Ademais, tendo em vista seu elevado impacto nas operações dos contribuintes, possui grande capacidade para servir de indutor econômico por meio da concessão de incentivos e benefícios fiscais. Todos os Estados possuem programas ou ao menos algum mecanismo de recolhimento diferenciado.
Deve-se observar ainda que a Constituição da República estabelece requisito próprio para concessão de benefícios relativos ao ICMS, qual seja, a exigência de convênio entre Estado e Distrito Federal, no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). Ademais, a Lei Complementar nº 24/75 exige que a celebração se dê por unanimidade.
Tendo em vista a elevada dificuldade em se atender tal exigência, devido à recalcitrância de alguns Estados em concordarem com a concessão de benefícios por outros, proliferam-se programas de incentivos fiscais criados unilateralmente, à revelia do Confaz, por simples lei estadual, desencadeando a notória “guerra fiscal”.
Nessa toada, surge grande controvérsia doutrinária e jurisprudencial acerca da recepção ou não do requisito da unanimidade pela Constituição da República, uma vez que a solução da celeuma gerará uma forte reconfiguração no cenário fiscal do ICMS em todo o país.
No presente trabalho, busca-se analisar posicionamentos doutrinários abalizados sobre o tema, além dos argumentos discutidos na ADPF nº 198/DF e na ADI nº 5244/PE.
1. Regime jurídico de concessão de incentivos fiscais
1.1. Considerações terminológicas
Cumpre inicialmente realizar um esclarecimento terminológico básico: Não há consenso acadêmico acerca da conceituação de incentivos ou benefícios fiscais. Sua definição frequentemente se confunde com termos como benefícios financeiros, gastos tributários, desoneração tributária, entre outros.
Na lição de Almeida[1], benefícios fiscais é gênero, do qual decorrem as espécies de benefícios tributários, financeiros, creditícios e desonerações tributárias. Ainda nessa linha de pensamento, incentivos fiscais são espécies de benefícios tributários:
No mesmo trabalho, o autor ainda enfatiza a confusão terminológica existente no país, envolvendo benefícios e incentivos fiscais:
“Cabe ressaltar que, tradicionalmente, no Brasil tem-se empregado o termo ‘benefício fiscal’ como sinônimo de ‘benefício tributário’, para designar disposições especiais à regra tributária geral. Contudo, a rigor, benefício fiscal é um termo mais abrangente, pois em economia a palavra fiscal envolve tanto questões ligadas à receita como à despesa, podendo, assim, designar não apenas os benefícios tributários como também os gastos diretos na forma de subsídios, subvenções, etc.
Já a expressão “incentivo fiscal” é conhecida como um subconjunto dos benefícios tributários. Para um benefício tributário ser também enquadrado como incentivo fiscal é preciso que seja “indutor de comportamento”, vale dizer, estimule os agentes a agir de determinada forma, objetivando a atingir um alvo econômico ou social previamente definido. Como exemplo, temos a isenção do imposto de renda sobre os rendimentos reais obtidos em depósitos de caderneta de poupança pelos contribuintes pessoas físicas, visando mantê-los, ou atraí-los, nessas aplicações, de modo a evitar uma canalização excessiva de recursos para o consumo, fato prejudicial no início de um programa de estabilização”.[2]
Não obstante para fins deste estudo, serão usadas indistintamente as terminologias benefícios e incentivos fiscais, uma vez que, para efeito de atendimento dos requisitos constitucionais e legais não haverá diferença, como se verá a seguir.
1.2. Requisitos gerais para concessão de incentivos fiscais
A Constituição da República dispõe sobre os requisitos gerais para concessão de quaisquer incentivos fiscais em seu art. 150, § 6º. Da leitura do dispositivo, percebe-se a preocupação do constituinte em não apenas exigir lei, mas lei específica para tratar sobre concessão de incentivos fiscais.
Sobre esse tema, leciona Amaro:
“A matéria aí referida é, sem dúvida, assunto de lei. Mais do que lei, porém, a Constituição reclama lei específica (vale dizer, lei especialmente editada para tratar somente desses assuntos) ou comando de lei que regule exclusivamente o próprio tributo. Assim, uma redução da base de cálculo do imposto de renda ou deve ser objeto de lei que regule apenas esse imposto ou de lei especial que discipline tão só aquela matéria. O objetivo visado com essa disposição é evitar que certas isenções ou figuras análogas sejam aprovadas no bojo de leis que cuidam dos mais variados assuntos (proteção do menor e do adolescente, desenvolvimento de setores econômicos, relações do trabalho, partidos políticos, educação etc.) e embutem preceitos tributários que correm o risco de ser aprovados sem que o Legislativo lhes dedique específica atenção”.[3]
Dessa forma, a mens legis empregada no dispositivo foi a de evitar a concessão sub-reptícia de incentivos fiscais no bojo de projetos de lei que tratam de assuntos diversos.
Ademais, deve-se sempre ter em mente as exigências da LRF sobre a concessão de benefícios dessa natureza, chamados pela lei de renúncias de receita, em seu art. 14.
Segundo o dispositivo, é necessário previamente à concessão a apresentação de impacto orçamentário-financeiro no exercício em que entrar em vigor e nos dois seguintes. Além disso, deve-se demonstrar que tal renúncia foi considerada na estimativa de receita orçamentária ou ao menos que haverá medidas de compensação à perda arrecadatória. Acerca do tema:
“Qualquer benefício que implique diminuição de receita demanda a necessidade de estimativa do impacto financeiro que possa causar, bem como de que a renúncia foi levada em conta na elaboração da lei orçamentária, no momento das previsões de receita ou indicação de medidas compensatórias, decorrentes de elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.[…]
Vale ressaltar, por oportuno, que a renúncia fiscal subordina-se à fiscalização do Congresso Nacional, mediante controle interno de cada Poder, em consonância com o Estatuto Maior. De sorte que lhe são aplicáveis os princípios da legalidade, legitimidade e economicidade. O vocábulo contempla “todos os mecanismos fiscais em que se podem converter os itens de despesa pública, consubstanciados nas subvenções, nos subsídios e nas restituições a título de incentivo”.[4]
1.3.Incentivos fiscais no âmbito do ICMS
Todavia, tratando de ICMS, há regramento constitucional próprio para concessão de incentivos fiscais, disciplinado no art. 155, § 2.º, XII, g da Constituição Federal.
A Carta da República, à semelhança do que fazia a Constituição de 1967/1969, institui que a concessão de incentivos ou benefícios fiscais no âmbito desse imposto depende da celebração de convênio entre todos os Estados da Federação e do Distrito Federal.
Sem dúvida a intenção do constituinte foi tentar minimizar a ocorrência do fenômeno da guerra fiscal, com efeitos deletérios no próprio pacto federativo.
Os Estados possuem autonomia financeira, de tal sorte que a Constituição lhes outorgou competência tributária para cobrança do ICMS. Contudo, a Lei Maior também buscou criar mecanismos para evitar que o exercício dessa prerrogativa gerasse conflito entre eles, notadamente por meio de uma competição desenfreada para atração de investimentos, por meio da concessão de benefícios fiscais.[5]
No mesmo sentido, Ives Gandra leciona que
“Na autonomia financeira dos Estados, é o ICMS a sua grande fonte de receita, tributo cuja estadualização implica a existência de regras na lei Suprema destinadas a evitar que os Estados sejam privados do direito de dirigir suas políticas regionais, ou que sejam pressionados a conceder benefícios, por autênticos "leilões" provocados por investidores que escolhem o local de sua instalação em função dos benefícios que este ou aquele Estado lhes ofereçam.
Na atual guerra fiscal, são os investidores que negociam e impõem às Secretarias dos Estados sua política, obtida, por se instalarem naqueles que lhes outorgarem maiores vantagens. Tal fato representa, de rigor, que a verdadeira política financeira não é definida pelos governos, mas exclusivamente pelos investidores. E, muitas vezes, gera descompetitividade no próprio Estado para estabelecimentos, já há longo tempo lá estabelecidos, que não poderão dos estímulos se beneficiar”.[6]
Do exposto fica claro que a exigência da celebração de convênios imposta pelo constituinte busca resguardar a própria autonomia dos Entes Federados, tendo em vista que suas diferentes situações econômicas e políticas geram um desigual poder de atração de investimentos privados.
A lei complementar que trata sobre os mencionados convênios já foi editada sob a égide na Constituição anterior, trata-se da LC nº 24/75. Nela, há exigência de aceitação unânime por todos os Estados e Distrito Federal para que um benefício fiscal seja concedido, no âmbito de um órgão conhecido como Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz).
Frequentemente, contudo, alguns Estados, na tentativa de atrair investimentos, realizam concessões de benefícios em relação ao ICMS sem atenderem às prescrições da referida lei complementar:
“Ocorre que, sob o argumento de promover o desenvolvimento de seus territórios, os Estados desconsideram a condição imposta constitucionalmente, concedendo unilateralmente incentivos fiscais de ICMS de diversas naturezas, para atrair investimentos empresariais, ignorando, dessa forma, os limites previstos na Lei complementar nº 24/75”.[7]
A competição dos Estados por investimentos privados traduz-se na chamada “Guerra Fiscal”, em que esses entes federados realizam uma verdadeira “corrida ao fundo do poço”[8], gerando uma queda generalizada na arrecadação, com prejuízo a todos:
“Por meio de tais atrativos, inaugura-se um leilão de vantagens entre os entes federados. Desencadeia-se, assim, uma guerra em que poucos ganham e quase todos perdem. A longo prazo, com a generalização da competição há uma generalização do prejuízo pela queda global da arrecadação do ICMS de todos os Estados, considerando que, de qualquer modo, em alguns dos entes da Federação, a sociedade empresária seria instalada”.[9]
Essa conduta de alguns entes federados gera demandas judiciais pelos demais Estados, geralmente de maior pujança econômica, que não querem sofrer com deslocamentos de empresas de seus territórios.
Dessa feita percebe-se uma tensão existente entre a necessidade de observância estrita aos ditames da Lei Complementar nº 24/75, constitucionalmente prevista, e o objetivo fundamental de desenvolvimento nacional e redução de desigualdades sociais e regionais, também prescritos pela Carta Magna.
2. Argumentação deduzida na ADI 5.244/PE
Entre tantos exemplos, é possível selecionar a ADI 5.244/PE para servir de paradigma de análise tendo em vista ser ação que questiona a validade de um amplo programa de incentivos fiscais ao ICMS concedido pelo Estado de Pernambuco, denominado Programa de Desenvolvimento do Estado de Pernambuco – Prodepe.
2.1. Manifestações dos autos
A principal tese apresentada para tentar fulminar o programa é a ausência de celebração de convênio prévio autorizativo no âmbito do Confaz, conforme exigência do art. 155, § 2º, XII, g da Constituição da República.
Primeiramente, o autor na ADI 5244/PE afirmou a imprescindibilidade da celebração de tais convênios, para tanto, realizou diversas citações doutrinárias, entre as quais se colaciona a de Roque Carraza:
“O art. 155, § 2º, XII, “g”, da CF, ao estabelecer que, em matéria de ICMS, cabe à lei complementar “regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos ou revogados”, excepcionou a regra geral que assegura a cada pessoa política competente para criar o tributo a aptidão jurídica para, unilateralmente, conceder a isenção tributária.
Ficando com a ideia central, as isenções, no caso do ICMS, só podem ser concedidas pelos Estados e pelo Distrito Federal, em conjunto e por unanimidade”.[10]
Em seguida, concluiu seu raciocínio da seguinte maneira: “No entanto, não se tem qualquer notícia quanto à deliberação anteriores dos Estados e do Distrito Federal autorizativa do “crédito presumido” em questão, deferido por PERNAMBUCO por meio das normas ora objurgadas”[11].
A Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é farta em julgados que declaram a inconstitucionalidade de leis por ausência do referido convênio autorizativo, o que, em traz robustez aos argumentos do autor:
“(…) padece de inconstitucionalidade formal a LC 358/2009 do Estado de Mato Grosso, porquanto concessiva de isenção fiscal, no que concerne ao ICMS, para as operações de aquisição de automóveis por oficiais de justiça estaduais sem o necessário amparo em convênio interestadual, caracterizando hipótese típica de guerra fiscal em desarmonia com a CF de 1988.” (ADI 4.276, rel. min. Luiz Fux, julgamento em 20-8-2014, Plenário, DJE de 18-9-2014.) No mesmo sentido: RE 861.756-AgR, rel. min. Cármen Lúcia, julgamento em 17-3-2015, Segunda Turma,DJE de 7-4-2015.
“ICMS – Benefício fiscal – Isenção. Conflita com o disposto nos arts. 150, § 6º, e 155, § 2º, XII, alínea g, da CF decreto concessivo de isenção, sem que precedido do consenso das unidades da Federação.” (ADI 2.376, rel. min. Marco Aurélio, julgamento em 1º-6-2011, Plenário, DJE de 1º-7-2011.)
Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 12, caput e parágrafo único, da Lei estadual (PA) nº 5.780/93. Concessão de benefícios fiscais de ICMS independentemente de deliberação do CONFAZ. Guerra Fiscal. Violação dos arts. 150, § 6º, e 155, § 2º, XII, “g”, da Constituição Federal. 1. É pacífica a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal de que são inconstitucionais as normas que concedam ou autorizem a concessão de benefícios fiscais de ICMS (isenção, redução de base de cálculo, créditos presumidos e dispensa de pagamento) independentemente de deliberação do CONFAZ, por violação dos arts. 150, § 6º, e 155, § 2º, inciso XII, alínea “g”, da Constituição Federal, os quais repudiam a denominada “guerra fiscal”. Precedente: ADI nº 2.548/PR, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJ 15/6/07. 2. Inconstitucionalidade do art. 12, caput, da Lei nº 5.780/93 do Estado do Pará, e da expressão “sem prejuízo do disposto no caput deste artigo” contida no seu parágrafo único, na medida em que autorizam ao Poder Executivo conceder diretamente benefícios fiscais de ICMS sem observância das formalidades previstas na Constituição. 3. Ação direta julgada parcialmente procedente. (ADI 1247, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 01/06/2011, DJe-157 DIVULG 16-08-2011 PUBLIC 17-08-2011 EMENT VOL-02567-01 PP-00001)
Foram intimadas para apresentar resposta em ambas as ações o Estado de Pernambuco e a Assembleia Legislativa de Pernambuco.
O principal argumento utilizado em defesa da Lei instituidora do Prodepe, e que traz à tona questão de elevada complexidade, diz respeito à consecução do objetivo fundamental de reduzir desigualdades sociais e regionais (art. 3º, inc. III da CF/88) em contraponto às rigorosas exigências da Lei Complementar nº 24/75 para celebração de convênios acerca do ICMS.
A seguir, manifestou-se o Procurador-Geral da República, pela procedência do pedido. Reafirmou a jurisprudência do Supremo acerca do tema e defendeu que o requisito da unanimidade, criado nos arts. 2º, § 2º, e 4º da Lei Complementar nº 24/75, foi recepcionado pela Constituição Federal.
Frise-se ainda um ponto importante. Preliminarmente ao mérito da ação, foi levantado uma controvérsia relevante, que diz respeito à própria possibilidade de utilização da referida Lei para servir de parâmetro para controle concentrado de constitucionalidade, uma vez que pode-se vislumbrar uma ofensa meramente reflexa à Carta da República.
2.2. Ofensa Reflexa à Constituição
Segundo alega o Estado de Pernambuco em suas informações à ADI nº 5.244/PE, a exigência de celebração prévia de convênio unânime é criada unicamente pela legislação infraconstitucional, qual seja, a Lei Complementar nº 24/75.
Assim questiona-se se a alegação de descumprimento da referida lei é parâmetro de constitucionalidade suficiente para ensejar o controle concentrado, uma vez que, se estaria diante de inconstitucionalidade meramente reflexa ou indireta. Segundo lição de Barroso:
“Se, para chegar à alegada violação do preceito constitucional invocado, teve a recorrente de partir da ofensa à legislação infraconstitucional, a afronta à Constituição teria ocorrido de forma indireta, reflexa. Ora, somente a ofensa direta e frontal à Constituição, direta e não reflexa, é que autoriza o recurso extraordinário”.[12]
É de se ressaltar, contudo, que o mesmo autor tece críticas à utilização simplista do critério de fixação do objeto passível de controle em ofensas diretas e indiretas (reflexas):
“É de perguntar se o parâmetro utilizado pelo STF até o momento — distinção entre ofensa direta e reflexa — conserva sua atualidade no contexto da chamada nova interpretação constitucional.
Em tempos de constitucionalização do direito, não parece adequado simplesmente barrar o acesso à jurisdição constitucional sempre que exista lei disciplinando determinada matéria. A irradiação dos valores constitucionais pelos diversos ramos do ordenamento jurídico tende a ocorrer primordialmente através da interpretação da legislação ordinária à luz da Constituição, potencializada pela crescente utilização de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados. Confinar o objeto do recurso extraordinário às chamadas ofensas diretas significa para o STF abdicar aprioristicamente do controle de questões relevantes e que se conservam eminentemente constitucionais a despeito da intermediação legislativa”.[13]
Em todo caso, atualmente a Jurisprudência do STF, ao identificar que o parâmetro de constitucionalidade invocado efetivamente se enquadra no conceito de ofensa reflexa, tende a negar a possibilidade de controle:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – COMPETÊNCIA CONCORRENTE (CF, ART. 24) – ALEGADA INVASÃO DE COMPETÊNCIA DA UNIÃO FEDERAL, POR DIPLOMA LEGISLATIVO EDITADO POR ESTADO-MEMBRO – NECESSIDADE DE PRÉVIO CONFRONTO ENTRE LEIS DE CARÁTER INFRACONSTITUCIONAL – INADMISSIBILIDADE EM SEDE DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO – AÇÃO DIRETA NÃO CONHECIDA. – Nas hipóteses de competência concorrente (CF, art. 24), nas quais se estabelece verdadeira situação de condomínio legislativo entre a União Federal e os Estados-membros (RAUL MACHADO HORTA, "Estudos de Direito Constitucional", p. 366, item n. 2, 1995, Del Rey), daí resultando clara repartição vertical de competências normativas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de entender incabível a ação direta de inconstitucionalidade, se, para o específico efeito de examinar-se a ocorrência, ou não, de invasão de competência da União Federal, por parte de qualquer Estado-membro, tornar-se necessário o confronto prévio entre diplomas normativos de caráter infraconstitucional: a legislação nacional de princípios ou de normas gerais, de um lado (CF, art. 24, § 1º), e as leis estaduais de aplicação e execução das diretrizes fixadas pela União Federal, de outro (CF, art. 24, § 2º). Precedentes. É que, tratando-se de controle normativo abstrato, a inconstitucionalidade há de transparecer de modo imediato, derivando, o seu reconhecimento, do confronto direto que se faça entre o ato estatal impugnado e o texto da própria Constituição da República. Precedentes. ” (ADI 2344 QO, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 23/11/2000, DJ 02-08-2002)
Todavia, verifica-se que embora a constituição não disponha expressamente sobre o requisito da unanimidade, o art. 155, § 2º, XII, g da CF/88 é claro ao exigir a celebração de convênios como condição para concessão ou revogação de benefícios fiscais.
Independentemente do motivo pelo qual haja ausência de convênio prévio, ainda que devido à inviabilidade em se atingir um consenso pleno entre os Estados, o fato é que a falta do ajuste pode ser cotejada diretamente com o dispositivo constitucional citado, fugindo assim do problema relativo à alegação de inconstitucionalidade reflexa.
Tanto é assim, que frequentemente, conforme já citado em julgados anteriores, o STF frequentemente controla atos de concessão unilateral de benefícios fiscais por violação ao mesmo artigo constitucional.
3. Recepção da Unanimidade Estipulada na Lei Complementar nº 24/75 e ADPF nº 198/DF
3.1. Considerações Gerais
Questão mais delicada diz respeito à recepção especificamente do do art. 2º, § 2º da LC nº 24/75, que assim dispõe: A concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados; a sua revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes presentes.
O fato é que, diversos Estados, Pernambuco incluso, alegam que a exigência de unanimidade inviabiliza a criação de programas regionais de desenvolvimento fundados na concessão de benefícios fiscais.
Isso porque é de se esperar que ao menos algum dos demais Estados ou Distrito Federal irá se opor, por não querer sujeitar-se ao risco de se tornar menos atrativo para investimentos, ou ainda de sofrer uma evasão de indústrias, por não conceder benefícios similares.
Para Ives Gandra o requisito de unanimidade é decorrência constitucional, sendo, portanto, legítima a previsão da LC nº 24/75:
“Concluo esta parte do estudo, dizendo que o texto constitucional, quando se refere à deliberação dos Estados e do Distrito Federal no tocante a estímulos fiscais outorgados necessariamente impõe a deliberação de todos os Estados e o Distrito Federal, visto que não estabeleceu qualquer quorum mínimo.
Por esta linha de raciocínio, entendo que a unanimidade exigida pelo CONFAZ não decorre da legislação infraconstitucional, mas decorre, à luz da Constituição de 1988, do próprio texto supremo (…)”.[14]
Para o autor a estatura constitucional dessa exigência é inclusive petrificada, uma vez que sua relativização seria medida tendente a abolir o pacto federativo, sendo assim vedada pelo art. 60, § 4º, inc. I da CF/88. Retirar de um Estado o direito de se opor a convênio que o prejudique significaria manter uma federação meramente do ponto de vista formal[15].
Comentando o posicionamento acima, contrapõe-se Paulo de Barros Carvalho, aduzindo que a unanimidade não é requisito constitucionalmente previsto:
“A despeito desses sólidos argumentos, penso que o tema não deva ser tratado com tamanha rigidez [cláusula pétrea]. Sendo facultado aos Estados e Distrito Federal conceder as isenções, incentivos ou benefícios de ICMS autorizados em convênios pelo CONFAZ, mostra-se inócua a exigência de unanimidade para sua aprovação sempre que estiver em pauta o estímulo ao desenvolvimento de unidades federativas que, comprovadamente, se encontrem em situação econômico-produtiva precária. Tal regime tem gerado obstáculos, em face dos interesses dissonantes e, muitas vezes, contrapostos, dos entes federados. Solução razoável seria reduzir, para esses casos específicos, o quorum de aprovação para dois terços, cumprindo, desse modo, sua função de tornar factível o estímulo para desenvolvimento de Estados menos favorecidos, com consequente redução das desigualdades regionais, como desejado pela Constituição de 1988”[16].
O autor fundamenta sua opinião em análise do contexto histórico que deu origem à Lei Complementar nº 24/75, concluindo que os pressupostos existentes naquela época não mais subsistem.
Segundo afirma, a referida lei foi editada em pleno regime ditatorial militar, em um contexto em que se buscava conferir ao então ICM uma uniformidade nacional, situação que não mais subsiste, sendo possível que cada Estado o adapte para atender a suas situações peculiares.
O raciocínio parte da redação do art. 23, § 6º da Constituição de 1967 que por sua redação impunha o caráter impositivo aos convênios de ICMS, de tal sorte que todos os Estados estariam obrigados a sua aplicação.
Para ele, atualmente a constituição permite convênios meramente autorizativos, uma vez que dá maior ênfase à autonomia dos entes federados para escolher se aplicarão ou não o benefício.
Esse tipo de entendimento abre margem para questionar se a criação por lei de um requisito extremamente dificultoso, caso da unanimidade, é capaz de inviabilizar a criação de benefícios fiscais tidos como indispensáveis para a consecução do objetivo previsto constitucionalmente, qual seja a redução de desigualdades regionais.
Para Scaff, citando Regis Fernandes de Oliveira, a regra da unanimidade exigida não foi recepcionada. O fundamento apontado para essa conclusão é também a defesa do pacto federativo, tendo em vista que medidas que seriam benéficas como um todo para a federação podem ser sustadas por ato isolado de um único membro:
“(…) Regis Fernandes de Oliveira trilha caminho distinto, com o qual me alinho, pela não recepção da norma que impõe a unanimidade. Pela lógica da unanimidade, o Confaz se torna o dono do ICMS e não cada Estado individualmente considerado. O Confaz tem um papel de harmonização fiscal em um Estado Democrático de Direito, e não de Coação Fiscal, própria do período em que foi criado. Durante o autoritarismo a regra da unanimidade possuía uma lógica interna ao sistema; durante o período democrático esta norma não pode prosperar, pois não encontra amparo em nenhuma norma constitucional.
Esta exigência de unanimidade do Confaz não é inconstitucional, ela simplesmente não foi recepcionada. A referência efetuada pelo artigo 34, parágrafo 8º do ADCT à Lei Complementar 24/75 realizou a recepção da norma, mas não em sua inteireza. A regra da unanimidade simplesmente não foi recepcionada por falta de norma que a ampare sob a égide da Constituição de 1988. Entendo que o artigo 2º, parágrafo 2º da Lei Complementar 24/75 não foi recepcionado pela atual Constituição em face do Princípio Federativo e do Princípio Democrático, pois, da forma como se encontra estruturado, é possível a um único Estado da Federação bloquear uma deliberação que seja relevante para o conjunto dos demais entes federados. Isso não está auxiliando ou permitindo o desenvolvimento federativo, ao contrário, está matando a Federação. Nem mesmo uma proposta de Emenda Constitucional que contivesse este tipo de obrigatoriedade poderia ser analisada, por ferir cláusula pétrea de nossa Constituição (artigo 60, parágrafo 4º, I, Constituição Federal). ”[17]
3.2. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 198/DF
Sobre o tema, deve-se destacar finalmente o possível impacto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 198/DF.
Tal ação pede a declaração de inconstitucionalidade do § 2º do art. 2º e do caput do art. 4º da Lei complementar nº 24/75, que são justamente os dispositivos que tratam da unanimidade para deliberação do Confaz.
O instrumento para impugnação utilizado foi a ADPF, uma vez que é o meio adequado de controle concentrado para aferir a compatibilidade de atos normativos anteriores a 1988 com a atual Carta Política: “Possibilitando levar ao Supremo leis ou atos normativos municipais, bem como o direito pré-constitucional, a ADPF fortificou o controle concentrado, tornando-o completo”[18].
Caso seja julgada procedente, a ADPF nº 198 trará grandes modificações na sistemática atual de celebração de convênios do Confaz. Embora haja certa controvérsia a respeito, é razoável supor que, com a retirada do critério de unanimidade, o novo quórum de aprovação de convênios para concessão de benefícios ou incentivos fiscais será de maioria relativa.
Embora a Lei Complementar nº 24/75 não traga este quórum, ele é estabelecido no inciso III do art. 30 do Regimento Interno do Confaz de forma subsidiária:
“Art. 30. As decisões do Conselho serão tomadas:
I – por unanimidade dos representantes presentes, na concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais previstos no artigo 1º da Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975;
II – por quatro quintos dos representantes presentes, na revogação total ou parcial de isenções, incentivos e benefícios fiscais concedidos;
III – por maioria dos representantes presentes, nas demais deliberações.
Parágrafo único. Cabe ao Presidente o voto de desempate nas decisões do inciso III”.
Atualmente é evidente que vigora o inciso I para a concessão de benefícios fiscais, todavia, caso seja julgada procedente a ADPF nº 198, tal dispositivo também será retirado do mundo jurídico por arrastamento:
“A dependência ou interdependência normativa entre os dispositivos de uma lei pode justificar a extensão da declaração de inconstitucionalidade a dispositivos constitucionais mesmo nos casos em que estes não estejam incluídos no pedido inicial da ação. É o que a doutrina denomina de declaração de inconstitucionalidade consequente ou por arrastamento”.[19]
Dessa forma, como a situação de concessão de benefícios fiscais ficará sem dispositivo expresso, é possível sustentar que se aplique o quórum subsidiário constante no inciso III, qual seja, maioria relativa.
Outro ponto relevante de análise que pode ser feito diz respeito aos diversos atores interessados no resultado favorável ou não da ADPF nº 198. Isso porque, além das manifestações exigidas por lei, diversos postulantes ingressaram ou buscaram ingresso no processo como amicus curiae, revelando seu interesse no julgamento do feito. Compilando as informações, é possível elaborar a seguinte tabela:
Percebe-se que, fora os agentes de nível Federal, todos os representantes de agentes privados são favoráveis ao pedido, além de que, dos entes políticos, apenas São Paulo se opõe à pretensão autoral.
Esse fato reforça a tese defendida pelo Governo de Pernambuco, nas informações à ADI 5244/PE, de que o Estado de São Paulo tende a se opor a mecanismos que possam tornar outras regiões do país mais atrativas para realização de investimentos, ainda que isso dificulte suas políticas de desenvolvimento econômico.
3.3. Segurança Jurídica e Modulação de Efeitos
Outro aspecto levantado na ADI 5244/PE, foi a necessidade de modulação de efeitos em caso de declaração de inconstitucionalidade do programa. Tal matéria de fato apresenta grande complexidade devido à ponderação entre diversos princípios constitucionais, como a legalidade e segurança jurídica.
Como se sabe, via de regra os efeitos da declaração de inconstitucionalidade empreendida em controle concentrado possuem efeitos ex tunc e erga omnes:
“O nosso modelo adota a ideia trazida pelos americanos, ou seja, em regra, a lei declarada inconstitucional é nula. Os efeitos da declaração são ex tunc, ab initio. Logo, a conversão desses efeitos em ex nunc, ou pró-futuro, é medida excepcional, consoante disciplinam o art. 27 da Lei nº 9.868/1999 e a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.”[20]
Por esse motivo, uma declaração de inconstitucionalidade de extensos programas de incentivos fiscais, a exemplo do Prodepe, tende a impactar negativamente diversos agentes econômicos que se beneficiaram da medida, muitas vezes por longo período de tempo, não apenas em vista do fim do benefício, mas da possibilidade de cobrança de valores pretéritos.
Tal debate é ainda mais acirrado frente à proposta de súmula vinculante nº 69, de autoria do Min. Gilmar Mendes, que assim prescreve: “Qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do Confaz, é inconstitucional”.
Nesse sentido, a doutrina diverge acerca de qual posição seria mais adequada para se aplicar no caso de declaração de inconstitucionalidade, desde aqueles que pugnam pela aplicação da regra geral, quanto aqueles que defendem a convalidação dos benefícios fiscais, com modulação dos efeitos da decisão.
Defendendo a primazia do princípio da legalidade, Ricardo Lodi Ribeiro defende a aplicação com efeitos retroativos ex tunc, uma vez que o princípio da segurança jurídica não pode ser invocado quando o contribuinte tinha consciência dos vícios que acometiam o benefício fiscal:
“O que o princípio da segurança tutela é a boa-fé, a sinceridade de propósitos e a dignidade da confiança, e não a esperteza e a malícia inerentes a um pacto entre contribuintes e governantes que, quase sempre, foram alertados quanto à ilegitimidade dos benefícios fiscais e acreditam na impunidade na coibição dessas, em detrimento dos demais integrantes do mercado que não tiveram acesso aos requisitos legais encomendados, e dos demais Estados que vêem sua arrecadação esvaziada por tais manobras. Ademais, a tutela desse tipo de isenção desarma o sistema constitucional de controle da guerra fiscal, viabilizando um quadro, que atualmente se verifica, de completo abandono da legalidade na concessão de favores fiscais, concedidos atualmente por decretos individualizados e despachos em processos administrativos, acabando por gerar lesão à moralidade administrativa, à isonomia, à livre concorrência e à impessoalidade. (…)
Por todos esses motivos, a ponderação entre a segurança do contribuinte com a legalidade e o princípio da conduta amistosa dos entes federativos, conspira contra a manutenção de incentivos fiscais no ICMS sem aprovação do CONFAZ, onde dificilmente deve ser reconhecida a proteção da confiança legítima”.[21]
Por outro turno, sabe-se que é possível haver modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade por dois fundamentos, estabelecidos no art. 27 da Lei nº 9.868/99: segurança jurídica e excepcional interesse social.
No que tange ao primeiro, diversos autores se manifestam pela necessidade de tutelar a legítima confiança do contribuinte na fruição de benefícios fiscais que, muitas vezes, foram determinantes para seus investimentos no Estado concedente.
Humberto Ávila afirma que mesmo diante de atos inconstitucionais ou ilegais, a depender das peculiaridades do caso concreto, a que ele denomina de base de confiança, é possível haver primazia à segurança jurídica do contribuinte:
“A tese aqui defendida é no sentido de que o que caracteriza a base é a sua aptidão para servir de fundamento para o exercício dos direitos de liberdade e de propriedade, e não os requisitos objetivos que ela possua. Isso ficará claro quando da demonstração de que os atos administrativos inválidos e as leis inconstitucionais, editados em desconformidade com os requisitos objetivos para a sua edição, da mesma forma, podem gerar confiança digna de proteção.(…)
Ocorre, porém, que o exame jurisprudencial (…) revela que a base de confiança é merecedora de confiabilidade mesmo quando possui determinadas características que, à primeira vista, parecem desqualificá-la como fonte produtora de confiança. Afirma-se, por exemplo, que uma lei inconstitucional ou um ato nulo não geram confiança. Mas se o particular, em função da lei ou do ato, terminou atuando durante longo tempo, não sendo mais possível reverter o estado em que se encontra, mesmo assim não há proteção? Se o particular só agiu porque foi induzido pelo Estado por meio do próprio ato que, mais tarde, veio a ser considerado nulo, e o fez de maneira dispendiosa, por longo período e por meio de uma estreita cooperação com o Estado na realização de finalidades públicas, ainda assim não há proteção?”[22]
Segundo o autor, diversos critérios devem ser levados em consideração diante da decisão por se aplicar ou não a tutela da legítima confiança, e não aplicar simplesmente o raciocínio dicotômico entre ato constitucional/inconstitucional.
Tendo em vista ser o Prodepe um programa de incentivos fiscais em vigor há mais de uma década, além de ter caráter oneroso por trazer várias condições específicas para sua concessão, é defensável a existência de base de confiança que legitima a modulação de efeitos para o futuro, em caso de declaração de inconstitucionalidade.
Lucas Bevilacqua também defende a utilização desse critério:
“O grau de onerosidade é outro fator que deve ser levado em conta na aferição da proteção da confiança na medida em que deverão ser diretamente proporcionais, isto é, quanto maior a onerosidade, maior deve ser a proteção da confiança”.[23]
Contudo, em 11 de março de 2015, o STF firmou, por maioria, entendimento em caso análogo pela realização da modulação de efeitos. Tratou-se da ADI nº 4481/PR, em que se questionava a constitucionalidade de programa de incentivos fiscais implementado à revelia do Confaz.
Adotando sua jurisprudência pacificada, os benefícios concedidos por lei sem prévia autorização do Conselho foram julgados inconstitucionais, contudo os efeitos da decisão foram prospectivos (ex nunc), a partir da data do julgamento:
“TRIBUTÁRIO. LEI ESTADUAL QUE INSTITUI BENEFÍCIOS FISCAIS RELATIVOS AO ICMS. AUSÊNCIA DE CONVÊNIO INTERESTADUAL PRÉVIO. OFENSA AO ART. 155, § 2º, XII, g, DA CF/88. II. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS. 1. A instituição de benefícios fiscais relativos ao ICMS só pode ser realizada com base em convênio interestadual, na forma do art. 155, §2º, XII, g, da CF/88 e da Lei Complementar nº 24/75. (…) 3. A modulação dos efeitos temporais da decisão que declara a inconstitucionalidade decorre da ponderação entre a disposição constitucional tida por violada e os princípios da boa-fé e da segurança jurídica, uma vez que a norma vigorou por oito anos sem que fosse suspensa pelo STF. A supremacia da Constituição é um pressuposto do sistema de controle de constitucionalidade, sendo insuscetível de ponderação por impossibilidade lógica. 4. Procedência parcial do pedido. Modulação para que a decisão produza efeitos a contatar da data da sessão de julgamento”. (ADI 4481, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 11/03/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-092 DIVULG 18-05-2015 PUBLIC 19-05-2015)
Da leitura do julgado verifica-se que o principal critério utilizado para determinar a modulação dos efeitos foi o temporal. No caso, a norma do estado do Paraná vigorava há mais de oito anos. É de se esperar, portanto, que igual entendimento seja aplicado eventualmente ao Prodepe, tendo em vista estar em vigor há mais tempo ainda.
Todavia, é importante registrar as críticas realizadas pelo voto divergente do Min. Marco Aurélio, que adota tese similar à de Ricardo Lodi Ribeiro, citada anteriormente, para negar manutenção de efeitos quando evidente a inconstitucionalidade dos benefícios concedidos:
“É menoscabo à Carta da República editar uma lei como essa, em conflito evidente com a Constituição, já que a sujeição ao convênio unânime nela está em bom vernáculo, para chegar-se ao benefício, e, então, simplesmente, apostar-se na morosidade da Justiça, que, em um futuro próximo, acomodará a situação.
Não se estimulam, dessa forma, os cidadãos em geral a respeitarem o arcabouço normativo constitucional em vigor. Ao contrário, em quadra muito estranha, incentiva-se a haver o desrespeito e, posteriormente, ter-se o famoso jeitinho brasileiro, dando-se o dito pelo não dito, o errado pelo certo.”
Registre-se ainda a tramitação na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 54/2015, já aprovado no Senado Federal, que pretende convalidar os benefícios fiscais irregulares atualmente existentes, por meio de convênio celebrado pelo Confaz com quórum reduzido de “dois terços das unidades federadas” ou ainda de “um terço das unidades federadas integrantes de cada uma das cinco regiões do País”.
Conclusões
Da análise realizada pode-se depreender que, acaso mantida a tendência conservadora da jurisprudência do STF, os incentivos fiscais impugnados na ADI nº 5.244/PE e em todas as outras ações análogas serão reputados inconstitucionais.
Todavia, fica evidente que a questão da concessão de benefícios à revelia do Confaz não é questão trivial. Diferentes parâmetros constitucionais devem ser levados em consideração antes da aplicação pura e simples da letra fria da lei e da constituição.
A necessária consecução dos objetivos fundamentais da república, estabelecidos no art. 3º da Carta Magna, entre eles a redução das desigualdades regionais, leva a indagar até que ponto é razoável retirar do mundo jurídico programas de incentivos fiscais que, segundo estudos econômicos, de fato aparentam alcançar melhorias no quadro social, em especial na geração de emprego e renda.
Frise-se que os Estados que mais utilizam benefícios fiscais tidos como inconstitucionais são os que possuem menor representatividade no PIB e por isso têm mais premente necessidade de criar mecanismos para atrair investimentos, enquanto, ao revés, o Estado que mais se opõe a tais concessões de benefícios é justamente o mais desenvolvido, qual seja, São Paulo.
Tudo isso deve ser ponderado levando-se em conta que os amplos programas de benefícios fiscais, atualmente sofrendo controle de constitucionalidade no STF, possuíam quase que total inviabilidade de serem aprovados pelo procedimento regular, afinal a Lei Complementar de regência exige quórum demasiadamente exagerado de unanimidade de todos os 26 Estados e Distrito Federal.
Crê-se que ao menos a modulação de efeitos relativa à manutenção dos benefícios fiscais já concedidos pelo Prodepe será efetuada, devido ao longo período de gozo e a jurisprudência recente do STF.
Todavia, deve-se ter em mente que o julgamento da ADI nº 5244/PE pode ser afetado pelo PLP nº 54/2015, que prevê a convalidação de benefícios fiscais concedidos até a eficácia da lei resultante, inclusive mantendo os respectivos programas por vários anos.
Também pode ser afetado pelo julgamento da ADPF nº 198/DF, que busca retirar o quórum de unanimidade exigido pela Lei Complementar nº 24/75. Se julgada procedente, é provável que igualmente haja a realização de convênios de convalidação no âmbito do Confaz.
Logo, embora à primeira vista seja claro o resultado do julgamento da referida ação direta, a questão possui complexidade que desborda a mera aplicação de um requisito formal procedimental, qual seja, a existência de convênio prévio. Demanda-se, dessa forma, uma análise holística de todos os demais aspectos de relevância igualmente constitucional, que podem ser afetados.
Informações Sobre o Autor
Augusto Cesar Neves Lima Filho
Bacharel em Direito pela UFPE. Consultor Legislativo da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco