Creditamento do ICMS no transporte intermunicipal e interestadual e os deveres instrumentais instituídos pelos estados-membros

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Resumo: Este artigo analisa a estrutura do sistema constitucional tributário brasileiro, especificamente com relação à competência atribuída aos Estados-membros para criarem in abstrato o Imposto sobre a Prestação de Serviço de Transporte Interestadual e Intermunicipal – ICMS-transporte, a garantia da não-cumulatividade e a imposição de deveres instrumentais aos contribuintes. Para tanto, explora o conceito de norma jurídica, as limitações previstas pela CF/88 no exercício das imposições tributárias dos entes estatais, o uso da legislação complementar e finaliza apresentando um exemplo de extrapolação legislativa perpetrada pelo Estado de Minas Gerais.

Palavras-chave: Competência. Estados-membros. ICMS-transporte. Não-cumulatividade. Deveres instrumentais.

Abstract: This article analyzes the constitutional structure of the Brazilian tax system, specifically with respect to the competence conferred on the Member States to create abstract in the Tax Provision of Service Interstate and Intermunicipal Transportation – ICMS-transport, ensuring non-cumulative and imposition of instrumental duties to taxpayers. To do so, explores the concept of a rule, the restrictions imposed by CF/88 the year of tax impositions of the state bodies, the use of complementary legislation and ends by presenting an example of legislative extrapolation perpetrated by the State of Minas Gerais.

Keywords: Competence. Member States. ICMS-transport. Non-cumulative. Instrumental duties.

Sumário: Introdução. 1. Normas jurídicas tributárias: regras e princípios. Não-cumulatividade. Garantia intransponível do contribuinte. 2. Normas gerais de direito tributário. Lei Kandir n. 87/96. Competência dos Estados-membros e do Distrito Federal para a criação de deveres instrumentais. 3. Fato imponível do crédito tributário. Empresa de transporte interestadual e intermunicipal. Insumos. Deveres instrumentais exigidos pelo Fisco estadual. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

Nos dias que correm, cada vez fica mais evidente que os Fiscos, valendo-se das suas competências tributárias, utilizam-se dos expedientes normativos postos à sua disposição para disciplinar as denominadas obrigações acessórias, expressão esta utilizada pelo Código Tributário Nacional em seu artigo 113, que preferimos chamar de deveres instrumentais, seguindo, assim, o entendimento da doutrina mais abalizada.

Entretanto, o que chama a atenção é há tempo estamos atravessando por uma inegável fase de transmudação de papéis, onde o ente credor, até então obrigado a cumprir com o seu papel fiscalizador, passa a empurrar para o contribuinte cada vez mais tarefas em matéria tributária, sufocando-o, onerando-o e, em algumas vezes, inviabilizando o regular exercício do seu próprio direito.

Neste pequeno estudo, houve uma nítida preocupação em tentar compreender a razão pela qual algumas empresas de transporte interestadual e intermunicipal têm dificuldades para se apropriar do crédito de ICMS, em razão dos insumos que adquirem para a prestação do serviço.

1. NORMAS JURÍDICAS TRIBUTÁRIAS: REGRAS E PRINCÍPIOS. NÃO-CUMULATIVIDADE. GARANTIA INTRANSPONÍVEL DO CONTRIBUINTE.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu, inegavelmente, um sistema tributário rígido, onde absolutamente todas as normas jurídicas (regras e princípios) que formam a tributação brasileira estão ali presentes. Assim, o constituinte prescreveu claramente as competências tributárias, conferindo a cada ente político uma parcela de atuação no campo tributário, deixando a cargo dos Estados-membros e do Distrito Federal a aptidão para legislar acerca do Imposto sobre Transporte Interestadual e Intermunicipal – ICMS-transporte.

Todavia, claramente se nota da interpretação do sistema constitucional tributário que as competências não foram conferidas aos entes políticos como se fosse uma carta em branco. Muito pelo contrário, ao mesmo tempo em que o constituinte originário dispôs sobre as competências (regras de estrutura), também estabeleceu incompetências (imunidades), limitações e princípios que não podem ser remediados, sob pena de inconstitucionalidade. Estes princípios são essenciais na composição e no equilíbrio do sistema constitucional tributário.

Portanto, não é de hoje que os operadores do direito têm conhecimento que o ordenamento jurídico brasileiro é formado não somente por regras, mas, essencialmente, por princípios, que são os valores máximos erigidos pela Constituição Federal, senão vejamos o escólio do professor Paulo de Barros Carvalho:

“Seja como for, os princípios aparecem como linhas diretivas que iluminam a compreensão de setores normativos, imprimindo-lhes caráter de unidade relativa e servindo de fator de agregação num dado feixe de normas. Exercem eles uma reação centrípeta, atraindo em torno de si regras jurídicas que caem sob seu raio de influência e manifestam a força de sua presença.”[1]

No mesmo caminho a lição de Roque Antônio Carrazza:

[…] princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grandeza, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam.[2]

Com efeito, mesmo diante da competência tributária atribuída aos Estados e ao Distrito Federal para criarem in abstrato o ICMS-transporte, certamente estes entes políticos não poderão ultrapassar os limites estabelecidos pela Carta Magna. Queremos dizer com isso, que as competências tributárias não são irrestritas, pois por várias vezes o constituinte originário traçou garantias intransponíveis aos contribuintes.

Prevê a Carta Magna em seu artigo 155, II, que:

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.

As empresas que atuam no ramo do transporte interestadual e intermunicipal estão submetidas à regra-matriz de incidência tributária do ICMS-transporte, nos moldes do artigo 155, II, da CF e também da legislação de cada Estado-membro e do Distrito Federal.

Entretanto, o ICMS, tal como previsto na Constituição Federal, é regido pelo princípio da não-cumulatividade, o que implica em dizer que apesar dos Estados-membros e do Distrito Federal deterem competência tributária, suas legislações não podem se intrometer neste assunto, principalmente quando há tentativa de reduzir o sentido e o alcance desta importantíssima garantia, que não só tem por finalidade proteger o contribuinte, mas a sociedade de um modo geral.

Vejamos a redação do § 2º, inciso I, do artigo 155, II, da CF/88:

Art. 155, II – omissis.

§ 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

I – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal.

Hoje não há mais qualquer dúvida de que o ICMS das operações anteriores não precisa ter sido pago para que se gere direito ao crédito ao contribuinte nas etapas seguintes, como também, não se discute que a não-cumulatividade é uma norma jurídica de observância obrigatória.

A CF/88, notoriamente em matéria tributária, não faz recomendações ou pedidos ao legislador ordinário. O constituinte manda o legislador estadual e distrital respeitar a não-cumulatividade, de tal sorte que falece qualquer direito aos Estados-membros ou ao Distrito Federal se imiscuir nesta matéria, por total falta de competência. O crédito tributário decorrente da não-cumulatividade possui uma regra-matriz própria, albergada pela Constituição Federal e que não pode ser objeto de interferência pelos legisladores ordinários.

O C. STJ possui jurisprudência consolidada neste sentido:

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AGRAVO REGIMENTAL. TRIBUTÁRIO. ICMS DESTACADO NAS NOTAS FISCAIS EMITIDAS PELA FORNECEDORA. DIREITO AO CREDITAMENTO. PRINCÍPIO DA NÃO-CUMULATIVIDADE. DEMANDA DECLARATÓRIA QUE RECONHECERA A NÃO INCIDÊNCIA DO ICMS SOBRE OS SERVIÇOS DE COMPOSIÇÃO GRÁFICA NAS EMBALAGENS PERSONALIZADAS. ESTORNO DOS CRÉDITOS PELOS ADQUIRENTES DAS MERCADORIAS.  IMPOSSIBILIDADE. 1. O direito de crédito do contribuinte não decorre da regra-matriz de incidência tributária do ICMS, mas da eficácia legal da norma constitucional que prevê o próprio direito ao abatimento (regra-matriz de direito ao crédito), formalizando-se com os atos praticados pelo contribuinte (norma individual e concreta) e homologados tácita ou expressamente pela autoridade fiscal. Essa norma constitucional é autônoma em relação à regra-matriz de incidência tributária, razão pela qual o direito ao crédito nada tem a ver com o pagamento do tributo devido na operação anterior. 2. Deveras, o direito ao creditamento do ICMS tem assento no princípio da não-cumulatividade, sendo assegurado por expressa disposição constitucional, verbis: "Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (…) II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (…) § 2º  O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: I – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal; (…)" (grifo nosso) 3. O termo “cobrado” deve ser, então, entendido como “apurado”, que não se traduz  em valor em dinheiro, porquanto a compensação se dá entre operações de débito (obrigação tributária)  e crédito (direito ao crédito). Por essa razão, o direito de crédito é uma moeda escritural, cuja função precípua é servir como moeda de pagamento parcial de impostos indiretos, orientados pelo princípio da não-cumulatividade. 4. Destarte, o direito à compensação consubstancia um direito subjetivo do contribuinte, que não pode ser sequer restringido, senão pela própria Constituição Federal.  Evidenciado resulta que a norma constitucional definiu integralmente a forma pela qual se daria a não-cumulatividade do ICMS, deixando patente que somente nos casos de isenção e não-incidência não haveria crédito para compensação com o montante devido nas operações seguintes ou exsurgiria a anulação do crédito relativo às operações anteriores (artigo 155, § 2º, II). 5. Ressoa inequívoco, portanto, que o direito de abatimento, quando presentes os requisitos constitucionais, é norma cogente, oponível ao Estado ou ao Distrito Federal. A seu turno, os sucessivos contribuintes devem, para efeito de calcular o imposto devido pela operação de saída da mercadoria do seu estabelecimento, abater o que antes e, a título idêntico, dever-se-ia ter pago, a fim de evitar a oneração em cascata do objeto  tributado, dando, assim, plena eficácia à norma constitucional veiculadora do princípio da não-cumulatividade. Percebe-se, assim, que o creditamento não é mera faculdade do contribuinte, mas dever para com o ordenamento jurídico objetivo, não lhe sendo possível renunciar ao lançamento do crédito do imposto, mesmo que tal prática lhe fosse conveniente. Sequer a própria lei poderia autorizá-lo a tanto, sob pena de patente inconstitucionalidade. 6. Nesse diapasão, não se afigura legítima a exigência de estorno dos créditos de ICMS, porquanto a empresa agiu no estrito cumprimento da regra-matriz de direito ao crédito, uma vez ter-lhe sido regularmente repassado o tributo pela empresa fornecedora quando da aquisição das embalagens personalizadas, consoante destacado nas notas fiscais – documentos idôneos para tanto -, gerando a presunção de incidência da exação na operação anterior. 7. Deveras, a relação fiscal se estabelece entre o sujeito com competência tributária e o contribuinte, de sorte que o eventual crédito do fisco em relação ao primeiro contribuinte do imposto não pode ser exigido de outrem, o qual pela lei não é seu substituto tributário nem sucessor. In casu, a recorrente pagou o tributo e o primeiro contribuinte depositou-o, levantando-o após, com a anuência do Estado, que não pode pretender reavê-lo de quem implementou o seu dever (Precedente da Primeira Turma: REsp 782987/RS, Rel. Ministro Luiz Fux, julgado em 13.03.2007, DJ 09.04.2007). 8. Agravo regimental desprovido. Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da PRIMEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Teori Albino Zavascki, Benedito Gonçalves (Presidente) e Hamilton Carvalhido votaram com o Sr. Ministro Relator. (AgRg no REsp 1065234 / RS AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2008/0128378-3; Ministro LUIZ FUX; T1 – PRIMEIRA TURMA; Julgamento 15/06/2010; DJe 01/07/2010).

Não soçobra qualquer dúvida de que o ICMS deve seguir a não-cumulatividade, nos exatos termos da Constituição Federal, pois o mal causado pela cumulatividade atinge diretamente o contribuinte e indiretamente toda a sociedade, tendo em vista que o efeito cascata faz encarecer sobremaneira os serviços e os produtos. Portanto, não se pode permitir que qualquer regra jurídico-tributária se sobreponha ao princípio da não cumulatividade.

Neste sentido, pontifica Paulo de Barros Carvalho que:

“Apresenta-se como técnica que opera sobre o conjunto das operações econômicas entre os vários setores da vida social, para que o impacto da percussão tributária não provoque certas distorções já conhecidas pela experiência histórica, como a tributação em cascata, com efeitos danosos na apuração dos preços e crescimento estimulado na aceleração inflacionária. E entre as possibilidades de disciplina jurídica neutralizadoras daqueles desvios de natureza econômica, nosso constituinte adotou determinado caminho, mediante a estipulação de um verdadeiro limite objetivo”.[3]

O abatimento, pois, é, sem dúvida, categoria jurídica de hierarquia constitucional. Melhor dizendo, é direito constitucional reservado ao contribuinte do ICMS, que nenhuma Lei, Decreto, Portaria, interpretação, etc., podem amesquinhar. Sendo assim, o art. 155, § 2º, I, da CF/88 confere ao contribuinte do ICMS o direito público subjetivo, oponível ao Estado ou ao Distrito Federal, de fazer o abatimento.

2. NORMAS GERAIS DE DIREITO TRIBUTÁRIO. LEI KANDIR N. 87/96. COMPETÊNCIA DOS ESTADOS-MEMBROS E DO DISTRITO FEDERAL PARA A CRIAÇÃO DE DEVERES INSTRUMENTAIS.

Como se pode notar, o exercício das competências tributárias possui os seus próprios limites dentro do Texto Maior. Implica dizer, assim, que os Estados-membros e o Distrito Federal não podem a torto e à direita criar o ICMS in abstrato. Acima das regras de competência existem os princípios. Portanto, o ICMS, seja qual for a sua modalidade (circulação de mercadorias, serviço de comunicação, serviço de transporte interestadual ou intermunicipal, etc.) sempre será não-cumulativo, descontando-se o montante apurado nas operações anteriores, do valor devido nas operações posteriores.

Consoante já argumentado no tópico anterior, a não-cumulatividade não depende de regulamentação, tratando-se de matéria reservada à Constituição Federal, cuja aplicabilidade é imediata e de observância obrigatória. Neste diapasão, as legislações estaduais nada podem dispor sobre este assunto sem que ocorra verdadeira inconstitucionalidade. Aliás, eventual regulamentação da não-cumulatividade, nos exatos termos do artigo 146, III, a e b e artigo 155, II, § 2º, I e XII, c, da Carta Magna, cabe privativamente à Lei Complementar, de competência única do Congresso Nacional.

Para Paulo de Barros Carvalho “a legislação complementar cumpre assim, em termos tributários, relevante papel de mecanismo de ajuste, calibrando a produção legislativa ordinária em sintonia com os mandamentos supremos da Constituição da República.”[4] Portanto, resta mais que evidente que os Estados-membros e o Distrito Federal não podem se atrever a legislar sobre a não-cumulatividade, principalmente quando criam mecanismos despiciendos, nitidamente com a finalidade de dificultar ou inviabilizar a compensação do ICMS.

Os limites à não-cumulatividade estão plasmados no artigo 155, § 2º, II, a e b, da Constituição Federal, sendo vedada a compensação entre créditos e débitos decorrentes de ICMS apenas nos casos de isenção ou não-incidência. Portanto, afora estes dois casos, deve ser pleno e irrestrito o creditamento do ICMS, sob pena de inconstitucionalidade:

Trilhando este mesmo caminho, a Lei Complementar n. 87/96 (Lei Kandir), nada mais fez do que repetir o que já estava consagrado na Constituição Federal, pois sabia o legislador complementar que se adentrasse na seara da não-cumulatividade, estabelecendo situações não desejadas pelo constituinte, certamente teria problemas graves, o que acarretaria a inconstitucionalidade da norma jurídica.

Com efeito, assim dispôs a Lei Kandir:

Art. 19. O imposto é não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado.

Art. 20. Para a compensação a que se refere o artigo anterior, é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação.

§ 1º Não dão direito a crédito as entradas de mercadorias ou utilização de serviços resultantes de operações ou prestações isentas ou não tributadas, ou que se refiram a mercadorias ou serviços alheios à atividade do estabelecimento.

No tocante aos deveres instrumentais, a LC 87/96 imputa somente uma condição para o creditamento do ICMS, a qual, inclusive, defende-se a tese da inconstitucionalidade, a saber: idoneidade da documentação fiscal.

Assim é a redação do artigo 23, da LC 87/96:

Art. 23. O direito de crédito, para efeito de compensação com débito do imposto, reconhecido ao estabelecimento que tenha recebido as mercadorias ou para o qual tenham sido prestados os serviços, está condicionado à idoneidade da documentação e, se for o caso, à escrituração nos prazos e condições estabelecidos na legislação.

Em resumo, diante da legislação vigente, somente nas operações isentas, não-incidentes ou quando a documentação fiscal não for idônea (este inconstitucional), não haverá crédito a ser compensado. Em todas as demais operações, os Estados-membros e o Distrito Federal devem se esforçar para fazer cumprir o princípio da não-cumulatividade, tal como previsto na Constituição Federal, não podendo jamais criar dificuldades, embaraços, deveres instrumentais que obstruam o direito subjetivo irrenunciável que o contribuinte detém de fazer a compensação do ICMS.

3. FATO IMPONÍVEL DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. EMPRESA DE TRANSPORTE INTERESTADUAL E INTERMUNICIPAL. INSUMOS. DEVERES INSTRUMENTAIS EXIGIDOS PELO FISCO ESTADUAL.

O direito ao creditamento do ICMS-transporte decorre da ocorrência do fato imponível – que pode ser comprovado por qualquer forma em direito admitido, pois não há tarifação da prova no Direito brasileiro – e tem seu fundamento na regra da não-cumulatividade constitucionalmente estabelecida (CF, art. 155, § 2º, inciso I). Na verdade, desimporta se há nota fiscal ou não, o que realmente é relevante é se a ocorrência do fato no mundo fenomênico está efetivamente comprovada.

Quando o Fisco Estadual tenta impossibilitar a regular compensação, além de estar agindo contrário à Constituição Federal, acaba se enriquecendo de forma indevida e à custa do contribuinte. O direito positivo, é cediço, é um objeto cultural criado pelo ser humano com a finalidade de garantir estabilidade e certeza nas relações sociais, não admitindo, sob qualquer pretexto, que um cidadão ou o próprio Poder Público aufira vantagem indevida.

O direito, tal como normatizado na atualidade, não convive com o enriquecimento sem causa. Aliás, isto é repudiado pelo ordenamento jurídico pátrio. Se a Constituição Federal estatui a não-cumulatividade do ICMS e o contribuinte comprova que os fatos (crédito e débito) efetivamente ocorreram, não pode uma lei estadual criar obstáculo ao creditamento.

No entendimento de Roque Antonio Carrazza:

“Portanto, o direito de compensação (em favor do contribuinte) só depende, para nascer, da ocorrência, no mundo fenomênico, de um dos fatos imponíveis do ICMS. Aceitar que a lei ou o Fisco é que vão disciplinar o gozo desse direito implica reconhecer, equivocadamente, que o Legislativo ou a Administração Pública podem, a seu critério, estreitar ou, mesmo, esvaziar o princípio da não-cumulatividade do ICMS, que os Estados e o Distrito Federal são obrigados, pela Constituição, a obedecer. Ora, parece-nos evidente que um direito concedido de maneira tão irrestrita pela Carta Constitucional não pode navegar ao grado da vontade do legislador ou do Fisco.”[5]

Nesta mesma senda, a jurisprudência do C. STJ:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL. ICMS. DIREITO AO CREDITAMENTO. PRINCÍPIO DA NÃO-CUMULATIVIDADE.  COMPROVAÇÃO DA CONTRATAÇÃO DE FRETE PELA EMPRESA CONTRIBUINTE. SÚMULA 07 DO STJ. 1. O Recurso Especial não é servil ao exame de questões que demandam o revolvimento do contexto fático-probatório dos autos, em face do óbice erigido pela Súmula 07/STJ. 2. In casu, o Tribunal local analisou a questão sub examine – – à luz do contexto fático-probatório engendrado nos autos, consoante se infere do voto condutor do acórdão hostilizado, verbis: "(…) concentro-me na questão de saber se a embargante logrou provar nos autos que, contratando os fretes junto à empresa transportadora, efetivamente suportou o ônus da prestação dos serviços – fretes – fazendo jus ao crédito tributário respectivo. Tenho para mim que a comprovação da regularidade fiscal da operação pode ser provada por outros meios e não somente através da apresentação da primeira via do CTRC. Do Laudo Pericial (fl. 164), consta que a embargante efetivamente suportou o pagamento dos valores referidos nos Conhecimentos de Transporte de Carga. Para isso o perito analisou as notas fiscais de venda de produtos da CIPLAN; bem como depósitos bancários feitos pela embargante em favor da Transportadora Planalto referentes à prestação de serviços de transporte de frete. Consta também do Laudo Pericial (fl. 166), em resposta ao quesito 3º, “c”, que a transportadora efetuou os lançamentos no Livro Registro de Apuração do ICMS, bem como, os recolhimentos do ICMS nos respectivos DAR's. Sendo que os créditos apropriados pela embargante correspondem ao ICMS incidente nas operações de transportes retratadas nos CTRC's (quesito 4º). Provado que a embargante foi a efetiva tomadora do serviço de frete não há que se falar em aproveitamento indevido de créditos do ICMS sobre fretes prestados pela firma Planalto Transportadora Ltda, tão-só por não dispor a embargante das primeiras vias dos Conhecimentos de Transporte Rodoviário de Carga." 3. Ademais, verifica-se, dos termos do voto condutor do acórdão prolatado pelo Tribunal de origem, que a empresa contribuinte cumpriu com seus deveres instrumentais de registro das operações nos livros exigidos por lei, traduzindo, em linguagem técnica e hábil, o fato jurídico consubstanciado na contratação de operação de serviços de frete, o que, consoante conclusão do laudo pericial, comprova idoneamente o direito ao creditamento de ICMS decorrente da aplicação do princípio da não-cumulatividade. 4. Destarte, a alegação da Fazenda Pública, no sentido da ausência de comprovação documental da materialidade do direito ao creditamento de ICMS, exigindo a apresentação da primeira via do CTRC, e tão-somente desta, ao argumento de que não serviria para fins probatórios quaisquer das outras vias, demonstra extremado preciosismo, o que é repudiado pelo Direito, máxime em virtude de manifesta afronta à regra constitucional da não-cumulatividade. 5. Desta sorte, tem-se como infactível a referida exigência, que denota mera irregularidade formal, insuscetível de impedir o exercício de direito assegurado pela própria Constituição Federal. 6. Agravo regimental desprovido. (AgRg no REsp 883821 / DF AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2006/0192183-2; Ministro LUIZ FUX; T1 – PRIMEIRA TURMA; julgamento 04/12/2008; DJe 15/12/2008).

O que se tem visto na prática é que alguns Estados, indevidamente utilizando a competência tributária que lhes foi outorgada pela Constituição Federal de 1988, estão se intrometendo no creditamento do ICMS-transporte, prejudicando as transportadoras no encontro de contas entre os insumos adquiridos para o desenvolvimento das suas atividades e os valores devidos na prestação do serviço.

E isto tem se dado por meio da criação de deveres instrumentais absurdos, que visam apenas favorecer os interesses fazendários, solapando a garantia constitucional dos transportadores de realizar o creditamento. Exemplo que podemos mencionar neste trabalho é a legislação do Estado de Minas Gerais, onde está previsto em seu RICMS/02 (Decreto Estadual n. 43.080/02), o artigo 12, § 3º, inciso I, da parte 1, do anexo V, que:

Art. 12. A nota fiscal será emitida:

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§ 3º Tratando-se de estabelecimento varejista de combustíveis derivados ou não de petróleo, a nota fiscal poderá ser emitida de forma periódica, englobando os abastecimentos ocorridos no mês, desde que observado o seguinte:

I – seja emitido, no momento do abastecimento, Cupom Fiscal ou Nota Fiscal Modelo 2, nestes consignando os números da placa e do hodômetro do veículo abastecido, os quais passarão a fazer parte integrante da nota fiscal global.

Na prática, o transportador ao adquirir combustível para a prestação do serviço de transporte pode pedir ao seu fornecedor (posto de combustível) que a cada período expeça uma nota fiscal contemplando todos os abastecimentos realizados (nota fiscal global/periódica). Entretanto, para que esta nota fiscal seja aceita pelo Fisco mineiro, para fins de não-cumulatividade, necessário se faz acompanhá-la dos cupons fiscais de cada abastecimento ou da nota fiscal modelo 2, consignando-se a placa e o hodômetro dos veículos abastecidos.  

 Não cumprindo toda esta formalidade, mesmo o fato imponível do crédito do ICMS-transporte tendo ocorrido, isto é, a aquisição de insumo, o transportador não poderá realizar o abatimento, devendo, dessarte, assumir o prejuízo.

 Não há como não atacar de inconstitucional toda a redação do inciso I, do § 3º, do artigo 12, da Parte 1, do anexo V, do RICMS/02, do Estado de MG, vez que adentrou em seara não abrangida pela sua competência legiferante, para nitidamente obstaculizar o creditamento do ICMS-transporte, fazendo exigências totalmente despiciendas, em verdadeira afronta ao princípio da não-cumulatividade e aos ditames da Lei Complementar n. 87/96.

Nunca é demais relembrar que as únicas barreiras constitucionalmente aceitas para não haver creditamento de ICMS são: quando houver operações isentas ou não-incidentes. Fora estas duas hipóteses, ocorrido o fato imponível do crédito e do débito, haverá o encontro de contas. O Fisco, ao invés de criar deveres instrumentais que atravancam os negócios do transportador, deveria envidar maior esforço para contemplar na prática a não-cumulatividade.

Portanto, as notas fiscais de abastecimento, devidamente escrituradas no livro de registro de entradas e saídas já são mais que suficientes para garantir à transportadora o direito ao crédito do ICMS. Exigir que as notas fiscais estejam acompanhadas de cupons fiscais ou notas fiscais modelo 2 é inconstitucional, tratando-se de medida exagerada, que não é servível à contemplação do princípio da não-cumulatividade. Muito pelo contrário, causa tumulto e embaraço à vida do contribuinte, apresentando-se como procedimento tendente a esvaziar o comando constitucional da não-cumulatividade.

Pior ainda é a exigência do RICMS/02 – MG que impõe a anotação da placa do veículo abastecido e do hodômetro. Nem se diga que esta previsão também é totalmente contrária aos preceitos constitucionais e à disciplina prevista pela LC 87/96.

Dispara Roque Antonio Carrazza que:

“A nota fiscal é simplesmente o documento onde fica consignado o valor da operação mercantil realizada, e, por via de consequência, o valor do ICMS a pagar. Assim, deve registrar o verdadeiro valor da operação, para que a cobrança do imposto se perfaça corretamente.

No entanto, a eventual circunstância de apresentar irregularidades ou omissões não impede que o contribuinte desfrute, por inteiro, do seu direito constitucional subjetivo de recolher exatamente o montante devido a título de ICMS.

Noutras palavras, imperfeições ou lacunas no preenchimento deste documento não são fatos impeditivos ao correto recolhimento do tributo em exame, nem impedem que um pagamento indevido venha recuperado.

É certo que as notas fiscais devem observar formalidades atinentes a modelo, número de vias, dados do destinatário, destaques, etc. Quanto mais induvidosas nelas se apresentarem operações ocorridas, tanto mais exato será o pagamento do ICMS.

Se, porém, forem preenchidas de modo inadequado, nem assim o contribuinte pode ser prejudicado no que se refere ao quantum debeatur.”[6]

O que se vê claramente na redação do artigo 12, § 3º, inciso I, da Parte 1, do anexo V, do RICMS/02, é que o Estado de Minas Gerais tenta ao máximo atravancar o direito irrenunciável da transportadora de ter acesso ao creditamento do ICMS, em total afronta ao princípio da não-cumulatividade e à Lei Complementar n. 87/96.

 Não obstante, o RICMS/02 – MG também prevê em seu artigo 63 e 70, VI, da Parte Geral, verbis:

Art. 63. O abatimento do valor do imposto, sob a forma de crédito, somente será permitido mediante apresentação da 1ª via do respectivo documento fiscal, salvo as exceções estabelecidas na legislação tributária e nas hipóteses previstas nos incisos II e III do § 1º e no § 6º deste artigo.

Art. 70. Fica vedado o aproveitamento de imposto, a título de crédito, quando:

VI – o contribuinte não possuir a 1ª via do documento fiscal, salvo o caso de comprovação da autenticidade do valor a ser abatido, mediante apresentação de cópia do documento, com pronunciamento do Fisco de origem e aprovação da autoridade fazendária a que o contribuinte estiver circunscrito.

Evidentemente que a exigência de escrituração da 1ª via do documento fiscal é inconstitucional, pois, diga-se mais uma vez, não existe autorização dessa natureza na Constituição Federal, sequer na Lei Complementar n. 87/96 (Lei Kandir). Portanto, não há fundamento de validade para os artigos 63 e 70, VI, do Decreto Estadual n. 43.080/02.

A propósito, o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, nos idos 2011, teve a oportunidade de apreciar esta matéria, tendo proclamado a inconstitucionalidade do artigo 63, do Decreto Estadual n. 43.080/02, senão vejamos a ementa abaixo transcrita:

INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE – DECRETOS ESTADUAIS 43.080/2002 (ARTS. 63, 67 § 2º, INCISOS I, II E III) E 23.780/1984 (ARTS. 147, INCISO I, ALÍNEAS 'A' e 'B' e 157) – VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA NÃO-CUMULATIVIDADE – INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA. Afiguram-se inconstitucionais dispositivos previstos em Decretos-lei Estaduais que violam o princípio da não-cumulatividade de impostos cobrados em operações tributárias relativa à circulação de mercadorias e serviços-ICMS, por visível afronta ao disposto no artigo 146, inciso I, da Constituição Estadual, que é uma repetição do disposto no artigo 155, § 2º, inciso I, da Constituição da República Federativa do Brasil. Incidente de inconstitucionalidade julgado procedente. (Relator(a): Des.(a) Antônio Carlos Cruvinel; Data de Julgamento: 23/02/2011; Data da publicação da súmula: 13/05/2011; Arguicao de Inconstitucionalidade n. 1.0694.04.018456-6/007; 0184566-66.2004.8.13.0694).

Dessarte, podemos afirmar que os Estados-membros e o Distrito Federal não podem utilizar da competência tributária que lhes foi outorgada pelo constituinte para disciplinar o regime de crédito e débito (não-cumulatividade) do ICMS-transporte, ainda mais quando inventam deveres instrumentais que dificultam a vida do contribuinte, como é o caso do RICMS/02, do Estado de Minas Gerais.

CONCLUSÃO

De tudo quanto visto nas linhas acima, não soçobra dúvida de que o constituinte originário traçou de forma clara e rígida as competências tributárias, tendo outorgado a cada ente político uma parcela da tributação brasileira, todavia, isto não foi feito de forma incondicional e irrestrita.

Os Estados-membros e o Distrito Federal, apesar de deterem competência para legislar sobre o ICMS-transporte, nada podem dispor sobre o regime da não-cumulatividade, ainda mais quando em nada contribuem para a efetivação deste importante mecanismo tributário, criando deveres instrumentais que somente visam prejudicar o acesso do contribuinte ao abatimento, a exemplo do que foi visto na legislação do Estado de Minas Gerais.

Não calha o argumento fazendário de que estes deveres instrumentais são essenciais para facilitar a fiscalização. Como dito no início, o Fisco tenta ao máximo empurrar para o contribuinte responsabilidades e deveres que não lhe cabem, criando procedimentos burocráticos que sufocam, oneram e prejudicam o regular abatimento do crédito do ICMS.

Assim, tal como a legislação do Estado de Minas Gerais, algumas outras padecem de inconstitucionalidade e devem ser questionadas pelos interessados.

 

Referências
BRASIL. Constituição (1988).
BRASIL. Lei Complementar n. 87, de 13 de setembro de 1996.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 29 ED. Editora Malheiros. São Paulo: 2013.
________________. ICMS. 13. ed. Editora Malheiros. São Paulo: 2009.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 24 ed. Editora Saraiva. São Paulo: 2012.
_______________. Direito Tributário, Linguagem e Método. 2 ed. Editora Noeses. São Paulo: 2008.
MINAS GERAIS. Decreto n. 43.080, de 13 de dezembro de 2002.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça.
 
Notas:
[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 24 ed. Editora Saraiva. São Paulo: 2012, p. 197.

[2] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 29 ED. Editora Malheiros. São Paulo: 2013, p. 45.

[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, Linguagem e Método. 2 ed. Editora Noeses. São Paulo: 2008, p. 297.

[4] Ob. cit., p. 362.

[5] CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 13. ed. Editora Malheiros. São Paulo: 2009, p. 394.

[6] CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 13. ed. Editora Malheiros. São Paulo: 2009, p. 131.


Informações Sobre o Autor

Guilherme Frederico Figueiredo Castro

Advogado e Professor; Pós-graduado em Direito Tributário pelo IBET; Pós-graduado em Direito Constitucional pela PUC/SP; Mestrando em Direito Tributário pela PUC/SP


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