Resumo: O presente trabalho se propõe a analisar os aspectos subjacentes à omissão legislativa na instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas, buscando-se verificar, ao final, se seria viável sua instituição no país. Neste processo, parte-se do surgimento do IGF no direito brasileiro, com a sua introdução na Constituição de 1988. Faz-se, ainda, um breve estudo comparado do instituto, observando casos em que a instituição de impostos semelhantes foi exitosa, bem como situações em que tais impostos não foram mantidos pelos governos estrangeiros, devido aos entraves surgidos. Também são contemplados os principais projetos de lei complementar apresentados com vistas a regulamentar o IGF e permitir sua efetiva aplicação no Brasil. Por fim, são analisados os argumentos que vêm sendo apontados para embasar os posicionamentos favoráveis e contrários à instituição do IGF. A partir da contraposição dos mencionados argumentos, conclui-se que as repercussões positivas da aplicação do IGF superam os seus efeitos negativos. Destarte, ainda que a instituição do imposto não seja tarefa fácil, acredita-se que a tentativa é válida, representando um avanço na busca de um sistema tributário mais justo e equânime.
Palavras-chave: Imposto sobre Grandes Fortunas – omissão legislativa – direito comparado – instituição – viabilidade
Sumário: Introdução. Desenvolvimento. 1. Competência tributária: o art. 153, VII, da Constituição de 1988. 2. O Imposto sobre Grandes Fortunas no direito comparado: as experiências estrangeiras com impostos semelhantes. 3. Os principais projetos de lei complementar apresentados: um debate político. 3.1. O Projeto de Lei Complementar nº 202/1989. 3.2. O Projeto de Lei Complementar nº 277/2008. 4. Divergências existentes quanto à viabilidade ou não da instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas no país. 4.1. Argumentos contrários à instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas. 4.2. Argumentos favoráveis à instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), antes mesmo de ser introduzido no Brasil pela Constituição de 1988, já ensejava, nas reuniões da Assembleia Nacional Constituinte, fervorosas discussões, seja por se tratar de questão com potencial repercussão financeira, seja porque traz à tona a problemática da justiça fiscal. O IGF é previsto no art. 153, VII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), competindo à União sua instituição e regulamentação, através de lei complementar. Contudo, passadas mais de duas décadas da promulgação da novel Carta Magna e apresentados alguns projetos de lei, o IGF, até a presente data, não foi introduzido no país. Trata-se, em verdade, da única competência tributária atribuída à União Federal que ainda não foi exercida.
Em junho de 2010, foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, à unanimidade, o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 277/2008, de autoria da deputada federal Luciana Genro, que regulamenta o IGF, reacendendo o debate sobre um tema que há alguns anos jazia adormecido no Congresso. Até então, o último projeto a ganhar maior repercussão havia sido o PLP nº 202/1989, apresentado por Fernando Henrique Cardoso, à época senador pelo Estado de São Paulo. O fato é que a proposta de Fernando Henrique, e outras semelhantes a ela apensas, estão prontas para serem votadas pelo Plenário desde 2000, mas nunca chegaram a entrar em pauta.
Num país em que é imensa a desigualdade social, incessante deve ser a busca por instrumentos de diminuição das disparidades. Por outro lado, sabe-se que a carga tributária brasileira incide, principalmente, sobre o consumo da população menos favorecida. Daí porque muito se tem falado na necessidade de promover uma reforma no sistema tributário brasileiro. Neste contexto, assume grande relevância o estudo minucioso e aprofundado do IGF, um potencial “distribuidor” de riquezas, reconhecido, inclusive, a nível constitucional.
O presente trabalho se propõe justamente a fazer uma analisar dos aspectos subjacentes à omissão legislativa na instituição do IGF, contemplando-o desde o seu surgimento no direito brasileiro, com a previsão na Constituição de 1988, até as possíveis repercussões de sua efetiva instituição, diante da edição da lei complementar regulamentadora. Para tanto, fundamental é a análise dos argumentos que vêm sendo apontados para embasar os posicionamentos acerca da viabilidade ou não da aplicação do IGF no país, pois a apreciação de argumentos contrapostos leva a um entendimento mais abrangente, crítico e consciente do instituto.
Impostos semelhantes ao IGF, com esse intuito de onerar o setor mais abastado da população, incidindo sobre seu patrimônio, já foram adotados por muitos países, principalmente europeus. De fato, alguns até abandonaram o imposto, como a Alemanha e a Espanha, mas outros ainda o mantém, a exemplo da Suíça e da França. Assim, o trabalho será engrandecido com um estudo comparado do IGF, analisando-se em que circunstâncias houve êxito na sua instituição, bem como os entraves surgidos, quando de sua aplicação no estrangeiro. Insta salientar, outrossim, que o Direito Comparado não é o foco do corrente estudo, não é um fim em si mesmo, mas sim uma das fontes às quais se vai recorrer para que possa ser traçado um panorama geral do instituto, antes de adentrar no exame das questões relacionadas à inserção do IGF no sistema tributário brasileiro.
O primeiro tópico do trabalho versará sobre a competência tributária para criar o IGF, fixada pela Constituição de 1988, numa análise esmiuçada da redação do art. 153, VII, da CRFB/88. Busca-se, com isso, chegar à intenção do legislador constituinte ao trazer o IGF numa norma de eficácia limitada, conferindo à União a competência para instituí-lo. A lei não tem palavras vazias e, por isso, é importante debruçar-se com um olhar crítico sobre o teor do dispositivo legal que consagra um determinado instituto.
O segundo tópico cuidará das experiências estrangeiras relacionadas a impostos semelhantes ao IGF. O estudo comparado é realmente elucidativo quando não há, pelo menos por enquanto, como analisar em concreto, na realidade brasileira, um dado instituto. As situações práticas, ainda que em contextos distintos do interno, embasam a formulação de conjecturas sobre o tema, tornando-as menos probabilísticas e mais reais. Observar o tratamento conferido ao imposto por outros sistemas é válido também para nortear o legislador infraconstitucional quando da edição da lei complementar regulamentadora do IGF, que deve tentar sanar os óbices enfrentados alhures e, ao mesmo tempo, importar os aspectos exitosos.
No terceiro tópico, serão analisados os principais projetos de lei complementar apresentados para regulamentar o art. 153, VII, da CRFB/88, quais sejam, o PLP nº 202/1989 e o PLP nº 277/2008, culminando, inevitavelmente, num debate político sobre o instituto. Por sua vez, no quarto tópico serão apresentados argumentos favoráveis e contrários que têm sido levantados face ao IGF, demonstrando que há acirrada divergência sobre o tema. Por fim, serão tecidas as considerações finais do trabalho, com a conclusão resultante de todo o caminho percorrido neste estudo do IGF.
DESENVOLVIMENTO
1. COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA: O ART. 153, VII, DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
A previsão do Imposto sobre Grandes Fortunas foi uma das inovações da Constituição de 1988, que o incluiu entre os impostos de competência da União, em seu art. 153, VII, in verbis:
“Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
I – importação de produtos estrangeiros;
II – exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados;
III – renda e proventos de qualquer natureza;
IV – produtos industrializados;
V – operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários;
VI – propriedade territorial rural;
VII – grandes fortunas, nos termos de lei complementar.[…]”
Do teor do dispositivo supracitado, é possível perceber que houve uma preocupação por parte do legislador constituinte no sentido de estabelecer algumas diretrizes para a instituição, pela União, do IGF.
De logo, observa-se que a implantação do IGF deve se dar nos termos de lei complementar. Pode-se dizer que as leis complementares têm a função precípua de integrar a eficácia de algumas normas da Constituição, “levando-se em conta o fato de nem todas as normas constitucionais terem o mesmo grau de aplicabilidade e a possibilidade de se tornarem imediatamente eficazes”[1]. Esta, no entanto, é a ideia clássica de lei complementar, haja vista que tal espécie normativa não pode ser definida exclusivamente com base no papel que desempenha no ordenamento, sendo fundamentais à sua caracterização, também, os aspectos formais que lhes são próprios.
É que, a partir da Emenda Constitucional (EC) n° 04/1993, que consagrou o modelo parlamentarista, a lei complementar passou a ser identificada eminentemente pelo quórum imposto à sua aprovação. As leis complementares demandam para sua aprovação, portanto, o quórum especial da maioria absoluta dos membros das Casas que compõem o Congresso Nacional, nos termos do art. 69 da Constituição de 1988.
Como bem leciona José Afonso da Silva, “as leis complementares, no sistema constitucional vigente, adquiriram relativa rigidez, porque sua aprovação depende do voto favorável da maioria absoluta dos membros das duas Casas do Congresso Nacional”[2]. Quanto às leis ordinárias, por outro lado, exige-se tão somente a maioria simples, obtida mediante os votos correspondentes a qualquer fração superior à metade dos presentes a uma determinada sessão legislativa.
Assim, como o processo formação da lei complementar, no ordenamento jurídico pátrio, é mais rígido do que o previsto para a lei ordinária, visou o constituinte a impor um maior grau de dificuldade para a aprovação do diploma que viesse a instituir o IGF. Com tal medida, por outro lado, pode ter tentado assegurar que houvesse, por parte dos congressistas, um maior comprometimento, envolvimento, dedicação e participação no processo de discussão e aprovação da lei complementar, devido à significativa repercussão social, política e econômica do instituto.
Em sentido oposto, entende Ives Gandra Martins que a determinação de que lei complementar estipulará os contornos do IGF é despicienda, pois isso já seria exigido pelo art. 146, III, da CRFB/88, ao dispor que cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, de modo que não haveria tributo no sistema tributário brasileiro que não precisasse de lei complementar para lhe conferir o perfil[3].
Ademais, é importante ressaltar que as leis complementares versam sobre matérias próprias, subtraídas do campo de atuação das demais espécies normativas, de forma que apenas neste universo delimitado são validamente exercitáveis. Destarte, o que a Constituição designa como de competência da lei complementar só a ela está reservado, e, se a lei ordinária nessas matérias interferir, não estará ferindo a lei complementar, mas sim a própria Constituição[4].
O inciso VII do art. 153 da Constituição de 1988 cuidou, ainda, de determinar que o IGF incidirá sobre as grandes fortunas. Não especificou o constituinte, no entanto, o exato montante a partir do qual será considerada grande a fortuna. Trata-se, porém, de inteligente técnica legislativa, já que, como o IGF depende de lei complementar para a sua instituição, e não se sabia se ou quando o diploma viria a ser editado, o contexto em que se aferiria o que constituiria uma grande fortuna não mais perduraria no momento da efetiva incidência do imposto. Então, conferiu o constituinte ao legislador infraconstitucional a tarefa de precisar, de acordo com o quadro socioeconômico atual do país, o que poderia ser tido como grande fortuna.
Cumpre observar, outrossim, que a utilização da expressão “grandes fortunas”, por si só, sinaliza a intenção do constituinte de onerar algo maior que as simples fortunas, ou seja, patrimônios que, de fato, destoem da realidade econômica dos cidadãos em geral. Desse modo, o legislador infraconstitucional deve atentar para o termo empregado na redação do artigo quando da fixação do que será considerado grande fortuna, a fim de não frustrar o espírito da norma.
O entendimento esposado acima é compartilhado por Leandro Paulsen, que, reconhecendo a importância da análise dos conceitos para a determinação da amplitude da competência atribuída, assevera que a outorga de competência pelo critério da base econômica, implica, por si só, numa limitação da respectiva competência às possibilidades semânticas (significados das palavras) e sintáticas (significado das expressões ou frases como um todo, mediante a consideração da inter-relação e implicação mútua entre as palavras) do seu enunciado[5]. Assim, ele observa que, quando o art. 153 outorga competência para instituição de imposto sobre a renda ou sobre a propriedade territorial rural, por exemplo, urge investigar o significado de “renda”, ou de “propriedade rural”, analisando-se tais termos tanto separadamente, como em conjunto. Frisa, outrossim, que esta técnica de abordagem é uma decorrência natural da necessidade de cumprimento da Constituição, em respeito às próprias competências outorgadas.
Por outro lado, a linguagem empregada na elaboração da norma jurídica se apresenta, muitas vezes, como uma das maiores dificuldades da atividade interpretativa. Não se pode deixar de considerar que a linguagem do legislador é técnica, de modo que, apesar de se basear no discurso natural, leigo, lança mão de um sem número de palavras e expressões de cunho científico. Além disso, no esforço de extrair a mens legis, ou seja, a vontade do Estado contida no âmago da norma jurídica, e de conferir-lhe uma aplicação adequada, o exegeta se depara com disposições incertas, palavras polissêmicas e, até mesmo, expressões equívocas[6].
Consequentemente, antes de se pensar em aplicar uma norma jurídica é preciso interpretá-la, e os conceitos são de vital importância para o processo hermenêutico. Em verdade, em toda norma residem conceitos, sendo essencial compreendê-los – tanto no âmbito do ordenamento jurídico, como no seio da própria norma – para que se possa extrair o real sentido da norma, viabilizando sua correta aplicação. Conclui-se, pois, ser imprescindível a análise dos vocábulos empregados pelo constituinte quando da previsão do IGF no art. 153, VII, da CRFB/88.
Em consulta ao Dicionário Aurélio, obtém-se as seguintes definições, com grifos acrescidos:
“fortuna. S. f. 1. Casualidade, eventualidade, acaso. 2. Destino, fado, sorte. 3. Bom êxito; êxito, sucesso. 4. Boa sorte; sorte, felicidade. 5. Revés da sorte; adversidade. 6. Haveres, riqueza.[7]
grande. Adj. 2 g. 1. De tamanho, volume, intensidade, valor, etc., acima do normal. 2. Comprido, longo. 3. De grande extensão ou volume. 4. Crescido, desenvolvido, taludo. 5. Numeroso. 6. Intenso, forte. 7. Exagerado, excessivo. 8. Dilatado, longo. 9. Extraordinário, excepcional, desmedido. 10. Imponente, surpreendente. 11. Notável […]”[8]
Partindo da leitura do significado desses verbetes, percebe-se que sua escolha por parte do constituinte, dentre tantos outros que expressariam ideia semelhante, parece não ter sido mero acaso. É que, ao empregá-los, pode ter tentado nortear de alguma forma o legislador infraconstitucional na regulamentação do instituto, de modo que os contornos conferidos ao IGF, através da edição da lei complementar, não venham a frustrar os motivos que levaram à introdução da inovação na Constituição de 1988.
Por outro lado, a utilização do vocábulo “fortuna” – que, além do sentido óbvio, no presente contexto, qual seja, o de riqueza, possui outros significados, relacionados à casualidade, à sorte, ao êxito e a algo fortuito – não pode ser entendida como uma referência à procedência do patrimônio acumulado: se decorreu do acaso, se foi inesperado, ou se foi fruto exclusivo do trabalho, por exemplo. Isto porque, tal interpretação importaria, sobretudo, em grave ofensa ao princípio da isonomia.
Suposições dessa natureza, no entanto, não causam estranheza, pois, como ensina Paulo Cesar Baria de Castilho, segundo a Teoria da Linguagem, toda palavra é potencialmente ambígua, por sempre trazer em sua significação certa dose de imprecisão e de vagueza. A depender do caso, o núcleo central pode ser mais preciso ou mais vago[9]. E a linguagem jurídica não foge a esta regra, já que:
“[…] a linguagem jurídica apresenta zonas de penumbra e é, atual ou potencialmente, vaga e imprecisa. Tanto quanto a linguagem natural, portanto, a linguagem jurídica – que naquela vai se nutrir – apresenta uma textura aberta, nela proliferando o que refere Hohfeld como palavras ‘camaleão`, que constituem um perigo tanto para o pensamento claro como para a expressão lúcida. Assim, ambiguidade e imprecisão são marcas características da linguagem jurídica.”[10]
De qualquer forma, o que fica claro é que o IGF somente pode recair sobre as “grandes fortunas”, não podendo nem mesmo incidir sobre “fortunas” que não possam ser consideradas grandes, extraordinárias, excepcionais. De fato, fortuna é mais que riqueza, e grande fortuna é bem mais que fortuna simplesmente. Trata-se, portanto, de um universo duplamente restrito aquele em relação ao qual se pode pensar em aplicar o IGF.
2. O IMPOSTO SOBRE GRANDES FORTUNAS NO DIREITO COMPARADO: AS EXPERIÊNCIAS ESTRANGEIRAS COM IMPOSTOS SEMELHANTES
Pode-se afirmar que, em termos de oneração de fortunas, o Brasil é bastante inexperiente. Afinal, o IGF era desconhecido para a legislação pátria até a promulgação da CRFB/88. Foi o movimento pré-constituinte que ensejou a realização de estudos preliminares sobre o tema, e, somente então, doutrinadores e aplicadores do direito passaram a refletir sobre a possibilidade de se criar no país um imposto sobre as grandes fortunas. O constituinte de 1988 introduziu o instituto na novel Carta Magna, mas subordinou sua efetiva aplicação à edição de uma lei complementar regulamentadora. Neste contexto, é de extrema valia socorrer-se do Direito Comparado. Por isso, serão abordados, a seguir, os principais exemplos do contato que outros países tiveram com impostos sobre a fortuna.
De logo, é de se notar que o único país que chegou a adotar um imposto com os mesmos contornos que o IGF foi a França. Os demais países que serão mencionados possuíram ou possuem impostos que apenas guardam alguma semelhança com aquele previsto no art. 153, VII, da CRFB/88, pois incidem sobre o patrimônio, sobre a fortuna, etc., e não efetivamente sobre as grandes fortunas. Na verdade, foi precisamente o modelo francês que inspirou o legislador constituinte brasileiro, embora, inicialmente, tenha se cogitado a implementação de um imposto baseado no Impuesto sobre el Patrimônio espanhol, instituído pela Lei nº 50/1977, o qual recaía sobre os bens suntuosos, sendo, portanto, um imposto sobre a ostentação. Por se tratar de um modelo de tributação analítica, em que o imposto somente incide sobre determinadas espécies de bens e direitos, a estrutura conferida ao imposto na Espanha não foi reproduzida no Brasil, que preferiu instituir um modelo sintético, de modo que o tributo incidisse sobre o patrimônio global, nos moldes da experiência francesa. Nos dizeres de Hamilton Dias de Souza:
“A origem desse imposto de grandes fortunas é obscura, porque o que se cogitou detidamente era introduzir entre nós alguma coisa semelhante ao que havia na Espanha, de um imposto sobre determinados bens suntuários. O nome desse imposto na Espanha é imposto sobre o luxo. É fundamentalmente um imposto sobre a ostentação, sobre determinados e particulares bens. Quando se estuda imposto sobre o patrimônio, esse imposto pode ser sobre o patrimônio global ou pode ser sobre parcela desse mesmo patrimônio, ou sobre alguns bens. A ideia no início era introduzir na competência da União um imposto sobre a propriedade de bens suntuários, inspirado esse imposto no imposto sobre o luxo. No Projeto Afonso Arinos esse imposto aparece, num projeto que inicialmente havia sido feito na Comissão do Instituto dos Advogados de São Paulo e da Associação Brasileira de Direito Financeiro também, lá ele foi sugerido, e depois ele foi transformado em imposto sobre grandes fortunas […].”[11]
Inicialmente, pode-se dizer que houve um período de entusiasmo, durante o qual a ideia de onerar as fortunas foi estendida para países latinos, como Espanha e França, e até para países anglo-saxônicos, a exemplo da Irlanda. Contudo, no contexto atual, em que indivíduos e recursos são altamente móveis, os países estão se esforçando para implementar políticas sociais ativas, evitando a fuga de capital e dos contribuintes mais abastados. Ademais, ao mesmo tempo em que perseguem os objetivos clássicos da eficiência econômica e da equidade, as autoridades fiscais se empenham cada vez mais em simplificar os procedimentos administrativos, considerando, ainda, numa análise comparativa, os custos e o potencial de arrecadação de outros tipos de imposto[12]. Neste diapasão, e por entenderem que o imposto sobre a fortuna não atendeu às suas expectativas, países como Áustria e Suécia optaram por abandonar o instituto.
No âmbito doutrinário internacional, Christophe Heckly defende que os impostos sobre a fortuna não seriam tão equitativos como parecem. Esta, vale salientar, é a mais séria das críticas formuladas contra o instituto, já que a sua criação tem por base justamente a promoção da justiça fiscal. Além disso, ele pontua que para que fossem capazes de promover uma repartição de renda em níveis significativos, os impostos sobre a fortuna acabariam assumindo caráter confiscatório. Em consequência, os governos se deparam com o seguinte dilema: ou o imposto sobre a fortuna não é realmente eficiente na luta contra a desigualdade, ou o é, mas configura efeito de confisco, e foi por esta razão que deixou de ser aplicado, por exemplo, na Alemanha[13].
De fato, a França é o único país da União Europeia a aplicar, atualmente, um imposto sobre a riqueza propriamente dita. No continente europeu, Noruega, Liechtenstein e Suíça possuem formas atenuadas de onerar os mais ricos. Nos últimos anos, muitos países aboliram sua versão do imposto, a exemplo da Áustria, Dinamarca, Finlândia, Suécia, Holanda, Espanha e Grécia. Já países como Austrália, Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia, Peru e Reino Unido nunca tiveram imposto desta natureza, porque não encontraram méritos que justificassem a sua instituição. Em artigo sobre o assunto, Ives Gandra Martins assim se manifestou:
“Não sem razão, sabiamente, a esmagadora maioria dos países não o adotou. Os que o adotaram, criaram tantas hipóteses de exclusão que, ao longo do tempo, deixou de ter qualquer relevância. É que o volume da arrecadação termina por não compensar o custo operacional de sua administração fiscalização e cobrança. Em outras palavras, é um tributo rejeitado no mundo. Tributar a geração de riquezas, na sua circulação, os rendimentos ou lucros é muito mais coerente e justo do que pretender ainda tributar o resultado final daqueles fatos geradores já incididos.”[14]
Não obstante, há países que, após extinguirem o imposto, voltaram a aplicá-lo, numa versão pretensamente aperfeiçoada, como é o caso da Alemanha e da França, e outros que cogitam fazê-lo, a exemplo da Espanha. Infere-se, pois, que o imposto não é tão ilógico como defendido por Ives Gandra, no excerto colacionado acima, senão países que o aboliram jamais pensariam em reintroduzi-lo.
O imposto sobre a fortuna, na Alemanha, foi suprimido em 1997, após a declaração de sua inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional Alemão, mas passou a ser aplicado novamente, de forma indireta, a partir de janeiro de 2007[15], por intermédio de um aumento de 3% na alíquota do imposto sobre a renda, totalizando o percentual de 45% em relação aos indivíduos que auferem mais de duzentos e cinquenta mil euros por ano e aos casais que ganham mais de quinhentos mil euros ao ano. O governo alemão, vale salientar, decidiu não estender tal medida às empresas familiares – que geralmente são tributadas com base na sistemática do imposto sobre a renda –, a fim de resguardar essas pequenas empresas da incidência de impostos adicionais, já que sua existência é fundamental para a recuperação da economia alemã, fragilizada em razão da crise mundial[16]. Ademais, profissionais liberais, como médicos e advogados, também não sofreram o referido aumento. Ainda assim, a Alemanha espera arrecadar adicionais cento e vinte e sete milhões de euros ao ano com a cobrança do imposto.
Na França, foi em 1981 que a esquerda política obteve a maioria necessária para incluir na legislação o primeiro imposto de caráter permanente sobre o patrimônio das pessoas físicas. Ensina Ricardo Lobo Torres que a justificativa inicial para a criação do Impôt sur les Grandes Fortunes – utilizada, inclusive, como bandeira da campanha presidencial de François Mitterrand – foi a de que o tributo seria socialmente justo, economicamente razoável e tecnicamente simples, claro e preciso[17]. Mesmo assim, em julho de 1986, o Impôt sur les Grandes Fortunes foi revogado pelo art. 24 da Lei 86-824, a partir de janeiro de 1987, por influência das concepções liberais da direita. Em 1989, porém, foi instituído o Impôt de Solidarité sur la Fortune (ISF), largamente inspirado na figura extinta. De cunho eminentemente ideológico, o ISF foi incluído na plataforma política dos partidos de esquerda, tendo grande apelo eleitoral, principalmente porque houve uma preocupação em não incomodar a classe média, de modo que o imposto recairia sobre uma parcela mínima da população. Entretanto, Dornelles entende que o Impôt sur les Grandes Fortunes foi restabelecido de forma atenuada pelo governo de Mitterrand, através do ISF, tão somente para marcar um posicionamento ideológico e atender a uma exigência do Partido Socialista[18].
O ISF francês é intrinsecamente sintético, porque incide sobre a totalidade do patrimônio, abrangendo, salvo ressalva expressa, a totalidade dos bens móveis e imóveis do contribuinte, a saber, toda propriedade imobiliária – qualquer que seja a afetação do bem –, todo o capital mobiliário – qualquer que seja a sua forma –, bem como a totalidade dos recursos constantes de contas bancárias ou sob a forma de metais preciosos[19]. O ISF é devido por qualquer “foyer fiscal”[20], com residência na França, cujos ativos, considerados em nível internacional, superem o montante de oitocentos mil euros (em janeiro de 2011), num percentual que varia entre 0,55% e 1,8%. Esta unidade familiar, assim concebida para fins de tributação, inclui os cônjuges e os filhos dependentes (menores de 18 anos), abrangendo tal conceito, ainda, os casais em união civil, que também são tributados conjuntamente. Aqueles que, apesar de não residirem na França, forem proprietários de bens localizados em território francês, igualmente poderão sujeitar-se à incidência do ISF, que será calculado tão somente sobre o valor destes bens; restam excluídos, portanto, os investimentos puramente financeiros. Os bens deverão ser declarados com base no seu valor de mercado e é ônus do contribuinte aferir este quantum, a cada ano. Alguns bens, entretanto, são isentos do ISF, como antiguidades e obras de arte.
Há que se ressaltar, porém, que, assim como ocorreu com o antigo Impôt sur les Grandes Fortunes, o Impôt de Solidarité sur la Fortune é bastante criticado pelos próprios franceses, que o acusam de ser tecnicamente inadaptado e economicamente nocivo, além de não estar obtendo êxito no alcance de seu objetivo social. É que o ISF acaba por ter um número exíguo de contribuintes, quando consideradas a sua base de incidência e as hipóteses de isenção legalmente previstas. Há, ainda, problemas relativos à fiscalização. Isto porque, como se trata de um imposto declaratório, se, por um lado, é difícil haver fraude sobre as propriedades, registradas ou não registradas, ou sobre os capitais mobiliários, por outro, há formas de riqueza cuja fiscalização e controle são muito complexos, a exemplo das joias. Ademais, diz-se que o imposto leva várias pessoas ricas a deixar a França para se instalar em países que não onerem as fortunas, o que faz com que o governo perca não apenas o montante que seria arrecadado com o ISF, mas também o capital circulante destes cidadãos emigrantes. Por sinal, é ilustrativo mencionar que um senador francês estimou que 843 pessoas deixaram a França em 2006 em razão do ISF, levando com elas riquezas da ordem de, aproximadamente, 2,8 bilhões de euros[21].
Impende frisar, por fim, que o governo francês está estudando mudanças para redefinir o ISF. As propostas apresentadas sugerem, basicamente, duas diferentes alternativas para tornar o imposto mais afeto aos anseios da população: 1) reduzir as alíquotas e diminuir o número de contribuintes, através do aumento do patrimônio mínimo para fins de incidência do ISF, e 2) tributar apenas o acréscimo anual sobre a riqueza, ao invés do patrimônio acumulado globalmente considerado[22]. De qualquer modo, observa-se que o que se pretende não é revogar o ISF, mas sim promover alguns ajustes no imposto, justamente para viabilizar a sua manutenção no sistema tributário francês. Estima-se que as novas regras relativas ao ISF sejam definidas ainda em 2011, para que possam vigorar a partir do ano de 2012.
Na Espanha, foi publicada, em 25 de dezembro de 2008, a Lei nº 04/2008, que suprimiu o Impuesto sobre el Patrimonio, com efeitos desde 01 de janeiro de 2008. O imposto foi extinto tanto para as pessoas com residência fiscal na Espanha, cuja sujeição passiva decorria de obrigação pessoal, como para os não-residentes proprietários de bens no país, que tributavam em razão de obrigação real. Atualmente, o governo espanhol estuda a aprovação de um novo imposto extraordinário incidente sobre os patrimônios superiores a um milhão de euros. Não se trata, porém, de uma tentativa de ressuscitar o imposto extinto em 2008, mas sim de criar uma outra figura, mais semelhante ao imposto sobre grandes fortunas francês. O novo imposto, defendido principalmente pela ala esquerda do Partido Socialista Obrero Español (PSOE), teria caráter complementar às medidas de ajuste do gasto público anunciadas por Zapatero, na luta contra o déficit que levou a cortes no salário dos funcionários, ao congelamento das pensões e à paralisação de obras públicas[23].
Por ora, com a aprovação do orçamento para o ano de 2011 pelo Conselho de Ministros, o governo espanhol promoveu, além de um drástico corte no gasto dos ministérios, um aumento do imposto sobre a renda das pessoas físicas para aqueles que auferem valores mais elevados. Com isso, a alíquota para os rendimentos superiores a cento e vinte mil euros subiu para 44% e, quanto aos superiores a cento e setenta e cinco mil euros, para 45%. O governo espera, assim, aumentar sua arrecadação em duzentos milhões de euros por ano. Resta saber, pois, se, nesse contexto de corte de gastos e aumento da arrecadação, o governo espanhol conseguirá instituir o novo imposto extraordinário sobre os patrimônios superiores a um milhão de euros, em substituição ao extinto Impuesto sobre el Patrimônio.
Na Suíça, apesar de o percentual do imposto sobre a fortuna ser fixado pelo governo de cada cantão, a regulamentação geral do instituto é comum, de modo que os residentes pagam o tributo sobre o valor de todos os bens localizados no país, enquanto os não-residentes têm taxados seus rendimentos derivados de empreendimentos e imóveis situados na Suíça[24]. A Noruega, a seu turno, onera com o imposto sobre a fortuna a propriedade imobiliária, nos níveis nacional e municipal. O imposto, vale salientar, é calculado com base no valor de mercado estimado do imóvel[25]. Em Liechtenstein, há uma integração entre o imposto sobre a fortuna e o imposto sobre a renda, através da conciliação dos ativos num tipo especial de rendimento, gerando, pois, o que é tido como base de cálculo ideal para a incidência do tributo unificado. Os indivíduos, portanto, são taxados mediante uma combinação destes dois impostos, embora o patrimônio líquido tributável seja inserido no imposto sobre a renda para fins de cálculo do montante devido. Na prática, o patrimônio líquido é multiplicado por um percentual padrão, e o produto do cálculo se torna uma parte do rendimento tributável[26].
Observa-se, pois, que o legislador infraconstitucional deve levar em consideração as experiências estrangeiras relativas a tributos de natureza semelhante à do IGF, atentando tanto para os países que adotam atualmente o imposto, como para aqueles que, após aplicá-lo por algum tempo, acharam por bem excluí-lo. Também se deve levar em conta os estudos realizados por países que cogitaram instituir um imposto sobre a fortuna, embora tenham decidido recusá-lo, merecendo destaque, ainda, a situação daqueles países que criaram o imposto, posteriormente o revogaram, e, depois, ressuscitaram-no, seja sob a mesma denominação, mas com modificações, seja sob a forma de uma nova figura, que apenas em essência guarda semelhança com o instituto anterior.
3. OS PRINCIPAIS PROJETOS DE LEI COMPLEMENTAR APRESENTADOS: UM DEBATE POLÍTICO
Ensina Carrazza que “criar um tributo é descrever abstratamente sua hipótese de incidência, seu sujeito ativo, seu sujeito passivo, sua base de cálculo e sua alíquota”[27]. Assim, observa-se que a Constituição de 1988, no art. 153, VII, tão somente previu a possibilidade de a União criar o IGF, através da edição de uma lei complementar, de modo que ele poderá perfeitamente nunca vir a ser instituído. Mais de duas décadas após a promulgação da novel Carta Magna, foram apresentados dez projetos de lei com vistas a regulamentar o dispositivo constitucional mencionado, quais sejam, o PLP nº 202/1989, que se encontra pronto para a inclusão em pauta; o PLP nº 108/1989, o PLP nº 208/1989, o PLP nº 218/1990 e o PLP nº 268/1990, todos tramitando junto ao PLP nº 202/1989; o PLP nº 193/1994, o PLP nº 70/1991 e o PLP nº 77/1991, que foram arquivados em fevereiro de 1995; o PLP nº 277/2008, que também está pronto para a inclusão em pauta; e, mais recentemente, foi proposto o PLP nº 26/2011, que foi apensado ao PLP nº 277/2008.
A tributação das grandes fortunas envolve aspectos operacionais bastante complexos, fazendo com que a regulamentação do instituto demande uma atenção especial do legislador infraconstitucional. Os projetos apresentados buscaram, de diferentes formas, elucidar questões fundamentais para a efetiva aplicação do instituto, como o que constitui uma grande fortuna, se a grande fortuna deve ser assim considerada por ultrapassar um determinado valor monetário ou se deve corresponder a uma percentagem dos maiores contribuintes do Imposto de Renda (IR), se o sujeito passivo será apenas a pessoa física, ou também a pessoa jurídica, se as alíquotas serão proporcionais ou progressivas, se o imposto incidirá sobre o patrimônio bruto ou tão somente sobre o patrimônio líquido, se o IGF terá aplicação universal, recaindo sobre todos os bens, ou se serão excepcionados bens tidos pela lei como meritórios, como serão classificados esses bens, como será realizada a fiscalização do imposto, como compatibilizar o IGF com as normas constitucionais que garantem uma tributação não confiscatória, a propriedade privada e o direito de herança, etc.
Em geral, guardadas as peculiaridades de cada projeto, observa-se que a ideia de grande fortuna, fato gerador do IGF, remete ao patrimônio da pessoa física, aferido ano a ano, cujo valor seja superior ao limite fixado pela lei regulamentadora. Este patrimônio compreenderia tanto bens móveis, quanto bens imóveis, desde bens físicos, até bens financeiros, bem como eventuais direitos dos contribuintes[28]. Vale ressaltar, ademais, que a maioria das proposições oferecidas estipula como base de incidência do IGF o patrimônio líquido. Também é recorrente nos projetos a previsão da possibilidade de compensação, haja vista que o fato gerador do IGF poderia abarcar bens e direitos sobre os quais já incidem outros impostos, como o IPVA, em relação aos veículos automotores, e o IPTU, sobre os imóveis urbanos.
Dos projetos supramencionados, assumiram maior relevância o PLP nº 202/1989 e o PLP nº 277/2008, seja por terem suscitado maiores debates políticos, seja porque despertaram o interesse da população, chamando, em consequência, a atenção da mídia para a questão. Por conseguinte, proceder-se-á, nos dois sub-tópicos a seguir, a uma análise destes dois projetos de lei complementar, contemplando os contornos que o legislador infraconstitucional propôs para o IGF em cada um deles.
3.1. O Projeto de Lei Complementar nº 202/1989
De autoria do então senador Fernando Henrique Cardoso, o PLP nº 202/1989 foi o primeiro projeto de lei apresentado com o fim de regulamentar o IGF. Inicialmente registrado sob o n° 162/1989, o projeto foi sucedido por Substitutivo e convertido no PLP nº 202-A, o qual foi apreciado pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, sob a relatoria do senador Gomes Carvalho, cujo parecer foi aprovado em turno suplementar. Assim, obtida a aprovação do Senado, em 12 de dezembro de 1989, o projeto foi submetido a revisão na Câmara dos Deputados, oportunidade em que lhe foram apensados, como visto, o PLP nº 108/1989, do deputado Juarez Marques Batista, o PLP nº 208/1989, do deputado Antônio Mariz, o PLP nº 218/1990, do Senado Federal, e o PLP nº 268/1990, do deputado Ivo Cersósimo, e oferecidas vinte emendas.
Segundo o PLP nº 202/1989, o fato gerador do IGF seria a titularidade, em 1º de janeiro de cada ano, de fortuna em valor superior a dois milhões de cruzados novos. Para efeito de determinar a fortuna sujeita ao imposto, dever-se-ia considerar o conjunto de todos os bens, situados no país ou no exterior, integrantes do patrimônio do contribuinte, excluídos, no entanto, o seu imóvel de residência – até o valor de quinhentos mil cruzados novos; os instrumentos utilizados pelo contribuinte em atividades de que decorram rendimentos do trabalho assalariado ou autônomo – até o valor de um milhão e duzentos mil cruzados novos; os objetos de antiguidade, arte ou coleção, nas condições e percentagens fixadas em lei; os investimentos em infra-estrutura ferroviária, rodoviária e portuária, energia elétrica e comunicações, nos termos da lei; e outros bens cuja posse ou utilização seja considerada pela lei como sendo de alta relevância social, econômica ou ecológica.
Os sujeitos passivos do imposto seriam as pessoas físicas residentes ou domiciliadas no país. Na constância da sociedade conjugal, cada cônjuge seria tributado pela titularidade do patrimônio individual e, se houver, pela metade do valor do patrimônio comum. A base de cálculo do imposto, a seu turno, seria o valor do conjunto dos bens que compõem a fortuna, subtraídas as obrigações pecuniárias do contribuinte, exceto aquelas contraídas para a aquisição dos bens excluídos do cálculo do patrimônio, como explanado no parágrafo anterior. O projeto, em seu art. 4º, prevê a forma de avaliação dos bens. Assim, o valor dos imóveis seguiria a base de cálculo do imposto territorial ou predial, rural ou urbano, ou, se situados no exterior, o custo de aquisição; os créditos pecuniários, sujeitos a correção monetária ou cambial, seriam considerados em seu valor atualizado; e, quanto aos demais, observar-se-ia o custo pelo qual foi adquirido pelo contribuinte.
Nos termos do art. 5º do PLP nº 202/1989, o IGF incidiria em quatro diferentes alíquotas – 0,3% (de mais de dois milhões até quatro milhões de cruzados novos); 0,5% (de mais de quatro até seis milhões de cruzados novos); 0,7% (de mais de seis até oito milhões de cruzados novos); 1% (acima de oito milhões de cruzados novos) – a depender da classe de valor do patrimônio.
Ademais, o PLP nº 202/1989 dispõe que o montante a ser pago pelo contribuinte do IGF equivaleria à soma das parcelas obtidas mediante a multiplicação do valor compreendido em cada classe pela alíquota correspondente. Do resultado da referida operação, o contribuinte poderia deduzir, ainda, o IR, e o respectivo adicional, pagos sobre rendimentos decorrentes de aplicações financeiras, da exploração de atividades agropastoris, de aluguéis e royalties, de lucros distribuídos por pessoas jurídicas e de ganhos de capital, por ele auferidos no exercício findo. Finalmente, determina o art. 6º que o IGF deveria ser lançado com base em declaração do contribuinte, na forma da lei, da qual deveriam constar todos os bens de seu patrimônio, com seu correspondente valor[29]. Vale frisar que o bem que não constar da declaração presumir-se-á, até prova em contrário, adquirido com rendimentos sonegados do IR, de modo que o imposto devido será lançado no exercício em que for apurada a omissão.
Na Câmara, a Comissão de Constituição e Justiça e de Redação aprovou o projeto, desde que passasse também uma emenda anexa que estabelecia como base de incidência do imposto o montante de um bilhão de cruzeiros, em oposição aos dois milhões de cruzados novos previstos na redação original. Como fundamento para a imposição da mencionada exigência, alegou-se que, do contrário, estar-se-ia tributando patrimônios não albergados pelo conceito de “grande fortuna”, ferindo, com isso, o princípio do não-confisco e a vedação à bitributação. Operada a modificação sugerida, por outro lado, o IGF, para a mencionada Comissão, seria dotado de juridicidade e constitucionalidade. A Comissão de Finanças e Tributação, a seu turno, proferiu parecer desfavorável ao PLP nº 202/1989. O deputado Francisco Dornelles, relator designado, opinou pela rejeição, alegando que esse tipo de imposto seria ultrapassado, tanto que estaria sendo abandonado noutros países para ser substituído por um imposto de renda progressivo, o qual seria muito mais apto a representar a capacidade de pagar das pessoas e a realizar a justiça fiscal[30]. Demais disso, sustentou que a incidência do IGF sobre os bens imobiliários seria inconstitucional, porque a União não poderia criar um imposto cuja base de cálculo já seria tributada pelo município e pelo estado. Posteriormente, as emendas apresentadas ao projeto foram igualmente submetidas ao crivo da Comissão de Finanças e Tributação, em junho de 1999, e à Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, em dezembro de 2000.
Apesar de dever tramitar com prioridade, tanto por ser de iniciativa do Senado, como por se tratar de projeto de lei complementar destinado a regulamentar dispositivo constitucional, nos termos do art. 151, II, a e b, item 1, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, o PLP nº 202/1989 está pronto para a ordem do dia, na Câmara, desde 06 de dezembro de 2000. Conclui-se, pois, que, apesar da repercussão que o tema assumiu nas Casas Legislativas, ensejando discussões fervorosas entre os parlamentares, e do empenho dos defensores do instituto em conferir-lhe a tônica, falta a vontade política necessária para que se proceda à votação do PLP nº 202/1989. Não obstante, em março de 2008, foi apresentado um novo projeto regulamentador do inciso VII do art. 153 da CRFB/88, o PLP nº 277/2008, que reacendeu o debate acerca do IGF, demonstrando que a questão ainda desperta o interesse político de alguns.
3.2. O Projeto de Lei Complementar nº 277/2008
O PLP nº 277/2008, de autoria da deputada Luciana Genro, e dos deputados Chico Alencar e Ivan Valente, é mais um projeto destinado à regulamentação do IGF. Para embasar a iniciativa, seus autores argumentaram que a alta concentração de riqueza no país suscita o implemento de medidas que promovam uma redistribuição de renda, embora reconheçam que é preciso haver melhorias na fiscalização tributária para que IGF possa ser aplicado com êxito. Na justificação ao projeto, demonstraram, também, descontentamento com muitas disposições do PLP nº 202/1989. Por conseguinte, o PLP nº 277/2008 promove uma série de alterações em seu teor, visando a corrigir suas deficiências. Pelo PLP nº 202/1989, é permitido deduzir do IR o valor pago a título de IGF, o que seria descabido para os deputados Chico Alencar, Ivan Valente e Luciana Genro, já que o objetivo do imposto seria justamente aumentar a tributação sobre os cidadãos mais abastados, que possuíssem capacidade contributiva para tanto. Para eles, as alíquotas e faixas de tributação também precisariam ser revistas, uma vez que os valores estão desatualizados, e as alíquotas propostas não possuem progressividade suficiente, considerando a desigual distribuição da riqueza no Brasil.
Conforme o PLP nº 277/2008, o IGF teria por fato gerador a titularidade, em 1° de janeiro de cada ano, de fortuna em valor superior a dois milhões de reais. Seriam contribuintes do imposto as pessoas físicas domiciliadas no Brasil, o espólio e a pessoa física ou jurídica domiciliada no exterior, em relação ao patrimônio que tiver no país. Para fins de incidência do imposto, fortuna seria o conjunto de todos os bens e direitos, situados no país ou no exterior, integrantes do patrimônio do contribuinte, excluídos, no entanto, os instrumentos utilizados pelo contribuinte em atividades de que decorram rendimentos do trabalho assalariado ou autônomo, até o valor de trezentos mil reais; os objetos de antiguidade, arte ou coleção; bem como outros bens cuja posse ou utilização seja considerada pela lei de alta relevância social, econômica ou ecológica. Ademais, o projeto prevê que, na constância de sociedade conjugal, cada cônjuge seria tributado pela titularidade do patrimônio individual e, se houver, pela metade do valor do patrimônio comum.
O IGF teria como base de cálculo o valor do conjunto dos bens que compõem a fortuna, diminuído das obrigações pecuniárias do contribuinte, exceto aquelas contraídas para a aquisição dos bens não compreendidos pelo conceito de fortuna, acima mencionados. Tais bens seriam avaliados pela base de cálculo do imposto territorial ou predial, rural ou urbano, ou se situados no exterior, pelo custo de aquisição, quando imóveis, e pelo seu valor atualizado, em se tratando de créditos pecuniários sujeitos a correção monetária ou cambial. Quanto aos demais bens, o valor seria determinado pelo custo de sua aquisição pelo contribuinte. O PLP nº 277/2008 estabelece a incidência progressiva do IGF, segundo cinco classes distintas de valores patrimoniais, cujas alíquotas variariam entre 1% e 5% – 1% (de mais de dois milhões até cinco milhões de reais); 2% (de mais de cinco até dez milhões de reais); 3% (de mais dez até vinte milhões de reais); 4% (de mais de vinte até cinquenta milhões de reais); 5% (acima de cinquenta milhões de reais) – além de uma classe inicial isenta.
Assim, o montante do imposto seria obtido através da soma das parcelas determinadas mediante aplicação da alíquota sobre o valor compreendido em cada classe. O imposto, neste contexto, seria lançado por meio de uma declaração do contribuinte, elaborada na forma da lei, da qual constariam todos os bens do seu patrimônio e o respectivo valor. O bem que não fosse incluído na declaração, presumir-se-ia, até prova em contrário, adquirido com rendimentos sonegados do IR, de modo que os impostos ainda devidos seriam lançados no exercício em que fosse apurada a omissão. Por fim, o projeto consagra a responsabilidade solidária pelo pagamento do IGF sempre que houver indícios de dissimulação do verdadeiro proprietário dos bens ou direitos que constituam o patrimônio, bem como quando os bens forem apresentados em valor inferior ao real.
Após a sua propositura, em 26 de março de 2008, o PLP nº 277/2008 seguiu, primeiramente, para a Comissão de Finanças e Tributação. Entretanto, o parecer elaborado pelo deputado João Dado (PDT/SP), designado como relator, não chegou a ser votado, tendo transcorrido in albis o prazo previsto para que a matéria fosse analisada pela Comissão. Em seu parecer, o deputado havia oferecido Substitutivo ao projeto, no qual as alíquotas do IGF incidentes sobre o patrimônio do contribuinte passavam a ser de 0,3% a 1%, em oposição à variação de 1% até 5%, prevista no original.
Em seguida, o PLP nº 277/2008 passou para a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, sendo recebido sob a relatoria do deputado Régis de Oliveira. O deputado destacou, em seu parecer, que a instituição do IGF não objetiva punir a acumulação de riqueza, mas sim promover um sistema tributário mais justo, de modo que os pobres paguem menos e os ricos paguem mais impostos sobre a renda, em atenção à capacidade contributiva de cada um. Para ele, o IGF deveria funcionar como um imposto complementar ao IR, contribuindo para amenizar as desigualdades sociais existentes no país, principalmente em decorrência da má distribuição de renda. Com a arrecadação do IGF, pois, o governo teria mais recursos disponíveis para investir em saúde, educação, moradia e infra-estrutura, dentre outros serviços básicos destinados à parcela menos favorecida da população[31]. Ao final, o deputado opinou pela constitucionalidade, juridicidade e boa técnica legislativa do projeto, sem sugerir qualquer modificação à redação inicial.
Incluído na pauta de 28 de março de 2010, quando foi iniciada sua discussão na Comissão, houve pedido de vista por alguns deputados, de modo que apenas em 09 de junho de 2010 foi retomado o debate sobre o projeto, que terminou sendo aprovado por unanimidade. Por se tratar de projeto de lei complementar, contudo, a proposição será também objeto de deliberação no Plenário da Casa, oportunidade em que será designado um novo relator para oferecer parecer na Comissão de Finanças e Tributação, que, como visto, ainda não se posicionou sobre a matéria. É de se ressaltar, ademais, que, se o projeto receber emendas em Plenário, deverá voltar às comissões para ser novamente apreciado pelas mesmas.
Em 31 de janeiro de 2011, o PLP nº 277/2008 foi arquivado pela Mesa Diretora da Câmara, tendo sido desarquivado em 14 de março de 2011. Ato contínuo, apensou-se ao projeto o PLP nº 26/2011, propositura mais recente visando a regulamentar o IGF. Resta saber, pois, se o PLP nº 277/2011 terá melhor sorte que o PLP nº 202/1989, chegando efetivamente a ser votado pelos parlamentares. Ainda que isso ocorra, porém, não será tarefa fácil conseguir sua aprovação, porque, no Brasil, sempre se tem mostrado um trabalho árduo implementar medidas que onerem os grandes detentores de capital – justamente os titulares das grandes fortunas –, que exercem inegável influência no cenário político nacional, mesmo que de forma indireta.
4. DIVERGÊNCIAS EXISTENTES QUANTO À VIABILIDADE OU NÃO DA INSTITUIÇÃO DO IMPOSTO SOBRE GRANDES FORTUNAS NO PAÍS
A instituição do IGF divide a opinião de juristas, políticos e cidadãos. Desde antes da sua previsão na Constituição de 1988, o imposto já era polêmico, principalmente diante da existência, a nível internacional, tanto de experiências de sucesso, em que o instituto é mantido até hoje, como de casos em que a aplicação foi tida como fracassada pelos governos internos, levando à sua extinção. Assim, nem mesmo a opção do constituinte em consagrar o imposto na Carta Magna de 1988 sanou a divergência. Pelo contrário, a exigência constitucional de edição de uma lei complementar para efetivamente criar o IGF, estabelecendo seus contornos, acabou acirrando o debate sobre o tema, que assume, hoje, um caráter muito mais político e econômico, do que propriamente jurídico. Para que se chegue a um posicionamento sobre a viabilidade ou não da aplicação do IGF no país, portanto, é imprescindível que se faça uma análise dos argumentos contrários e favoráveis formulados ao longo do tempo sobre o instituto, o que será contemplado nos sub-tópicos a seguir.
4.1. Argumentos contrários à instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas
Marcos Cintra, designado como relator para a apreciação das emendas oferecidas ao PLP nº 202/1989 na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados, em dezembro de 2000, manifestou, em seu parecer, oposição ao IGF, por entender que o tributo não atenderia aos requisitos básicos de uma matriz tributária desejável, quais sejam, simplicidade, universalidade, baixo custo, alta produtividade e neutralidade alocativa[32]. Ele alegou, ainda, que o IGF levaria a uma tributação excessiva sobre o fluxo de rendimentos, pois a renda – fluxo que gera o patrimônio – e as várias formas de riqueza acumulada já estariam sendo tributadas por outros impostos. Assim, a renda poupada acabaria sofrendo uma dupla-tributação, pois, quando a renda fosse percebida pelo agente econômico, sofreria a incidência do IR, e, quando fosse poupada, sujeitar-se-ia ao IGF, além de outros tributos sobre o patrimônio acumulado, como o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), o Imposto sobre Veículos Automotores (IPVA) e o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR).
Além disso, Cintra destacou que a tributação das grandes fortunas poderia estimular a fuga de recursos financeiros para países que não imponham tal gravame, mormente diante do fenômeno da globalização e das maiores facilidades institucionais e tecnológicas no tocante à mobilidade do fluxo de capital. Ele asseverou, ademais, que as experiências espanhola e francesa indicam que o IGF teria uma produtividade decepcionante e um custo bastante elevado, tanto em razão da resistência social ao imposto, como em relação à dificuldade de sua administração. A fiscalização da exatidão do patrimônio líquido calculado pelo contribuinte, por exemplo, seria praticamente impossível quanto a bens que possam ser facilmente ocultados, como é o caso das joias, dos títulos ao portador, dos valores mobiliários, etc. Por fim, o relator asseverou que a aplicação do IGF envolve enormes dificuldades operacionais, ainda que os projetos apresentados tenham buscado ser precisos quanto à definição e funcionalidade do instituto. Diante destes argumentos, e considerando que o Brasil precisa de um sistema tributário que seja, sobretudo, simples e de baixo custo, o parlamentar concluiu ser inviável a instituição do IGF no país.
Há como aspecto desencorajador, também, a dificuldade em determinar o conteúdo do termo “grandes fortunas”, que é o ponto de partida para qualquer discussão acerca da viabilidade do IGF. Mesmo que venha a ser feita, na lei complementar regulamentadora, a quantificação desta expressão, será preciso, ainda, pensar em meios eficazes para combater a evasão fiscal, cujos índices são mais elevados justamente nas faixas superiores de renda e riqueza. Para tanto, é necessário coletar dados que possibilitem uma avaliação profunda e completa do problema, bem como a realização de estudos que forneçam informações confiáveis quanto à estrutura de distribuição do patrimônio dos contribuintes pessoa física. Atualmente, dispõe-se apenas de indicadores parciais sobre tais aspectos, elaborados para outros fins, sendo possível tão somente especular, em grau aproximado, qual seria o âmbito de incidência do IGF. Por outro lado, como repercussão negativa do imposto, principalmente nos países em desenvolvimento, aponta-se que ele seria mais um fator de desincentivo à poupança interna, desestimulando a alocação de investimentos estrangeiros e reduzindo, consequentemente, o crescimento econômico.
Além dos complicadores concernentes à administração e à fiscalização do tributo, do risco de redução da poupança interna, do resultado insignificante da arrecadação e do perigo da fuga de capitais, observa Olavo Nery Corsatto – que atuou como consultor legislativo junto ao Senado Federal – que a grande dificuldade prática da instituição do IGF é o critério de avaliação dos bens que compõem o patrimônio das pessoas físicas[33]. Afinal, a eficiência da tributação depende do grau de confiabilidade do levantamento do patrimônio do contribuinte e dos parâmetros de avaliação utilizados. Para ele, pelo menos em tese, o critério ideal seria o valor de mercado dos bens. Contudo, grande parte destes bens não tem um valor de mercado bem definido, de modo que é empregado um alto grau de subjetividade no processo de avaliação, culminando com a obtenção de valores diversos, a depender do avaliador. Em último grau, este problema atingiria diretamente os contribuintes do IGF, haja vista que os projetos até hoje apresentados levam a crer que, uma vez instituído, o tributo seria lançado por declaração.
Ueren Domingues, a seu turno, indica como óbice à aplicação do IGF o fato de o imposto recair sobre bens e valores que já seriam objeto de tributação direta[34]. É que, sobre os rendimentos oriundos do trabalho e do capital, por exemplo, o contribuinte teria pago IR, e, sobre o patrimônio, conforme sua natureza, haveria a incidência do ITR, do IPVA, etc., caracterizando-se, assim, o fenômeno da bitributação[35], vedado pelo ordenamento jurídico pátrio. Para ele, as problemáticas ínsitas ao instituto e seus efeitos negativos seriam reconhecidos, inclusive, pelos países que resolveram instituí-lo. Em verdade, a opção de sua aplicação decorreria de motivo ideológico, ou em razão de extrema necessidade financeira, como ocorre nos períodos de guerra ou no pós-guerra. Neste quadro, cientes de todos os seus percalços, os países sustentariam o IGF não em si mesmo considerado, mas diante de situações conjunturais que justificariam a incidência do imposto, favorecendo sua aceitação social.
Para Ives Gandra Martins, o IGF, “de qualquer forma, é um imposto de desestímulo. Quando todos os países reduzem os impostos patrimoniais, o Brasil ingressa decididamente pela contramão da história ao criar tal imposição”[36]. Neste sentido, ele alerta que a aprovação do PLP nº 277/2008, que estipula como grande fortuna o patrimônio superior a dois milhões de reais, acabaria atingindo a classe média, que não teria condições de se valer de subterfúgios para minorar a taxação, ou mesmo para dela fugir. Os titulares dos grandes patrimônios, por outro lado, poderiam retirar seus recursos do país, ou transferi-los para empresas, as quais, segundo o projeto em questão, não sofreriam a incidência do IGF. Desta forma, restaria frustrado o objetivo principal do instituto, qual seja, a oneração das verdadeiras grandes fortunas para promover uma melhor distribuição de riquezas através da aplicação da arrecadação do IGF em prol da coletividade. Defende o autor, ademais, que tal mister poderia ser conquistado, com êxito, mediante uma reforma do IR, o que solucionaria, ainda, o problema da bitributação.
4.2. Argumentos favoráveis à instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas
Grande parte dos argumentos desfavoráveis à aplicação do IGF no país, abordados no sub-tópico anterior, são rebatidos pelos defensores do instituto. Assim, passa-se agora à análise dos aspectos vantajosos atribuídos ao imposto, de modo a contemplar a corrente favorável à sua instituição. De acordo com Olavo Nery Corsatto, a criação do IGF se justificaria em razão da assimetria e perversidade da distribuição de renda e da riqueza no Brasil, o que demanda a implementação de medidas capazes de promover a justiça fiscal[37]. Neste contexto, ele aponta o IGF como um meio bastante eficaz de redistribuir as riquezas, cuja aplicação, inclusive, concretizaria um dispositivo constitucional. A quantidade limitada e pequena de contribuintes, por outro lado, facilitaria a cobrança e o controle do imposto.
Ademais, Corsatto ressalta que o IGF teria a utilidade adicional de servir como subsídio para a fiscalização da arrecadação do IR, bem como de outros impostos sobre o patrimônio, além de combater a evasão fiscal, através do cruzamento de cadastros, dados e informações tributárias. Os defensores da ideia, portanto, reconhecem que o IGF teria arrecadação pouco significativa, mas contra-argumentam que o seu intuito não é meramente arrecadatório, pois se trata de um imposto estatístico, complementar e potencializador dos resultados do IR. Assim, mesmo diante da arrecadação pífia do tributo, sua instituição seria viável devido às repercussões do ponto de vista extrafiscal. Acrescente-se, a isto, ainda, o fato de que as lacunas na tributação das terras rurais e sobre imóveis urbanos e a reduzida tributação sobre heranças e doações poderiam ser eficientemente contornadas através da incidência do IGF.
Em oposição à alegação de que o IGF prejudicaria os níveis da poupança interna, o então deputado federal José Pimentel, hoje senador pelo Estado do Ceará, sustentou em defesa do IGF, quando da apreciação do PLP nº 202/1989 pela Comissão de Finanças e Tributação, que não há embasamento técnico para tal conjectura, pois as decisões de investimento baseiam-se muito mais nas perspectivas de rentabilidade líquida do que em qualquer outra coisa[38]. A conjuntura macroeconômica e o grau de estabilidade do ambiente político e econômico circundantes, e não a existência ou não de um determinado imposto, por conseguinte, é que seriam os fatores primordialmente considerados pelos particulares na escolha dos seus investimentos.
Uma das principais críticas dirigidas ao IGF é a de que ele incidiria sobre bens e rendas já tributados, configurando um bis in idem fiscal. No entanto, há que se destacar que a previsão constitucional do instituto indica que o mesmo recai sobre as grandes fortunas especificamente, de modo que o dispositivo não prevê um imposto sobre o patrimônio ou sobre as fortunas em geral, mas sim exclusivamente sobre a acumulação de riquezas acima de um determinado nível. Este detalhe constitui justamente a essência do fato gerador do IGF, individualizando-o e diferenciando-o do de outros impostos, como o IPTU e o ITR, em que é suficiente a propriedade do bem, independentemente da quantidade de bens possuídos, para caracterizar o fato gerador do imposto.
Por outro lado, o argumento da bitributação estaria afastado também em razão da compreensão do IGF como um imposto de caráter complementar, por meio do qual o Fisco poderia atingir contribuintes que, de alguma forma, conseguiram se livrar da incidência de um ou mais impostos, quando estes eram devidos, ou mesmo corrigir fluxos de renda captados a menor, igualmente em decorrência de alguma manobra malfadada. Sob tal perspectiva, o IGF teria como objetivo principal ampliar o alcance da tributação sobre os ganhos de capital, assumindo, portanto, uma finalidade eminentemente fiscal.
Amir Khair, mestre em finanças públicas pela Fundação Getúlio Vargas, indica os seguintes argumentos para justificar o seu apoio à criação do IGF:
“Em vez de afugentar, deve atrair mais o capital ao permitir a desoneração do fluxo econômico, gerando maior consumo, produção e lucros. Não teria nenhum conflito com os impostos existentes, pois sua base tributária é o valor total dos bens. Quanto às dificuldades de avaliação dos títulos mobiliários, o registro eletrônico das transações e as posições fornecidas pelos bancos podem resolver o problema. […] A regulamentação do IGF irá diminuir a forte regressividade do sistema tributário, descentralizar mais recursos para Estados e Municípios, desonerar a folha de pagamento das empresas, contribuindo para reduzir a informalidade e com isso gerar empregos e desenvolvimento.”[39]
Num artigo em que trata das vantagens da justiça fiscal, Khair destaca que a substituição de tributos indiretos, que atingem o fluxo econômico, por tributos que incidem sobre o estoque da riqueza, como o IGF, estimularia o desenvolvimento da economia. Isto porque, o redirecionamento da carga tributária provocaria um aumento nos níveis de consumo e de produção, gerando lucros maiores, que, por sua vez, compensariam a tributação sobre a riqueza. Daí ele afirmar que, ao contrário do que alguns propalam, uma tributação mais intensa sobre o patrimônio não afugentaria empresas, pois a dinâmica econômica é muito mais abrangente e envolve uma série de questões, não podendo ser entendida de forma tão simplória, em atenção a um único aspecto. Em verdade, ao impulsionar o desenvolvimento interno, esta substituição traria até mais lucro para as empresas. Além disso, Khair acrescenta que o desenvolvimento econômico ampliaria a arrecadação pública, gerando mais recursos para o atendimento das necessidades da população e para a promoção de melhorias na infraestrutura do país. Por outro lado, com o aumento do poder aquisitivo, haveria uma redução da demanda potencial da população por serviços públicos, num quadro oposto àquele verificado em situações de estagnação econômica, quando o poder público é pressionado através de várias reivindicações e conta com menos recursos[40].
Ademais, o art. 3º, § 2º, d, do PLP nº 202/1989, prevê que serão excluídos do patrimônio a ser tributado pelo IGF os investimentos na infra-estrutura ferroviária, rodoviária e portuária, bem como em energia elétrica e comunicações, nos termos da lei. Destarte, alega-se, em favor do IGF, que, a possibilidade de deduzir os investimentos nestes setores do cálculo do imposto incentivaria a aplicação do patrimônio privado em atividades de base reconhecidamente carentes de recursos estatais. Como tais áreas não oferecem tantos atrativos, seja porque algumas são monopólio estatal, seja por não serem opções de mercado lucrativas, não recebem, geralmente, muitos financiamentos e investimentos voluntários. Neste quadro, o IGF atuaria como verdadeiro indutor da canalização de recursos para melhorias na infraestrutura do país. Caberia à lei ordinária, entretanto, especificar os detalhes para que a aplicação fosse válida para este fim, definindo, por exemplo, quais seriam os instrumentos hábeis a comprovar a realização e a destinação precisa dos investimentos.
A Constituição de 1988 veda a instituição de tributos com efeito confiscatório. Daí, poder-se-ia levantar a hipótese de o IGF ser sentido pelo contribuinte como confisco, por parte do Estado, de parcela do seu patrimônio acumulado, sem que houvesse qualquer justificativa razoável ou contraprestação equivalente para tanto. Esta ideia, contudo, não merece prosperar, pelo menos quando levados em consideração o PLP nº 202/1989 e o PLP nº 277/2008, que preveem alíquotas baixas para o IGF, se comparadas com aquelas fixadas para outros impostos, a exemplo do IR. E não poderia ser diferente, pois o caráter complementar e as finalidades preponderantemente extrafiscais do IGF pressupõem alíquotas modestas, até porque a sua base de cálculo sempre será uma monta considerável, sob pena de o patrimônio não se enquadrar naquilo que a lei vier a conceber como grande fortuna.
Por fim, o grande trunfo dos padrinhos do IGF: a ideia de que o imposto seria um importante instrumento de concretização da justiça fiscal[41]. A justiça fiscal pressupõe uma oneração equitativa dos contribuintes, na proporção de sua capacidade contributiva, sendo, pois, a manifestação do princípio da igualdade em matéria de arrecadação tributária. Assim, a justiça fiscal deve ser um dos valores supremos de um Estado Democrático de Direito, para que as necessidades estatais possam ser plenamente supridas sem que a população seja sobrecarregada, bem como para que haja uma proporcionalidade entre as cargas tributárias impostas às diferentes classes sociais, em atenção à capacidade econômica de cada uma. Neste contexto, o IGF apresentar-se-ia como um instituto apto a colaborar substancialmente para a construção de um sistema tributário mais justo.
CONCLUSÃO
Após a análise dos diversos aspectos relacionados à inserção do IGF dentre os impostos de competência da União na Constituição de 1988 e das polêmicas questões que estão por trás da não edição da lei complementar regulamentadora até o presente momento, resta claro que o instituto está intimamente ligado a interesses político-econômicos, de modo que uma argumentação de cunho eminentemente jurídico não é suficiente para embasar posicionamentos quanto ao tema, quer sejam favoráveis ou contrários. A viabilidade ou não da instituição do IGF no país depende justamente do sopesamento dos diversos fatores atinentes ao imposto, para que se possa aferir se as suas consequências positivas superam os obstáculos levantados contra a sua aplicação. Neste processo, o assunto deve ser encarado de forma consciente e realística, para que não se deixe levar pelos encantos da teoria, esquecendo-se do abismo que separa, no Brasil, as ideias potencialmente boas de sua fiel concretização.
Por outro lado, deve-se atentar para o fato de que o IGF não pretende impor uma punição aos contribuintes, nem estarão eles fazendo caridade ao recolher o imposto. Não visa o instituto, pois, a penalizar os cidadãos mais ricos pela acumulação de riquezas, nem objetiva angariar recursos para promover medidas assistencialistas genéricas, devendo ser encarado com a seriedade ínsita às figuras tributárias e às previsões constitucionais. O produto da arrecadação do IGF, como visto, provavelmente não será colossal, mas nem por isso deixa de ser significativo. Ademais, o IGF não tem função meramente arrecadatória, não sendo o potencial financeiro, realmente, seu principal atrativo. A ideia de onerar as grandes fortunas, consubstanciada no IGF e em impostos semelhantes, vai muito além da questão fiscal, tendo fins albergados por valores de ordem superior, que não são facilmente realizáveis e que, por isso mesmo, precisam de um instrumento de implementação sólido, apoiado por economistas, políticos, juristas e cidadãos, para que haja pelo menos uma possibilidade de concretizá-los.
Dentre os fins nobres aos quais o IGF se presta, destaca-se a justiça fiscal. Esse imposto é capaz de tornar o sistema tributário brasileiro mais justo – ao fazer com que os ricos contribuam mais, tanto sobre a renda, como sobre acumulação de grandes fortunas –, além de primar pela observância do princípio da capacidade contributiva, podendo ser aplicado sem macular a vedação constitucional ao confisco, e objetivar, em último grau, redistribuir a renda e diminuir as desigualdades. Assim, merece uma atenção especial dos parlamentares, que não podem continuar inertes diante da previsão constitucional.
O problema é que, no Brasil, sempre se tem mostrado uma tarefa difícil atingir os interesses dos detentores do capital. Em verdade, o receio de desagradá-los ou afugentá-los fez com que fosse construída uma legislação nitidamente protecionista no que concerne à riqueza, o que acaba propiciando sua crescente acumulação por aqueles que a detêm, em detrimento da grande maioria da população. É claro que há uma forte dependência da economia nacional em relação ao capital injetado pelos donos das grandes fortunas, mas o fato é que é o consumo cada vez maior das classes menos favorecidas que tem sustentado o crescimento econômico do país. É preciso, portanto, implementar medidas que corrijam tal distorção, sempre na busca de um sistema tributário mais justo e equânime, ao invés de perpetuar a desproporcionalidade da carga tributária brasileira, que infelizmente já se tornou, assim como a desigualdade, característica típica do país.
Ademais, da análise das críticas formuladas contra o IGF e das benesses que a ele são atribuídas, observa-se que há não só argumentos aptos a rebater grande parte dos empecilhos apontados como inviabilizadores da aplicação do IGF, como também vantagens outras que demonstram com louvor que as finalidades extrafiscais do tributo compensam a superação dos óbices que eventualmente venham a persistir, por não poderem ser completamente solucionados. A exigência de contornar as dificuldades, inclusive, não é exclusiva do IGF. Pelo contrário, trata-se de um desafio presente na vivência prática de uma série de institutos, que não deixaram de ser aplicados por ensejarem este esforço extra. No caso do IGF, especificamente, o cuidado especial demandado pelo imposto será devidamente recompensado a médio prazo, embora acredite-se que a partir do início de sua aplicação já poderão ser vistos resultados práticos.
Quanto aos moldes segundo os quais o IGF deveria ser aplicado, uma vez instituído, tem-se que nenhum dos projetos de lei complementar apresentados até o momento conferiu-lhe regulamentação integralmente adequada. Para que o imposto em questão alcance as finalidades a que se destina, por conseguinte, mostra-se necessária a elaboração de um novo projeto, que agregue os dispositivos mais apropriados de cada um dos anteriores, conformando-os, naturalmente, ao contexto socioeconômico hodierno. Apenas a título de exemplo, a fim de incidir sobre as verdadeiras grandes fortunas, deveria ser fixada, na nova lei regulamentadora, faixa de isenção do IGF com valor superior àqueles previstos no PLP nº 202/1989 e no PLP nº 277/2008. No que concerne às alíquotas, por outro lado, o PLP nº 277/2008 foi mais feliz que o PLP nº 202/1989, estabelecendo uma progressividade mais consentânea com as diferentes classes de patrimônio oneradas.
Por fim, insta asseverar que qualquer inovação, a princípio, passa por uma fase de adaptação e precisa de alguns ajustes. Com o IGF não será diferente. Apenas com o passar do tempo, mediante a observação do funcionamento do imposto no âmbito do sistema tributário nacional, é que será possível constatar se ele é ou não viável no país. De imediato, a edição da lei complementar mostra-se necessária, haja vista que, embora importante, a elaboração de estudos prévios somente sinaliza direções e fomenta especulações, que podem nunca vir a se concretizar, mormente quando não se sabe ao certo os contornos que serão conferidos ao instituto. Por conseguinte, não se está sustentando aqui que a instituição do imposto será tranquila, pacífica e completamente exitosa, mas sim que a tentativa é válida, seja porque trará inúmeras repercussões meritórias, já enumeradas, seja porque, na pior das hipóteses, sempre será possível a posterior extinção da figura.
Informações Sobre o Autor
Raíssa Carvalho Fonseca e Albuquerque
Advogada. Graduada pela Faculdade de Direito do Recife. Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp