Resumo: O Imposto sobre serviço de qualquer natureza (ISSQN) nasceu com a concepção econômica de serviço como produto, em afronta ao ICMS e sua incidência nas operações cujo objeto é a mercadoria. E para a elucidação do que é serviço suscetível à incidência do ISSQN houve a edição do anexo à Lei Complementar nº. 116/2003, ou seja, a Lista de Serviços. E, aliás, embora a CF formule a RMI (Regra matriz de incidência tributária), é à LC que cabe a limitação das normas gerais e definições. Cada ente político tem competência para instituir uma Lista de Serviços sob os pilares daquela adesiva à LC nº. 116/03. Finalmente, o ISSQN está disposto no artigo 156, inciso III da CF, sob a competência tributária privativa dos Municípios, como transcrito: “Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art.155, II, definidos em lei complementar”.
Palavras-chaves: RMIT, ISSQN, Prestação de serviço, lista de serviço.
Sumário: 1. A materialidade da RMIT do ISSQN. 1.1. ‘Prestação de Serviço’. 2. A expressão “de qualquer natureza” e a ‘Lista’ de Serviços. 3. Conclusão. 4. Referências bibliográficas.
1. A materialidade da RMIT do ISSQN
A hipótese de incidência do ISSQN abarca uma materialidade que só se permite compreender através da análise da expressão nuclear ‘prestação de serviço’, igualmente como alhures no ICMS – operações mercantis.
Ora, essa reflexão se dá porque o fato social descrito na hipótese da norma jurídica é a prestação de serviço, embora o dispositivo constitucional somente discorra sobre ‘serviço de qualquer natureza’, excepcionando, aliás, aqueles previstos no artigo 155, II (constantes da materialidade do ICMS).
Considerando, pois, o verbo oculto, prestação, e o seu complemento, serviço de qualquer natureza, com as devidas ressalvas (prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação).
1.1 ‘Prestação de Serviço’
No entender cotidiano, ‘prestação’ é ação de prestar algo; fornecer. E, ‘serviço’, em suas várias acepções designa exercício e desempenho de qualquer atividade; o próprio trabalho a ser executado ou que se executou; a obra; ou, até, qualidade de quem serve outrem.
A princípio, porquanto, prestação de serviço tem haver com fornecimento de trabalho. Apesar disso, o assunto é de relevância jurídica, e deste modo, é mister o direcionamento das definições para tal enfoque.
Conforme o já exposto em respeito ao artigo 110 do CTN, a definição de ‘serviço’ para o Direito Tributário deve concordar com a do Direito Privado, tal seja o Direito Civil.
O CC/02, por sua vez, não define expressamente a obrigação de fazer, no entanto, em análise aos artigos 248 e 249 há referência à prestação do fato (a exemplo de indenização por danos etc.).
Nesta linha, são as palavras de Melo:
“O cerne da materialidade da hipótese de incidência do imposto em comento não se circunscreve a ‘serviço, mas a uma ‘prestação de serviço’, compreendendo um negócio (jurídico) pertinente a uma obrigação de ‘fazer’, de conformidade com os postulados e diretrizes do direito privado.” (2003, p. 33).
Diversamente da obrigação de dar objeto das operações mercantis tributáveis por ICMS, na prestação de serviço temos uma obrigação de fazer.
Prestar serviço é uma obrigação de fazer algo em proveito alheio. Esse fazer é com o esforço humano, em função do intelecto, ou apenas fisicamente.
‘Prestação’, enfim, é um negócio jurídico, bem como a ‘operação’ aludida no ICMS, que prevê dois pólos, sendo um com dever jurídico de prestar o serviço ora contratado, e o outro, em contrapartida, com o direito subjetivo de obter e exigir a devida prestação. Existe a figura do prestador e a do tomador do serviço.
Ademais, são os ensinamentos de Barreto ao denominar ‘serviço’:
“[…] não é todo e qualquer ‘fazer’ que se subsume ao conceito, ainda que genérico, desse preceito constitucional. Serviço é conceito menos amplo, mais estrito que o conceito de trabalho constitucionalmente pressuposto. É como se víssemos o conceito de trabalho como gênero e o de serviço como espécie desse gênero. De toda a sorte, uma afirmação que parece evidente, a partir da consideração dos textos constitucionais que fazem referencia ampla aos conceitos, é a de que a noção de trabalho corresponde, genericamente, a um ‘fazer’. Pode-se mesmo dizer que trabalho é todos esforço humano, ampla e genericamente considerado. […] É lícito afirmar, pois, que serviço é uma espécie de trabalho. É o esforço humano que se volta para outra pessoa; é fazer desenvolvido para outrem. O serviço é, assim, um tipo de trabalho que alguém desempenha para terceiros. Não é esforço desenvolvido em favor do próprio prestador, mas de terceiros. Conceitualmente, parece que são rigorosamente procedentes essas observações. O conceito de serviço supõe uma relação com outra pessoa, a quem serve. Efetivamente, se é possível dizer-se que se fez um trabalho ‘para si mesmo’, não o é afirmar-se que se prestou serviço ‘a si próprio’. Em outras palavras, pode haver trabalho sem que haja relação jurídica, mas só haverá serviço no bojo de uma relação jurídica. Num primeiro momento, pode-se conceituar serviço como todos o esforço humano desenvolvido em benefício de outra pessoa (em favor de outrem). (2003, p. 29).”
Este, no entanto, é o primeiro ponto, visto como, não há na materialidade do ISS um bem corpóreo e fungível.
Ao tratar de uma obrigação de fazer[1] o objeto do negócio jurídico é a prestação do serviço em si, e não dar algo. Esta ressalva é pertinente uma vez que ao término da prestação pode ser entregue um bem, no entanto, incorpóreo e infungível.
O bem é incorpóreo quando inexistente fisicamente. Abstrato, por exemplo, fruto do intelecto. E, ao seu passo, bem infugível é aquele personalíssimo, impossível de substituição em razão de suas características, qualidades e quantidades, como uma pintura de Leonardo da Vinci.
É de suma importância, outrossim, salientar a imprescindibilidade do conteúdo econômico da prestação do serviço, haja vista os reflexos do princípio da capacidade contributiva que exige isto para a composição da base de cálculo inserida no critério quantitativo do conseqüente da RMIT do ISS. Por esta razão, completa-se que é a prestação onerosa do serviço que permite a incidência tributária do ISS, ao contrário da afirmação de que é o ‘contrato’ de serviço, ou, ainda, que tal possa ser gratuito.
Destarte, na medida em que já foram definidas as expressões inseridas no núcleo da hipótese de incidência da RMIT, tem-se que a materialidade do ISS consiste em: a) uma obrigação de fazer denominada ‘prestação de serviço’; b) conceito de ‘serviço’ consoante o Direito Civil, impedindo, pois, a inclusão do serviço público; c) diante de um negócio jurídico; d) proveito alheio; e) com conteúdo econômico; f) prestação sem cunho empregatício; g) com habitualidade.
2. A expressão “de qualquer natureza” e a ‘Lista’ de Serviços
O artigo 156, inciso III, da CF determina que lei complementar apresente a definição dos serviços de qualquer natureza sujeitos à tributação do ISS. Logo, ‘de qualquer natureza’, assim como as demais expressões até então abordadas, merece exame.
Qualquer’ caracteriza-se por indistinção a algo. Designação essa que traz desconexão e independência. Remete, já, o termo ‘natureza’ a um conjunto de caracteres que individualizem um ser ou uma coisa.
De tal modo, ‘de qualquer natureza’ atribui-se a ‘serviço’ sem discriminação de gênero, espécie, classe ou atividade.
Sobretudo, a expressão “de qualquer natureza” atribui generalidade à outra designada por “serviços”, todavia, conforme o próprio legislador constituinte, o ISS incide sobre ato jurídico que envolva prestação de serviço, desde que, esse não esteja englobado na competência dos Estados e do Distrito Federal (ICMS), vide artigo 155, inciso II.
Não é possível, ainda, neste juízo, que sejam “de qualquer natureza”, pois a missão da LC é defini-los, o que faz devidamente através da lista de serviços.
Neste esteio, sob a égide constitucional nasceu a LC nº 116/03, que além de trazer seu anexo com a lista de serviços tributáveis, dispõe que em atenção à competência tributária dos Municípios, estes devem editar lei instituindo o tributo, com inclusive, sua própria lista de serviços.
Uma das discussões que permeia o tema baseia-se em se a lista de serviços primária (aquela em adendo à LC nº. 116/03), é taxativa ou meramente exemplificativa.
Ao passo que, o legislador constitucional no artigo 156, inciso III, esculpiu uma norma de eficácia contida, ou seja, em seu conteúdo há previsão de que uma legislação inferior (leia-se lei complementar) poderá compor seu significado. Há, pois, uma integração restringível.
Em síntese, a CF esboçou a RMIT do ISS e delimitou a competência tributária, e como fundamento de validade da LC, a qual remete a função de definir as normas gerais de direito tributário, comandou a mesma a criação de uma lista de serviços.
A norma constitucional tem aplicabilidade direta, imediata, mas não integral, haja vista que só a LC compõe seu significado, assim sendo, não haveria fundamento se a lista de serviços em menção fosse considerada como meramente exemplificativa. Além do mais, a ‘lista’, só é assim denominada por mera opção nominativa, isto porque a LC traça conceitos restritivos e não exemplificações.
Enfim, a lista de serviços é taxativa em atenção à distribuição de competência tributária delineada pela CF. Aliás, tal afirmativa encontra respaldo na posição da jurisprudência do STF.[2]
Ademais, existem outros aspectos relevantes sobre o assunto, haja vista a lista mencionar serviços congêneres e mistos.
A lista define diversos serviços, e, no entanto, insere a expressão ‘serviços congêneres’. Igualmente à expressão ‘de qualquer natureza’, se entende que houve um equivoco, agora do legislador infraconstitucional, pois, se a LC subordina-se ao seu fundamento de validade, que é a CF, deveria definir os serviços que funcionariam como fatos sociais da hipótese de incidência tributária do ISS, e não os consideraria genericamente, como assim procedeu.
Apesar disso, a jurisprudência pátria é pacifica a respeito da taxatividade da lista, “embora cada item da relação comporte interpretação ampla e analógica” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário nº. 75.952-SP. Ac. de 25.10.73, 2ª Turma, relator Ministro Thompson Flores, RTJ 68/198.)
Desta forma, a lista de serviços é taxativa, mas comporta a interpretação extensiva dentro de cada item, admitindo a incidência do tributo sobre ‘serviços congêneres’ ou ‘de qualquer natureza’ àqueles expressos, desde que adaptados no conceito constitucional de serviço.
Em outro passo, os serviços podem ser puros ou mistos, sendo estes últimos compostos de serviço e mercadoria. Esta atividade econômica tem caráter hibrido, sendo que há prestação do serviço contratado, contudo, como meio, e para a obtenção do fim, há o uso de bens materiais, que não necessariamente mercadorias.
Frise-se, é indubitável, após este discorrer lógico, que não necessariamente mercadorias seriam utilizadas como meio-fim da prestação de serviço, haja vista que tais, inicialmente, são meros bens corpóreos, fungíveis e materiais, e só adquirem a qualidade de mercancia após a constituição dos elementos lucro, habitualidade, sujeito passivo comerciante ou correlato, entre outros.
Há o uso de bens materiais, quer dizer, instrumentos que facilitam o desenrolar da prestação do serviço.
3. Conclusão
No caso, é respeitável dar preponderância de um em relação ao outro, no intuito de dirimir os conflitos entre Municípios e Estados ou Distrito Federal (ISS/ICMS).
Contudo, há prestações de serviços que têm por seu âmago o fornecimento de mercadorias[3]. Deste modo, a súmula nº. 163 do STJ, estabelece: “O fornecimento de mercadorias com simultânea prestação de serviços em bares, restaurantes e estabelecimentos similares constitui fato gerador do ICMS a incidir sobre o valor total da operação.”.
Neste espeque, porém, sem embargo da Carta Magna e da jurisprudência, há apenas o fornecimento de mercadorias, considerando que, a prestação do serviço não seria a mesma sem tal fornecimento.
E, também, como colocado na seção anterior, os Municípios em obediência a Lei Complementar nº. 116/03 têm a faculdade de editar uma ‘lista de serviços’, porém, não é admitida inovação na definição de ‘serviços’ do seu fundamento de validade, bem como, ampliar o rol estampado na lista de serviços primária, posto que taxativa.
Compreende-se, por isso que, o termo ‘de qualquer natureza’, já elucidado, cabe exclusivamente à LC nº. 116/03, e não aos legisladores municipais.
Informações Sobre o Autor
Vanessa Roda Pavani
Advogada