Resumo: O presente estudo parte de uma abordagem interdisciplinar entre o Direito Processual Civil, Administrativo e Tributário, sem se afastar da Teoria Geral do Direito. A sua desenvoltura está focada em demonstrar os vícios que podem macular a Certidão de Dívida Ativa – CDA, considerando-a um ato administrativo e, em consequência, a regência do regime jurídico administrativo. Assim, os requisitos, bem como os defeitos estão divididos e especificados como gerais e especiais, sendo os primeiros os do ato administrativo em geral e os últimos, os da CDA. Ainda, aborda as consequências que cada vício acarreta na higidez da CDA, a sua repercussão no processo de execução fiscal e, por fim, os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais a respeito. Há, finalmente, uma análise crítica da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no tocante à substituição da CDA no curso de uma execução fiscal.
Palavras-chave: Ato administrativo. Vícios dos atos administrativos. Certidão de dívida ativa. Certidão de dívida ativa e execução fiscal.
Abstract: This study starts with an interdisciplinary approach between the Tax and Administrative Law, without departing from the General Theory of Law. The resourcefulness is focused on demonstrating the vices that may mar the Overdue Liabilities Certificate, considering it an administrative act and, consequently, governed by the administrative law. Therefore, the requirements, as well as the vices, are divided and specified as general and special. The general one refers to administrative act and the special, to Overdue Liabilities Certificate. Moreover, this work either approaches the consequences that each vice leads to the Overdue Liabilities Certificate, your impact on its judicial execution and, finally, the doctrinal and jurisprudential understandings about it. In the end, there are critical analyzes of jurisprudence of Superior Tribunal de Justiça about replacement of the Overdue Liabilities Certificate in judicial execution.
Keywords. Administrative act. The administrative acts vices. Overdue liabilities certificate. Overdue liabilities certificate and judicial execution
Sumário: Introdução. 1. Ação de execução. 1.1 Princípios informadores. 1.2. Título executivo e Certidão de Dívida Ativa – 2. Certidão de Dívida Ativa. 2.1. Fato Gerador. 2.2. Momento da instauração da relação jurídica tributária. 2.3. Fases para a cobrança do tributo – 3. Ato administrativo e certidão de dívida ativa – 4. Requisitos do ato administrativo. 4.1. Elementos, pressupostos de existência e de validade do ato administrativo e CDA. 4.2. Requisitos específicos da CDA – 5. Existência e invalidade do ato. 5.1. Planos de existência e de validade. 5.2. CDA inexistente ou inválida – 6. Substituição da CDA à luz da jurisprudência – 7. Conclusão – 8. Bibliografia
A Certidão de Dívida Ativa é um título executivo extrajudicial que embasa uma execução fiscal, regida pela Lei 6.830/80. Assim, é imperioso verificar a sua natureza jurídica, pois é ela quem vai determinar o regime jurídico regente, incluindo as regras acerca de vícios e suas consequências jurídicas.
Com efeito, considerando a CDA, por exemplo, como um ato regido pelo Código Civil, não terá ela a presunção de veracidade, de legitimidade e de legalidade, e estará sujeita aos vícios dos negócios jurídicos, etc. Contudo, a CDA é uma espécie de ato administrativo, incidindo o regime jurídico administrativo, o que é demonstrado e comprovado categoricamente no presente trabalho.
Sob outra perspectiva, é sabido que a CDA, como título executivo extrajudicial, justifica a propositura de uma ação executiva, sendo que qualquer vício que macula este ato administrativo afeta, em tese, diretamente à tramitação desta ação. Dessa maneira, é inegável a importância do estudo acerca dos vícios da CDA e as suas consequências jurídicas; se são sanáveis ou não; se sim, até que momento, etc.
Por fim, a nulidade da CDA também é um tema bastante discutido no Poder Judiciário, o que ressalta ainda mais a importância de se fomentar novos enfoques sobre a controvertida temática. Assim, este artigo traz à baila a atual tendência jurisprudencial, acompanhada dos fundamentos jurídicos que a embasam, buscando tecer considerações críticas a respeito.
1 – AÇÃO DE EXECUÇÃO
No sistema brasileiro processual, considerando-se a força do efeito que o demandante procura produzir, vislumbra-se cinco classes autônomas de ações, quais sejam, a declarativa, condenatória, constitutiva, mandamental e executiva. É certo que este posicionamento não é unânime na doutrina, mas é o adotado por este trabalho, diante da sua utilidade prática e por ser o entendimento mais aceito.
Nas ações com eficácia declaratória, objetiva o demandante extirpar incerteza, por meio de autoridade da coisa julgada, sobre a existência ou não de relação jurídica, a autenticidade ou a falsidade de documento, conforme o art. 4º do Código de Processo Civil. Já as constitutivas implicam mudança da relação jurídica, criando, modificando ou extinguindo-a. Há eficácia inovadora. Nas condenatórias, há, na verdade, duas declarações: uma declara o direito posto em causa, e a outra, impõe uma sanção ao demandado. Nas mandamentais, há coercitividade contra o demandado, além da ocorrência ulterior ao provimento neste processo de ato executivo.
Por fim, há ações em que o provimento judicial é dotado de eficácia executiva, em que se situa a ação de execução, objeto do presente estudo. Nestas, há efetiva retirada do valor do patrimônio do executado para por no do exequente. Explica a sua peculiaridade Araken de Assis:
“Tem o ato executivo de peculiar, distinguindo-o, destarte, dos demais atos do processo e dos que do juiz se originam, a virtualidade de provocar alterações no mundo natural. Objetiva a execução, através de atos deste jaez, adequar o mundo físico ao projeto sentencial, empregando a força do Estado (art. 579 do CPC). Essas modificações fáticas requerem, por sua vez, a invasão da esfera jurídica do executado, e não só do seu círculo patrimonial, porque, no direito pátrio, os meios de coerção se ostentam admissíveis. A medida do ato executivo é seu conteúdo coercitivo”[1].
Ensina com propriedade o atual Ministro de STF, Teori Zavascki, que há três momentos da atuação ou incidência das normas, em se tratando de execução forçada.
“O fenômeno da atuação das normas no plano social comporta três momentos bem distintos: primeiro, o da formulação abstrata dos preceitos normativos; segundo, o da definição da norma para o caso concreto; e terceiro, o da execução da norma individualizada. A formulação abstrata dos preceitos normativos, ou seja, a criação das normas (momento 1) é atividade pública monopolizada pelo Estado-legislador. Já a definição da norma concreta, é dizer, a identificação da norma individualizada que se formou, concretamente, pela incidência da norma abstrata (momento 2), bem como a sua execução, ou seja, a sua transformação efetiva em fatos ou comportamentos (momento 3), são atividades que não demandam, necessariamente, o concurso ou a intervenção estatal.”[2]
Assim, define a execução forçada como a “efetivação de norma jurídica concreta cuja existência e conteúdo se exterioriza mediante forma prevista em lei. O título executivo é, portanto, sob o aspecto substancial, uma norma jurídica individualizada que a representam”[3].
1.1. Princípios informadores.
Neste contexto, imperioso recordar sobre os princípios que informam o processo de execução, pois apenas dessa maneira é possível corretamente interpretar qualquer disposição legal acerca desta ação. Como princípios que informam o processo de execução, podemos citar os seguintes: efetividade, tipicidade, boa-fé processual, responsabilidade patrimonial, primazia da tutela específica, contraditório, menor onerosidade da execução, cooperação, proporcionalidade e adequação.
O princípio da efetividade, extraído do devido processo legal, determina que os direitos devem ser, além de reconhecidos, efetivos, garantindo o direito fundamental à tutela executiva, com meios executivos capazes de proporcionar pronta e integral satisfação a qualquer direito. O da tipicidade estabelece que terá tutela executiva apenas quando houver previsão legal, o que se mostra insuficiente no mundo em que vivemos. Assim, foi cedendo lugar ao princípio da concentração dos poderes de execução do juiz, permitindo ao juiz se valer de meios executivos mais adequados ao caso concreto.
O princípio da boa-fé processual refuta atos desleais, abusivos e fraudulentos, nos termos do art. 14, II, CPC; e o da responsabilidade patrimonial determina que apenas o patrimônio do devedor ou de terceiro responsável pode ser objeto da atividade executiva do Estado.
Pelo princípio da primazia da tutela específica ou da maior coincidência possível ou do resultado, extrai-se o dever de propiciar ao credor a satisfação da obrigação como se o devedor tivesse cumprido espontaneamente, devendo as regras processuais se adequar para atingir este resultado. O princípio do contraditório determina a efetiva e adequada participação dos sujeitos interessados ao longo do processo.
O princípio da menor onerosidade da execução está estampado no art. 620, CPC, em que há vedação de execução desnecessariamente onerosa ao executado, ou melhor, a execução abusiva. O princípio da cooperação reforça a ética processual e o princípio da proporcionalidade resolve os conflitos entre diversos princípios, principalmente entre o da efetividade e o da dignidade da pessoa humana, sobretudo atinente aos poderes do juiz.
Por fim, o princípio da adequação estabelece que os atos executivos devem ser adequados ao direito tutelado. Assim, por exemplo, em se tratando de execução de prestação alimentícia, há previsão de prisão civil como meio de coerção, diante da essencialidade desta verba.
1.2. Título executivo e Certidão de Dívida Ativa
Entende Liebman que título executivo é o ato pelo qual há a constituição da vontade sancionatória do Estado. Esta posição é criticável, pois os títulos executivos extrajudiciais, para a sua constituição, não houve a participação do Estado, não se cogitando de sua “vontade sancionatória”. Por outro lado, Carnelutti considerava como prova legal do crédito, o que também merece crítica, por subestimar os seus aspectos substanciais, assim, ele mesmo reviu este posicionamento em seus últimos escritos. Com efeito, prova tem por objetivo verificar a existência histórica de um fato, e não da sua eficácia jurídica, da existência de relação jurídica, o que representa, na verdade, o título executivo.
Assim, ponderou bem Chiovenda os elementos formais e substanciais do título executivo, em que o aspecto substancial é verificado como ato jurídico de que resulta a vontade concreta da lei, e o formal, como documento em que o ato se contém. Este é o entendimento hoje predominante, não só no sistema jurídico brasileiro, mas também no direito comparado.
Analisando mais profundamente o tema, Teori Zavascki concluiu que, na verdade, o conteúdo do título executivo é mais do que um ato jurídico, pois trata-se de uma norma jurídica concreta e individualizada. Substancializa, logo, a relação jurídica e permite a tutela executiva:
“Ao sustentarmos que o conteúdo do título executivo é uma norma jurídica concreta, individualizada, estamos afirmando que ele não só (a) espelha a relação jurídica exsurgente da incidência da norma abstrata sobre o suporte fático, mas, mais que isso, que ele (b) é portador de uma eficácia típica: a de autorizar a outorga de tutela jurisdicional executiva. Essa eficácia não decorre de ato de vontade nem de sentença. Decorre, sim, da própria norma jurídica, da qual é parte essencial.”[4]
O aspecto formal dos títulos é desenhado pelo próprio sistema, não sendo uniforme para todos os títulos. Há particularidades específicas para cada uma de suas espécies, como pode ser verificado, por exemplo, nos arts. 584 e 585, CPC.
Neste contexto se insere a certidão de dívida ativa, pois trata-se de um título executivo extrajudicial, que permite o ajuizamento de execução fiscal. Há requisitos gerais e próprios, como será adiante tratado.
2 – CERTIDÃO DE DÍVIDA ATIVA
A emissão de uma Certidão de Dívida Ativa – CDA pressupõe a existência de uma relação jurídica tributária, em que o sujeito passivo não efetuou o recolhimento do tributo devido no seu vencimento, o que autoriza a inscrição em Dívida Ativa e, em seguida, a emissão da CDA para possibilitar a execução judicial. Assim, cabem algumas considerações acerca da relação jurídica tributária e inscrição em Dívida Ativa, antes de adentrar propriamente o estudo da CDA.
2.1. Fato Gerador
A relação jurídica tributária apenas pode ser constituída com a ocorrência do fato gerador, realizado no plano concreto. Para Amílcar de Araújo Falcão, pioneiro no estudo da matéria no direito brasileiro, fato gerador seria definido como “o fato a que o legislador vincula o nascimento da obrigação jurídica de pagar um tributo determinado”[5].
A utilização da expressão fato gerador, todavia, é fonte de acerbadas críticas doutrinárias. Alfredo Augusto Becker chegou a afirmar: “Esta última expressão é a mais utilizada pela doutrina brasileira de Direito Tributário e, de todas elas, a mais infeliz porque o ‘fato gerador’ não gera coisa alguma além de confusão intelectual”[6]. E a razão é simples: ora a expressão é utilizada no sentido de hipótese de incidência, ora no de acontecimento no mundo dos fatos que dá azo ao nascimento da obrigação tributária.
Com relação à expressão fato imponível, também há críticas, pois, considerando-se que não há fato antes da incidência, o termo imponível é inadequado face à já ocorrência da tributação. Outra consideração é que essa expressão liga-se à imposição, compreendendo apenas impostos.
O próprio CTN é fonte de confusão, utilizando, por exemplo, nos seus artigos 4º, 16, 105, 113, §1º, 114, e 144, a expressão fato gerador ora num, ora noutro sentido. Enquanto os arts. 4º, 16 e 114, tratam como fato gerador a situação abstratamente prevista em lei, os arts. 105, 113, §1º e 144, sugerem situações concretas das quais surge a obrigação tributária.
Após a demonstração de críticas existentes no tocante à expressão “fato gerador”, Luciano Amaro[7] não entrevê qualquer repugnância o seu uso para designar o fato que gera a obrigação tributária em concreto, é exatamente ele quem confere a existência da obrigação. Apesar deste conceito se encaixar melhor no fato concreto, o Autor não vê sério problema no seu emprego ambivalente, pois o termo “crime”, por exemplo, também é usado ora como previsão abstrata legal ora como a sua verificação no mundo fático, o que não prejudicou a evolução do Direito Penal.
2.2. Momento da instauração da relação jurídica tributária
A verificação do momento de instauração da relação jurídica tributária é também objeto de controvérsia doutrinária. Tradicionalmente, com base na teoria da incidência automática e infalível das normas jurídicas de Pontes de Miranda, afirmava-se que essa relação era constituída no momento em que ocorria o fato descrito na lei como tributário no mundo factual, pois é neste instante em que há a incidência automática e infalível da norma jurídica. Todavia, a constituição do crédito, que seria a formalização da obrigação tributária já existente, só se observaria com o lançamento (de ofício ou por declaração) ou com o “lançamento por homologação”, que, na verdade, não se trata de lançamento por ser um ato praticado pelo sujeito passivo.
José Wilson Ferreira Sobrinho, Brandão Machado, Paulo de Barros Carvalho e Marcos Bernardes de Mello, dentre outros, criticam a teoria da incidência infalível e automática das normas jurídicas, sustentando que a incidência da norma só se dará com a participação do homem, todavia, não se convergem sobre o tipo de participação.
Paulo de Barros[8], citando Tércio Sampaio Ferraz que diferenciou os fatos dos eventos, sendo estes as situações existenciais e aqueles um elemento linguístico capaz de organizar os eventos como realidade, explica que as proposições dos fatos devem assumir enunciado verdadeiro, aquele que expressa o uso de linguagem competente.
Os enunciados factuais podem ser por meio de linguagem descritiva (valor lógico: verdadeiro ou falso); prescritiva (válido ou inválido); e performativo (eficaz ou ineficaz). Esses enunciados devem ser determinativos, pois reclamam a identificação da ocorrência do evento num intervalo de tempo e num ponto do espaço, sem excluir a possibilidade de constituição de conjuntos que recebem, um a um, as ocorrências factuais que venham a suceder (tabular: enumera os indivíduos que o compõem; forma-de-construção: indica nota(s) que o indivíduo precisa ter para pertencer à classe ou ao conjunto).
No direito positivo, o fato (articulação de linguagem organizada) corresponde ao antecedente das normas individuais e concretas, isto é, enunciados denotativos. Já as normas jurídicas gerais e abstratas têm feição predominantemente de enunciados conotativos ou classes, pois são formados com predicados que os enunciados factuais devem conter. Em outros termos, os enunciados conotativos precisam de enunciados denotativos das normas individuais para atingirem a concretude da experiência social.
Para este Autor, eventos se tornam fatos sociais, no momento em que há relevância social, que, por sua vez, se tornam fatos jurídicos, na hipótese em que há linguagem competente juridicizando-o. Aduz ainda que
“(…) Se o direito pretende governar as condutas intersubjetivas, impulsionando-as em direção a certos valores, há de empregar a linguagem numa função suficientemente forte para atingir seus objetivos, que não serão simplesmente descritivos de eventos e de condutas sociais. Suas proposições prescritivas (Ldp) vertem-se sobre a realidade social (Lrs) para construir o plano da facticidade jurídica (Lfj) (…)”[9]
Em suma, tradicionalmente, entendia-se que a obrigação tributária ou relação jurídica tributária nascia no momento da verificação do fato descrito em lei no mundo factual, tendo em vista a incidência automática e infalível da norma jurídica, sendo que o crédito tributário apenas surgiria com o ato que reconheça o seu acontecimento e o delimita. Já modernamente, há entendimentos no sentido de que a obrigação e o crédito tributário nascem no mesmo momento: instante em que houver a edição do ato que reconheça o acontecimento na vida concreta, isto é, quando houver a vertência deste acontecimento em linguagem competente, instaurando-se a relação jurídica tributária.
Verifica-se, no entanto, que estes entendimentos só se divergem apenas em conferir nomes às mesmas coisas, pois crédito tributário é obrigação tributária formalizada para os tradicionais e, para os modernos, trata-se de uma das facetas de obrigação (crédito e débito/obrigação), e não há qualquer relevância prática nesta divergência, visto que eles se convergem no tocante à aplicação do mesmo regime jurídico.
Ainda, de qualquer modo, independentemente da teoria adotada, não tem como negar a indispensabilidade de ato de constituição do crédito tributário para fins de cobrança do tributo devido, tendo em vista ser essa a exigência inafastável pelo sistema jurídico tributário brasileiro vigente. Isso porque o efeito do lançamento, ou melhor, do ato de constituição de crédito tributário, é conferir a exigibilidade à obrigação tributária, como bem explica Luciano Amaro[10], razão pela qual o presente trabalho se concentrará no regime jurídico do lançamento e não na sua natureza jurídica.
2.3. Fases para a cobrança do tributo
Analisando o vigente sistema jurídico tributário, verifica-se que há etapas ou fatos que deverão ocorrer para que a Administração possa cobrar judicialmente o seu crédito tributário. A primeira etapa é verificar a competência constitucional tributária para instituir o tributo, seguido pela sua instituição por lei (norma geral e abstrata – regra matriz de incidência tributária). Em seguida, é necessária a ocorrência do fato descrito em lei tributária no mundo fático (evento tributário), pois, só assim, possibilitará a subsunção do fato à norma.
Após a essa verificação, há necessidade de sua formalização por meio de constituição do crédito tributário, para os adeptos ao entendimento tradicional ou a vertência em linguagem competente deste fato (norma individual e concreta), juridicizando-o, para os modernos. Uma vez constituído o crédito tributário, terá o sujeito passivo um prazo para recolhê-lo. Caso haja pagamento integral, terá extinção do crédito, conforme o art. 156, I, Código Tributário Nacional.
Contudo, na hipótese em que não houver pagamento ou pagamento apenas parcial, nascerá o dever-poder à Fazenda de executar o crédito judicialmente, o que é possível apenas com um título executivo. Dessa maneira, há de emitir previamente a Certidão de Dívida Ativa, que é um título executivo extrajudicial, conforme o art. 585, VII, Código de Processo Civil, o que só é possível se houver, antes, a sua inscrição em Dívida Ativa.
O ato de inscrição em Dívida Ativa é um ato administrativo, cuja consequência é a declaração de que o crédito público está ativo, vencido e não pago, acarretando a inscrição no cadastro de informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais (Cadin), regulado pela Lei 10.522/2002, no âmbito federal. Ainda, possibilita a emissão de CDA para viabilizar o ajuizamento de execução fiscal.
Por conseguinte, pode-se afirmar que, para a satisfação do crédito tributário judicialmente, é necessária a ocorrência de seguintes fatos nessa ordem cronológica: 1º) verificação da competência constitucional tributária; 2º) instituição do tributo por meio de lei; 3º) observância no mundo factual do fato descrito em lei como tributário; 4º) “constituição do crédito tributário”; 5º) não pagamento, integral ou parcial, do tributo no vencimento; 6º) inscrição em Dívida Ativa; 7º) emissão de Certidão de Dívida Ativa; e, por fim, 8º) ajuizamento da ação de execução fiscal.
3 – ATO ADMINISTRATIVO E CERTIDÃO DE DÍVIDA ATIVA
Para iniciar o estudo da CDA, é imprescindível verificar a sua natureza, para, depois, identificar o seu regime jurídico, pois é ele quem determina as regras e os princípios regentes.
A doutrina é uníssona no sentido de que se trata de ato administrativo, visto que há todos os elementos e pressupostos próprios desta espécie de ato.
Ato administrativo, de acordo com Hely Lopes Meirelles, é a “toda manifestação unilateral de vontade da Administração que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria”[11]. Conceitua-o Celso Antonio Bandeira de Mello como “declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional”[12].
A CDA é uma declaração do Estado acerca da existência de seu direito creditório em desfavor de um determinado administrado, face à ocorrência do fato gerador da obrigação tributária ou do ilícito que resulte na aplicação da penalidade pecuniária, assim como de outras obrigações de cunho pecuniário, estando sujeita a controle de legitimidade pelo Poder Judiciário, sem prejuízo do exercício da prerrogativa de autotutela pela própria Administração. Assim, não resta dúvida de que a CDA é, de fato, um ato administrativo, sendo regida pelo regime jurídico administrativo.
Regime jurídico administrativo, de acordo com a professora Lúcia Valle Figueiredo, é o “conjunto de regras e princípios a que se deve subsumir a atividade administrativa no atingimento de seus fins”[13]. Prossegue, afirmando que esse regime, na verdade, “corresponde a regras próprias que, por força da diferença das situações tuteladas, hão de ter aspectos inteiramente diversos do Direito Privado”[14].
Elenca, dessa maneira, cinco princípios que o regem, quais sejam, a legalidade, a supremacia do interesse público, a indisponibilidade do interesse público, a exigibilidade dos atos administrativos e o controle administrativo. Por conseguinte, a observância desse regime é inafastável quando se tratar de ato administrativo, inclusive de CDA.
4 – REQUISITOS DO ATO ADMINISTRATIVO
A CDA, como ato administrativo, deve conter todos os requisitos dessa espécie de ato jurídico, bem como aqueles especificamente previstos no Código Tributário Nacional – CTN e na Lei de Execuções Fiscais – LEF.
A doutrina é divergente no tocante à identificação e ao número de requisitos do ato administrativo. Contudo, considerando-se que a classificação de Celso Antônio Bandeira de Mello é a mais completa e lógica, o presente estudo foi nela baseado.
Apenas a título de ilustração de que esta não é a única classificação que a doutrina adota, Eurico Marcos Diniz de Santi[15], por exemplo, considera como elementos os componentes interno da estrutura do ato-norma administrativo (produto) e pressupostos, os externos, os compositivos do fato jurídico que cuidou de sua produção (processo). Assim, considerando a estrutura do ato administrativo D[F à Rp(Sa, Sp)], os elementos do ato-norma administrativo são: a) “F” (motivação, descrição do motivo); b) “Sa” (sujeito ativo); c)“Sp” (sujeito passivo); d) “p” (conduta prescrita, modalizada pelo relacional “R”); e e) “R” (variável relacional, que pode ser obrigatório, permitido e proibido, ainda, modaliza a descrição da conduta humana e estipula uma relação jurídica intranormativa entre os sujeitos Sa e Sp). “D” e “à” não integram, pois são sincategoremas. Já os pressupostos são: a) agente público competente; b) procedimento previsto normativamente; c) motivo do ato; e d) publicidade.
Aduz, que a causa, uma relação lógica entre o interior do ato-norma administrativa (motivo, conteúdo e finalidade), integra a estrutura do ato administrativo, sendo o conectivo “à” uma constante lógica e não uma variável. Ou seja, o vício na causa significa defeito na motivação (hipótese) ou na relação jurídica intranormativa (consequente), isto é, dos elementos que se inter-relacionam por meio da causa. Por outro lado, a finalidade, que é nexo lógico internormativo (entre o conteúdo legal e o conteúdo do ato-norma), também não é elemento do ato-norma, pois só pode ser aferida após a sua produção.
Em que pese o inegável raciocínio lúcido do mestre Eurico, por serem os ensinamentos do jurista Celso Antônio mais práticos, úteis e mais aceitos, o presente trabalho os seguirá.
De acordo com o renomado administrativista, um ato administrativo tem dois elementos, dois pressupostos de existência e seis pressupostos de validade. A falta de elemento gera a inexistência do próprio ato; a de pressuposto de existência, de ato jurídico, no caso, o administrativo; e, por fim, a de pressuposto de validade, de ato administrativo válido.
4.1. Elementos, pressupostos de existência e de validade do ato administrativo e CDA
São elementos o conteúdo e a forma, pois são realidades intrínsecas do ato. O primeiro é o que o ato dispõe; o segundo, o revestimento exterior do ato. Assim, na CDA, o conteúdo é a certificação da existência de crédito público e a forma, a princípio, o suporte material, físico, no qual se realiza o ato.
Os pressupostos de existência se bifurcam em objeto e pertinência à função administrativa. Objeto é aquilo sobre que o ato dispõe, sem o qual inexistirá ato jurídico; já o segundo é requisito para se qualificar o ato como administrativo, não podendo ele se desvencilhar da função administrativa. De acordo com o Ricardo Marcondes Martins, função administrativa consiste “na edição de normas jurídicas para concretização dos princípios constitucionais, sempre com vistas ao interesse público”[16]. Destarte, pode-se concluir que a CDA tem por objeto o crédito, o valor, e tem pertinência com a função administrativa, pois esse crédito tem o caráter público, sendo de titularidade do Estado.
Já os pressupostos de validade são: sujeito, motivo, requisitos procedimentais, finalidade, causa e formalização. O primeiro, o subjetivo, é o autor do ato. Na CDA, está intimamente ligado à competência tributária e administrativa. Dessa maneira, inexistindo delegação de competência ou de atribuição legal e/ou constitucional, será inválida a CDA, por exemplo, se o objeto for um crédito federal, mas expedida pela Procuradoria do Estado; ou se estiver baseada no auto de infração lavrado pela autoridade da Receita Federal do Brasil, aplicando a multa por infração prevista na Consolidação de Leis Trabalhistas.
O motivo é o pressuposto de fato, situação objetiva, real e empírica que justifica a sua prática. Ele pode ter previsão legal explícita ou implícita, dependendo a validade do ato da sua existência e veracidade, e, consequentemente, há incidência da teoria dos motivos determinantes. Segundo esta teoria, os fatos que embasaram a prática do ato integram a sua validade. Na CDA, o motivo sempre terá previsão expressa em lei, em homenagem ao princípio da legalidade, e se manifestará com a realização, ou seja, a prática pelo administrado do fato gerador do crédito do Estado.
Os requisitos procedimentais são atos jurídicos que devem preceder o ato que pretende praticar pela imposição legal, sem os quais ele não poderá ser praticado. Na CDA, há uma série de atos precedentes, como, por exemplo, o lançamento e a inscrição em dívida ativa, devendo-se lavrar o respectivo Termo de Inscrição da Dívida Ativa.
O pressuposto teleológico, ou seja, a finalidade, é o objetivo previsto em lei para determinado ato. Por conseguinte, para a CDA, a lei conferiu a finalidade de viabilizar a cobrança do crédito público por meio de ação de execução fiscal, conferindo-lhe o condão de título executivo extrajudicial (art. 585, VII, Código de Processo Civil). Portanto, não se presta a expedição de CDA para demonstrar ao administrado sua situação de irregularidade fiscal, por exemplo. Para isto, o ato administrativo adequado é a certidão positiva de débitos.
A causa, por outro lado, é a pertinência existente entre o motivo e o conteúdo do ato, levando-se em conta a sua finalidade. Em outros termos, não pode o administrador emitir um ato baseado em motivo que não mantenha congruência com o ato praticado. Esse pressuposto lógico é relevante para os atos em relação aos quais a lei confere liberdade ao administrador para escolher os motivos, o que não é o caso da CDA. Como cediço, a expedição da CDA pressupõe a situação fática predefinida em lei, ou seja, a hipótese de incidência legal, inexistindo lugar para essa discricionariedade do administrador.
Finalmente, a formalização é o modo específico e próprio pelo qual o ato deve ser externado. A formalização da CDA é escrita, pois se trata de um título executivo, que é conceituado pelo mestre Cândido Rangel Dinamarco como “um ato ou fato jurídico indicado em lei como portador do efeito de tornar adequada a tutela executiva em relação ao preciso direito a que se refere”[17]. Explica ainda que o “documento é a representação gravada dos atos jurídicos, às vezes seu próprio instrumento, sem o qual o ato não existe juridicamente ou é ineficaz”[18]. Logo, todos os títulos executivos, inclusive as CDAs, devem ser escritos e representados por meio de documentos, que podem ser papel ou meio eletrônico (forma: elemento do ato).
4.2. Requisitos específicos da CDA
Feitas essas considerações, passa a análise dos requisitos próprios da CDA. O art. 202[19] do Código Tributário Nacional e o art. 2º, §§5º e 6º[20], Lei de Execuções Fiscais preveem um conteúdo mínimo, ou seja, requisitos que a CDA deve conter.
Sustenta Hugo de Brito Machado que o ato de inscrição do crédito em Dívida Ativa é um ato constitutivo de título executivo, sendo ato formal por excelência e, dessa forma, deve preencher todos os requisitos do art. 202, CTN. Prossegue afirmando que:
“o não-atendimento de qualquer dos requisitos legais do termo de inscrição do crédito em dívida ativa da Fazenda Pública, estabelecidos expressa e taxativamente pelo art. 202 do Código Tributário Nacional, provoca a nulidade por vício formal, tanto da inscrição como da execução correspondente. A nulidade da inscrição vicia o título executivo extrajudicial consubstanciado na correspondente certidão, e daí decorre a nulidade do processo de execução no mesmo fundado”[21].
Em que pese o respeitável ensinamento do notável jurista, entende-se que a inscrição do crédito em Dívida Ativa não constitui um título executivo, pois trata-se de um ato administrativo pressuposto, ou seja, precedente para a constituição do título executivo, que é a expedição da CDA. Destarte, apenas com a inscrição em Dívida Ativa não é possível manejar uma execução fiscal, exatamente pela inexistência de título executivo. Cabe recordar das fases de cobrança do crédito público já esclarecidas neste trabalho.
Ainda, salienta-se que os referidos dispositivos legais não devem ser lidos com tanto rigor, pois há de priorizar a substância em detrimento da forma, em homenagem ao princípio da instrumentalidade das formas. Se qualquer um dos elementos indicados não é expresso na CDA, mas há meios de identificá-los, não causando qualquer prejuízo à defesa, não há de se cogitar de nulidade. Dessa forma, se na CDA não consta o exato valor consolidado, porém há informação acerca da base de cálculo, da alíquota, assim como dos índices de correção monetária, juros, multas e dos encargos legais, não há que se invocar a existência de vício com base no art. 202, II, CTN. Com efeito, uma simples operação aritmética resolveria o problema.
Ademais, como pode se inferir da leitura desses dispositivos, tais requisitos não se distanciam daqueles próprios do ato administrativo, exceto a exigência de indicação de data e número da inscrição, do número do processo administrativo ou do auto de infração, bem como do livro e da folha deste na qual foi feita a inscrição. As exigências são razoáveis e devidas, pois podem influir na defesa do executado, visto que são dados que se referem ao procedimento administrativo instaurado com a finalidade de apurar e cobrar o crédito público. Assim, em razão do princípio da ampla defesa, na CDA, devem constar também essas informações.
Cabe ressaltar, no entanto, que na interpretação dessas exigências também se deve priorizar a substância sobre a forma. Logo, na hipótese em que há dados suficientes para a identificação do procedimento administrativo, não há que se cogitar de nulidade da CDA se faltar qualquer um desses elementos.
5 – EXISTÊNCIA E INVALIDADE DO ATO
Antes de adentrarmos com mais detalhamentos as hipóteses de vícios da CDA, merece esclarecer acerca do entendimento divergente doutrinário acerca dos planos de existência e de validade. Trata-se de um ponto interessante para o estudo da teoria geral do direito, todavia, adianta-se, que, para o estudo proposto pelo presente trabalho, não terá uma influência direta, pois há convergência no tocante à identificação de regime jurídico aplicável e os efeitos práticos.
5.1. Planos de existência e de validade
Tradicionalmente, a doutrina separava o plano de existência do da validade. Leciona Pontes de Miranda, baseando-se na teoria da incidência automática e infalível das normas, que para um fato empírico se tornar jurídico é indispensável que todo suporte fático necessário exista. Logo, sendo suficiente o suporte fático, existirá fato jurídico, o que não induz à sua validade. Para que este seja válido, o suporte fático não pode ser deficiente, devendo estar presentes todos os seus elementos complementares.
Ricardo Marcondes Martins interpreta a teoria ponteana no sentido de que a norma “será inexistente se os elementos nucleares do suporte fático da norma de produção jurídica não estiverem presentes; será inválida na falta dos elementos complementares; e será ineficaz se ausentes os elementos integrativos.”[22].
Modernamente, cada vez mais surgem juristas defensores da confusão destes planos. Cita-se Paulo de Barros Carvalho[23], como militante desta nova ideia. Embasa o seu entendimento na alegação de que há dois planos do dever-ser: o do observador e o do participante. O primeiro apenas consegue expressar acerca da existência ou não de uma norma jurídica que pode ser apreciada pela jurisdição, sendo juízo emitido pelos juristas, estudiosos do Direito. Esse plano não influi em nada na definição do sistema jurídico. Já o participante, v.g., órgão jurisdicional, tem competência de verificar a validade ou não do ato, isto é, se ele está ou não em conformidade com o sistema jurídico. Assim, para o sistema jurídico, a norma só existirá se for válida. Nesse sentido, todos os vícios afetam a sua existência e concomitantemente a sua validade.
Para Eurico Marcos Diniz de Santi[24], norma jurídica válida é aquela introduzida pelo ato de agente competente, posto em conformidade com o procedimento previsto para o veículo introdutor pelo sistema, ou seja, a relação de pertinencialidade destes dois elementos. Explica que Pontes de Miranda prefere o conceito de existência para defeitos no suporte fático do ato de produção, e Kelsen adota o de validade para estes casos.
O Autor, com base na teoria kelseneana, define que “Validade, por consequência, é a qualidade outorgada à norma em decorrência do fato, é qualidade concedida ao produto (norma) em decorrência do processo (fato jurídico)”. Esclarece o que Pontes de Miranda diferenciou
“suficiência e eficiência do suporte fáctico: a primeira, implica a ‘existência’ [validade para nós] do ato jurídico, considerando que se deram as específicas manifestações de vontade; da segunda, enleia-se a validade do ato jurídico [regularidade], significando que foram satisfeitos todos os pressupostos legais”[25].
Analisando o conceito de validade, o Autor se utiliza de conceitos de fato jurídico “suficiente e eficiente”, sendo que a validade ou invalidade é aferida da suficiência ou insuficiência do fato jurídico; e da eficiência ou ineficiência deste fato jurídico, abre a possibilidade de invalidar ou não a norma jurídica. Explica que: (i) a insuficiência do fato jurídico impede o surgimento de norma jurídica; (ii) da suficiência do fato jurídico decorre norma jurídica; (iii) a suficiência e eficiência do fato jurídico constituem norma jurídica válida impassível de invalidação (nulidade e anulação); (iv) a suficiência e deficiência do fato jurídico constituem o fato jurídico fonte de norma jurídica válida, mas que, em decorrência da deficiência do facto, fica passível de invalidação (nulidade e anulação)[26].
Ou seja, uma norma jurídica é válida, atributo este conferido pelo fato jurídico suficiente que a engendrou. Será inválida se o próprio sistema, mediante outra norma válida, cancele a sua validade, por conveniência (revogação) ou defeito (nulidade – efeito ex tunc – e anulação – efeito ex nunc)[27].
Da análise dos estudos, tradicional e moderno, verifica-se que, como ocorre com a expressão “constituição do crédito”, pelo menos para o desenvolvimento do presente trabalho, a divergência deve vista mais como acadêmica do que empírica. Não se está aqui a desmerecer o magnífico trabalho dos doutrinadores, mas, considerando-se que estes estudiosos se convergem no fato de identificação do regime jurídico, é irrelevante, reitera-se, para o presente estudo, o aprofundamento do tema.
Com efeito, o regime jurídico é o mesmo, porque, independentemente da teoria adotada, a extirpação da norma jurídica do sistema será possível apenas com a edição de uma outra norma jurídica válida ou pela declaração de sua invalidade pelo órgão competente; norma jurídica emitida por órgão competente, obedecido o procedimento legislativo, é dotada de presunção de constitucionalidade; é possível a modulação dos efeitos pelo STF na declaração de inconstitucionalidade da norma; etc.
Dessa forma, o presente trabalho, apenas para evitar a confusão intelectual, se valerá das nomenclaturas tradicionais, delimitando o regime jurídico aplicável.
5.2. CDA inexistente ou inválida
Tendo em mente os ensinamentos de Pontes de Miranda, pode-se dizer que os elementos e os pressupostos de existência são suportes fáticos de sua produção, sendo que a sua ausência acarreta a inexistência do próprio ato, se faltarem tais elementos. Se faltar o objeto, não estará presente a juridicidade. Se inexistir pertinência com a função administrativa, faltar-lhe-á o caráter administrativo. Em suma, faltando um desses elementos ou pressupostos, o ato inexistirá juridicamente, ou não terá mais caráter administrativo.
Ato inválido é aquele deficiente, praticado em desconformidade com o Direito. No caso, há violação dos pressupostos de validade do ato administrativo, impondo-se à Administração o dever de corrigi-lo, por meio de prática de outros atos, tais como a invalidação, convalidação, conversão, etc.
Para melhor ilustração, imagine-se uma “CDA” que não certifica nada ou o caso de a autoridade fiscal certificar apenas verbalmente a existência de direito creditório da Fazenda. Estes atos não constituem CDA, pela falta de seus elementos intrínsecos. Por outro lado, na hipótese em que a “CDA” certifica que a Fazenda é credora, não de um valor pecuniário, mas de uma prestação de fazer do administrado, ou que na verdade o crédito certificado pertence à pessoa do administrador e não ao Estado, eles tampouco constituem CDAs, por violação aos seus pressupostos de existência.
Por outro lado, se uma CDA for expedida pela suposta ocorrência de fato gerador de um tributo, mas não há qualquer relação jurídico-tributária, ou não houve a constituição formal do crédito, ou, ainda, inexistiu ato de inscrição em dívida ativa, todos esses vícios a invalidam. Isto é, a CDA existe, mas é inválida.
Recorda-se, todavia, que tanto na hipótese da “inexistência” quanto na da “invalidade” da CDA, terá de ter uma nova norma que a extirpe do sistema, ou por meio de edição de uma nova lei ou decisão judicial neste sentido. Ou seja, terá a identidade do regime jurídico, não se vislumbrando a necessidade de aprofundar no tema para o desenvolvimento do estudo aqui proposto.
Em suma, a violação de qualquer um dos requisitos e pressupostos do ato administrativo e da CDA, especificamente, deixa a CDA no estado de precariedade, diante da possibilidade de edição de uma nova norma (lei ou decisão judicial) que a extirpe do sistema jurídico.
6 – SUBSTITUIÇÃO DA CDA À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA
O legislador, diante do regime jurídico administrativo que rege a CDA, bem como dos princípios processuais, notadamente o da economia processual e o da efetividade, entendeu por bem possibilitar a substituição da CDA no curso do processo judicial de execução fiscal[28].
Há doutrinadores, como Hugo de Brito Machado, que entendem que essa possibilidade se limita aos casos em que se mantenha a integridade do processo administrativo, sendo suscetíveis de “correção” apenas os vícios formais. Todavia, este entendimento não encontra respaldo no nosso sistema jurídico, pois a lei não fez qualquer distinção de vícios, não cabendo ao intérprete fazê-lo e, ainda, essa previsão não viola quaisquer princípios constitucionais administrativos, tributários ou processuais.
Trata-se de um direito subjetivo da Fazenda Pública, devendo o magistrado conceder essa oportunidade antes de extinguir a execução fiscal sem resolução do mérito, sob pena de nulidade da sentença[29].
A expressão “até a decisão de primeira instância” contida nos referidos dispositivos legais é entendida como até a prolação da sentença dos embargos à execução[30]. A possibilidade de emendar e de substituir a CDA está diretamente relacionada à possibilidade de discutir na primeira instância acerca da subsistência ou não da presunção juris tantum de liquidez e certeza da CDA. Assim, considerando-se o objetivo da ação de execução fiscal e dos embargos à execução, não resta qualquer dúvida de que a melhor interpretação dos referidos dispositivos é no sentido de permitir a substituição ou a emenda da CDA até a sentença dos embargos à execução.
Por outro lado, cabe registrar que a jurisprudência apenas reconhece a nulidade nos casos em que a substância do ato for prejudicada, invocando o princípio da instrumentalidade das formas. Ainda, conjuga-o com o estampado no brocardo pas de nullité sans grief, que significa que não há nulidade sem prejuízo[31]. Dessa forma, a necessidade de mero cálculo aritmético para apurar o valor do crédito público não invalida a CDA[32], não afetando, ainda, a sua liquidez e a certeza a substituição do índice de correção monetária[33]. Contudo, caso necessite de cálculo mais complexo, prejudica a liquidez do crédito público, ensejando a sua nulidade, como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça na hipótese em que incidia o princípio da não-cumulatividade do ICMS[34].
No tocante à necessidade de juntada do processo administrativo, cabe esclarecer que ele não é peça indispensável à formação da CDA[35], tendo em vista a inexistência de exigência legal nesse sentido, não havendo qualquer prejuízo à defesa. Ademais, o ônus de ilidir a presunção de liquidez e certeza da CDA é do executado, cabendo a este juntar a cópia do processo administrativo se entender conveniente à sua defesa.
Deve a CDA, ainda, pormenorizar os débitos, assim como os valores excutidos[36], sob pena de dificultar a defesa do executado[37], ferindo o direito constitucional à ampla defesa no processo, consagrado no art. 5º, LV, da Constituição Federal. Com efeito, sem essas discriminações, o executado terá o seu direito de defesa prejudicado, pois podem dificultar a identificação da origem e da natureza das dívidas.
Havia discussão acerca da possibilidade de chancela eletrônica da CDA. O entendimento jurisprudencial é no sentido de que não se trata de vício, visto que não há qualquer óbice legal a essa subscrição e não retira a autenticidade do documento, além de não causar prejuízo à defesa[38]. Este entendimento está em total consonância com a evolução tecnológica, devendo o Direito acompanhar essa mudança social. Portanto, considerando-se que não causa qualquer prejuízo à autenticidade da CDA, tampouco os direitos constitucionais assegurados pelo sistema jurídico, a jurisprudência tem se exteriorizado de forma salutar. Confirmou a higidez deste posicionamento o Poder Legislativo, que editou o art. 25 da Lei 10.522/2002 permitindo expressamente este tipo de subscrição.
Neste contexto, cabe ressaltar sobre a possibilidade de alteração da fundamentação legal. A indicação errônea do fundamento legal no Termo de Inscrição da Dívida Ativa, assim como na CDA, é, sem qualquer dúvida, vício que pode causar nulidade destes atos administrativos, pois afeta o seu motivo, além de infringir os arts. 2º, § 5º, III, LEF e 202, III, CTN.
Contudo, há de se lembrar da diferença existente entre a ausência e a deficiência de fundamentação legal, sendo que esta última é a sua insuficiência, e a primeira, a sua inexistência. Com relação à ausência de fundamentação, é inequívoco o prejuízo à defesa, sendo indiscutivelmente inválida a CDA.
A deficiência pode também acarretar prejuízo, caso em que a nulidade é manifesta. Entretanto, se a insuficiência de fundamentação legal constante na CDA não causar qualquer prejuízo à defesa, não há que se cogitar de nulidade face ao princípio da instrumentalidade das formas, bem como à inteligência do brocardo pas de nullité sans grief[39].
Ainda no tocante a este assunto, cabe destacar que, levando-se em conta a atribuição privativa da autoridade administrativa de constituir crédito tributário, conforme o art. 142 do CTN, o STJ já decidiu que não cabe a substituição da CDA na hipótese em que ela estiver baseada no fundamento já declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal[40]. Entretanto, não se entrevê qualquer óbice a essa substituição, pois, com a declaração de inconstitucionalidade da lei que embasou a constituição do crédito, pode desconstituir o crédito parcial ou integralmente. Na hipótese em que há desconstituição integral do crédito, não há que se cogitar da substituição da CDA, pois não resta qualquer crédito a ser cobrado. Assim, terá extinção da execução fiscal sem resolução do mérito face à inexistência de título executivo válido.
Já na hipótese de desconstituição parcial do crédito, terá apenas a diminuição do valor devido, o que não prejudica o lançamento. Cabe lembrar que é convergente o entendimento tanto na doutrina quanto na jurisprudência no que toca à possibilidade de substituição da CDA para reduzir-se o valor excutido. O direito à ampla defesa do administrado, neste caso, também resta intacto, pois ele teve oportunidade de se defender do ato in totum. Ademais, não há violação ao art. 142, CTN, pois, mesmo neste caso, foi a autoridade administrativa quem constituiu o crédito e quem vai retificar a CDA com base na decisão do STF.
Por fim, cabe registrar que o STJ publicou, em 07/10/2009, a Súmula 392, com o seguinte enunciado: “A Fazenda Pública pode substituir a certidão de dívida ativa (CDA) até a prolação da sentença de embargos, quando se tratar de correção de erro material ou formal, vedada a modificação do sujeito passivo da execução”.
Os precedentes que justificaram a edição desta súmula basearam-se na impossibilidade de alteração do lançamento para fins de alterar o sujeito passivo, não se admitindo a substituição da CDA neste caso. De fato, a indicação errônea do sujeito passivo na CDA não pode ser retificada no curso da execução fiscal, não por ser um vício que afeta o lançamento, já que a maior parte dos vícios sanáveis tratados acima afeta a constituição do crédito, mas sim porque acarreta a alteração da parte, do sujeito do processo judicial, criando uma nova relação jurídico-processual. É cediço que o nosso sistema processual adotou o critério de três identidades ou elementos da ação (art. 301, § 2º, Código de Processo Civil), quais sejam, partes, objeto ou pedido e causa de pedir.
Assim, na hipótese do ajuizamento da execução fiscal contra um sujeito não-devedor, baseada na CDA viciada na sua origem, não poderá a Fazenda Pública substituí-la, pois isto acarretaria a alteração de um dos elementos identificadores da ação, o que não é aceito pelo nosso sistema para essa hipótese. É forçoso, dessa maneira, o novo ajuizamento, ou seja, a abertura de uma nova ação, assegurando a legitimidade das partes, principalmente, o devido processo legal.
7 – CONCLUSÕES
Em virtude das observações acima, pode-se concluir que:
a) o título executivo contém dois elementos, quais sejam, o substantivo (norma jurídica concreta e individualizada) e formal (previsto em lei, respeitando as peculiaridades de cada espécie);
b) para ter execução de crédito tributário, é necessária a ocorrência de seguintes fatos na seguinte ordem cronológica: 1º) competência constitucional tributária; 2º) instituição do tributo por lei; 3º) observância no mundo factual do fato descrito em lei como tributário, 4º) constituição do crédito tributário, 5º) não pagamento do tributo no vencimento, 6º) inscrição em Dívida Ativa, 7º) emissão de Certidão de Dívida Ativa, e, por fim, 8º) ajuizamento da ação de execução fiscal;
c) a CDA é ato administrativo, devendo observar o regime jurídico próprio deste ato;
d) os requisitos da CDA são aqueles inerentes aos atos administrativos, assim como os especificados no CTN e na LEF;
e) independentemente da teoria adotada, a violação de qualquer um dos requisitos e pressupostos (ato administrativo e específicos da CDA) deixa a CDA em estado de precariedade, pois poderá uma norma extirpá-la no sistema;
f) a interpretação dos requisitos da CDA deve ser norteada pelo princípio da instrumentalidade das formas e pelo estampado no brocardo pas de nullité sans grief, sendo válida a CDA que exija mero cálculo aritmético, não tendo a mesma sorte a CDA que requeira um cálculo mais complexo;
g) a possibilidade de substituir a CDA no curso da execução fiscal é um direito subjetivo da Fazenda e pode ser procedida até a prolação da sentença dos embargos à execução, sem limitação quantitativa;
h) o processo administrativo não é peça indispensável à formação da CDA;
i) a CDA deve pormenorizar os débitos e os valores excutidos;
j) a chancela eletrônica da CDA é admitida;
l) a ausência e a deficiência de fundamentação legal que causar prejuízo à defesa são vícios que invalidam a CDA, mas se esta deficiência não afetar este direito, a CDA será válida;
m) a CDA formalizada com base em lei declarada inconstitucional pelo STF é suscetível de ser substituída caso reste crédito a ser excutido, pois se trata de mera redução de valor; e
n) a impossibilidade de substituição da CDA na hipótese de indicação errônea de sujeito passivo da obrigação jurídica executada se funda na alteração de um dos elementos identificadores da ação, no caso, as partes, o que não é aceito pelo nosso sistema jurídico processual atual para essa hipótese.
Informações Sobre o Autor
Hye Jin Kim
Procuradora da Fazenda Nacional, Mestranda em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUCSP, Especialista em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo-USP, Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários-IBET