Interpretações jurídicas de o processo – um diálogo com Kafka

Resumo: Este artigo tem o objetivo de analisar sucintamente a obra “O Processo”, de Franz Kafka, que conta a história de Josef K. Este ao acordar certa manhã, é preso e sujeito a longo e incompreensível processo por algum crime não especificado durante a obra inteira. Houve também uma adaptação do livro para o cinema, em The Trial e para os quadrinhos. Ao trabalho serão adicionados alguns aspectos da adaptação cinematográfica. Inicialmente será feito um resumo da obra, destacando os pontos principais da narrativa, incluindo alguns trechos da mesma, para melhor exposição e didática. Ao longo do artigo serão problematizadas algumas das questões suscitadas pela obra, em especial as jurídicas, traçando paralelos, quando possível, com a atual estrutura do Poder Judiciário Brasileiro, inexistindo pesquisas empíricas, mas sempre que possível, com o aval de dados disponibilizados na rede. Por fim, afirmamos não haver pretensão de veracidade das interpretações que serão extraídas, ilustrando apenas as reflexões que surgiram ao longo da leitura, obviamente com um mínimo de senso arguto que se espera, não desmerecendo as instituições nacionais, bem como os profissionais que dela fazem parte, mas apontando para a necessidade de melhorias em todos os aspectos e desde os níveis mais iniciais.

Palavras chaves: o processo – kafka – críticas – poder judiciário

Abstract: This article aims to analyze succinctly the work "The Process", by Franz Kafka, which tells the story of Josef K. This one upon awakening one morning, is arrested and subject to long and incomprehensible proceedings for some crime not specified during the work entire. There was also an adaptation of the book for the movies, in The Trial and for the comics. To the work will be added some aspects of the film adaptation. Initially will be made a summary of the work, highlighting the main points of the narrative, including some excerpts from the same, for better exposure and didactics. Throughout the article, some of the issues raised by the work, especially legal ones, will be problematized, when possible, with the current structure of the Brazilian Judiciary Power, without empirical research, but whenever possible, with the endorsement of data made available on the network. Finally, we affirm that there is no pretense of veracity of the interpretations that will be extracted, illustrating only the reflections that have arisen throughout the reading, obviously with a minimum of keen sense that is expected, not demeaning the national institutions, as well as the professionals that make it part, but pointing to the need for improvements in all aspects and from the earliest levels.

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Key words: The process – kafka – review – judiciary power

Sumário: 1. O Processo. 2. Suscitando Questões. 3. Crítica ao Poder Judiciário. 4. Aspectos da Justiça e da Prova. 5. Mais Paralelos Com o Real. 5.1. Racionalização Desprovida de Realidade. 5.2. O Medo e a Culpa. 5.3. Visão Sobre o Estado. 6. O Que Razoavelmente Se Pretende? 7. Conclusão. 8. Referências Bibliográficas.

1. O PROCESSO

“a compreensão duma coisa e a má interpretação da mesma coisa não se excluem completamente”[1].

O livro conta a história de um funcionário de um banco, de nome Josef K., que logo no início da obra, foi processado, e ao longo da trama vai se perceber que este processo é injusto, desmotivado, ilegal e totalmente infundado.

O processo começa quando os dois guardas chantageiam o Josef, afirmando que este cometera suborno, lembrando que só há uma mera alegação e que os guardas chegam bem cedo à casa do bancário, por volta de seis e quinze da manhã.

Na empresa em que ele trabalhava era visto como um bom funcionário, desempenhando a sua função com muito esmero e além do esperado pelos empregadores.

Então ele fora levado a depor, após um longo tempo de conversação com os guardas, sempre intolerantes e incisivos, quase mesmo agressivos, ferindo a dignidade do personagem. Logo após, pensou que iria escapar ileso dessas investidas, sem dano algum, financeiro ou social, quando falasse que era inocente diante dos investigadores e que não cometeu delito nenhum.

2. SUSCITANDO QUESTÕES

Desde já é importante salientar que ninguém sabe, de fato, o real motivo da detenção, o que atualmente feriria o contraditório e a ampla defesa, vez que é impossível a pessoa se defender de algo que ela não sabe o que é, tornando-a então ineficaz.

Ora, à luz do Ordenamento Jurídico vigente a Constituição Federal, em seu artigo 5º, incisos LXI e LXIII é claríssima quanto a este tipo de conduta, vedando a prisão que não seja efetuada com base em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente e prescrevendo a necessidade do preso ser informado de todos os seus direitos[2].

Como exemplo desta falta de informações processuais ao acusado insere-se aqui uma passagem significativa da obra: “― Preso! Como é que pode ser isso? E desta maneira? ― Lá está o senhor outra vez ―, replicou o guarda, enquanto metia o pão com manteiga num potezinho de mel ― nós não respondemos a perguntas dessas. ― Mas terão de responder ― retorquiu K. ― Aqui estão os meus documentos de identificação; mostrem-me agora os vossos; o mandado de captura antes de mais nada. ― Santo Deus! Não querem lá ver que o senhor, na situação em que está, não aceita o que lhe dizemos e até parece fazê-lo de propósito só para nos irritar escusadamente, a nós, que somos quem mais o estima!”. Nem mesmo há uma ordem de prisão decretada por uma autoridade competente e na sequência deste diálogo os próprios guardas que são apenas funcionários subalternos, que pouco ou nada percebem sobre documentos de identificações e logo, de outros documentos vistos como indispensáveis ao processo – isso não lhes dizia respeito, apenas estavam cumprindo a tarefa que lhe fora designada, qual seja, vigiá-lo dez horas por dia.

Durante a trama, em todos os espaços do desenrolar da história, há uma densidade psicológica muito grande dos personagens, bem como dos cenários, alimentado ainda mais, no caso do filme, que se passa em preto e branco, dando um tom “cinzento” à narrativa, isto é, um tom fúnebre, sem alegria, de inquietação e suspense, sendo o suspense principal do filme o seu próprio núcleo, qual seja, o processo do Sr. Josef.

Ele acaba sendo “julgado” e condenado por um tribunal misterioso, totalmente desconhecido, vez que não se tem notícia dos julgadores, do julgamento em si, ficando a cargo da imaginação dos leitores esta parte da trama, cheia de suspense e porque não dizer, medo.

Medo que se dá pelo próprio personagem, nítido em suas expressões e também o trazendo para a própria vida, pois se imagina que o mesmo poderia acontecer com qualquer pessoa, isto é, ser julgado e ainda mesmo condenado, mediante um processo truncado e de objeto desconhecido, no qual o sujeito se sente de mãos atadas com relação à sua defesa, como já ressaltado; em face do estado e dos seus agentes, que detém o monopólio legítimo do uso da força, na feliz expressão de M. Weber[3], e neste caso, o monopólio legítimo da coação jurisdicional, demonstrando como o indivíduo estava diminuído em face de todo este aparato, sem nenhuma garantia processual e também jurídica, resultando na complexidade dessa relação de subordinação do indivíduo perante o Estado.

Ressalta-se que mesmo os julgadores ficaram em dúvida com relação ao processo, talvez pelo próprio desconhecimento, o que, nos dias atuais, poderíamos dizer que restou ferido o In Dubio Pro Reu, garantia máxima fundamentada constitucional e convencionalmente (Pacto de San José da Costa Rica) pelo princípio norteador da Presunção de Inocência.

A Presunção de Inocência ou Princípio da Não Culpabilidade é um princípio de ordem constitucional no campo do Direito Penal, que institui a condição de inocência como regra prévia em relação a todo acusado da prática de um delito penal. Está previsto no já mencionado art. 5º, LVII da Constituição Federal (ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória)[4], exprimindo que somente após um processo concluído (do qual não caiba mais recurso) e que se demonstre a culpabilidade do acusado é que o Estado poderá legitimamente aplicar uma pena ao indivíduo.

Este Princípio pode ser desdobrado ou ser analisado sob duas óticas jurídicas para sua fiel aplicação, quais sejam, como regra de tratamento e como regra probatória. Como regra de tratamento se apresenta no sentido de que o acusado deve obrigatoriamente ser visto como inocente no transcorrer de todo o processo, isto é, do início do mesmo até o trânsito em julgado e como regra probatória postula que o encargo, o ônus, a responsabilidade de provar as acusações que pesam sobre o acusado é toda do acusador, sendo nitidamente vedado recair sobre o sujeito acusado o ônus de “provar que é inocente”. É uma verdadeira garantia individual fundamental e inarredável no ordenamento brasileiro, visto como um corolário do Estado Democrático de Direito[5].

Diante do que se vem trabalhando, todas estas considerações, réu sem indiciamento, sem direito de defesa, “preso” sem mandado (não fisicamente preso), acusado sem saber porquê ou por quem (até mesmo os acusadores são desconhecidos, como ressaltado), contraria veemente a lógica da segurança jurídica, um dos postulados do Ordenamento atual, importantíssimo para uma convivência social harmônica dentro deste modelo, é claro.

Osvaldo Ferreira de Melo pontua em sua obra, Temas Atuais de Política do Direito, que se pode extrair duas vertentes desta Segurança Jurídica, quais sejam, a preocupação com os fins políticos, isto é, o direcionamento dos esforços do Estado para a paz social, porque é nisso que reside a própria estabilidade dos governos; e a segunda vertente diz respeito aos indivíduos, que precisam ter a certeza de que os seus direitos serão garantidos pela ordem jurídica, sejam efetivados.

Portanto, não basta considerar a segurança jurídica de forma abstrata, isto é, como direito de exigir algo e as sanções decorrentes, mas sim que os instrumentos coercitivos do Estado sejam eficazes para que a norma substantiva seja aplicada, conferindo-lhe eficácia, em resumo[6].

No processo de Kafka, como não poderia deixar de ser, não há segurança jurídica em nenhuma dessas vertentes, uma vez que um processo arbitrário jamais poderá levar a paz social e do ponto de vista subjetivo, quanto aos sujeitos, não se vislumbra nenhum direito a Joseph, que deveriam ser garantidos efetivamente a ele, bem como a qualquer cidadão.

3. CRÍTICA AO PODER JUDICIÁRIO

Em uma manhã, no dia do seu aniversário, o jovem procurador do banco fora surpreendido e acusado injustamente neste processo, em que ele acreditava ser mais uma brincadeira dos seus colegas de trabalho e por isso ele não levou a acusação a sério, pensamento que lhe trouxe prejuízos enormes, no que tem de mais sagrado, qual seja, a sua própria vida, como será visto mais tarde no decorrer da narrativa.

Desconhecer o motivo da acusação, desconhecer os seus julgadores, desconhecer como funciona o Poder Judiciário, revela por parte do autor da obra uma completa insatisfação com relação ao Poder Judiciário da sua época, expressada através deste livro, em forma de crítica, revelando também a arbitrariedade deste Poder, e coloca a sua opinião ao deixar transparecer na obra o porquê do sistema ser falho, vulnerável, ilegítimo e injusto.

Ilegítimo porque o cidadão, tal como acontece nos dias atuais, não se encontra satisfeito com o Poder Judiciário, seja pela sua morosidade, seja pela ineficácia na prestação, seja pela falta de participação dos próprios envolvidos no conflito (o que começa a ser minimizado pelas formas de justiça participativa, como transação e mediação), seja pela linguagem utilizada no meio jurídico (o que precisa ser ponderado, tendo em vista que, visto como uma ciência, um campo do conhecimento, necessita de uma linguagem própria e específica para um bem atuar).

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Neste último aspecto melhor seria definir a questão como sendo uma dificuldade de integrar os demais cidadãos à ciência jurídica, especialmente no aspecto linguístico-normativo próprio dela e não atacar de plano a linguagem em si.

É o próprio Joseph K, no âmbito da morosidade do sistema que pontua: “E como duram os processos deste género, especialmente há uns tempos para cá![7]”, lembrando que o autor escreveu o livro nos idos dos anos 20 do século passado (XX). Infelizmente no Brasil parece que esta situação não se alterou, ou ainda, se agravou, quando se pode afirmar que o relatório anual do Conselho Nacional de Justiça – CNJ referente ao ano de 2016 demonstrou grande insatisfação com a morosidade da justiça diante de um universo de aproximadamente 102 milhões de processos, consoante o Relatório Justiça em Números 2016, também do CNJ[8][9][10].

Ainda ligado ao tema da ilegitimidade da prisão, abordada no tópico anterior do artigo é forçoso apontar a insistência da personagem principal, Joseph, em buscar incessantemente respostas sobre o seu processo, acerca da sua situação naquele caso específico, que, infelizmente, fora um esforço em vão, facilmente percebido quando se alcança o fim da obra.

Em face destas irregularidades, hodiernamente podemos mencionar a nossa Carta Constitucional de 1988, quando, em seu artigo 5º, LXIV prescreve o direito inviolável quanto à identificação dos agentes judiciários responsáveis pela prisão de um indivíduo ou mesmo pelo interrogatório policial deste, situações jamais vistas durante a obra[11].

Há também a previsão do inciso XI deste mesmo artigo 5º a respeito da inviolabilidade da casa do sujeito, não podendo ninguém nela penetrar sem que haja o expresso consentimento do morador, mesmo que este alguém seja um agente do estado em nome de qualquer função ou sob a ordem de qualquer dos três poderes, exceto nos casos de flagrante delito ou desastre; para prestação de socorro; ou, durante o dia, por determinação judicial, sendo certo que no caso de Joseph não houve flagrante delito porque o mesmo se encontrava em seu quarto deitado a espera da sua refeição matinal, sempre servida pela Senhora Grubach[12].

Kafka é tão marcante na literatura e, por conseguinte em outras áreas do saber humano que os estudiosos das suas obras criaram uma palavra para definir a situação da personagem Joseph, que desconhece a causa da sua prisão e a natureza dos processos judiciais nos quais ele se encontra submetido, marcante do estilo de F. Kafka, que é kafkiano.

Esta palavra vem para descrever experiências desnecessariamente complicadas, frustrantes, insólitas, exageradas, como enfrentar os labirintos míticos, mas reais da burocracia, bem como de um processo às margens da lei, sem nenhuma garantia[13][14].

4. ASPECTOS DA JUSTIÇA E DA PROVA

A justiça é questionada na obra, pois há a revelação da obscuridade do processo realizado contra um inocente, bem como na imprecisão do desenrolar processual, com o uso de provas absurdas contra o personagem durante todo o romance, trazendo para nós também uma reflexão acerca das provas no processo, vedadas aquelas ilícitas e abusivas; sendo certo que a única possibilidade das provas na história poderem ter sido usadas, seria se o ordenamento jurídico daquela realidade assim permitisse, em uma visão bem positivista da legalidade.

No tocante às provas, o ordenamento jurídico brasileiro atual traz dentre os vários princípios vigentes o já mencionado Princípio da Auto-responsabilidade das partes, advogando que cabe aquele que alegou a função de provar, que pelo exposto já se visualizou não ter sido observado na trama literária.

Todavia há outros aspectos a serem considerados, como o próprio Contraditório e a Ampla Defesa, que, em análise discursiva e até mesmo lógica, garante ou permite o direito à prova no sistema brasileiro, tendo em vista que é pelas suas respectivas existências que a prova se manifesta, é por meio delas que a questão probatória é inserida no processo, criminal ou não. Trata-se de um direito subjetivo público das partes ir ao juízo levando as suas postulações e defesas, sendo que este órgão deverá oferecer as possibilidades de cada um trazer as suas provas a fim de demonstrarem a veracidade das afirmações que forem feitas.

Por óbvio que a teoria das provas não poderia deixar de ter as suas exceções, ou ainda melhor, limitações, principalmente no que concerne à produção e formação desta, bem como a vedação de uso quanto aos fatos não submetidos à debates pelas partes e passados pelo crivo do juízo, ou mesmo a proibição de provas formadas fora do processo ou colhidas na ausência de alguma das partes. A situação da personagem Joseph K é tão drástica e digna de compaixão porque nem mesmo uma prova qualquer foi demonstrada, mesmo que ilícita[15].

O absurdo e o obscurantismo da obra se revelam também nas omissões e negligências ao processar as falhas, não as reconhecendo como passíveis de revisão e redirecionamento, mesmo em um caso hipotético e quase metafísico.

5. MAIS PARALELOS COM O REAL

Em sendo metafísico, outra reflexão exsurge para nós, qual seja, a possibilidade de traçar o paralelo com a realidade do sistema de justiça no mundo real, mesmo sendo uma narrativa metafísica, diante da faticidade que se apresenta para nós, que corre em nosso sangue e que sentimos na pele, muitas vezes com intenso sofrimento, como aqueles vulneráveis socioeconomicamente que tem suas dignidades violentadas diariamente, tanto em grandes quanto em pequenas aglomerações urbanas[16], sendo que é esta aproximação a motivação do artigo, isto é, o seu paralelo com a vida concreta atual[17].

Diante das violações apresentadas na obra, torna-se perceptível a fragilidade do homem diante da racionalidade e do desenrolar dos processos sociais nos quais estamos inseridos, em que os valores e a vida do ser humano são relegados a um plano inferior. Dessa forma, a alienação toma conta da razão e da sensibilidade humana, pois a consciência fica dominada por essas fragilidades e imposições da sociedade.

A situação do sistema prisional brasileiro é tão grave, desumana, cruel e degradante que a maior causa de mortes nas prisões brasileiras são doenças tratáveis, como tuberculose, Aids, hanseníase e infecções de pele, devido a uma série de fatores, dentre os quais destacamos a negligência do Poder Público no abandono dessas vidas, a superlotação, os ambientes insalubres, a falta de profissionais da saúde, entre outros[18].

A liberdade é então tolhida pelos ditames sociais e também pelos ditames da lei, mas que tem um poder judiciário falho, precário e injusto, que domina a consciência de todos e por óbvio, do personagem K.

Os conflitos vivenciados pelo personagem principal revela uma irracionalidade e uma perturbação o tempo inteiro durante a obra, o que se pode ser observado pelas relações de poder de um homem sobre o outro e da justiça sobre todos.

5.1 RACIONALIZAÇÃO DESPROVIDA DE REALIDADE

Uma crítica muito forte talvez seja o fato de que a alienação característica do personagem, que reflete a sociedade como um todo, é resultado da racionalização, da tecnicidade sem qualquer observância com a realidade e com uma prestação efetiva da justiça, pois o romance é permeado por um mal-estar o tempo inteiro, cujo fruto também decorre da própria instabilidade do personagem.

Salienta-se que este ideal de santificação da técnica ou de suprema veneração desta, é característica da modernidade, sobretudo no âmbito do Judiciário, em que o alemão Max Weber apresenta para nós a técnica como legitimidade dos procedimentos, sem observar seriamente se há justiça ou não nesses procedimentos, bastando para tal que se obedeça ao que está positivado, aos trâmites formais, destituído de qualquer análise do conteúdo em si mesmo[19].

Pode-se também pensar que o sistema judiciário já seja feito dessa forma para realmente não funcionar, que este seja o seu objetivo, que faça parte da sua estrutura organizacional, da sua engenharia fático-normativa e não que ele seja falho, ou deficiente, ou quaisquer outras adjetivações negativas.

Pela própria falta de participação social nos desenhos institucionais como um todo, fica difícil afirmar categoricamente qual seria a resposta correta para a questão formulada. E ainda hoje essa falta de participação se reflete em nossa estrutural social e institucional, que são idealizados e formados por poucos para o uso de muitos, com pouca vivência e representatividade para uma criação que se molde minimamente aos ideais de todos os cidadãos.

5.2 O MEDO E A CULPA

O medo é outro sentimento presente no decorrer da narrativa, sobretudo com o personagem principal. A perda da sua autonomia revela psicologicamente a fragilidade da personagem acusado na trama. O sentimento de ser acusado e culpado no processo revela esta referida instabilidade, bem como o seu intenso sofrimento.

Surpresas surreais e insólitas criam um clima de desorientação, em que o personagem se sente incomodado, assim como os leitores ou telespectadores, vez que a trama é muito bem narrada e descrita de forma a deixar bem vivas as expressões da subjetividade dos personagens e dos cenários criados.

Há também outra vertente que pode ser trabalhada, diante desta instabilidade emocional, que seria a incapacidade da personagem de demonstrar a culpa diante dos fatos apresentados, uma vez que não se sabe da real inocência dele, dúvida esta que não é sanada na obra, ficando a cargo da imaginação do leitor. Por óbvio, pode-se trabalhar, como já feito acima, com o sentimento de inocência e no âmbito jurídico com a Presunção de Inocência (todos são inocentes até que se prove o contrário, isto é, até que o acusador prove o contrário, já que o ônus probatório é dele).

Ao final de um ano em meio desse processo, ele é morto injustamente, mas de forma combinada por ele e dois senhores, e assim foi feito. No filme, o fim dele é através de uma bomba que explode e o mata, também por dois senhores.

Segue passagem da obra relativa a este fim: “mas um dos homens pôs-lhe as mãos no pescoço, enquanto o outro lhe espetava profundamente a faca no coração e aí a rodava duas vezes. Moribundo, K. viu ainda os dois homens muito perto do seu rosto, com as faces quase coladas, a observarem o desfecho[20]”.

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5.3 VISÃO SOBRE O ESTADO

Diante dos argumentos expostos, parece razoável colocarmos como uma das características principais do romance a negação do estado democrático de direito, que mesmo em uma sociedade aparentemente democrática, o seu direito é tolhido, dentre tantos, o de liberdade (mesmo sem ir efetivamente preso, mas sentir-se preso, que é tão ou mais avassalador), o de um julgamento imparcial, ao contraditório e a ampla defesa, etc.

Nesse sentido é cabível compreender que o sujeito é infinitamente mais preso quando a sua própria consciência está presa, amordaçada. No processo de Joseph pode-se considerar que a alma mesmo da personagem encontra-se presa, e, por conseguinte, o seu querer, as suas vontades. O pior controle e a repressão é aquela que se exerce na mente, onde a esperança não consegue mais alcançar. Seria, no dizer de Martinez e Correia, ser escravo das próprias circunstâncias, de si mesmo, sem sonhos e vontades, restando decretada a morte do próprio desejo de justiça, do desejo de viver[21].

Pode-se claramente permanecer com a representação do Estado que somente controla, controla veemente, sem distribuir justiça, que não seria mais uma preocupação. Mas ser controlado por dentro, no seu próprio espírito, é a maior das brutalidades – Joseph parece também que perdeu a capacidade de sentir-se um ser livre e logo, estaria morto.

Outras dessas características, para finalizarmos, é a visão de Estado, que para Kafka, nesta obra pelo menos, é considerado arbitrário e autoritário, demonstrando seu poder imenso através de um Judiciário insólito, injusto e ameaçador.

Assim como ocorre atualmente, por exemplo, nos casos de prisões injustas e ilegais, em que se restam verificados os erros dos agentes estatais, o que poderia até gerar uma reflexão acerca da responsabilidade do Estado em face dessas ilegalidades, tomando como exemplo o caso em que o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso de Damião Ximenes Lopes, que fora torturado pelos agentes estatais, sendo que sofria de transtornos mentais e por isso estava internado em clínica psiquiátrica[22].

6. O QUE RAZOAVELMENTE SE PRETENDE?

O que se pretende neste Processo de Joseph, ou o que se pretende com Kafka? Parece que mais do que todos os direitos que não lhe foram permitidos de usufruir, como a segurança jurídica, o conhecimento dos fatos e dos processos, a presunção de inocência, a liberdade e igualdade, ao contraditório e a ampla defesa. Busca-se através do Estado de Direito assegurar todos os instrumentais jurídico-normativos possíveis, incluindo os sociais, culturais, econômicos e políticos, necessários à consecução, defesa e promoção dos meios e recursos para a continuidade de uma vida saudável, livre e até mesmo feliz.

É ir além do direito de não ter a própria vida destruída, mas de gozar a garantia efetiva de uma vida assegurada, ou ainda de ter a vida garantida e afirmada. Por isso é que a justiça deve ser algo vivo, corporal inclusive, para todos os sujeitos, não apenas os mais favorecidos, quais sejam, os brancos, héteros, ricos, entre outros; ou seja, indo muito além das vagas e vãs promessas não cumpridas por um Estado de Direito.

Mais vale viver uma justiça, mesmo que imperfeita (ou buscá-la concretamente), mas continuamente em busca de avanços, de progressos, de renovação para melhorias do que os ideais de justiça não concretizados, oferecendo corporeidade à Têmis, conferindo-lhe historicidade, para além dos meros desejos, por mais ardentes que sejam – é preciso fazer, sentir, gozar, respirar e transpirar a própria justiça.

7. CONCLUSÃO

Resta patente e urgente a necessidade de repensarmos o nosso sistema social, político e jurídico, buscando formas de maior integração com os cidadãos, cada vez mais informados e participativos, com canais abertos de diálogos diretos, por exemplo, através da internet, ferramenta facilitadora para tais funções e que, ao adentrarmos, se for o caso, nas engrenagens do Poder Judiciário ou mesmo qualquer outra função na sociedade, que possamos trabalhar com afinco pela sua melhoria, pelo fiel cumprimento das leis e normativas gerais, pois somente assim teremos uma sociedade mais justa, democrática, participativa e que não se cala diante das injustiças, que infelizmente ainda acontecem no mundo, muitas vezes pelas nossas próprias mãos.

Assim como a necessidade de maior diálogo com outras práticas do cotidiano, praticadas por grupos diversos dos quais pertencemos, para não sermos alienados em uma perspectiva sociológica, reiterando os padrões de grupos dominantes e dominados, que já sofremos na carne e no espírito desde a fundação do nosso Brasil, a partir dos europeus que colonizaram o novo mundo.

Por fim, que tenhamos vontade e ímpeto para repensar a nossa política criminal, sobretudo os nossos ambientes prisionais, encarcerando somente quando estritamente necessário, não deixando, por óbvio, de aplicar punições às infrações, mas de outras naturezas, que não a restritiva de liberdade, em respeito ao princípio norteador do Direito Penal como Ultima Ratio e não Prima Facie, como vem sendo feito; e também que tornemos esses ambientes mais salubres, mais sadios, próprios para receberem humanos, possuidores de dignidade e, portanto, merecedores de respeito, de estima e consideração, tenham ou não cometido infrações puníveis.

 

Referências
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Notas
[1] Kafka, Franz. O Processo, p. 154.

[2] Constituição Federal, Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

[3] Weber, Max. A Política Como Vocação, p. 59. Este trabalho foi uma Conferência proferida na Universidade de Munique em 1918. Neste ensaio Weber conferiu ao Estado Moderno o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território, o território geográfico que forma este Estado. Nesse sentido a única entidade legitimada a se valer dessa força é o Estado. Ver mais nas páginas seguintes do ensaio.

[4] CF 1988. Art. 5º, LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; […].

[5] Como visto o Princípio também é consagrado em diplomas internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu artigo 11º, 1, dispondo assim: “Toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas.”. A Convenção Interamericana Sobre os Direitos Humanos, conhecida como Pacto De San José da Costa Rica, em seu artigo 8º, 2, também advoga e prescreve: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”.

[6] Melo, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito, p. 38.

[7] Kafka, Franz. O Processo, p. 06.

[8] Ver mais em Relatório Anual 2016 do CNJ. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/02/7d8fa9ae6f181c5625e73f8184f10509.pdf>. Acessado em: 25 de junho de 2017. Na página 95 pode-se perceber que 43% das demandas ao CNJ disseram respeito à lentidão no andamento dos processos judiciais.

[9] Ver mais Relatório Justiça em Números 2016 elaborado pelo CNJ. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/justicaemnumeros-20161.pdf>. Acessado em 25 de junho de 2017. Na página 17 pode-se encontrar este dado: “Este universo de processos, que em 2014 era de 100 milhões e em 2015 passou a ser de 102 milhões, representa o montante de casos que o judiciário precisou lidar durante o ano, entre os já resolvidos e os não resolvidos”.

[10] Para informações mais detalhadas e discriminadas entre os tipos de ações e de justiça, consultar também: Galli, Marcelo. Mais de 102 milhões de processos passaram pelo Judiciário em 2015.Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-out-17/102-milhoes-processos-passaram-judiciario-2015>. Acessado em 25 de junho de 2017.

[11] Art. 5º, LXIV – o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial;

[12] Art. 5º, XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; .

[13] Ver a este respeito o Blog da Editora Contexto, O que define algo como “kafkiano”?. Disponível em: <http://www.editoracontexto.com.br/blog/o-que-define-algo-como-kafkiano/>. Acessado em 25 de junho de 2017.

[14] Vide, por exemplo, a quantidade de presos provisórios no país, 221.054 em um universo de 654.372, representando 34% da totalidade, segundo levantamento feito pelo próprio CNJ junto aos presidentes dos Tribunais de Justiça e publicado em janeiro de 2017. Para a referência completa, acesse o relatório Reunião Especial de Jurisdição 2017 do CNJ. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/02/b5718a7e7d6f2edee274f93861747304.pdf>. Acesso em 10 de agosto de 2017.

[15] Para saber mais sobre as questões probatórias em âmbito legislativo, consultar o Código de Processo Penal Brasileiro, sobretudo a partir do artigo 155.

[16] Dentre tantas as notícias, ver: Barrucho, Luis; Barros, Luciana. 5 problemas crônicos das prisões brasileiras ─ e como estão sendo solucionados ao redor do mundo. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38537789>. Acessado em 25 de junho de 2017. Um dos principais problemas desse sistema desumano no país é a superlotação, ostentando o triste título de quarta maior população carcerária do planeta, possuindo, segundo o Ministério da Justiça, 622 mil detentos, mas somente 371 mil vagas.

[17] O DEPEN realiza estudos neste sentido quantitativo e já no relatório de Dezembro de 2014, na página 6, já confirma esse número assustador e alarmante, sendo que alguns ainda defendem mais encarceramento, o que não será discutido agora, mas sem antes nem mesmo levar em consideração esta realidade da superlotação, que traz uma série de outros efeitos negativos, como por exemplo, a maior proliferação de doenças, em virtude do ambiente demasiado insalubre. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf/@@download/file>. Acessado em 25 de junho de 2017.

[18] Ver Costa, Flávio; Bianchi, Paula. "Massacre silencioso": doenças tratáveis matam mais que violência nas prisões brasileiras. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/14/massacre-silencioso-mortes-por-doencas-trataveis-superam-mortes-violentas-nas-prisoes-brasileiras.htm?cmpid=copiaecola>. Acessado em 14 de agosto de 2017.

[19] Ver Weber, Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Revisão técnica de Gabriel Cohn. 4ª edição, 4ª reimpressão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2014. Sobretudo no Volume I, a partir do capítulo III, páginas 139 e seguintes.
O conceito de legitimidade em Weber teria o intuito de distinguir os tipos puros de dominação. Segundo este autor haveria três possíveis fundamentos para a legitimidade da dominação política, quais sejam, a crença na tradição, a carismática e a racional-legal (legalidade). Este último tipo que justificaria a dominação do direito nas sociedades jurídicas modernas, argumento bem conhecido no ambiente acadêmico.
No aspecto da dominação pelo direito positivado seria a crença nesta legalidade que justificaria a dominação, abrangendo os processos de produção e alteração dos conteúdos jurídicos. Portanto, a legitimidade do direito passa a ser a crença em certo procedimento que possibilite a identificação do próprio direito, sendo certo que são os próprios homens que constroem essas regras, que justificam, a seu turno, a própria existência e dominação desta ordem legal.
Essa ideia de Weber foi adotada, em alguma medida, por diversos autores, como Kelsen e Habermas, cada um com entendimentos diversos do outro, sendo certo que Habermas refuta a relação de proximidade estabelecida por Kelsen e por Weber entre legalidade e legitimidade, afirmando que a legalidade só pode vir a criar legitimidade se se supõe a legitimidade da ordem jurídica que determina o que é ou não legal. Ou seja, só haverá essa proximidade com a legalidade se o ordenamento for primeiramente legítimo. Nesse sentido conferir Habermas, Teoria da Ação Comunicativa. Madrid: Taurus, 1988. Reimpressão.

[20] Kafka, Franz. O Processo, p. 162.

[21] MARTINEZ, Vinício; CORREIA, Heloisa Helena Siqueira. O processo de Kafka: memória e fantasmagorias do Estado de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 293, 26 abr. 2004. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/5130>. Acesso em: 14 ago. 2017.

[22] Ver mais em: ROSATO, Cássia Maria; CORREIA, Ludmila Cerqueira. Caso Damião Ximenes Lopes: Mudanças e desafios após a primeira condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.conectas.org/pt/acoes/sur/edicao/15/1000169-caso-damiao-ximenes-lopes-mudancas-e-desafios-apos-a-primeira-condenacao-do-brasil-pela-corte-interamericana-de-direitos-humanos>. Acesso em 25 de julho de 2016.


Informações Sobre o Autor

Dorival Fagundes Cotrim Júnior

Mestrando em Direito Constitucional e Teoria do Estado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC Rio. Graduado em Direito na Faculdade Nacional de Direito FND/UFRJ. Advogado atuante em Administrativo e Civil


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