Já é sabido que o excesso do nível de imposição tributária inibe o crescimento econômico. Acarreta supressão de unidades produtivas; impede a expansão do parque industrial; diminui a entrada de capital estrangeiro produtivo; aumenta o contingente de sonegadores e de inadimplentes etc.
Sonegadores e inadimplentes, por sua vez, provocam elaboração pelo Estado de instrumentos legislativos cada vez mais truculentos para, por via de coação indireta, acelerar a arrecadação tributária em substituição à execução fiscal, que assegura a observância dos princípios constitucionais do devido processo legal e do contraditório e ampla defesa.
O nosso país é o que mais tributa no planeta em termos de carga tributária legal, não aquela efetivamente arrecadada, que corresponde a 37% do PIB. Para cada R$ 100,00 despendidos, mais de R$ 50,00 correspondem a tributos. É muito dinheiro!
Porém, o propósito deste artigo é o de apontar os efeitos perversos que esse elevado nível de imposição tributária gera no seio do governo: desvios sistemáticos de receitas; crescimento desmesurado das despesas correntes, principalmente, as de custeio (pessoal) em prejuízo das despesas de capital, como, as de investimentos, indispensáveis para assegurar um nível de vida razoável para as gerações futuras; corrupção de pessoas e, agora, das instituições públicas; a política do ócio e do dinheiro fácil substituindo a do trabalho e da honestidade; a política da astúcia ao invés da política da inteligência; enfim, as enumerações das aberrações éticas e morais são infindáveis. Por isso, costuma-se falar em perda de referencial e na necessidade de a sociedade buscar novos paradigmas. Fala-se muito em mudança de paradigmas em fóruns sobre Direito, Justiça e Cidadania. Estivemos presentes em vários deles e a tônica dos pronunciamentos sempre foi a necessidade de exercitar a cidadania. É verdade.
No meu modo de entender é preciso, antes de mais nada, exigir o cumprimento da Carta Política, bem como das leis com ela conformadas e exigir que órgãos competentes repilam a aplicação de leis desconformes para acabar, de vez, com o vetusto instituto da ilegalidade eficaz que vem imperando, sobretudo, em matéria de tributação. É preciso entender ou fazer entender que as normas constitucionais e legais existem para serem cumpridas por todos, a começar pelo Estado que as edita. A maioria dos problemas existentes decorre, sem menor sombra de dúvida, do descumprimento de normas. Durante décadas estamos fazendo reformas para eliminar ou minimizar os problemas, sem atentar para as suas causas. É o caso, por exemplo, da Reforma da Previdência, que já está a exigir nova Reforma, apesar de a Constituição ter dotado a Seguridade Social, onde se insere a Previdência Social, com fonte de custeio representada por três contribuições sociais das mais rendosas (art. 195, I da CF). É preciso desenvolver a cultura de que no caso de descumprimento de normas constitucionais e legais, o órgão estatal responsável determine o seu cumprimento imediato.
A separação dos Poderes, que é um princípio federativo, protegido por cláusula pétrea, prevê um sistema de freios e contrapesos, para que nenhum dos Poderes possa fazer o que bem entender sem que os outros dois intervenham imediatamente. Independência e harmonia dos três Poderes não pode ser entendida como um regime de triunvirato. Se o Executivo usurpa a competência do Legislativo como aconteceu, por exemplo, com os recentes Decretos ns. 6.339/08 e 6.345/08, que aumentaram a alíquota do IOF e criaram um adicional desse imposto, impõe-se, de imediato, a edição de Decreto-Legislativo pelo Congresso Nacional, para sustar os efeitos desses instrumentos normativos elaborados pelo legislador palaciano.
Outrossim, se for para valer os princípios constitucionais concernentes ao Direito Financeiro, por exemplo, regulados pela legislação infraconstitucional (Lei nº 4.320/64 e LC nº 101/00) não haveria espaço para a DRU, que vem sendo prorrogada desde 1994 para vigorar até 2011.
Essa DRU, antes Fundo de Estabilização Fiscal e antes dele, Fundo Social de Emergência, coloca em mãos do Executivo 20% de todos os tributos federais, inclusive, as contribuições pertencentes à Previdência Social, o que corresponde à bagatela de mais de R$ 125 bilhões, levando-se em conta as receitas tributárias estimadas na proposta orçamentária de 2008, ainda não aprovada pelo Congresso Nacional.
Até hoje não consegui entender tanta discussão, tanta negociação, tanta demora na aprovação da peça orçamentária anual, que deveria refletir um plano de ação do governo, mas que, na prática, sabemos que ela já nasce para ser descumprida. O Governo gasta como entende necessário ou conveniente, e não, como manda a Lei Orçamentária Anual, sempre contando com a generosa compreensão dos outros Poderes. Aliás, a DRU, que nasceu em uma situação emergencial, para vigorar nos exercícios de 1994 e 1995 (Emenda de Revisão nº 1/94), apesar de não mais existir aquela situação geradora, vem sendo prorrogada por meio de sucessivas Emendas, permitindo que continuem mutilando a Lei Orçamentária Anual, assim que aprovada. Já pararam para pensar e tentar descobrir a razão da necessidade de o Executivo ter em mãos um cheque em branco? Isso é compatível com as normas orçamentárias e as de responsabilidade fiscal? Por acaso, isso não representa uma regressão ao passado remoto?
O grosso do desvio de verbas acontece através do ralo representado pela DRU. Existem, também, outros tipos de desvios: o deslocamento de verba de determinada dotação, destinada ao cumprimento de uma finalidade pública, para outra dotação visando o cumprimento de finalidade pública diversa. Do contrário, pergunto, se as verbas para pagamento de precatórios judiciais estão consignadas ao Poder Judiciário e se as receitas estimadas sempre geram superávit, como se explica os milhares de credores alimentares que estão morrendo na fila de precatórios? outros milhares, que para receberem em vida, estão cedendo seus créditos com deságio de 70% a 80% às pessoas ou órgãos ligados às instituições financeiras estrangeiras? A única hipótese de faltar recursos financeiros correspondentes às verbas consignadas ao Judiciário, a título de despesas com precatórios, é a não realização das receitas estimadas, coisa que jamais aconteceu nas últimas décadas. Lamentavelmente, os desvios de finalidade, que caracterizam ato de improbidade administrativa, nos termos da Lei nº 8.429/92, são aceitos pela sociedade em geral como atos regulares.
Os cartões corporativos que, atualmente, estão na alça de mira da grande imprensa são meros efeitos de algo bem pior. São filhotes da DRU.
O tão falado princípio da transparência, invocado pelo governo para justificar a manutenção desses cartões, na verdade, nada tem de transparente a não ser que se limite o conteúdo desse princípio à revelação do montante gasto. É como na DRU. Sabemos que o montante a ser gasto em 2008 supera R$ 125 bilhões, mas jamais saberemos onde, quando e como serão gastos esses bilhões!
O que é importante no princípio da transparência não é o montante gasto, mas sim, a prévia identificação da causa da despesa a ser feita e a indicação expressa de sua finalidade. E isso só será possível mediante observância das normas orçamentárias previstas na Lei nº 4.320/64, que fixa as dotações de despesas públicas com indicação dos elementos de despesas.
Os cartões corporativos, por fugirem das normas orçamentárias, são, em tese, incontroláveis, quer pelo sistema de controle interno, quer pelo sistema de controle externo, com a ajuda do Tribunal de Contas competente. Daí porque a nobre tentativa governamental de proibir o uso de cartões corporativos nestas ou naquelas hipóteses, casuisticamente, apontadas pela mídia, não passa de meros paliativos. A solução definitiva só poderá ser dada mediante a extinção desses cartões, ressalvados os órgãos ligados ao Gabinete Presidencial, que operam com assuntos sigilosos e o Ministério da Defesa, assim mesmo, se não for possível encontrar outro mecanismo que preserve o sigilo estatal e ao mesmo tempo se harmonize com os princípios da administração pública.
Por oportuno, esclareça-se que a substituição desses cartões corporativos por diárias fixas, fazendo com que autoridade ou servidor público arque com as eventuais diferenças faltantes, bem como embolse o eventual saldo que restar, como defendido por determinadas autoridades governamentais, bem revela o grau de distanciamento das noções elementares de direito público, apesar do excessivo número de assessores técnicos à sua a disposição. O servidor público não há de arcar com um centavo sequer por conta da execução de um serviço público, devendo ser ressarcido segundo as normas orçamentárias em vigor. Também não pode embolsar a diferença a maior, sob pena de praticar ato de improbidade administrativa e crime de peculato. Administração pública é coisa séria: exige a observância de todos os princípios enumerados no art. 37 da Carta Política.
Para que pessoas não familiarizadas com o Direito Financeiro possam ter uma idéia da incompatibilidade dos cartões corporativos, que permitem compras de mercadorias e serviços, de forma habitual e sem certame licitatório, além de saques em dinheiro basta saber o que é despesa pública. Definimos a despesa pública como sendo “a utilização, pelo agente público competente, de recursos financeiros previstos na dotação orçamentária, para atendimento de determinada obrigação a cargo da Administração, mediante a observância da técnica da Ciência da Administração, o que envolve o prévio empenho da verba respectiva” (Cf. nosso Direito Financeiro e tributário, 16ª edição, Atlas, 2007. P. 53). Desta definição, da qual não discrepam os cultores do Direito Público em geral, sobressai-se a noção fundamental de um dispêndio relacionado com uma finalidade de interesse público tutelado pela ordem jurídica, o que, afasta as despesas como as recentemente apontadas pela mídia.
Concluindo, é preciso diminuir o tamanho do Estado, enxugar a máquina governamental e desenvolver a cultura do cumprimento das normas legais e constitucionais, para possibilitar a diminuição da carga tributária, devolvendo ao setor produtivo o oxigênio necessário à expansão de suas atividades. Com o crescimento da economia, a arrecadação tributária crescerá de forma natural. A inadimplência tornar-se-á uma raridade, diminuindo o nível de corrupção e desafogando os órgãos administrativos e judiciários para cobrança da dívida ativa. Isso contribuirá para baixar o custo Brasil. O desemprego, também, diminuirá poupando verbas governamentais para o setor de assistência social.
Se o governo continuar atrapalhando o crescimento econômico, aumentando o tamanho do Estado de tal sorte que a nação não mais consiga sustentá-lo, surgirão tantos problemas que obrigará o governante a aumentar ainda mais o confisco tributário. Tudo é uma questão de opção do governante responsável.
SP, 11-01-08.
Informações Sobre o Autor
Kiyoshi Harada
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.