Comentários sobre cemitérios públicos concessionados

O Direito funerário é uma cadeira jurídica raramente estudada, poucas são as publicações e as doutrinas divergem sobre a natureza de seus elementos, tendo sido construída pouca jurisprudência calcada sobre conteúdos do direito civil e administrativo.

O direito de sepultar os mortos em locais tidos como sagrados ou especiais é um desses direitos que acompanha o homem desde o alvorecer de sua jornada na terra. O jus sepulchri, o direito a sepultura, como chamado no direito romano e a utilização de terrenos próprios pela comunidade e pelo Estado para o fim de sepultamento dos corpos, prova real da extinção da personalidade jurídica, encontram no mundo civilizado e até em grupos humanos primitivos, guarida e respeito.

Neste pequeno artigo abordo seus variados aspectos, mais precisamente, sob o prisma do direito administrativo no que tange os cemitérios públicos administrados por terceiros (concessionários).

Sem a pretensão de esgotar em extensão o tema, em uma temática específica, rara, mas também presente no direito por tratar de suas características e reflexos sociais e jurídicos.

II – O cemitério no conceito de Serviço Público

A conceituação de serviço público é encontrada somente sob a luz da doutrina, não há norma que a exprima, existindo, porém, duas correntes doutrinárias a conceituá-la: a corrente essencialista e a formalista. Para a primeira, para que haja a configuração de uma atividade de serviço público, seria necessário o preenchimento de características essenciais. Na segunda corrente, os formalistas, serviço público é toda atividade e serviço que a lei expressamente informar. De todo modo, o núcleo principal da conceituação deve se direcionar a prestação de uma atividade ou serviço a um bem coletivo essencial. Nesse sentido é fecundo o posicionamento de Hely Lopes Meirelles, para quem o serviço público, em suas palavras, é todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controle estatais, para satisfazer necessidades essências ou secundárias da coletividade ou simples conveniências do Estado. [1]

Não é preciso esmiuçar muito as atividades para conceituar os cemitérios como de caráter público. Inclusive no que se refere ao sepultamento em si, em que encerra toda uma gama de situações, desde a jurídica, e se complementa pelo ciclo já ocorrido do óbito como extinção da personalidade jurídica do falecido em mais um rito social. Esta passagem carrega característica coletiva e uma satisfação psicológica familiar e social. Convêm apontar, mais uma necessidade, esta, com relação à saúde pública, pois os cemitérios não deixam de ser aterros sanitários especiais que necessitam fiscalização por parte da administração, tanto em sua manutenção, endereçamento, quanto em sua construção.

Quanto à regulamentação da matéria, é de competência municipal, cabendo portanto, aos municípios regularem leis em suas assembléias legislativas ou ao executivo através de decreto.  No Distrito Federal é o Decreto Nº. 20.502, de 16 de agosto de 1999, o qual regulamenta a Lei n° 2.424, de 13 de julho de 1999,  dispondo sobre a construção, o funcionamento, a utilização, a administração, a fiscalização dos cemitérios e a execução dos serviços funerários no Distrito Federal.

Cabe aqui, um adendo, referente ao serviço funerário, responsáveis pelo recolhimento, preparo do corpo e translado ao campo santo, é que estes também possuem natureza pública, devendo atuar por meio de Permissão da Administração.

III – Cemitério público e privado

O fato do cemitério ser um bem que está a serviço público não faz com que todo cemitério seja público“. [2]

Em primeiro plano, cabe distinguir o cemitério público e o privado, sob a luz das instituições jurídicas, como em suma, de uma natureza primária, social, coletiva e, por isso mesmo, de natureza intrinsecamente pública. Sendo que ao cemitério privado, embora sobre regras de domínio particular em que rege em primazia o direito civil, torna-se necessário pelo interesse público, que sob a sua atuação paire a fiscalização do poder Estatal. [3]

Quanto à constituição dessa permissão, a Magma Carta de 1988, em seu artigo 175, exige licitação prévia para delegações de serviços públicos a particulares, seja por meio de permissão ou concessão.

O cemitério particular, por essa fiscalização, embora tenha o direito civil como guisa e esteja embasado em direito constitucional de propriedade, precisa ser permisonário e o cemitério público administrado por particular deve estar concessionado. Ademais porque, ao lado do direito de propriedade a Constituição de 1988 atrelou a responsabilidade social, sendo que em certas propriedades, como no caso de permissionários, devido a esta natureza pública, acentua-se sua responsabilidade com o coletivo. Cabe ressaltar que com a Lei 8.987/1995, normativamente, a delegação desse serviço público passa a ser não mais um ato unilateral da Administração Pública, como apontava a doutrina, e sim bilateral, nesse sentido positiva o artigo 2º, inciso IV, para permissão e inciso II para concessão. Em suma, uma vez que exige licitação não pode ser ato unilateral, ressalvado o princípio das cláusulas exorbitantes, estas, já implícitas no contrato. [4]

Com relação à natureza jurídica da sepultura em cemitérios públicos e privados, Eduardo Henrique de Oliveira Yoshikaua, em primoroso trabalho, defende que com relação aos últimos, os institutos jurídicos presentes no jus sepulchri  são de natureza exclusiva do direito civil e não do direito administrativo. Para Yoshikaua, esse direito de sepultar pode provir de enfiteuse e superfície (conforme o Código Civil em vigor na data do negócio jurídico vigente), concessão de uso (DL 271/67) ou locação ou comodato,eis que neles se encontram o conteúdo essencial do direito à sepultura (uso de bem imóvel e possibilidade de transmissão mortis causa, que se distinguem quanto à onerosidade, ao prazo de duração e à natureza real ou pessoal do direito, o que deverá ser verificado pelo intérprete no exame de cada caso concreto)” [5]

Em suma, diz-se público o cemitério quando este, como bem público de uso especial, instalado em terreno público, é administrado diretamente pelo Município ou explorado por terceiros por delegação, neste caso; concessão.

IV – Da concessão de cemitérios públicos

A Lei 8.987 de 1995, com alterações posteriores, permitem que terceiros alheios á Administração Pública, possam exercer a administração de cemitérios públicos, agindo por delegação por prazo determinado. O art. 2º, inciso II da Lei, assim define a concessão de serviço público, in verbis: “a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência a pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado“.

Toda concessão de serviço público será precedida de prévia licitação através da  modalidade de concorrência, a sua extinção, quando não for por fim do prazo determinado, se dará por vários motivos, todos expressos em lei, ainda porque a adjudicação ao vencedor da licitação é ato jurídico perfeito.

Este instrumento jurídico-administrativo, o da concessão pública, tem se mostrado eficiente, mesclando a iniciativa privada e a fiscalização estatal, dando ao Estado fôlego em sua gama de atribuições para com a coletividade. Em uma análise mais específica, a concessão de uso de cemitério público, por sua natureza de contrato bilateral, e regras do direito civil, permite, a nosso ver, que o explorador da concessão tenha segurança jurídica para atuar e tornar eficiente os serviços prestados. Isto porque, como em qualquer outra atividade em que o Estado necessite delegar, a própria eficiência da iniciativa privada deve se estender ao bem comum. Entretanto, tais cemitérios terão, obrigatoriamente, caráter secular, em face do laicismo constitucional do Estado brasileiro.

Com relação à nomenclatura, conforme preleciona o professor Almir Morgado, o título jurídico-administrativo que melhor se encaixa a espécie é a concessão de uso de bem público, no entanto, várias legislações municipais referem-se à permissão de uso. “Novamente nos vemos às voltas com a generalizada confusão que o legislador faz com os referidos institutos. Uma análise e conhecimento mais aprofundado dos institutos nos levam, forçosamente, à conclusão que somente a concessão de uso, dada sua natureza de contrato bilateral, confere ao explorador do bem, a necessária segurança jurídica para proceder ao seu mister, e, ao mesmo tempo, confere à administração o necessário poder de fiscalização e regulamentação do mesmo, já que se trata de uso privativo normal incidente sobre bem público de uso especial. [6]

No que tange a administração do concessionário do cemitério, a atividade fim é o sepultamento, a manutenção e todas as tarefas periféricas necessárias ao fiel desempenho da atividade, bem como, a construção de capelas, templos, jazigos e a reciclagem de áreas obedecendo a critérios legais para a sobrevida do cemitério. Tal desempenho de atividades é positivado e garantido no inciso III, do art. 2º da Lei 8.987 de 1995, na concessão de serviço público precedida da execução de obra pública: “a construção, total ou parcial, conservação, reforma ampliação ou melhoramento de quaisquer obras de interesse público, delegada pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência a pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para sua realização, por sua conta e risco, de forma que o investimento da concessionária seja remunerado e amortizado mediante a exploração do serviço ou da obra por prazo determinado”.

Como exemplos de concessão, no Município do Rio de Janeiro, existem cemitérios públicos e particulares. No caso dos cemitérios públicos, a administração das necrópoles foi passada por contrato de concessão de serviços públicos à Santa Casa da Misericórdia, que já carrega a função funerária na cidade desde a era colonial, passando pelo Império e se oficializando definitivamente com o advento da República. Portanto, as sepulturas têm regime jurídico de direito real de uso pelos titulares de direito, já que a propriedade dos terrenos pertence ao Município. [7]

No Distrito Federal, a administração de suas necrópoles, ficou a cargo de consórcio privado, atuando nas seis unidades espalhadas nas administrações regionais.

V – Da terceirização em cemitérios concessionados

Pelo princípio inerente na lei de licitações, intuitu personae, em que cada contrato é pessoal, a regra é que para cada atividade-fim o vencedor da licitação na concessão deve ser o mesmo a administrar, executar ou prestar o serviço desde a sua adjudicação com a Administração até a extinção do contrato. A intenção desse princípio encontra respaldo na segurança jurídica, sobretudo no que diz respeito a responsabilidade civil. Evidencia-se a pessoalidade do contrato no caput do art. 25 da Lei 8.987, Lei das Concessões, em que:  ”incumbe a concessionária a execução do serviço concedido, cabendo-lhe responder por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros, sem que a fiscalização pelo órgão exclua ou atenue essa responsabilidade”.

Entretanto, destarte o princípio mencionado, ainda sob o mesmo artigo, em seu primeiro parágrafo, existe a possibilidade de contratação com terceiros sem que isso signifique uma terceirização do serviço como um todo e como atividade fim, in verbis:a concessionária poderá  contratar terceiros para desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias ou complementares ao serviço concedido, bem como a implementação de projetos associados. “.

A administração de um cemitério, como qualquer outro ramo de atividade, é composta por tarefas e atividades principais como o sepultamento e a manutenção dos jazigos, campas, manutenção de ossário,  cinzário e tumbas, bem como tarefas auxiliares: limpeza, jardinagem, vigilância e segurança.  Acontece que estas tarefas podem ser  executadas por terceiros conforme citado artigo. Entretanto, a subconcessão do serviço concessionado, o que implica na administração de todas essas tarefas, somente poderá ocorrer se expressa em cláusula contratual ou devidamente autorizada pelo poder concedente e sempre precedida por concorrência. É o que positiva o artigo 26 da Lei 8.987.

VI – A extensão da prerrogativa do exercício da função pública  

Como todo exercício de função pública por delegação, esta também se estende aos funcionários da concessão do cemitério para efeitos penais em crimes funcionais ou perante o particular, estranho a Administração Pública, conforme positiva o artigo 327, § 1º, do Código Penal in verbis: ”Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública. “.

Com relação à manutenção da ordem e dos bons costumes, dentro do cemitério público, trata-se primeiro, de um exercício de dever legal perante a lei que o concessionário e seus funcionários devam exercer, e em segundo, por uma ordem de observância em relação à Lei municipal que regula a administração de necrópoles, inclusive no que se refere aos funcionários terceirizados da segurança e vigilância quando em legítimo dever contra crimes contra o respeito aos mortos praticados por vândalos, ladrões de mármore e de restos mortais, verdadeiros infratores dos artigos 209 ao 212 do Código Penal. Convêm lembrar que os empregados da iniciativa privada estão investidos transitoriamente em função pública por extensão, representam o respeito que o particular infrator ou não deva ter para com a coisa pública através do ”munus publicae”,

No Distrito Federal, o dever de observância e exercício do dever legal dentro do cemitério Campo da Esperança e dos cemitérios das administrações regionais, está contido no Decreto Lei  nº. 20.502, de 16 de Agosto de 1999, na Seção II, nos artigos 55 ao 59, como por exemplo, o art. 57: “ Será retirado do cemitério todo aquele que perturbar a ordem ou se comportar de forma desrespeitosa para com os mortos, sem prejuízo de outras cominações legais. ”.

Quanto à função de polícia administrativa, polícia de manutenção da ordem ou exercício de polícia judiciária, a Doutrina é majoritária em não admitir delegação dessa função aos prestadores de serviço particulares uma vez que o Estado é titular exclusivo desse poder de império (jus imperii).

 

Notas e bibliografia consultada:
[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 32ª Edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2006.
[2] Cf. SILVA, Justino Adriano Farias da. Tratado de direito funerário. Tomo. II. São Paulo: Método, 2.000. pp. 352 e 400.
[3] Para José dos Santos C. Filho, os cemitérios públicos constituem áreas do domínio público, e os cemitérios privados são instituídos em terrenos do domínio particular, embora sob o controle do Poder Público. Para que haja a instituição de um cemitério particular, é necessário consentimento do Poder Público Municipal, através de permissão ou por concessão. Os cemitérios públicos qualificam-se como bens de uso especial, já que há em suas áreas prestação de um serviço público específico. O serviço funerário, por se tratar de interesse local, é da competência municipal (art. 30, I, da CRFB).
[4] ALEXANDRINO, Marcelo; Vicente Paulo. Direito Administrativo descomplicado. 14ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007. p.p 489.
[5] YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. Natureza jurídica do direito à sepultura em cemitérios particulares. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1122, 28 jul. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8714>. Acesso em: 23 abr. 2007.
[6] ALMIR MORGADO é Professor Titular de Direito Administrativo da FABEC.
[7] CAMPANA, Felipe Ramos. Transferência de titularidade de sepulturas no município do Rio de Janeiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1456, 27 jun. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10076>. Acesso em: 03 jan. 2008

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Christian Bezerra Costa

 

Advogado, Procurador do Município de Zé Doca – MA, Graduado pela Unieuro – DF e pós graduando em Direito Administrativo

 


 

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