Condições da ação e mérito: uma visão crítica

Resumo: O presente trabalho visa ao estudo das condições da ação e do mérito no direito processual civil brasileiro. É analisado o conceito doutrinário desses institutos a partir da Teoria Eclética de Liebman, adotada pelo Código de Processo Civil, bem como são tecidas críticas à separação estanque entre condições da ação e mérito.


Palavras-chave: Condições da Ação. Mérito.


Abstract: This work intends to study the conditions of action and merit in Brazilian civil procedural law. The doctrinary concept of such institutes is analyzed pursuant Liebman’s Eclectic Theory, which is adopted by the Code of Civil Procedure, and criticisms are made to the absolute separation between conditions of action and merit.


Keywords: Conditions of Action. Merit.


Sumário: 1. Introdução. 2. Condições da Ação. 2.1 Conceito de Condições da Ação. 2.1.1 Possibilidade Jurídica do Pedido. 2.1.2 Interesse de Agir. 2.1.3 Legitimidade. 2.2 Visão Crítica acerca das Condições da Ação. 3. Mérito. 3.1 Mérito no Plano das Questões. 3.2 Mérito e Lide. 3.3 Mérito sob a Ótica da Demanda. 3.4 Mérito e Situações Externas ao Processo. 3.5 Mérito e Pretensão. 4. Conclusão


1. Introdução


Diz-se, hoje, que entre direito material e direito processual há uma relação de complementaridade. O direito processual existe para servir ao direito material, ao mesmo tempo em que este se utiliza do primeiro para  se materializar, isto é, para realmente modificar o mundo dos fatos.


Assim, os institutos de direito processual devem retratar, tanto quanto possível, a realidade do direito material, que é justamente a realidade das relações jurídicas que se formam, a todo momento, entre os sujeitos de direito.


Nesse sentido, é imperioso reconhecer que a divisão estanque entre condições da ação e mérito está em descompasso com a realidade fática vivenciada fora dos tribunais. Diante disso, este breve estudo será dedicado, justamente, ao exame do que são, em verdade, as condições da ação e o mérito.


Com efeito, o tema deste trabalho, não obstante envolva questões eminentemente teóricas, traz reflexões que se aplicam de forma direta no cotidiano da vida forense, já que todos os dias os operadores do direito se deparam com sentenças terminativas e definitivas, que são proferidas de acordo com o regramento legal das condições da ação. A este passo, será abordada a teoria adotada por nosso Código de Processo Civil, seguida de uma visão crítica acerca do tema.


2. Condições da Ação


O Código de Processo Civil brasileiro de 1973 adotou a Teoria Eclética de Liebman no que se refere à ação. Pode-se dizer, em apertada síntese, que a citada teoria sustenta que o direito de ação nada mais é do que o direito a uma sentença de mérito. A teoria de Liebman obteve grande apoio no cenário jurídico nacional.


Como pilares básicos da Teoria Eclética, encontram-se as condições da ação e os conceitos de mérito e jurisdição. A questão referente à conceituação de mérito será abordada em tópico próprio, motivo pelo qual não será analisada neste momento. O terceiro elemento, ou seja, a jurisdição, refoge aos objetivos deste artigo, razão pela qual serão apenas traçados comentários tangenciais quando houver relação relevante com o tema.


Com efeito, um dos principais legados de Liebman, com toda a certeza, foi a introdução da ideia de que a ação deveria respeitar determinadas condições, que, uma vez insatisfeitas, levariam à carência de ação. São elas: a possibilidade jurídica do pedido, o interesse de agir e a legitimidade.


2.1 Conceito de Condições da Ação


2.1.1 Possibilidade Jurídica do Pedido


 “É a admissibilidade em abstrato do provimento do pedido, isto é, pelo fato de incluir-se entre aqueles que a autoridade judiciária pode emitir não sendo expressamente proibido”.[1] O cerne da questão envolvendo a possibilidade jurídica do pedido não está na efetiva previsão abstrata da lei, mas, sim, na não vedação ao pedido formulado. Se não há proibição legal, há possibilidade jurídica do pedido. Exemplo clássico na doutrina de pedido juridicamente impossível é a cobrança de dívida de jogo, expressamente proibida pelo art. 814, caput, do Código Civil, verbis:


“Art. 814. As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou interdito.”


Merece destaque a observação feita por Liege Marques Ângelo, ao referir que em 1970, na Itália, entrou em vigor a lei que institui o divórcio, explicando que por este motivo Liebman deixou de incluir a possibilidade jurídica entre as condições da ação, tendo em vista que o seu principal exemplo de impossibilidade jurídica da demanda era justamente o pedido de divórcio, até então inexistente no país. Portanto, a partir de então, Liebman passou a admitir apenas a legitimidade ad causum e o interesse de agir como condições da ação.[2]


No dizer de Calmon de Passos, a possibilidade jurídica do pedido é uma das condições da ação, na ótica dos que entendem a ação como direito a um pronunciamento sobre o mérito. Ressalta que a ação será improcedente quando o tipo de pedido formulado pelo autor seja desconhecido pelo ordenamento jurídico a que se reporta. O desconhecimento pode se dar porque a postulação é vetada expressamente, ou porque não há solução prevista no ordenamento jurídico.[3]


Por fim, cabe citar o ensinamento de Arruda Alvin:


“Por possibilidade jurídica do pedido, portanto, enquanto condição da ação, entende-se que ninguém pode intentar uma ação sem que peça providência que esteja, em tese, prevista. Ou que a ela óbice não haja, no ordenamento jurídico material.”[4]


2.1.2 Interesse de Agir


Segundo Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Grinover e Cândido Dinamarco, interesse de agir é:


“Premissa de que, tendo embora o Estado o interesse no exercício da jurisdição (função indispensável para manter a paz e a ordem na sociedade), não lhe convém acionar o aparato judiciário sem que dessa atividade se possa extrair algum resultado útil. É preciso, pois, sob este prisma, que, em cada caso concreto, a prestação jurisdicional solicitada seja necessária e adequada.”[5]


Para Liebman, é a “relação de utilidade entre a afirmada lesão de um direito e o provimento de tutela jurisdicional pedido”.[6]


O interesse à tutela jurisdicional surge exatamente pela vedação à autotutela, havendo a necessidade de intervenção do Estado para fazer cessar ameaça ou violação a direito do particular. Há, pois, o binômio da necessidade-utilidade.


Nesse sentido é a conclusão de Darci Guimarães Ribeiro:


“El Estado, al monopolizar la jurisdicción, instituye automáticamente para todos los individuos de la comunidad la pretensión a la tutela jurídica, que es el poder que se tiene de exigirle la realización de una prestación positiva a través del processo.”[7]


Com efeito, se o autor da demanda puder obter o mesmo resultado sem a intervenção do Estado-juiz, estará desconfigurado o interesse de agir, porque não haverá, no caso concreto, necessidade de se recorrer à tutela jurisdicional para que se alcance o fim almejado.


O mesmo ocorre quando o provimento do magistrado não trouxer benefício algum em comparação com a situação jurídica anterior do autor. Faltar-lhe-á utilidade na tutela jurisdicional requerida e, portanto, interesse de agir.


2.1.3 Legitimidade


Segundo Chiovenda, “é a qualidade, isto é, a identidade da pessoa do autor com a pessoa favorecida pela lei e a da pessoa do réu com a pessoa obrigada”.[8] Liebman, por sua vez, define a legitimação para agir como: 


“A pertinência subjetiva da ação, isto é, a identidade entre quem propôs e aquele que relativamente à lesão de um direito próprio (que afirma existente) poderá pretender para si o provimento de tutela jurisdicional pedido, com referência àquele que foi chamado em juízo.”[9]


Arruda Alvin conceitua a legitimação ad causum como sendo a atribuição, pela lei ou pelo sistema, do direito de ação ao autor, possível titular ativo de certa relação ou situação jurídica, assim como a sujeição do réu aos efeitos jurídico-processuais e materiais da sentença.[10]


A legitimidade, destarte, é a correspondência entre os sujeitos da relação jurídica de direito material e os sujeitos da relação processual (autor e réu), é a pertinência subjetiva.


2.2 Visão Crítica acerca das Condições da Ação


A doutrina nacional[11], em sua maioria, trabalha com a ideia que está positivada no Código de Processo Civil no que tange às condições da ação e ao mérito. Trabalha-se com o entendimento de que as condições da ação encontram-se em uma esfera estanque, que não a do mérito; que o juiz, antes de poder adentrar na análise efetiva da lide, deve verificar se estão respeitadas as condições da ação. 


Contudo, há certa divergência quanto a esse entendimento. A doutrina gaúcha[12] vem encabeçando um movimento de ruptura com essa interpretação. Para aqueles que não concordam com a teoria adotada pelo Código, as condições da ação estariam integradas no próprio mérito da causa, seriam condições para a procedência da demanda, mas não para a análise do mérito, uma vez que a matéria relacionada às três condições da ação diz com a relação jurídica de direito material e, não, com a relação processual.


Conforme a teoria adotada por nosso Código de Processo Civil, o exame prévio que o julgador deve fazer sobre as condições da ação não possui natureza jurisdicional. Por isso, não faz coisa julgada material, possibilitando a repropositura da demanda, uma vez sanado o vício.


Muito se discutiu na doutrina acerca da natureza jurídica de tal provimento do juiz. Liebman não define qual seria a natureza jurídica da atividade do juiz ao se pronunciar sobre as condições da ação, “já que não a enquadrou no âmbito da jurisdição, nem da administração e tampouco da legislação”.[13] Esta é, pois, a principal razão das críticas sofridas pela Teoria Eclética, adotada pelo código processual pátrio.


Parte da doutrina brasileira vem entendendo que o exame de qualquer das condições da ação leva à apreciação do próprio direito material. Nesse passo, o juízo de carência de ação geraria a verdadeira improcedência da demanda, com a conseqüente formação da coisa julgada.


Oportuno se faz citar lição do saudoso processualista Ovídio Baptista:


“Quando o juiz declara inexistente uma das “condições da ação”, ele está em verdade declarando a inexistência de uma pretensão acionável do autor contra o réu, estando, pois, a decidir a respeito da pretensão posta em causa pelo autor, para declarar que o agir deste contra o réu – não contra o Estado – é improcedente. E tal sentença é sentença de mérito. A suposição de que a rejeição da demanda por falta de alguma “condição da ação” não constitua decisão sobre a lide, não fazendo coisa julgada e não impedindo a reproposição da mesma ação, agora pelo verdadeiro legitimado ou contra o réu verdadeiro, parte do falso pressuposto de que a nova ação proposta por outrem, seria a mesma ação que se frustrara no primeiro processo.”[14]


Alguns doutrinadores tentaram contornar a problemática da natureza do provimento do juiz ao decidir pela carência de ação, dentre eles Botelho de Mesquita[15] e Osvaldo Afonso Borges[16], criando uma quarta função estatal dentro da teoria clássica da tripartição dos poderes estatais. Essa quarta atividade estatal seria uma “função público-administrativa de fiscalização da lei processual”, no momento em que se apreciam as condições da ação e os pressupostos processuais. Para os defensores de tal ideia, se não estivessem presentes as condições da ação, que seriam essenciais para que o juiz pudesse adentrar no mérito da demanda, não haveria força propulsora capaz de induzir à atividade jurisdicional, que só se daria com a análise do mérito em si.  Fábio Gomes diz que a solução preconizada de criar-se uma quarta função estatal não tem como prosperar. Primeiramente, porque grande parte da problemática deriva justamente da limitação à qual o jurista se encontra atrelado, ou seja, a da divisão tripartite dos poderes do Estado. Segundo, porque a criação de uma quarta função seria totalmente ilegítima, uma vez que faria desaparecer o próprio problema.[17]


Nosso código adotou a teoria unitária-eclética da ação, de Liebman, outorgando às condições da ação o título de categoria própria de questões, colocando-as no mesmo patamar que as questões de mérito e as demais questões do processo.[18] A doutrina nacional vem, aos poucos, acompanhando essa linha de pensamento.[19]


Ovídio Baptista critica a teoria adotada por nosso Código de Processo Civil, pois, segundo ele, tal teoria confunde direito subjetivo e pretensão. A doutrina em geral, ao tratar do conceito de “ação” processual, confunde “o direito subjetivo de acesso aos tribunais” com o exercício efetivo deste direito, através da “ação” processual. O primeiro, afirmava Ovídio, não é ainda uma ação, mas, sim, um estado de quem possui direito subjetivo, que pode estar tutelado no direito privado, na Constituição ou, até mesmo, não se encontrar expresso em nenhuma regra, haja vista que o direito de acesso aos tribunais é princípio essencial em qualquer comunidade estatal.[20]


Finalizando sua crítica às condições da ação, Mitidiero refere que é imperioso reconhecer, ainda que a posição do nosso direito positivo seja diversa, que a sentença que decreta a carência de ação, de fato, enfrenta o mérito da causa, negando definitivamente o bem da vida. Isso porque a legitimidade, o interesse e a possibilidade jurídica do pedido estão diretamente ligados ao direito material.[21]


No mesmo sentido é o entendimento de Fábio Gomes:


As condições da ação na realidade integram a relação de direito material posta à apreciação do órgão jurisdicional, e que só por mera e inapropriada ficção (raciocínio hipotético) poderiam ser consideradas também pertinentes à relação jurídica processual.[…]


Nosso Código, entretanto, acabou por emprestar o respaldo legal a essas condições (art. 267, VI), bem como à carência de ação (art 301, X). […] Não pactuamos com essa submissão, com efeito, pois estamos frente a uma realidade que enseja um exame conforme ela própria, e não consoante outra criada pela lei; e esta não tem força para mudar uma realidade evidente.


A análise de qualquer das chamadas condições da ação demonstra que elas se referem à relação de direito material.[22]


Como bem acentua o processualista gaúcho, diante da realidade forense é difícil entendermos as condições da ação como a nossa legislação processual coloca, como condição prévia à análise da relação de direito material. Não há diferença alguma entre a impossibilidade abstrata do pedido, seja por falta de previsão legal, seja por expressa proibição, e a impossibilidade de se prestar a tutela jurisdicional no caso concreto. Nosso célebre processualista prossegue citando exemplo de Calmon de Passos[23], sobre a possibilidade jurídica do pedido: uma ação de usucapião intentada por autor que esteja na posse qualificada do bem imóvel há somente quatro anos e que, ao final, postule a condição de proprietário do bem. Sabemos que são necessários mais do que quatro anos na posse de determinado bem imóvel para que se possa julgar procedente uma ação de usucapião. À luz do nosso Código de Processo Civil, contudo, o autor da referida demanda seria julgado carecedor de ação, haja vista a impossibilidade jurídica de seu pedido, pois não há previsão legal que coadune sua pretensão a ver-se declarado proprietário de imóvel cuja posse exerce somente há quatro anos. A solução preconizada pelo ordenamento seria uma sentença de extinção sem resolução de mérito. Todavia, segue Fábio Gomes explicando o exemplo clássico de Calmon de Passos, se este mesmo autor tivesse intentado a mesma ação, sob as mesmas condições fáticas, mas “mentindo” acerca do tempo da sua posse, a solução dada pelo Código seria diversa. Ainda que durante o processo restasse comprovado que o autor detinha a posse somente há quatro anos, a sentença não seria mais de extinção sem resolução de mérito com base no art. 267, VI, do Código de Processo Civil, mas, sim, de improcedência da demanda com base no art. 269, I, do mesmo Diploma Legal. Ora, parece claro que não deveria haver diferença entre as respostas do Poder Judiciário, haja vista que a situação fática é rigorosamente a mesma em ambos os casos (de alegar os quatro anos ou de alegar o tempo que determina a lei).[24]


No mesmo sentido é entendimento de Adroaldo Furtado Fabrício:


“Por muito que nos tenhamos empenhado na meditação do assunto e por maior que tenha sido nosso esforço em penetrar as razões do convencimento que parece ser o da maioria (sobre ser a solução da lei), fortalecemos sempre mais nossa convicção no sentido de ser a sentença declaratória da impossibilidade jurídica uma típica e acabada sentença de mérito.”[25] (grifo nosso).


Seguindo na esteira das críticas à Teoria Eclética, Ovídio Baptista constata que Liebman confunde o direito à sentença de mérito (que é o estado de quem tem direito) com a ação que exercita esse direito. E Ovídio seguia dizendo que tanto o autor como o réu possuem direito e pretensão (exigibilidade) a que o magistrado decida a lide pelo mérito, tendo em vista que o autor, após a contestação do réu, não mais pode desistir da ação. O réu possui interesse legítimo em ver reconhecida a improcedência da ação. Todavia, não podemos dizer que o demandado está exercendo ação, pois, por óbvio, quem age é o autor. O réu simplesmente reage à atitude do autor. Ovídio conclui seu pensamento lecionando que autor e réu têm é a pretensão à tutela jurídica, de que cada um é titular, mesmo o litigante que não tenha razão.[26]


Com relação especificamente à legitimidade para a causa, Athos Gusmão Carneiro diz que aqui também há um equívoco, já que não se poderia considerar a legitimidade como condição da ação, como condição para se adentrar no mérito da demanda. Isso porque o conceito de parte está relacionado à identidade das partes no âmbito processual com os titulares da relação jurídica de direito material que se discute no processo. “Parte” é um conceito eminentemente processual. Para haver “partes”, é necessário que haja um processo. Assim sendo, não há como falarmos em parte processualmente ilegítima. [27]


Nessa esteira, diz Fábio Gomes:


“A contradição resta evidente. Ora, se a parte legítima é a titular, no pólo passivo ou ativo, da relação de direito material, e esta não se confunde com a relação jurídica processual, como identificá-las a não ser caindo na teoria do direito concreto?”[28]


No mesmo sentido é a posição adotada por Adroaldo Furtado Fabrício quanto à legitimação para a causa:


“Relativamente a esta “condição”, parece ainda mais difícil sustentar-se que seja matéria estranha ao mérito. Efetivamente, ao sentenciar que o autor não tem legitimatio ad causum, denega-lhe o juiz, clarissimamente, o bem jurídico que aspirava, posto que a sua demanda responde: ‘Se é que existe o direito subjetivo invocado, dele não és titular’. Proclamando o juiz, por outro lado, ilegitimidade passiva ad causum, declara que, em face do réu, não tem o autor razão ou direito. Em qualquer dos casos, há clara prestação jurisdicional de mérito, desfavorável ao autor – vale dizer, sentença de improcedência.”[29]


Por fim, quanto à última condição da ação, o interesse de agir, Fábio Gomes diz que a análise da necessidade do provimento jurisdicional para o autor depende substancialmente da ameaça ou violação ao direito que ele alega. Ou seja, não há como analisar de plano se a medida judicial é realmente necessária à parte sem antes adentrar na análise efetiva da relação de direito material posta à apreciação do Poder Judiciário.[30]


A fim de aclarar a questão, trazemos à baila exemplo de Pontes de Miranda: um credor propõe uma ação de cobrança contra seu devedor, que vem a juízo e afirma que possui quantia suficiente para compensar o crédito de forma extrajudicial. Com efeito, para que se possa efetivamente comprovar a ausência de interesse do autor desta ação, seria necessário examinar a relação jurídica material existente.[31]


Tal exemplo apenas confirma a impropriedade da divisão estanque entre condições da ação e mérito. Com efeito, tal separação é muito mais ficcional do que real, não havendo diferenciação ontológica significativa entre ambos os institutos.


Para finalizar esta visão crítica acerca das Condições da Ação, é ilustrativa a passagem escrita por Daniel Mitidiero:


“Na perspectiva dualista da ação, em que se diferencia a afirmação de uma ação de direito material do exercício da “ação” processual, as condições da ação são requisitos que se ligam à afirmação da ação de direito material (e, portanto, ao mérito da causa, como acertadamente reconhece grande parte da doutrina brasileira). E nenhum estranhamento pode causar esta assertiva, na medida em que a “ação” processual é abstrata e incondicionada, garantida pelo art. 5º, XXXV da Constituição da República (com o que não pode, evidentemente, estar submetida a condições de qualquer ordem), ao passo que a efetiva existência da ação de direito material só se afere com olhos postos no plano do direito material. Nesta linha de raciocínio, ademais, nenhuma razão há para considerar-se como juridicamente inexistente eventual sentença de mérito prolatada na ausência das condições da ação, porquanto o conceito correlato ao de jurisdição não é o de ação de direito material, mas sim tão-somente o de “ação” processual, que sempre existe e é sempre presente, uma vez que o seu desiderato se cinge à obtenção da resposta jurisdicional (e o juiz, nunca é demasiado lembrar, não se escusa de decidir).”[32]


Os defensores da Teoria Eclética buscam contornar o problema argumentando que a análise das condições da ação deve se dar de forma hipotética, o que não implicaria adentrar no mérito da demanda.


No mesmo sentido é também a ideia de Fábio Gomes, quando diz que para a maioria dos que adotam as ideias de Liebman, considerando a ação como direito a um provimento de mérito, uma vez extinto o processo por ausência de qualquer das condições da ação, poderá o autor novamente ajuizá-la.[33]


E conclui o doutrinador: “Em conclusão, entendemos restar demonstrada a absoluta impropriedade de se dar validade às condições da ação como categoria pertinente ao plano do Direito Processual, razão pela qual impõe-se a supressão das mesmas no nosso Código.”[34]


Portanto, para uma grande parte da doutrina, especialmente a gaúcha, as condições da ação se confundem com o próprio mérito, pois integram a relação de direito material, conforme expusemos nos parágrafos anteriores. Faz-se necessário, pois, que analisemos o que de fato é mérito.


Concordamos com este entendimento, que coloca as “condições da ação” dentro do mérito, pois não é possível analisá-las sem que se tome parte na demanda, ou seja, quando se está verificando a existência ou não destas condições, de fato, está-se analisando a própria relação jurídica de direito material, o que acarreta a análise do meritum causae, a despeito do que dispõe nosso direito positivo.


3. Mérito


O estabelecimento de conceitos é sempre uma tarefa árdua ao jurista. No que se refere ao mérito, não é diferente. Nas palavras de Dinamarco, referindo-se à conceituação de mérito na doutrina:


“Os autores que escreveram sobre o tema do meritum causae fizeram-no pouco mais do que de passagem, sem a preocupação específica de examiná-lo numa visão de conjunto ou analisar opiniões alheias; há os que colocam o conceito do mérito no plano das questões, ou complexo de questões referentes à demanda; os que se valem da demanda ou de situações externas ao processo; e há quem, como a Exposição de Motivos do nosso Código, identifique o mérito com a lide.”[35]


Segundo Ovídio Baptista da Silva: “o conceito de mérito tem sido, além de uma constante preocupação da doutrina processual civil, uma categoria fundamental, tanto do ponto de vista teórico quanto do nível da experiência dogmática”.[36] 


Darci Guimarães Ribeiro trabalha a questão da pretensão processual e do objeto do processo, tema este que se mostra bastante relevante para a definição de mérito, senão vejamos: “Pretensión procesal y objeto del proceso son conceptos sinónimos, que suponen la declaración de voluntad hecha por el actor, a través de una petición fundada, para obtener una sentencia.”[37]


3.1 Mérito no Plano das Questões


Essa conceituação de mérito encontra respaldo principalmente na doutrina italiana. Liebman[38] conclui que o “mérito é representado pelas questões, com influência na decisão (que o juiz prepara através da cognição) sobre a procedência ou improcedência da demanda”.[39]


Nas próprias palavras de Liebman:


O conhecimento do juiz é conduzido com o objetivo de decidir se o pedido formulado no processo é procedente ou improcedente e, em conseqüência, se deve ser acolhido ou rejeitado. Todas as questões cuja resolução possa direta ou indiretamente influir em tal decisão formam, em seu complexo, o mérito da causa. […]


Não se pode estabelecer qualquer regra sobre a ordem lógica em que as várias questões de mérito deverão ser examinadas: deverá o juiz, caso por caso, examiná-las e resolvê-las na ordem que lhe parecer mais conveniente.[40]


Contudo, é de suma importância ter em mente que as questões se apresentam de duas formas: “questões substanciais” e “questões materiais”. Não se deve confundir as questões relativas à relação de direito material que vêm surgindo ao longo do processo com o próprio direito material (mérito).[41] 


A diferença entre mérito e questões de mérito tem reflexos na estruturação da sentença. As questões referentes ao meritum causae são tratadas e resolvidas na parte da motivação da sentença. Todas as questões suscitadas pelas partes ao longo do processo devem ser analisadas e solucionadas pelo juiz de forma fundamentada. Na parte dispositiva, aí sim, se decide o mérito. Define-se quem tem razão, qual a pretensão que será tutelada pelo ordenamento, etc., ou seja, solucionar as questões que circundam o mérito, de fato, não é a mesma coisa que julgar o mérito em si.[42]


Segundo Chiovenda:


“A solução adotada pelo juiz para as questões lógicas suscitadas no processo, concernentes a pontos processuais ou substanciais, de fato ou de direito, exatamente por ser preparatória da decisão de recebimento ou de rejeição, não tem a eficácia peculiar a esta última; tem, somente, eficácia mais restrita, imposta por exigência de ordem e de segurança no desenvolvimento do processo e pela necessidade de fixar o resultado do processo que consiste na preclusão da faculdade de renovar a mesma questão no mesmo processo.”[43]


Outro argumento a corroborar a tese de diferenciação entre as questões e o mérito em si é o art. 469, I e II, do Código de Processo Civil.


Pela redação da lei, percebe-se que a autoridade da coisa julgada somente recai sobre a parte dispositiva da sentença, não tendo incidência sobre os fundamentos ou as questões resolvidas ao longo do processo. O magistrado percorre um caminho durante a tramitação do processo, no qual deverá enfrentar e solucionar questões postas a sua apreciação. Questões essas que servirão para a formação da convicção do juiz, que, ao final, deverá decidir o mérito, solucionando a lide.


A doutrina é pacífica no que diz respeito à impossibilidade de que as questões enfrentadas na sentença sejam acobertadas pela coisa julgada, tornando-se definitivamente julgadas, gerando efeitos fora daquele processo. Isso possibilita que os fundamentos e os fatos discutidos e resolvidos no processo possam ser novamente objeto de demanda judicial autônoma, na qual poderão ter solução diversa daquela dada no primeiro processo. O que se deve respeitar sempre é a coisa julgada, que vincula as partes à decisão de procedência ou improcedência da ação anteriormente proposta.


Bastante elucidativas são as palavras de Dinamarco:


“Se não fosse assim, o julgamento das questões pertinentes à situação jurídico-substancial controvertida, confundindo-se com o próprio julgamento do mérito, seria apto a obter a coisa julgada material e, na interpretação do art. 485 do Código de Processo Civil, chegaríamos a concluir que a ação rescisória teria também finalidade de afastar os fundamentos da sentença rescindenda. Chegar-se-ia também à conclusão, que toda a doutrina nega, de que a jurisdição valeria para o fim de alcançar questões e lançar soluções definitivas na interpretação do direito e na determinação da verdade ou inverdade de proposições de fato. E isso é negado pelo próprio direito positivo, através dos itens I e II do art. 469.”[44]


3.2 Mérito e Lide


O Código de Processo Civil de 1973, na exposição de motivos, estabelece uma identidade entre os conceitos de lide e de mérito:


“Lide é, consoante a lição de CARNELUTTI, o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um dos litigantes e pela resistência de outro. O julgamento desse conflito de pretensões, mediante o qual o juiz, acolhendo ou rejeitando o pedido, dá razão a uma das partes e nega-a à outra, constitui uma sentença definitiva de mérito. A lide é, portanto, o objeto principal do processo e nela se exprimem as aspirações em conflito de ambos os litigantes.”[45]


A Exposição de Motivos do Código de Processo Civil diz, ainda, que o projeto só utilizava a palavra lide para designar o mérito da causa, buscando a aplicação dos princípios da técnica legislativa, sendo um deles o do rigor da terminologia na linguagem jurídica.[46]


Contudo, no texto do atual Código, são várias as hipóteses em que se emprega a palavra lide designando o mérito da causa como, por exemplo, nos arts. 22, 46, I, 47, 110, 126, 325 e 468. Também é utilizada no Código de Processo Civil a expressão mérito, como nos arts. 267, 269 e 485, por exemplo. Ainda, há as expressões questão de mérito e sentença de mérito, que são utilizadas em artigos como 330, I e 267, § 3º, respectivamente.


Outrossim, Dinamarco, refere que está convencido da inadequação da colocação da lide como pólo metodológico na teoria do processo, porquanto não está satisfatoriamente explicada a hipótese de revelia ou reconhecimento do pedido, quando não há contraposição de pedidos, ficando-se com a ideia de que o processo não teria objeto nesse caso. O mesmo problema ocorre no momento anterior à contestação, em que ainda não se tem contraposição de demandas.[47]


É relevante para os fins desta pesquisa diferenciar-se o mérito da questão de mérito. A decisão sobre o mérito em si gera efeitos fora do âmbito do processo, atingindo a relação de direito material, obtendo a qualidade da imutabilidade, oriunda da coisa julgada material. Já no que pertine às questões relacionadas ao mérito, não há a geração de tais efeitos extraprocessuais.


O mérito é o objeto do processo. É objeto que se coloca diante do magistrado para que este se pronuncie acerca das questões trazidas pelas partes a juízo, é o conteúdo do processo. Numa primeira análise, já se sabe que o mérito da causa (ou objeto do processo) é algo trazido de fora, que dá causa à formação do processo e que dependerá de um pronunciamento do juiz.[48]


Esta pesquisa não comporta maiores digressões acerca de definições literais do que efetivamente seja o mérito para o processo civil brasileiro. O que de fato importa anotar é que, segundo nosso direito positivo, somente as sentenças terminativas é que têm o condão de produzir a coisa julgada material (auctoritas rei iudicatae).


Importante trazermos uma breve conceituação acerca da imutabilidade, que é conseqüência da coisa julgada material:


“A expressão coisa julgada deriva da expressão latina res iudicata, que significa bem julgado. O resultado final do processo de conhecimento normalmente atribui um bem jurídico a alguém. Define-se, assim, uma situação jurídica, estabelecendo-se a sua titularidade, passando esta definição, por causa da coisa julgada material, a ser imutável, razoavelmente estável ou marcadamente duradoura. Este bem jurídico é abrangido pela categoria dos direitos subjetivos.”[49]


Buzaid define mérito como o objeto do processo:


“Por outro lado, o autor, tomando uma realidade social, submete-se através da ação à apreciação do juiz, para que a conheça e decida; e este que, sem a atividade provocadora do autor, permanece inerte, passa então a examinar, como tema da sentença, aquela realidade social, mas tão-só dentro dos limites da proposta feita pelo autor. Este o objeto do processo, o mérito.[50]


Buzaid segue dizendo que o processo trabalha diretamente sobre a lide, ou seja, sobre o conflito de interesse qualificado pela pretensão resistida, conflito este que não é igual à relação jurídica substancial porventura existente entre as partes.[51]


Para Liebman, a definição de lide como sendo o mérito da causa poderia ser aceita se fizéssemos alguns reparos ao conceito de lide proposto por Carnelutti (que foi a posição adotada por nosso Código de Processo Civil, vale lembrar).  Diz Liebman:


“Lide é, portanto, o conflito efetivo ou virtual de pedidos contraditórios, sobre o qual o juiz é convidado a decidir. Assim, modificado o conceito de lide, torna-se perfeitamente aceitável na teoria do processo e exprime satisfatoriamente o que se costuma chamar de mérito da causa. Julgar a lide e julgar o mérito são expressões sinônimas que se referem à decisão do pedido do autor para julgá-lo procedente ou improcedente e, por conseguinte, para conceder ou negar a providência requerida.”[52]


Eduardo Ribeiro de Oliveira acompanha a ideia de Liebman de que o conceito de lide formulado por Carnelutti mereceria alguns reparos para que pudéssemos identificá-lo com o conceito de mérito:


Verifica-se, do exposto, que em duas classes de ações o conceito carneluttiano de lide não tem aplicação em sua inteireza. Relativamente a uma delas, ele próprio o admite, quando sustenta a existência de processo sem lide que corresponde à hipótese examinada por Calamandrei sob o nome de processo inquisitório. Outros casos, o de certos pedidos declaratórios, em que o comportamento do réu também não será apto para fazer desaparecer o interesse do autor. Não se poderia, pois, afirmar que houvesse pretensão resistida, necessária na doutrina de Carnelutti para existir lide.[…]


Há que se aceitar, em decorrência de todo o exposto, que a adoção pura e simples do conceito de lide formulado por Carnelutti e sua aceitação como apto a definir o mérito levaria a que em alguns processos não seria possível demarcar-lhe os contornos. Sendo esta conclusão inaceitável, formulação mais abrangente haverá de ser buscada em que não se empreste maior relevo à conduta do réu, posto que nem sempre decisiva. Parece que, para isso, haverá que se afastar a menção à resistência, circunstância de que por vezes se prescinde. Lícito falar-se em conflito de interesses qualificado por pretensão insatisfeita.[53]


Ovídio Baptista, contudo, discorda desse posicionamento de que mérito equivaleria à lide. Para os defensores desta teoria, o conceito de mérito está intimamente ligado a duas premissas essenciais: (a) a decisão de mérito cinge-se ao ato de julgar, razão pela qual diz-se que julgar a lide é o mesmo que julgar o mérito; (b) somente haverá verdadeiro julgamento (leia-se decisão de mérito) quando o magistrado manifestar-se sobre o pedido do autor para julgá-lo procedente ou improcedente. Isso faz concluir que qualquer provimento do juiz que não seja um julgamento definitivo, não seria de mérito. Se entendermos que o conceito de mérito corresponde ao julgamento da lide, parece correto que a concessão de uma medida liminar não será decisão de mérito. Para conceder ou negar uma liminar, o juiz baseia-se num juízo de probabilidade, sem pronunciar-se definitivamente pela procedência ou improcedência da pretensão posta em causa pelo requerente.[54]


E conclui a crítica à ideia de Liebman:


Em última análise, e para simplificar as coisas, o provimento de mérito com que o juiz, para empregarmos as palavras de Liebman, ‘define a lide’, será necessariamente um juízo declaratório e, como tal, definitivo e irrevogável. Se o juiz disser, como deverá dizê-lo ao conceder a medida liminar, que o direito do autor é provável; que, do exame por ele feito do material probatório então disponível, pareceu-lhe verossímil o direito do autor, tais declarações sobre o merecimento (sobre o mérito) do pedido são inteiramente irrelevantes, como ‘definição da lide’. Mesmo que o julgador, expressando-se de modo incorreto, dissesse, naquele momento processual, estar comprovado o direito do autor e ele plenamente convencido da procedência da ação, ainda assim tal declaração ou seria inútil, por ser reversível (revogável) na sentença final; ou acabaria valendo como declaração definitiva. […]


Isto permite-nos uma conclusão interessante. Nem a assertiva de Buzaid identificando o ‘objeto do processo’ com o mérito da causa é correta, pois haveria tratamento da lide que não se identificaria com o julgamento de mérito; e nem o entendimento de Theodoro Jr., ao afirmar que ‘lide e mérito são sinônimos’ é verdadeiro. A lide pode ser tratada através de uma medida liminar, sem que o mérito seja sequer tocado; assim, como poderá sê-lo, por exemplo, nas ações de despejo e de esbulho possessório, objeto de provimento executório decorrentes do julgamento de mérito, ou julgamento da lide, conceitos estes, sim, como disse Liebman, sinônimos perfeitos. Mesmo não sendo, o provimento executório, um julgamento de mérito, ninguém lhe negaria a condição de ‘objeto do processo’.[55]


Galeno Lacerda, assim como Ovídio Baptista, não comunga do entendimento de que lide e mérito seriam conceitos equivalentes.  Para o autor, mérito é um conceito que implica juízo de valor aplicado à conduta humana. Filosoficamente, é a propriedade do ato, em virtude do qual o sujeito ativo receberá uma recompensa ou sofrerá uma pena. Em síntese, diz Galeno, pode-se definir mérito como sendo a propriedade do pedido do demandante da ação processual conformar-se ou não com o direito e, via de conseqüência, ser acolhido ou rejeitado. Para ele, todo juízo de valor consistirá numa sentença de mérito.[56]


3.3 Mérito sob a Ótica da Demanda


Dinamarco diz que há uma tendência na doutrina a estabelecer uma ligação direta entre a demanda posta à apreciação do Poder Judiciário e o mérito. Isso porque a sentença que julga a demanda seria uma sentença de mérito.[57] Essa ideia restou positivada em nosso código, no art. 269, inciso I.


Mérito seria, então, a decisão definitiva do juiz acerca do que as partes tenham proposto.


No mesmo sentido é a opinião de Galeno Lacerda, in verbis:


“Para o direito processual, interessa somente o conflito tal como se apresenta nos pedidos. Este que é o julgado. O mérito só a ele se refere. Se acaso o litígio real foi mal formulado, pouco importa. Qualquer retificação tendente a traduzir com acerto a contenda extraprocessual, através de outra ação, será representação de novo conflito, diverso do anteriormente ajuizado, de mérito inconfundível com o deste.”[58]


Contudo, Cândido Rangel Dinamarco discorda desse pensamento:


“Não creio que a demanda seja o mérito da causa. Vejo nela, apenas, o veículo de algo externo ao processo e anterior a ele, algo que é trazido ao juiz em busca do remédio que o demandante quer. A demanda é fato estritamente processual, é ato formal do processo, que com ele tem vida e nele se exaure. Ele é o veículo da pretensão do demandante, que é uma aspiração a determinado bem ou a determinada situação jurídica que, sem o processo e sem a intercessão judicial, o sistema o impede de obter.”[59]


3.4 Mérito e Situações Externas ao Processo


Dinamarco traz em sua obra “Fundamentos do Processo Civil Moderno” a análise desta concepção de mérito.  O meritum causae seria uma situação externa ao processo em si. O conflito de interesses, a existência ou inexistência da relação jurídica posta à apreciação do Poder Judiciário através da ação processual é que seria o mérito. Ou seja, a identificação de mérito se daria com elementos extraprocessuais, oriundos da vida cotidiana das partes.[60]


Na seqüência da apresentação dessa teoria que busca a conceituação de mérito, Dinamarco posiciona-se em sentido contrário ao que ela preconiza, conforme se afere desta passagem da obra acima citada:


Embora tudo leve a aceitar que o mérito se identifique em algo que vem de fora do processo para ele, ou seja, algo na vida comum das pessoas (porque o processo é criação dos juristas e seu uso visa a prestar um serviço às pessoas, em seu relacionamento em sociedade), não podemos afirmar que ele seja constituído pela relação jurídica controvertida. […]


Além disso, o processo de execução faz-se sem que necessariamente haja controvérsia em torno da relação jurídica afirmada pelo demandante – o que levaria à conclusão de que poderia ser também, muitas vezes, destituído de objeto (e não falta quem o diga).[61]


Também em contraposição a essa ideia, temos a visão de Galeno Lacerda: “A controvérsia fora do processo é desprovida, assim, de relevância, quer para caracterizar o mérito, quer para definir as condições da ação, as quais só no pedido podem ser buscados.”[62]


Para a conceituação de mérito, é necessário que se busquem elementos que não fazem parte do mundo do próprio processo. As sentenças de mérito decidem a querela apresentada, ou seja, é o resultado valorativo sobre uma situação da vida social das partes, que se encontra em outro âmbito, que não o do processo.[63]


3.5 Mérito e Pretensão


Importante trazermos à baila o conceito de pretensão de Sérgio Gilberto Porto:


“A ideia de pretensão representa, em última análise, a possibilidade de alguém exigir de outrem uma prestação negativa ou positiva, e o ato de exigir a prestação se define como exercício da pretensão. Embora tenha fundamento, essa concepção não se confunde com o direito subjetivo, eis que se constitui, isto sim, em uma nova virtualidade de que se reveste este; também não se identifica com a noção de ação (demanda), haja vista que representa apenas o poder de agir, o direito de exigir, a possibilidade de exigência de subordinação de um interesse alheio ao próprio, ainda na fase pré-processual.”[64]


A pretensão à satisfação de um interesse é a exigência de que o interesse alheio se subordine ao seu; é a busca pelo bem da vida; a busca por uma conduta da outra parte que satisfaça o seu interesse. A pretensão constitui o elemento essencial da demanda.[65]


Daniel Mitidiero define pretensão como sendo: “um estado de espírito que se exterioriza em atos de exigência, não uma situação do sujeito perante a ordem jurídica”.[66]


Para Darci Ribeiro:


El objeto del proceso representado por la pretención procesal se individualiza a través de dos elementos: el objetivo, petitium; y el causal, causa petendi, puesto que el núcleo em torno al que giran todas las actividades de las partes constituye la petición fundada (‘meritum causae’) presentada por el actor.en cambio, para individualizar el objeto del debate es necesario um tercer elemento: el subjetivo, actor y demandado; ya que en virtud de uma visión completa del pricipio dispositivo, que engloba tanto la pretención procesal del actor como las excepciones del demandado, el núcleo sobre el que giran las actividades de las partes constituye el análisis de todas las cuestiones relativas al fondo.”[67]


Após a análise de diversos aspectos da conceituação de mérito na doutrina, Dinamarco concluiu que a pretensão é que consubstancia o mérito:


“Por tudo quanto foi dito nos itens precedentes, fica, portanto, a certeza de que é a pretensão que consubstancia o mérito, de modo que prover sobre este significa estabelecer um preceito concreto em relação à situação trazida de fora do processo. O ato jurisdicional cumpre o escopo social do processo, ao remover as incertezas representadas pelas pretensões insatisfeitas.”[68]


Com esta análise doutrinária acerca do mérito, fica claro que se trata de uma questão ainda muito controvertida, razão pela qual há tantas divergências entre autores renomados.


4. Conclusão


Após o exame crítico acerca das condições da ação e do mérito, verifica-se que, não obstante nosso Código de Processo Civil tenha adotado a Teoria Eclética de Liebman, ela não reflete a realidade fática das relações jurídicas, o que demanda do aplicador do direito um trabalho interpretativo árduo, a fim de adequar o processo à realidade do direito material.


As questões decididas pelo juiz no processo ou são questões processuais ou são questões de mérito. Os três elementos elencados por Liebman como condições da ação, são, na verdade o próprio mérito da ação. Dizer, por exemplo, que o réu não deve ao autor porque não é seu nome que consta no título é, na verdade, dizer que a ação é improcedente porque a parte é ilegítima. Está-se, a toda evidência, analisando o mérito da causa. Tanto é assim que este autor não poderá, depois do trânsito em julgado da decisão, renovar (de forma legítima) a mesma ação contra o mesmo réu. Esbarrará sempre e sempre no óbice da coisa julgada, que reconheceu não ser o réu devedor daquela determinada obrigação.


Não obstante isso, nosso ordenamento processual permite a repropositura da demanda se a extinção tiver se dado sem a resolução do mérito, por ilegitimidade passiva, o que leva a subseqüentes extinções por carência de ação. Conforme analisado no presente artigo, vê-se que não há lógica alguma nesse procedimento. Melhor seria se a ação do exemplo em tela fosse julgada improcedente, de modo a evitar, ao menos em tese, a renovação da demanda. 


Como dito anteriormente, não há diferença significativa entre condições da ação e mérito do ponto de vista ontológico. Todavia, a despeito das críticas às condições da ação, não há, ao menos até que haja alguma alteração legislativa, como deixar de aplicá-las aos processos judiciais, de modo que seu estudo nos bancos acadêmicos ainda permanece válido e útil.


 


Referências bibliográficas:

[1] [1]LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil I. Tradução e notas de Cândido Rangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 161.

[2] ANGELO, Liege Marques. As condições da ação e a carência de ação. Porto Alegre: PUCRS, 1992. 99f. Monografia (Especialização em Processo Civil), Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1992, p. 62.

[3] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Comentários ao Código de Processo Civil. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 3. (Arts. 270-331), p. 245-6

[4] ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil: parte geral. 8 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. v. 1, p. 443.

[5] CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 260.

[6] LIEBMAN, 1984, p. 156.

[7] RIBEIRO, Darci Guimarães. La pretención procesal y la tutela judicial efectiva: hacia una Teoria Procesal Del Derecho. Barcelona: Bosch, 2004, p. 208.

[8] CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1969. v. 1, p. 66.

[9] LIEBMAN, 1984, p. 159.

[10] ALVIM, 2003, p. 450.

[11] Por exemplo, THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007., p. 57, SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 23. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2004. 2v, p. 164.

[12] Por exemplo, SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil: processo de conhecimento. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 1, p. 108-9, MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao código de processo civil. São Paulo: Memória Jurídica, 2005. Tomo II. (Arts. 154-269), p. 534.

[13] GOMES, Fábio Luiz. Carência de ação. Porto Alegre: PUCRS, 1997. 94f. Dissertação (Mestrado em Direito), Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1997, p. 66.

[14] SILVA, 2000, p. 108-9.

[15] BOTELHO DE MESQUITA, José Inácio. Da ação civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975, p. 94.

[16] BORGES, Osvaldo Afonso. Inépcia da petição inicial e direito de ação. Revista Forense, Rio de Janeiro: Forense, v. 138, p. 312-316, 1951, p. 315.

[17] GOMES, 1997, p. 69.

[18] MITIDIERO, 2005, p. 530.

[19] No mesmo sentido: ASSIS, Araken de. Cumulação de ações. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 64-9, FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Extinção do processo e mérito da causa. In: ______. Ensaios de direito processual. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 390-1, BEDAQUE, Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 83-4.

[20] SILVA, 2000, p.101-2.

[21] MITIDIERO, op. cit., p. 537.

[22] GOMES, 1997, p. 80.

[23] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Em torno das condições da ação: a possibilidade jurídica do pedido. Revista de Direito Processual Civil, Rio de Janeiro: Saraiva, v. 4, p. 61-2, 1964.

[24] GOMES, 1997, p. 82.

[25] FABRÍCIO, 2003, p. 381.

[26] SILVA, 2000, p. 108.

[27] CARNEIRO, Athos Gusmão. Intervenção de terceiro. 15. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 43.

[28] GOMES, 1997, p. 82.

[29] FABRÍCIO, 2003, p. 385.

[30] PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Comentários ao Código de Processo Civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. Tomo I, p. 187.

[31] PONTES DE MIRANDA, 2001, p. 187.

[32] MITIDIERO, 2005, p. 536.

[33] GOMES, 1997, p. 88.

[34] GOMES, 1997, p. 88.

[35] DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 234.

[36] SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Conteúdo da sentença e mérito da causa. In: ______. Sentença e coisa julgada: ensaios e pareceres. 4. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 231.

[37] RIBEIRO, 2004, p. 132.

[38] Adiante veremos que Liebman também identifica mérito com lide, desde que feitos alguns reparos no conceito de Carnelutti sobre lide.

[39] DINAMARCO, op. cit., p. 240

[40] LIEBMAN, 1984, p. 170-1

[41] DINAMARCO, 2000, p. 241

[42] DINAMARCO, 2000, p. 241.

[43] CHIOVENDA, 1969, p. 374-5.

[44] DINAMARCO, 2000, p. 244-5.

[45] BRASIL. Exposição de Motivos do Código de Processo Civil. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Diário Oficial, Brasília, DF, 31 jul. 1972.

[46] BASTIAN, Syomara Regina Voltolini. As condições da ação e o mérito da causa. Porto Alegre: PUCRS, 1991. 103f. Monografia (Especialização em Processo Civil), Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1991, p. 76.

[47] DINAMARCO, 2000, p. 254.

[48] DINAMARCO, 2000, p. 239.

[49] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada: hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 20.

[50] BUZAID, Alfredo. Do agravo de petição no sistema do código de processo civil.   2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1956, p. 101.

[51] BUZAID, 1956 p. 101 et seq.

[52] LIEBMAN, Enrico Tullio. Estudos sobre o processo civil brasileiro. São Paulo: J. Bushatsky, 1976, p. 122.

[53] OLIVEIRA, Eduardo Ribeiro. Notas sobre o conceito de lide. Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 14, p. 85-95, 1984.

[54] SILVA, 2003, p. 233-4.

[55] SILVA, 2003., p. 235.

[56] LACERDA, Galeno. Despacho saneador. 3. ed. Porto Alegre: Ed. Sérgio Antonio Fabris, 1990, p. 83.

[57] DINAMARCO, 2000, p. 246.

[58] LACERDA, 1990, p. 86.

[59] DINAMARCO, op. cit., p. 247.

[60] DINAMARCO, 2000, p. 248.

[61] DINAMARCO, 2000, p. 248-9.

[62] LACERDA, 1990, p. 86.

[63] DINAMARCO, op. cit., p. 248-51.

[64] PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada civil. 2. ed. Rio de Janeiro: AIDE, 1998, p. 21.

[65] DINAMARCO, 2000, p. 254.

[66] MITIDIERO, 2005, p. 537.

[67] RIBEIRO, 2004, p. 208.

[68] DINAMARCO, op. cit., p. 255.


Informações Sobre o Autor

Cristina Nunes Flores

Servidora pública federal, Técnica Judiciária da Justiça Federal do Rio Grande do Sul; Bacharel em Direito; Especialista em Direito Civil e Processual Civil.


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