Constitucionalismo, estado e direito administrativo no Brasil

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Sumário: I – Estado, constitucionalismo e administração pública na era Vargas; II – A redemocratização com a Constituição de 1946; III – Formação do direito administrativo brasileiro na era Vargas; IV – O regime militar e a Reforma Administrativa; V – Consolidação do direito administrativo entre 1967 e 1988; VI – Constituição Federal de 1988 e seus reflexos; VII – Crise do Estado no Brasil,  Reforma Administrativa e paradigma da eficiência ; XIII – Reflexos da reforma gerencial no direito administrativo; IX – Desenvolvimento do constitucionalismo democrático; X – O novo constitucionalismo e o direito administrativo; XI – Conclusões.


I – Estado, constitucionalismo e administração pública na era Vargas


O ciclo que se inicia na década de 30 no Brasil é marcado por intensas transformações na estrutura social e institucional do país. Os poderosos grupos ligados à exportação de matérias primas como o café e o algodão se enfraquecem com a crise financeira de 29 e a recessão que a acompanha, diminuindo o domínio político das oligarquias da Velha República. Aparecem novos grupos urbanos com interesses mais domésticos: uma burguesia nacional, classes médias, trabalhadores urbanos e funcionários públicos. O esfacelamento do velho Estado, a universalização do sufrágio, o processo de industrialização, o surgimento de uma crescente população urbana, o aparecimento de um movimento sindical atuante, ocasionará o surgimento de uma democracia social de massas, fazendo-se necessária a incorporação dessas novas massas na nova dinâmica social e política, que tinha como condutor um novo Estado nacional. As palavras de ordem desde momento histórico eram desenvolvimento e nacionalismo.[1]


A instabilidade da economia capitalista e os imperativos de desenvolvimento econômico, que tinham como motor a industrialização, irão demandar uma intensa atuação do Estado. Surge no Brasil um Estado promotor do desenvolvimento, responsável pela transformação das estruturas sociais e econômicas, incorporando à vida nacional as novas forças sociais. Getúlio Vargas e as forças que o apoiaram desencadeiam um processo de reestruturação e modernização do Estado brasileiro.


Visando coibir os abusos da Velha Republica, e cumprir promessas da Revolução de 30 de sanar os vícios da representação política, o Governo Provisório de Getúlio Vargas promulgou o Código Eleitoral (Decreto nº  21.076/1932), garantindo-se o voto secreto, o voto feminino e o voto dos maiores de 18 anos. Institui-se uma Justiça Eleitoral com a tarefa de proceder ao alistamento eleitoral, regular e fiscalizar o processo eleitoral, diplomar os eleitos e dirimir os conflitos. Implantou-se o sistema proporcional garantindo-se, assim, alguma representação às minorias e se estabilizando o regime, uma vez que a oposição passaria a ser feita de forma legal e aberta no Parlamento, que deveria ter uma maioria capaz de dar estabilidade ao governo.[2]


Após a promulgação da Constituição de 1934, as discussões e disputas políticas se travam entre os “liberais”, os tenentes e os adeptos do autoritarismo. O momento era de perplexidade dos “liberais”, em grande parte ligados às oligarquias da Velha República, diante a radicalização ideológica e do ingresso das camadas populares urbanas no sistema político. No contexto da passagem da política centrada nas oligarquias estaduais para uma política de massas, o pensamento liberal cedeu cada vez mais espaço ao pensamento autoritário, fundado nos novos interesses sócio-econômicos. Na disputa de poderes decorrente da nova correlação de forças o cerne das discussões políticas passava a ser centralização contra autonomia estadual, com reflexos no pacto federativo. As novas forças lideradas por Getúlio inclinavam-se para uma centralização autoritária, vista como único meio de modernização do país de dimensões continentais infestado por oligarquias regionais atrasadas.[3] O governo populista de Getúlio Vargas tentará enfraquecer as antigas elites, enquanto os liberais passarão a defender a autonomia dos Estados contra as tendências totalitárias. Cabe, aqui, lembrar com José Guilherme Merquior que “em nosso Estado patrimonial-protecionista, digno senhor de uma sociedade senhorial e patriarcal, o liberalismo foi, com freqüência, mais fachada que substância.”[4]


O constitucionalismo social implantado com a Constituição de 34 importará em significativas mudanças no clássico princípio da separação do poderes herdado do constitucionalismo liberal, com base no qual se vinha estruturando o Estado e o direito público gestado pelo liberalismo. Esta mudança se fará sentir principalmente nas relações entre o legislativo e o executivo.


Com as atribuições ampliadas do Estado, o Poder Executivo tornou-se o centro da vida estatal, tornando-se esta centralidade doravante algo marcante na engenharia institucional republicana brasileira. No Brasil, e cada vez mais, como observa Renato Boschi[5], subjacente à noção de Estado estaria a figura do Poder Executivo, a partir da qual se ordenariam todas as relações sociais, incluindo as que se estabelecem com os demais poderes, sobretudo com o Legislativo e a sociedade. Esta nova reconfiguração do espaço público dará a tônica do novo padrão de relacionamento entre o Estado e os interesses organizados no país. Os vários segmentos sociais passam a ver no Estado um lócus privilegiado para a garantia e maximização de seus interesses. O sentido da ação estatal dá-se pela hierarquização dos interesses sociais, definidos e articulados em suas políticas ou omissões. Não é uma direção auto-determinada, mas também não se reduz ao jogo das forças políticas, levando-se em conta que a atuação do Estado alterará constantemente as mesmas correlações de forças que constituem sua base material.[6]


A partir da Constituição de 1934, com o esgotamento do pretenso “liberalismo” da Velha República, teremos o surgimento de um constitucionalismo social norteado pelo ideal democrático de igualdade material, que consubstanciará, ao lado dos tradicionais direitos individuais, típicos do constitucionalismo liberal, um crescente rol de direitos sociais, que demandarão cada vez mais “prestações” a serem implementadas direta ou indiretamente pelo Estado.


Este constitucionalismo social, contudo, não conseguirá se constituir numa referência para o projeto nacional-desenvolvimentista do Estado brasileiro. Um “grande direito administrativo”, identificado como principal referência de um “direito de Estado”, e o direito econômico serão as principais referências de atuação do Estado brasileiro, e não a Constituição.[7]


A progressiva atuação estatal na conformação da nova ordem econômica e social, crucial para o projeto de desenvolvimento nacional, demandou o aparecimento de um verdadeiro Estado administrativo, formado por uma complexa rede de organizações administrativas e uma crescente burocracia de funcionários. A disciplina jurídica deste complexo Estado administrativo será objeto de um direito administrativo fortemente influenciado pelo modelo jurídico-administrativo francês, com as necessárias adaptações às peculiaridades e mazelas da vida nacional.


Para o sucesso do projeto desenvolvimentista nacional, e a inclusão das novas massas, será necessário a modificação das estruturas administrativas patrimonialistas herdadas do ancien regime, com a implementação de um aparato administrativo mais profissional e moderno, nos moldes do modelo weberiano burocrático, de caráter racional-legal, calcado na separação entre o público e o privado, na impessoalidade, na hierarquia e em normas procedimentais rígidas e universais, com observância de regras claras de competência. A implantação deste modelo foi considerada um grande avanço em face da administração patrimonialista até então predominante, no plano federal e nos Estados membros, uma vez que a observância de critérios de legalidade e impessoalidade eram pré-requisitos necessários para um novo modelo estatal, mais democrático e sensível à igualdade entre os cidadãos.


Foram regulamentados setores importantes e delicados da administração pública, especialmente no que se refere às compras governamentais (1931), à gestão de pessoas (1936) e à execução financeira e orçamentária (1940). Também foram instituídos órgãos encarregados de controlar as organizações administrativas e sua burocracia, como o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), que, nascido em 1963, teve longa e importante trajetória no Brasil, sendo extinto apenas em 1986.


Com o fortalecimento do DASP e a grande centralização política e administrativa que ocorreu entre 1930 e 1945, a administração pública passou a desempenhar um papel fundamental na sustentação política do getulismo, que tinha dois pilares importantes: o controle da administração pública e a nomeação dos dirigentes das províncias, no período do Estado Novo. Assim, ao lado das tentativas de modernização administrativa, desenvolve-se também a prática de utilização da administração pública como instrumento de barganha política, fazendo com que o processo de implantação de uma administração racional-legal no Brasil fosse marcado por características e injunções políticas permeadas por um viés patrimonialista muito intenso.[8]


II – A redemocratização com a Constituição de 1946


Encerrada a 2ª Grande Guerra, as grandes potencias tratam de arquitetar a nova ordem mundial, alicerçada num maior concerto entre as nações e num capitalismo mais organizado. Para tanto foram instituídas instituições internacionais importantes como a ONU, o FMI, o Bando Mundial e o GATT. O Estado de Bem Estar aparecia como um novo consenso entre socialistas, empresários e classes médias. Esta nova ordem, mais aberta que a anterior, combinava, com gradações distintas, nacionalismo e internacionalismo, aspetos sociais e mercado, estabilidade social e democracia política.


No Brasil, a Constituição de 1946 marcou a restauração da democracia. Os três grandes partidos políticos – PTB, PSD e UDN – tornaram-se efetivamente nacionais, embora cada um deles fosse mais forte em determinadas regiões. Assim, o PSD e o PTB eram mais fortes em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul, respectivamente, e, curiosamente, nenhum dos três partidos era forte em São Paulo, onde vicejavam figuras populistas como Ademar de Barros e Jânio Quadros. Depois de proscrito, o PCB voltou à vida pública.


A Carta de 46, na parte dedicada à ordem econômica e social (artigos 145 a 162), consagrou definitivamente a intervenção do Estado na economia como forma de corrigir os desequilíbrios causados pelo mercado e como mecanismo alternativo de desenvolvimento dos setores considerados estratégicos. O Estado nacional retoma o ideário do desenvolvimento econômico via industrialização e substituição de importações.


Rompendo com o centralismo do Estado Novo iniciado em 1937, bem como com o federalismo dual clássico de competências distintas, a Constituição de 1946 consolidou a estruturação de um federalismo cooperativo, com a previsão de competências comuns e concorrentes, dando grande ênfase à autonomia dos Estados e à redução dos desequilíbrios regionais, embora a dinâmica do processo político nacional ainda importasse em grande concentração de poder no Executivo federal. Doravante, o federalismo brasileiro consistirá numa intrincada combinação institucional de centralização e descentralização política. A descentralização será uma conseqüência natural do processo democrático e da reivindicação de autonomia por parte de estados e municípios, ao passo que dozes elevadas centralização política serão consideradas necessárias para a modernização econômica e administrativa do país, mormente em face ao atraso das elites locais e suas seculares práticas patrimonialistas. 


Neste período que se seguiu à Constituição de 1946, o tema da administração pública não ingressou na agenda política. A continuidade do projeto desenvolvimentista implicou numa maior descentralização administrativa, com a criação de diversas autarquias e empresas públicas, passando estas últimas a serem instrumentos estratégicos da ação estatal no campo econômico, financeiro e na prestação de serviços públicos. JK, além de muito ocupado com a criação de Brasília, preferiu criar novas estruturas alheias à administração direta para a solução dos problemas que apareciam, instituindo-se no país uma máquina administrativa cada vez mais complexa e carente de coordenação entre seus diversos setores.


Nesta fase, o Estado passará a atuar cada vez mais diretamente como agente econômico nos setores considerados “de interesse nacional”. Sendo o principal artífice de toda a vasta infra-estrutura necessária ao desenvolvimento econômico, o Estado passará a se envolver cada vez mais com estradas e rodovias, portos e aeroportos, e com toda uma série de serviços públicos como abastecimento de água, energia elétrica, telecomunicações. O Estado controlará a produção de petróleo, aço e produtos químicos, bem como instituirá redes bancárias para o financiamento da produção e do comércio.


Pareceu conveniente que muitos destes “serviços” prestados pelo Estado se sujeitassem às regras jurídicas aplicáveis ao setor privado, de forma a assegurar uma maior maleabilidade de gestão onde o Estado atuasse em regime de monopólio ou uma melhor inserção das empresas estatais nos setores em que atuassem em regime de concorrência. Assim, já se admitia neste período a possibilidade de uma gestão pública que lançasse mão de instrumentos gerenciais inerentes ao setor privado, com a submissão de largos setores da administração estatal aos regimes de direito privado.


Ao final deste ciclo teremos, nos anos 60, um Estado social com um país razoavelmente industrializado. Embora tivéssemos um “Estado social”, não tínhamos uma sociedade de bem estar para a grande maioria d população. Este “Estado social”, contudo, apesar de tudo, alavancou um projeto de desenvolvimento, a despeito das persistentes desigualdades regionais e sociais, tornando-se cada vez mais pressionado por interesses privados, político-partidários e corporativos fortemente organizados.[9]


III – Formação do direito administrativo brasileiro na era Vargas


Será na era Vargas (1930-1964) que se estruturará o “direito administrativo brasileiro”. Este direito administrativo volta-se para regulação de uma administração pública racional-legal-burocrática, com certas características básicas do ponto de vista organizacional e funcional. Do ponto de vista organizacional temos uma administração pública bastante hierarquizada, que desempenha atividades ligadas a um “poder de polícia” cada vez mais intenso, à prestação de um crescente número de “serviços públicos” à população, a uma atuação direta como “agente econômico” e ao fomento de certos setores considerados estratégicos ou importantes. Este direito administrativo busca direcionar as práticas administrativas para realização dos “interesses públicos”, frequentemente interpretados como “interesses do Estado”. A expressão “a bem do serviço público” será a principal forma de motivação sumária dos atos administrativos.


As novas necessidades decorrentes da expansão do poder de polícia e dos serviços públicos, em consonância com as novas tarefas assumidas pelo Estado no constitucionalismo social, conduziram a uma grande ampliação dos poderes administrativos. As idéias de “prerrogativas de direito público” ou de “meios exorbitantes do direito comum” se imporão com vigor neste período. Também em sintonia com o pensamento liberal e positivista dominante, já em 1941 Seabra Fagundes lecionava que  “administrar é aplicar a lei de ofício”[10]. A atuação administrativa se dará predominantemente através de atos administrativos unilaterais, com o uso de prerrogativas especiais.


Em sintonia com o constitucionalismo liberal, que nutria uma certa suspeita em relação ao Poder Executivo, que se receia atente contra os direitos individuais, o direito administrativo se construirá em torno das necessidades de limitação e controle de uma administração pública cada vez mais onipresente. Por outro lado, a necessidade do poder executivo dispor dos meios necessários à satisfação dos interesses públicos, ampliados no constitucionalismo social, fará apelo a uma concessão de privilégios e prerrogativas à administração. Essa tensão entre prerrogativas especiais e limitações será uma constante em todo o direito administrativo brasileiro, como em outros países, podendo o ponto de equilíbrio ser alterado de acordo com os movimentos pendulares da política e do direito.


O paradigma jurídico-administrativo que se implantou era resultado de uma combinação de princípios do constitucionalismo liberal dominante e das exigências no novo constitucionalismo social, que alterara o princípio da separação dos poderes pela grande concentração de atribuições do Estado no Poder Executivo. Este constitucionalismo liberal privilegiava uma dimensão negativa dos direitos individuais, centrando-se na proteção de uma autonomia privada em face dos excessos da intervenção estatal. Reflexos desta cultura jurídica, marcadamente positivista e privatista, comprometida predominantemente com a defesa de um sistema de direitos voltados para a garantia da autonomia privada dos “particulares”, e com uma concepção mais representativa e menos participativa de democracia, influenciarão a estruturação inicial do direito administrativo brasileiro. [11]   


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Assim, desenvolve-se a dogmática do direito administrativo com seus conceitos e categorias peculiares, quais sejam: legalidade administrativa, prerrogativas da administração pública, ampla discricionariedade administrativa, não controle do mérito do ato administrativo pelo juridiciário, etc. A figura do “ato administrativo” ocupará o centro desta dogmática, desenvolvendo-se aqui uma exaustiva teoria. Nesta teorização, o “ato administrativo” realizará um “duplo jogo”. Por um lado, será visto como um “privilégio da Administração”, manifestação do poder administrativo no caso concreto, um ato unilateral cujos efeitos são suscetíveis de serem impostos aos particulares por via coativa. Por outro lado, se constituirá em instrumento de garantia dos particulares, na medida em que abre acesso a via do controle jurisdicional, permitindo a sua defesa contra as atuações administrativas arbitrárias. [12] Formou-se, assim, um quadro institucional e teórico marcado por “compromissos práticos” entre princípios liberais ao nível da organização política – suspensos durante o Estado Novo e a Ditadura de 64 – e princípios autoritários ao nível da da administração pública, apresentando-se o direito administrativo como o “ponto de convergência” destes compromissos.[13]


 Estes “compromissos” entre uma noção liberal de poder político e uma concepção autoritária de administração pública era dogmaticamente traduzido pelo reconhecimento de direitos civis e políticos em face do poder político, e, no plano administrativo, por uma noção autoritária de “interesse público” e pela intangibilidade do mérito do ato administrativo pelo poder judiciário. Embora o constitucionalismo social da era Vargas acenasse com inúmeras “prestações positivas” por parte do Estado, tais prestações eram muitas vezes negadas no plano burocrático, cabendo aos “administrados” um mero “direito à legalidade administrativa”, nos padrões liberais.


No plano doutrinário, o constitucionalismo social surgido com as Constituições mexicana (1917) e de Weimar (1919), inspirava-se num ideário de democracia-igualitária e na tentativa de superação do constitucionalismo liberal, buscando um fortalecimento de uma esfera pública que propiciasse a inclusão das novas massas excluídas da dinâmica social. Para este constitucionalismo era de fundamental importância a busca de um novo equilíbrio entre “autonomia privada” e “autonomia pública”. Tratava-se, aqui, de promover uma “equiprimordialidade”, para usar uma expressão para tarde cunhada por Habermas, entre a autonomia privada e a autonomia pública, necessário para implantação de um Estado de direito material, e não meramente formal, de uma democracia participativa e não simplesmente representativa.


No emaranhado das complexas realidades institucionais de um Estado social-desenvolvimentista, o direito administrativo, ao mesmo tempo em que se revelava uma disciplina cada vez mais importante para estruturação administrativa do Estado, também se revelava uma disciplina de difícil sistematização doutrinária uma vez que se lhe ignorava a natureza profunda, seus contornos, limites e fronteiras.


Enquanto da França o direito administrativo teve um caráter fortemente jurisprudencial, a partir da atuação do Conselho de Estado, no Brasil ele será fundamentalmente uma obra da doutrina, passando daí para os tribunais.


IV – O regime militar e a Reforma Administrativa


No período posterior à Constituição de 1946, e com a fase de relativa democratização que se seguiu, as crescentes pressões para efetivação de uma democracia de massas passaram a incomodar cada vez mais as oligarquias e setores das classes médias e do empresariado, temerosos de perder o seu poder político com a ascensão popular e as novas lideranças. O clima da guerra fria no plano internacional, a ameaça comunista – mais presente com a proximidade da revolução cubana -, as reações contrárias de setores das elites nacionais (representadas no plano político pela UDN), terminaram por criar um ambiente de forte instabilidade.[14]


Interrompendo o ciclo democrático iniciado em 1946, a ditadura militar que tomou o poder com o golpe de 1964, suprimiu as liberdades públicas, perseguiu opositores e instaurou um longo e nefasto período na história brasileira. Para os militares e seus apoiadores, a estabilidade social somente poderia se consolidar de forma estável com níveis mais elevados de inclusão social e econômica, que só uma sólida economia capitalista de mercado poderia propiciar. Assim, o incremento de uma economia de mercado e uma maior participação do Brasil do comércio internacional eram vistos como tarefas prioritárias a serem promovidas.


Assim, o regime militar tentou implementar uma reforma do Estado, concebida como passo necessário para um projeto mais amplo de desenvolvimento econômico do país. Diante do atraso de boa parte das oligarquias, principalmente no norte e no nordeste, o regime militar passou a nomear os governadores, adotando um plano de reformas cujos reflexos se fizeram sentir em toda federação, dando a feição do Estado brasileiro que ainda hoje conhecemos. 


Algumas reformas foram implementadas, destacando-se entre elas a reforma financeira, com a Lei nº 4.320/64, a reforma tributária com o Código Tributário Nacional, a reforma trabalhista com a extinção da estabilidade e criação do FGTS, a reforma processual com a edição do novo Código de Processo Civil), e a chamada Reforma Administrativa, com a edição do Decreto-lei nº 200/67. Para os burocratas encarregados da reforma, uma intervenção estatal decisiva e crucial como a que se pretendia demandaria uma máquina administrativa moderna, ágil e eficiente.


A reforma instituída ofereceu um padrão de organização para a administração pública brasileira. Utilizando-se de idéias gerenciais consagradas no setor privado, normatizando e padronizando procedimentos nas áreas de pessoal, compras governamentais e execução orçamentária, a reforma estabelecia novos princípios estruturantes para o setor público, agora subdividido numa administração direta (centralizada) e numa indireta (descentralizada). Dentre tais princípios destacavam-se os do planejamento, da coordenação, da descentralização, da delegação de competências e do controle. Este modelo administrativo daria à administração pública brasileira uma nova feição, marcando toda a cultura administrativa pátria e influenciado a estruturação científica do direito administrativo brasileiro que se seguiria nos anos seguintes, sendo inclusive posteriormente incorporado à Constituição de 1988.


A Reforma Administrativa de 1967 propiciou uma intensa descentralização, com um forte incremento da chamada “administração indireta”, dotada esta de maior autonomia administrativa. Surgiram inúmeras autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista. A modernização proposta cristalizava-se basicamente na utilização de técnicas gerenciais (instrumentos de direito privado combinados com regras de direito público). Veja-se, neste sentido, a previsão das “fundações públicas”, concebidas como “entidades de direito privado” para o desenvolvimento de atividades “que não exijam execução por entidades de direito público” (Dec-lei nº 200/67, art. 5º, IV).


Neste período, pesando uma grande desconfiança sobre a velha burocracia da administração direta, ocorreu o repasse de importantes funções e políticas públicas para a administração indireta, que, em sua “autonomia”, gozava de relativa liberdade de contratação de servidores (sob o regime celetista) e de obras, bens e serviços. Lembre-se que o Decreto-lei nº 200/67 abria uma brecha, vastamente utilizada, para contratação sem concurso público para as áreas de pesquisa e órgãos especializados da administração pública, ou seja, para a maior parte da administração indireta, sendo aí cometidos toda espécie de abusos. [15]


Por outro lado, a administração direta, responsável por boa parte das políticas públicas mais fundamentais na área social (educação, saúde e segurança pública) era sucateada e relegada a um segundo plano, com servidores mal remunerados e desmotivados.


Alguns efeitos perversos surgiram nos anos que se seguiram à reforma. Embora implantada com a pretensão de fortalecer e aperfeiçoar os mecanismos de controle, coordenação e planejamento na administração pública, esta capacidade foi sendo cada vez mais mitigada por dois processos que se alimentavam mutuamente: de um lado, a hipertrofia e o crescimento desordenado da administração indireta inviabilizaram os mecanismos de coordenação; de outro, a racionalidade e o profissionalismo desejados foram perdendo vitalidade na medida em que os militares, para se contraporem à progressiva perda de legitimidade do regime, faziam uso patrimonialista da administração pública, trocando cargos por apoio político.[16]


V – Consolidação do direito administrativo entre 1967 e 1988


Num período marcado pelo autoritarismo e sem a referência de um constitucionalismo democrático, a doutrina dominante irá dedicar grande atenção ao tema do controle jurisdicional da administração pública, o que levou o direito administrativo a se constituir, além de uma grande disciplina jurídica de luta contra o arbítrio (fazendo quase as vezes de um direito constitucional), também numa grande referência paradigmática para todo o direito público brasileiro.


Superado o período de chumbo da repressão, iniciado com o AI-5 de 1968, e desejando mais respaldo social, regime militar buscou instituir um Estado de exceção light, com a instituição de Estado de Direito monitorado, baseado no funcionamento dos poderes legislativo e judiciário. O Poder Legislativo passou a atuar com base num sistema bipartidário, com a presença de dois grandes partidos, a Arena, o partido do governo, e o MDB, que aglutinava a oposição O Poder Judiciário, com relativa autonomia, atuava com base no novo Código de Processo Civil. Percebia-se na doutrina administrativista desta época uma forte vontade de subordinar completamente à lei e ao juiz a administração pública, alvo de tantas suspeitas no quadro de um regime autoritário. Evocava-se com todas as letras a famosa lição de Hauriou quanto à administração pública: “que aja, mas que observe a lei; que aja, mas que repare dos danos causados pela sua ação.”


Nesta fase o direito administrativo brasileiro adquire sua “maioridade”, sua “autonomia científica” e uma conformação sistêmica, assumindo o status de “ciência madura”. Para Celso Antônio Bandeira de Melo[17], o que importa, sobretudo, é conhecer o direito administrativo como um sistema coerente e lógico, investigando liminarmente as noções que instrumentam sua compreensão sob uma perspectiva unitária. Duas idéias-força irão receber especial destaque na configuração do nosso modelo administrativo, firmando um paradigma jurídico ainda hoje muito influente em nossa cultura jurídica: a) a da supremacia do interesse público sobre o privado; e b) a da indisponibilidade dos interesses públicos.


O princípio da legalidade administrativa merecerá especial destaque. Numa atmosfera cultural dominada pelo positivismo jurídico, então corrente dominante nos principais centros de produção jurídica do país, a lei torna-se sinônimo de direito. Em conformidade com a teoria kelseniana da formação escalonada direito, enfatiza-se a idéia uma vinculação positiva, e não apenas negativa, da administração pública à lei. Neste sentido Hely Lopes Meirelles[18] afirmará em lição clássica, destinada a fazer historia no direito brasileiro, que “não há liberdade nem vontade pessoal da Administração”, pois, “enquanto ao particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza.”


Em conformidade com os cânones do constitucionalismo clássico, a Administração deverá atuar adstrita a uma lei que, simultaneamente, delineia os limites dos direitos individuais e baliza a atuação administrativa. A lei garantiria o respeito aos direitos civis (liberdade e propriedade) e ao mesmo tempo manifestaria uma “vontade pública” (interesse público) que deveria prevalecer sobre a vontade dos órgãos administrativos e dos particulares.


Os principais instrumentos da atuação administrativa serão o ato administrativo, os contratos administrativos e os regulamentos. Os contratos administrativos deverão conter cláusulas exorbitantes e garantias de seu equilíbrio econômico-financeiro, tendo em vista a proteção dos que contratam com o Estado. Para a doutrina dominante, os regulamentos autônomos estariam proscritos da ordem jurídica, sendo admitidos apenas os “regulamentos de execução”, destinados a garantir uma “fiel execução da lei”. São também amplamente tratados os temas relativos à administração direta e indireta e seus servidores.


Com a consolidação deste paradigma, o direito administrativo brasileiro assume, de fato, o status de “direito público por excelência”, como apregoava García de Enterría. Um forte “paradigma jurídico-administrativo” acabará por influenciar diversos outros subsistemas jurídicos para além da esfera propriamente “administrativa”, firmando-se como principal referência para a burocracia estatal, não somente nesta fase autoritária mas também no período que se seguirá à redemocratização do país com a Constituição de 1988.  Diversos “estatutos” surgirão inspirados na força de duas idéias, vista como co-naturais aos regimes jurídico-administrativos: a supremacia dos interesses públicos sobre os privados e a indisponibilidade dos interesses públicos. Com o passar do tempo estas idéias se transformarão em verdadeiros dogmas na cultura jurídico-administrativa pátria.


Talvez por oposição às persistentes práticas patrimonialistas e a algumas idéias gerenciais da reforma de 1967, este paradigma jurídico-administrativo se afirmará cada vez por um movimento de distanciamento em relação ao direito privado. A doutrina dominante deste período tende a conceber o “regime jurídico-administrativo” como um regime exclusivamente “estatutário”, manifestando uma certa ojeriza às “flexibilizações”. Assim, por exemplo, as fundações públicas previstas pelo Decreto-lei nº 200/76 como entidades de direito privado, foram esvaziadas de qualquer sentido prático à medida em que passaram a ser vistas como simples “espécies do gênero autarquia”.  


Numa ambiência institucional autoritária, onde vicejava uma democracia representativa de fachada, a dogmática jurídica manifestará uma confiança desmesurada e quase ingênua na “lei”, concebida rousseaunianamente como expressão da “vontade geral” e do “interesse público”.


VI – Constituição Federal de 1988 e seus reflexos


Em termos econômicos, a década de 1980 ficou conhecida como a “década perdida” para os países latino-americanos, conjugando uma forte recessão com um exponencial aumento da dívida externa, ocasionando desgaste do regime militar e anseios de redemocratização.  Evidenciou-se o fim de um ciclo de 40 anos de desenvolvimento com acentuadas mudanças na conjuntura mundial.


No ambiente de redemocratização, a Constituição de 1988 representou um pacto plural, elaborado como base numa série de compromissos firmados entre diferentes setores da sociedade, absorvendo em seu bojo a filosofia e os métodos do moderno constitucionalismo democrático, particularmente inspirados na experiência constitucional portuguesa (1976) e espanhola (1978).


O novo Texto Constitucional preocupou-se sobremaneira com o tema da “administração pública”, concebido como estratégico para implementação do desejado Estado democrático de direito. O tratamento conferido ao tema foi inovador. Depois de tratar dos três poderes e das três esferas de governo, foi dedicado um capítulo especial à “Administração Pública”, estabelecendo-se, de forma ampla, os princípios e regras a serem observados pela “administração direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.


Diversos princípios foram fixados e vários temas administrativos foram constitucionalizados. Cite-se, por exemplo, os temas relativos à administração direta e indireta, aos serviços públicos, aos servidores públicos, às empresas públicas, aos processos administrativos, à responsabilidade civil do Estado, às licitações e contratos, às desapropriações, entre outros. A fixação dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade, e seus desenvolvimentos pela doutrina e pela jurisprudência, muito contribuíram para modernização da administração pública no país. As regras pertinentes ao concurso público propiciaram não só uma farta munição para o combate ao clientelismo e ao nepotismo, mas também ajudaram a promover uma efetiva profissionalização do Estado brasileiro em todos os níveis.


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Garantiu-se aos servidores públicos a sindicalização e o direito greve, este último ainda hoje não regulamentado. Instituíram-se importantes regras pertinentes à remuneração, à acumulação de cargos e estabilidade dos servidores, bem como à previsão de um regime jurídico único na administração pública. A constitucionalização dos grandes temas administrativos ocasionou freqüentes manifestações do STF sobre matérias importantes, consolidando uma “jurisprudência administrativa” no país.


A ruptura com o regime autoritário, a emergência de uma nova ambiência democrática, a constitucionalização de diversos temas administrativos, os novos instrumentos processuais e as amplas possibilidades de acesso ao Poder Judiciário, propiciaram uma verdadeira belle epoque para o direito administrativo brasileiro. De forma pioneira, a doutrina administrativista pôs em foco a questão dos “princípios” como elementos estruturantes da ordem jurídica, conferindo especial relevo aos princípios da legalidade, impessoalidade, publicidade e moralidade. Desenvolve-se um autêntico “direito administrativo da cidadania”, passando-se a conceber o direito administrativo não somente “ex parte principi”, mas também “ex parte populi”.


Deve-se registrar, contudo, que este direito administrativo, mesmo renovado, ainda orbitará por algum tempo nos marcos de um constitucionalismo liberal, agora combinado com uma espécie de positivismo centrado não mais na lei mas na própria Constituição, provocando-se novas leituras dos institutos administrativos.


Para Susanna Pozzolo[19], essa leitura da Constituição ainda se baseia no pensamento liberal, na desconfiança em relação aos governantes e legisladores, cujo poder tenta limitar. Ainda prevalece latente nesta postura uma compreensão da Constituição como norma sobre o exercício do poder e, em particular, sobre produção do direito, direcionando-se aos órgãos que exercem o poder jurídico em suas várias formas.


Este constitucionalismo liberal, renovado como aportes do constitucionalismo social, a despeito de sua maior sensibilidade democrática, tinha como pano de fundo uma visão predominantemente subjetiva dos direitos fundamentais, laborando ainda de acordo com uma teoria da eficácia indireta e mediata dos direitos sociais e econômicos. Os direitos fundamentais de caráter mais social foram compreendidos como valores cuja aplicação dependeria de uma legislação infraconstitucional que versasse sobre o assunto. Neste período, a doutrina publicista brasileira considerou, em sua imensa maioria, os direitos fundamentais de cunho social como simples “normas programáticas”, ou seja, não como direitos, mas como meras intenções políticas ou ideológicas, comprometendo assim sua efetiva concretização. Para Bercovici[20], a tese de José Afonso da Silva sobre a “aplicabilidade das normas constitucionais”, que instaurou uma “doutrina brasileira sobre a efetividade”, impediu o avanço da teoria constitucional até hoje.


No direito administrativo, os direitos fundamentais dos “administrados” são ainda concebidos primordialmente como direitos públicos subjetivos em face do Estado. Temas como “boa administração”, “accountability” e “políticas públicas”, importantes no contexto de um Estado democrático de direito, ainda serão negligenciados.


Sem negar os inegáveis avanços propiciados pela nova Carta Constitucional, tivemos, como aponta Gordillo[21], a continuidade de uma administração em grande parte autoritária e ineficiente dentro de um contexto político superficialmente democrático no que concerne às suas grandes linhas – funcionamento de partidos políticos, funcionamento dos três poderes do Estado, imprensa livre, eleições livres, etc. Sob a égide de uma normalidade democrática, ainda convivíamos com instituições administrativas em grande parte refratárias aos novos valores democráticos e à retórica dos direitos fundamentais. Uma infra-estrutura administrativa impedia, ou pelo menos obstaculizava, a concretização do ideário constitucional. Aplicava-se, aqui, a máxima de Lampedusa no romance “O Leopardo”: “As coisas precisam mudar para continuarem as mesmas.”


VII – Crise do Estado no Brasil, Reforma Administrativa e paradigma da eficiência    


Logo após a promulgação da Constituição de 1988, ocorreram rápidas mudanças políticas, econômicas e ideológicas no cenário internacional, marcados pela queda do muro de Berlim, pelo esfacelamento do socialismo real, pelo advento do neoliberalismo e do discurso da globalização. Com a nova correlação de forças, os compromissos que sustentaram o Estado de Bem Estar são revistos e novos consensos emergem, dentre eles o propalado “consenso de Washington”. Evelina Dagnino[22] cunhou a expressão “confluência perversa” para simbolizar a conjugação de transição democrática com a implementação do projeto neoliberal na América Latina. Esta expressão denota a junção entre uma tônica de ampliação substancial da democracia, advinda das reivindicações da sociedade civil, e representadas na nova Carta Constitucional, e uma postura restritiva e minimalista da política paulatinamente assumida pelo Estado.


Recorrente na agenda nacional, o tema da reforma do Estado ganha neste momento uma nova dimensão com a integração das economias periféricas nos mercados globalizados, a internacionalização dos fluxos financeiros, a reorganização dos padrões de produção propiciada pela expansão tecnológica e das técnicas de comunicação em tempo real, que intensificam a circulação de informações, bens, serviços e capitais, colocando em novos e inéditos patamares a gestão da riqueza capitalista contemporânea. Se na década de 80, e mesmo nos debates constituintes, a discussão pendia para uma revalorização do papel do Estado na ordem econômica e social, como agente indutor do pleno emprego em economias relativamente fechadas e autocentradas, na década de 90, nos governo Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardozo, a agenda internacional enfatizará a disciplina fiscal, a estabilidade monetária, a abertura comercial, a revogação dos monopólios públicos e a privatização das empresas públicas.[23] Para os reformadores, a alteração dos papéis estratégicos do Estado passa a demandar uma nova reforma da administração pública.


  Em meio à retórica da “crise do Estado”, em sua tríplice vertente – crise fiscal, crise de legitimidade e crise de eficiência -, é aprovado o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado no primeiro governo Fernando Henrique Cardozo. No turbilhão de interesses que marcaram os discursos reformistas destacava-se a modificação da formas de intervenção do Estado na economia e na prestação de serviços públicos, passando-se de um Estado produtor de bens e serviços para um modelo de Estado regulador. Daí decorreram as privatizações de diversas empresas públicas, a concessão de serviços públicos à iniciativa privada e a criação das “agências reguladoras”, com funções de regulação dos serviços públicos delegados e de atividades econômicas de interesse público.


Este processo reformista culminou com a Reforma Administrativa do governo FHC, através da Emenda Constitucional nº 19/98, calcada na bandeira da eficiência, onde se pretendeu uma superação do paradigma jurídico-administrativo burocrático e rígido positivado na Constituição de 1988, rumo a um modelo administrativo gerencial mais flexível e voltado para resultados.


Como desdobramento da reforma administrativa, e com o propósito de disciplinar os gastos públicos, principalmente dos estados e municípios, foi editada a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000), apontada por alguns setores como imposição de agências internacionais como o FMI e o Banco Mundial, e por outros como uma interferência indevida na autonomia estadual e municipal. Hoje, poucos ainda duvidam do sentido modernizador desta iniciativa para o equilíbrio das contas públicas, fundamental para a estabilidade monetária e o crescimento econômico.


XIII – Reflexos da reforma gerencial no direito administrativo


A implantação das agências reguladoras do direito norte-americano (regulatory agencies) no Brasil causou uma certa perplexidade na doutrina jurídico-administrativa, haja vista sua aparente incompatibilidade com algumas diretrizes do constitucionalismo liberal sedimentandas no país.


O primeiro problema foi de caráter jurídico, e dizia respeito à ampla competência normativa ostentada por estas agências. Esta competência normativa ampliada entrará em cheque com a idéia de legalidade do constitucionalismo tradicional (“ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”- CF, art. 5º, II) e com a noção de legalidade administrativa desenvolvida pelo direito administrativo brasileiro.


Deve-se, contudo, observar que o constitucionalismo social do século 20 já havia operado uma grande reestruturação do modelo de Estado herdado do liberalismo, tendo em vista o cumprimento das novas tarefas no campo social e econômico. Esta reestruturação teve forte impacto no clássico princípio da separação dos poderes, transferindo boa parte da produção normativa do Estado para o âmbito do Poder Executivo.[24] A lei, concebida no constitucionalismo liberal como norma genérica e abstrata, transformar-se-á no constitucionalismo social em principal instrumento de “políticas públicas”, através das quais o Estado realiza intervenções nos diversos setores da vida social.


Neste novo contexto, o constitucionalismo social institucionalizará mecanismos normativos conjunturais de emergência, como o “decreto-lei” e as atuais “medidas provisórias”. O poder de iniciativa legislativa na maior parte das matérias relevantes competirá ao poder executivo. A atividade regulamentar da administração pública será ampliada, não somente no âmbito da chefia do poder executivo, mas também na esfera de um crescente número de órgãos e conselhos coordenadores de políticas públicas setoriais (educação, saúde, meio ambiente, trânsito etc.).


Com o advento das agências reguladoras, o próprio modelo jurídico-administrativo vigente é criticado. José Eduardo Faria[25] indaga: se as agências reguladoras se caracterizam pela amplitude de suas competências, pela extrema flexibilidade de suas estruturas administrativas e organizacionais, e por prerrogativas de autonomia e independência não reconhecíveis nem mesmo na administração indireta, em que medidas elas são compatíveis com o arcabouço do direito administrativo dominante, excessivamente formalista e burocrático?


Outro problema trazido pelo modelo das agências dizia respeito à sua independência. Estas agências surgiram dotadas de grande independência em face do poder político e econômico, tendo em vista a grande complexidade dos problemas regulatórios a serem enfrentados pela administração pública, para que atuassem segundo critérios técnicos, dentro de “marcos regulatórios” claros e transparentes, segundo exigências da nova ordem internacional. Como se sabe, no Brasil, desde a era Vargas, tornou-se muito freqüente a interferências dos políticos e das burocracias partidárias no funcionamento da máquina administrativa. O rateio de órgãos, entidades e empresas públicas entre os diversos partidos participantes da base de apoio do Poder Executivo tornou-se prática comum em nosso “presidencialismo de coalizão”, instituindo-se por vezes uma verdadeira “partidarização” da administração pública.


Diante deste cenário, indagava-se: em que medida as complexas tramas de interesses e poderes empresariais de um mercado globalizado, com enfraquecimento dos estados nacionais, comprometeriam a autonomia destas agências, composta por uma nova classe de tecnocratas, sempre submetidos ao risco da “captação”? Nesta linha, a recente crise na aviação civil ocasionou fortes críticas à atuação da ANAC e, por tabela, ao modelo regulatório implantado no país e à necessidade de sua revisão, tornando-o mais democrático e transparente, para que não ocorresse uma reprodução da experiência dos “anéis burocráticos” do Estado autoritário dos anos 70-80, dotado de canais formais e informais de atuação, e de procedimentos oficiais e oficiosos.[26]


Também no ambiente cultural e ideológico dos anos 90 e das mudanças que se seguiram, realizou-se uma profunda crítica do modelo jurídico-administrativo dominante no país, tomado como burocrático, rígido e responsável em grande parte pela ineficiência da máquina administrativa estatal. Surge uma forte preocupação com o “controle de resultados”, e não somente com o “controle de processos”. Em nome da eficiência administrativa pugna-se por um modelo menos rígido e mais flexível, que se adéque à grande complexidade das atuações administrativas nos novos tempos.


Defender-se-á uma maior aproximação do direito administrativo com as formas do direito privado, sem os exageros de uma “fuga para o direito privado”, admitindo-se a possibilidade de múltiplas combinações de regras de direito público e de direito privado para a solução dos complexos problemas administrativos. Se o direito público é especialmente organizado para garantir o cumprimento de certas funções de interesse público, impondo-se restrições à autonomia do gestor público, o direito privado, combinado com limitações mais ou menos intensas, poder servir para reforçar esta mesma autonomia, onde tal se fizer necessário. Rompe-se, assim, como uma visão maniqueísta e excessivamente dicotômica entre direito público e direito privado que encerrava e circunscrevia o direito administrativo a uma camisa-de-força excessivamente rígida e burocrática onde tal, muitas vezes, não era recomendado. Admite-se, cada vez mais, a possibilidade de utilização de regulações de direito privado mescladas com cláusulas de direito público. Foge-se de modelos regulatórios demasiadamente uniformes para se admitir, segundo Schmidt-Assmann[27], “formas jurídicas diferentes, que podem melhor compreender a diversidade dos processos da vida”.


 Propugnar-se-á, assim, por uma maior “contratualização” das relações administrativas, em busca de soluções mais consensuais e democráticas para os problemas relacionados à gestão pública. Em nome da flexibilidade pretendida, a imposição de um “regime jurídico único” para o serviço público foi abolida.[28] Assim, surgiram os “contratos de gestão”. As parcerias como o mercado e a sociedade civil foram cada vez mais incentivadas. Aparecem as figuras das organizações sociais, das OSCIPs e das “agências executivas”.[29] O instituto da concessão, praticamente abandonado pelo Estado nacional desenvolvimentista, é revitalizado com uma nova lei de concessões. Foi criado o polêmico contrato de parceria público-privada (PPP), destinado a atrair grandes investimentos em infra-estrutura, e cujos contornos fugiam aos moldes tradicionais das concessões.[30]


Este período reformista, com todos os seus percalços, foi um momento de grande reflexão sobre o Estado e a administração pública brasileira, retirando o nosso direito administrativo de uma certa letargia dogmática e propiciando a reformulação de  antigos institutos e a criação de outros novos. Seu ímpeto criativo, contudo, não teve continuidade no governo seguinte, talvez em virtude da oposição ideológica entre os dois grandes partidos que passam a dominar a cena nacional, PSDB e PT.


Embora a reforma do governo FHC tenha repensado em termos mais aprofundados o aparelho administrativo do Estado, colocando em pauta a questão da eficiência da administração pública, não se deu neste período uma suficiente importância a profissionalização do serviço público. Olvidou-se o fato de que organizações administrativas eficientes não se criam por decreto, mais com um Estado profissionalizado e com servidores motivados e bem remunerados.


IX – Desenvolvimento do constitucionalismo democrático


No quadro institucional brasileiro dos últimos anos, marcado pela afirmação de uma democracia constitucional, que tem como referência uma constituição densa e longa, tem-se firmado a convicção de que um sistema político justo deve respeitar e promover direitos fundamentais. Neste quadro tem-se operado uma grande renovação da teoria constitucional brasileira, até então adormecida, com grandes reflexos na teoria jurídica como um todo, em especial no âmbito do direito administrativo.


Operou-se uma grande mudança no modo de se conceber o significado e o papel da Constituição. A Constituição não é mais concebida como simples instrumento de organização do Estado ou um mero invólucro político, formado por normas programáticas que servem de inspiração para o sistema jurídico. Desenvolveu-se cada vez mais a idéia de Constituição como “norma”, o que acentua a sua “força normativa” e a “supremacia” dos princípios e regras constitucionais. Diferentemente do “constitucionalismo liberal renovado” que vicejou nos primeiros anos de vigência da Constituição, e que também destacava a sua força normativa, o novo constitucionalismo assume uma postura mais “substancialista”, acentuando que o status das normas constitucionais derivam do particular conteúdo que expressam.[31] A Constituição não é somente a norma de grau jurídico-hierárquico mais elevado, mas também constitui uma norma axiologicamente suprema. Assim, a carta constitucional apresenta características e conteúdos específicos pelos quais se distingue dos demais documentos jurídicos. Por esta razão, ela irradia seus efeitos sobre todo sistema jurídico: em primeiro lugar, impondo uma releitura das normas infraconstitucionais; em segundo lugar, orientando o trabalho dos legisladores e juízes.[32]


Propugna-se, assim, uma “constitucionalização do direito”. Para Roberto Barroso[33], a idéia de “constitucionalização do direito”, consubstanciando um “triunfo tardio” do direito constitucional no Brasil, está associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico. Como intuitivo, a constitucionalização repercute sobre a atuação dos três poderes e em suas relações com os particulares.


Este novo constitucionalismo tende a ser mais democrático, de caráter menos individualista e mais comunitário, desenvolvendo uma nova concepção de direitos fundamentais, que são posicionados no núcleo do sistema jurídico. Esses “direitos fundamentais”, antes concebidos somente como “direitos de defesa”, numa vertente subjetivista-indivualista, são agora também vistos como “mandados de proteção”, ou seja, como “valores objetivos” que devem ser protegidos pelo Estado. Assim, enquanto a primeira vertente se ocupava mais em limitar e condicionar as intervenções dos poderes públicos (proibição do excesso), a segunda se preocupará em promover e tornar mais eficazes essas intervenções (proibição da omissão), de tal forma a garantir uma efetiva proteção dos direitos fundamentais.


Enquanto o positivismo, primeiro em sua versão legal, depois em sua nova roupagem constitucional, acentuava a coerência do sistema jurídico, o novo constitucionalismo, numa postura mais realista, assumirá o caráter conflituoso dos princípios e regras inerentes a constituições densas e democráticas, e as inevitáveis colisões entre os direitos e interesses coletivos protegidos (exemplos: direito de propriedade x função social da propriedade; livre iniciativa x preservação ambiental).[34] Far-se-á necessária a constante realização de juízos de ponderação, com o propósito de proporcionar uma acomodação otimizada entre os valores conflitantes. Desta forma, os juízos de ponderação se farão necessários em todas as etapas do processo jurídico, desde a matriz constitucional até as fases posteriores de concretização legislativa, administrativa e jurisdicional. Nesta linha, o novo constitucionalismo exigirá uma jurisdição constitucional apta a emitir “juízos de constitucionalidade”, de forma difusa e concentrada. Assim, uma jurisdição constitucional buscará garantir uma efetividade cada vez maior do sistema de direitos fundamentais, atuando no regime republicano como regente das novas liberdades positivas.[35]


Lançando mão dos novos instrumentos processuais, o Supremo Tribunal Federal tem desenvolvido uma jurisdição constitucional que mescla posturas garantistas, voltadas à limitação de excessos e abusos cometidos pelos poderes públicos, como no recente caso do uso das algemas, ou no caso da polêmica prisão do banqueiro Daniel Dantas, com posturas mais ativas, como no enfrentamento da questão da fidelidade partidária, do direito de greve no serviço público e da proibição do nepotismo em todos os poderes de Estado. Ultimamente o STF tem atuado inclusive como árbitro de intricadas disputas políticas, como no caso da reserva indígena Raposa Serra-do-Sol, que envolvia uma mescla de complexos interesses de um Estado da federação (Roraima), de comunidades indígenas e de produtores rurais.  Em 2007 o STF começou a editar as tão esperadas “súmulas vinculantes”.


X – O novo constitucionalismo e o direito administrativo


Este novo constitucionalismo tem ensejado uma grande renovação do direito administrativo, permitindo novas leituras desta disciplina a partir da ótica de uma nova teoria constitucional.


Acentua-se cada vez mais a “função concretizadora” da Administração e do direito administrativo. O direito administrativo assume, assim, a tarefa de dar concretude aos princípios e regras constitucionais. Para Schimidt-Assmann[36], o direito administrativo deve conferir operacionalidade aos grandes princípios constitucionais, constituindo-se num campo de verificação e experimentação do direito constitucional. O direito administrativo deverá ser uma seara estratégica de recepção e transmissão do direito constitucional Assim, o direito constitucional deve impregnar todo o direito administrativo, sua evolução e suas reformas, operando, de um lado, como um marco em cujo seio deve-se verificar a constante revisão dos dogmas tradicionais, e, de outro, como receptor das novas tendências. Com base na Constituição, o direito administrativo deve construir formas, organizações e procedimentos que viabilizem sua implementação e concretização.


Em face dessas exigências resta claro que o instrumental teórico do direito administrativo, construído em boa parte sob a égide do constitucionalismo liberal, tornou-se em boa parte inapropriado para fazer frente aos novos cenários do Estado contemporâneo e da complexa sociedade brasileira, com os desafios, perigos e risco que se apresentam. Deve-se, assim, proceder-se a uma releitura do direito administrativo, de  sua dogmática e de seus institutos, ao mesmo tempo em que se deve realizar uma abertura para novas vertentes temáticas, ampliando-se as discussões para além de uma vertente burocrático-instrumental priorizada pela doutrina tradicional.


Destacaria dois temas postos em evidência pela nova teoria constitucional e seus impactos no direito administrativo: a) a centralidade normativa da Constituição; e b) os direitos fundamentais.


Centralidade normativa da Constituição


Uma primeira conseqüência prática da centralidade da Constituição diz respeito ao novo padrão de “juridicidade administrativa” que se estabelece. Uma nova concepção de “juridicidade administrativa” passa a englobar o campo da “legalidade administrativa”, como um de seus princípios internos, não o mais altaneiro e soberano como tem sido até agora. Isso significa, segundo Binenbojm[37], que a lei deixa de ser o fundamento único da atuação administrativa para se tornar apenas num dos princípios do sistema de juridicidade instituído pela Constituição. A administração pública tem acesso direto e imediato à Constituição. Assim, o agir administrativo pode referir-se diretamente aos princípios e regras constitucionais, sem a necessidade de uma prévia mediação do legislador. Todavia, nos campos sujeitos a uma “conformação legislativa”, deve a Administração se sujeitar à lei, devendo esta ser interpretada em conformidade com a Constituição.


Esta nova idéia de juridicidade administrativa traz reflexos em temas tradicionais do direito administrativo, como, por exemplo, a discricionariedade administrativa e seu controle jurisdicional.[38]


Assim, a noção de juridicidade administrativa, resultado da incidência dos princípios constitucionais sobre toda atividade estatal, não mais permite conceber a discricionariedade como espaço de livre decisão do administrador, como admitia a clássica dicotomia entre atos vinculados e atos discricionários. Toda a atividade administrativa é, num certo sentido, vinculada ao direito. O que varia são os diferentes graus de vinculação dos atos administrativos à juridicidade. Podemos ter, segundo níveis diversos de densidades normativas, atos vinculados a regras (constitucionais, legais ou regulamentares) e atos vinculados a princípios (constitucionais, legais e regulamentares). Assim, a discricionariedade não é mais vista como uma liberdade decisória imune ao direito e ao controle jurisdicional.[39]


Ao maior ou menor grau de vinculação do administrador à juridicidade, corresponderá uma maior ou menor intensidade da controlabilidade judicial dos seus atos. Nas atividades sujeitas à regras, o controle jurisdicional tende a ser mais intenso. As atividades sujeitas a princípios proporcionam uma maior margem de conformação e escolhas par o gestor. Para Binenbojm[40], naqueles campos em que, por sua alta complexidade técnica e dinâmica específica, falecem parâmetros objetivos para uma atuação segura do poder judiciário, a intensidade do controle será menor. Em todo caso, mesmo aqui, as escolhas técnicas não podem ofender aos princípios, devendo, ao contrário, concretizá-los.


Centralidade dos direitos fundamentais


O influxo dos direitos fundamentais sobre o direito administrativo pode ser observado a partir das diferentes dimensões dos direitos fundamentais, principalmente as duas mais ressaltadas: como direitos de defesa e como mandados de proteção. Esta dupla dimensão implica numa dupla concepção dos direitos fundamentais: uma subjetiva e outra objetiva.


Foi inicialmente com base numa concepção subjetiva dos direitos fundamentais que se organizou a dogmática tradicional do direito administrativo, modelando diversos institutos que se destinavam a promover uma defesa dos “particulares” através da limitação das intervenções e ingerências administrativas na liberdade e na propriedade, a fim de se coibir os excessos. Com base nessa visão subjetiva foi estruturada a concepção tradicional do princípio da legalidade administrativa.


Uma nova visão dos direitos fundamentais enfatiza a vertente objetiva de tais direitos como mandados de proteção. Aqui os direitos fundamentais se apresentam como “valores objetivos” que devem ser concretizados e protegidos pelo Estado através de “prestações legislativas e administrativas”. Trata-se, aqui, de promover e tornar eficazes as intervenções administrativas, coibindo-se as omissões, de tal forma a se garantir uma efetiva proteção dos direitos fundamentais.[41] Esta vertente dos direitos fundamentais tem forte implicações, por exemplo, em temas tradicionais como o “poder de polícia” e “serviços públicos”, e em novos temas que são assumidos pelo direito administrativo, como o das “políticas públicas”.


Nesta nova ótica, o poder de polícia – e sua nova face regulatória, desempenhada por agências reguladoras – destina-se a proteger direitos fundamentais em face das inúmeras situações de risco que as sociedades modernas apresentam, devendo aqui prevalecer os princípios da prevenção e da precaução. Os serviços públicos, delegada ou não a sua prestação a particulares, devem ter em mira o atendimento de direitos fundamentais básicos. Por outro lado, as políticas públicas, frutos de uma combinação de prestações legislativas e administrativas, passam a ser objeto de atenção por parte do direito administrativo, levando seu tratamento a considerações de ordem orçamentária e ao recurso a conhecimentos interdisciplinares.


Vale lembrar, neste sentido, que o discurso gerencial da reforma do Estado também se calcava na imperiosa necessidade de aumentar a “governança” ou “boa administração”[42], ou seja, a capacidade do Estado de implementar políticas públicas eficazes, principalmente num contexto de grandes desigualdades sociais, que poderiam ser ainda mais agravadas com a progressiva inserção do país numa economia globalizada. Assim, o direito administrativo passará a se ocupar cada vez mais das “políticas públicas”, instrumento até então negligenciado pela dogmática jurídica.


O tema dos direitos fundamentais tem propiciado uma profunda revisão do clássico princípio da supremacia do interesse público sobre os interesses privados. Não que se duvide da “supremacia dos interesses públicos”, mas em razão dos abusos que um uso arbitrário deste conceito fluido e formal ensejou em nossa cultura administrativa autoritária. Como observa Gustavo Binenbojn[43], tratando-se de um conceito vago, o poder público sempre desfrutou de ampla margem de liberdade na sua concretização; a partir do memento em que concretizado, tal conteúdo passava a gozar de supremacia sobre os interesses particulares; assim, o voluntarismo dos governantes adquiria supremacia sobre os direitos individuais.


Hoje, os direitos fundamentais e os bens e interesses constitucionalmente protegidos aparecem como a melhor tradução do conceito formal de “interesse público”. Fala-se, assim, da supremacia e indisponibilidade dos direitos fundamentais.


Marçal Justen[44] afirma que não há um interesse público prévio. O “interesse público” aparece como resultado e não mais como pressuposto da decisão administrativa.  O processo de concretização do direito produz a seleção dos interesses, com identificação do que se reputará como interesse público em face das circunstâncias. Esta seleção é feita por organizações administrativas, que adotam certas formas de procedimentos. Por esta razão, o tema dos direitos fundamentais também importa em considerações de caráter organizacional e procedimental. De fato, os elementos organizacionais e procedimentais da administração pública podem contribuir ou não para a concretização de direitos fundamentais.


XI – Conclusões


Hoje, mais do que nunca, é atual a lição de Prosper Weil, para quem o direito administrativo não é, e não pode ser, um direito como os outros, não um “direito jurídico”, mas um “direito político”, posto que nele se inserem questões políticas fundamentais, razão pela qual, “não pode ser desligado da história, e especialmente da história política, nela encontrando seus fundamentos.[45]


Cada uma das etapas aqui elencadas, desde o período Vargas, marcou de forma indelével o direito administrativo brasileiro. Evocando uma metáfora geológica, cada uma dessas etapas, com suas diferentes concepções ideológicas, corresponde a uma camada diferente, de tal forma que o “direito administrativo brasileiro” comporta elementos que remontam a diferentes períodos, derivando de concepções jurídicas e políticas diversas.


Como adverte Maria Paulo Bucci[46], não é mais possível narrar a história do direito administrativo de forma ingênua, como simples defesa do “administrado” em face do Estado Leviatã, mas de um modo um pouco mais realista, como a história de um campo em que estão lado a lado grande política eleitoral, grande política econômica, grandes finanças e grandes negócios. São as mudanças neste jogo que definem afinal em grande medida a sorte do direito administrativo.


Em meio a esta complexa trama de interesses, importa realizar uma constitucionalização do direito administrativo, sem, contudo, asfixiar sua legítima autonomia. Deve-se evitar um fenômeno que foi recorrente no Brasil. O direito administrativo experimentou, ao longo de seu percurso histórico de estruturação, um processo de deslocamento em relação ao direito constitucional. A própria descontinuidade das constituições, em contraste com a continuidade da burocracia, contribuiu para que o direito administrativo se nutrisse de categorias, institutos, princípios e regras próprios, mantendo-se de certa forma alheios às sucessivas mutações constitucionais. Tal estado de coisas contribuiu para um distanciamento do direito administrativo em relação ao direito constitucional, impossibilitando aquele de renovar-se sob o impulso deste. [47]


Não de pode perder de vista que o direito administrativo deve satisfazer a uma dupla finalidade: a ordenação, disciplina e limitação do poder, e, ao mesmo tempo, a eficácia e efetividade da ação administrativa.


Sem deixar-se iludir por modismos alienígenas, que não raro expressam interesses do grande capital internacional e seu frenesi acumulativo, ao direito administrativo brasileiro compete identificar estratégias de ação adequadas e compatíveis com a realidade nacional. Para tanto deve partir de análises mais acuradas da realidade do Estado e da sociedade brasileira, em todos os seus meandros.


Trata-se, aqui, de uma preocupação maior com a própria eficácia do direito administrativo. Este não pode mais simplesmente ser deter na construção dogmática de normas, categorias, institutos ou doutrinas. Se aspira modificar e aperfeiçoar a gestão pública,  assumindo não só uma postura de controle, mas também de direção e indução de mudanças sociais, deve também preocupar-se por encontrar as condições e pressupostos que lhe permitam tornar-se eficaz e eficiente. Ta preocupação revela-se mais intensa no contexto no novo constitucionalismo democrático. Como diz Schimidt-Assmann[48], não basta mais a concepção de um direito “contra” a Administração. É preciso buscar soluções eficazes em benefício dos cidadãos.


Encerrando com Prosper Weil[49], podemos afirmar: “Complexidade das idéias. Complexidade das soluções. Todas as explicações propostas, todos os critérios sugeridos para sistematização desta disciplina, tinham uma centelha de verdade, mas nenhum era a verdade.” Eis um dilema que tem acompanhado a formação do direito administrativo no Brasil.


  


Notas:

[1] Sobre este importante momento histórico confira-se a obra de Boris Fausto, A revolução de 1930 – historiografia e história, editada pela Companhia das Letras.

[2] KINZO, Maria D’Alva Gil. Representação política e sistema eleitora no Brasil. S. Paulo: Símbolo, 1980, p. 118.

[3] BERCOVICI, Gilberto.Tentativa de instituição da democracia de massas no Brasil: instabilidade constitucional e direitos sociais na era Vargas (1930-1964). In: SARMENTO, Daniel. Direitos Sociais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 39.

[4] MERQUIOR, José Guilherme. Liberalismo e Constituição. In: MARCADANTE, Paulo (Coord.). Constituição de 1988: avanço do retrocesso. Rio de Janeiro: Rio Fundo Ed., 1990, p. 15.

[5] BOSCHI, Renato R. O Executivo e a construção do Estado no Brasil. In: VIANNA, Luiz Werneck (org.). A democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte: Editora EFMG, 2003, p. 197.

[6] DRAIBE, Sônia. Rumos e metamorfoses: um estudo sobre a Constituição do Estado e as alternativas da industrialização no Brasil, 1930-1960. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, PP.42-45 e 98-100.

[7] BERCOVICI, Gilberto. Tentativa de instituição de uma democracia de massas no Brasil: instabilidade constitucional e direitos sociais na era Vargas (1030-1964). In Direitos Sociais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 33.

[8] Ibidem, p. 150.

[9] BERCOVICI, Gilberto. Ibidem, p. 27.

[10] FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 3.

[11] CITTADINO, Gisele. Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação dos poderes. In: VIANA, Luiz Werneck. A democracia e os três poderes. Belo Horizonte: 2003, p. 27.

[12] PEREIRA DA SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias. Em busca del acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 1998, p. 49.

[13] Tais compromissos já se faziam presentes na França napoleônica, berço do direito administrativo, quando Napoleão Bonaparte, visando impedir que os tribunais “perturbassem” a sua administração, operou uma rígida separação entre autoridade administrativa e autoridade judiciária, proibindo a justiça comum de conhecer dos litígios em que a administração francesa fosse parte.

[14] BERCOVICI, Gilberto. Ibidem, p. 55.

[15] Marcelo Torres. Ibidem, p. 155.

[16] Ibidem, pp. 157-158.

[17] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ibidem, p. 23- 24.

[18] MEIRELLES, Hely Lopes.  Direito administrativo brasileiro. S. Paulo: Malheiros: 1999, p. 82/83

[19] POZZOLO, Susanna e DUARTE, Écio Oto Ramos. Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico. S. Paulo: Landy Editora, 2006, p. 88-89.

[20] Ibidem, p. 61.

[21] GORDILLO, Augustin. Los derechos humanos em um mundo nuevamente em crisis y transformación. In Direitos humanos e democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.

[22] DAGNINO, Evelina. “Concepciones de la ciudadania em Brasil: proyectos políticos em disputa”. In: CHERESKY, Isidoro. Ciudadanía, sociedad civil y participación política. Buenos Aires: Miño y Dávila Eds., 2006, p. 95-110.

[23] FARIA, José Eduardo (Org.). Regulação, direito e democracia. S. Paulo: Editora Perseu Abramo, 2002, p. 7.

[24] BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. S. Paulo: Malheiros, 2001, pp. 63-86.

[25] FARIA, José Eduardo (org.). Regulação, direito e democracia. S. Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002, p. 9.

[26] Ibidem, p. 9-10.

[27] SCHMIDT-ASSMANN, Eberhard. La teoria general del derecho administrativo como sistema. Madrid: Marcial Pons, 2003, p. 298

[28] Embora, posteriormente, a redação original do art. 39 fosse restabelecida pelo STF.

[29] A rigor, as organizações sociais e as OSCIPs não são categorias novas, mas simples “qualificações jurídicas” atribuídas a entidades de direito privado.

[30] Principalmente no que concernia à forma de remuneração dos “parceiros”, às garantias oferecidas aos contratados e à minimização dos riscos.

[31] POZZOLO, Susanna e DUARTE, Écio Oto Ramos. Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico. S. Paulo: Landy Editora, p. 87.

[32] POZZOLO, Susanna e DUARTE, Écio Oto Ramos, p. 89-90.

[33] BARROSO, Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil), Revista de Direito Administrativo nº 240. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 12-13.

[34] Veja-se neste sentido o excelente trabalho do professor Edilson Pereira de Farias, Colisão de direitos, publicado pela editora  Sérgio Fabris.

[35] CITADINO, Gisele. Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação de poderes. In A democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizente: Ed. UFMG, 2003, p. 33-34.

[36] SCHIMIDT-ASSMANN, Eberhard.  La teoria general del derecho administrativo como sistema. Madrid: Marcial Pons, 2003, p.17.

[37] Ibidem, p. 70.

[38] Esta nova visão tem também reflexos importantes na atividade normativa da administração. Evocando o art. 84, IV da Constituição, a doutrina dominante sempre teve uma posição bastante restritiva, admitindo somente a possibilidade dos regulamentos de execução. O advento da atividade normativa das agências reguladoras já punha em cheque esta restrição. Não que sua atividade normativa pudesse estar acima da lei, mas somente com muita boa vontade se poderia conceber boa parte de suas resoluções como meras aplicações da lei. Muitas questões de ordem técnica, objeto dessas resoluções, não  tinham qualquer referência imediata em texto legais, que muitas vezes limitavam-se a fixar grandes princípios e diretrizes (leis-quadro). Assim, ao lado dos regulamentos de execução, deve-se admitir, na ausência de lei, admitir a possibilidade de regulamentações diretas do texto constitucional, sem a necessidade de prévia mediação de lei, quando se fizerem necessários, não mais se proscrevendo os regulamentos autônomos. Superava-se, assim, a visão positivista de que a lei contém todo direito.

[39] BINENBOJM, Gustavo. Op. cit., p. 39-40.

[40] Ibidem, p. 225.

[41] ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002, pp. 419-432.

[42] Sobre a temática do “direito fundamental à boa administração” veja o trabalho do Prof. Juarez Freitas “Discricionariedade administrativa e direito fundamental à boa administração”, editado pela Malheiros em 2007.

[43] Ibidem, p. 102.

[44] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. S. Paulo: Ed. Saraiva, 2005, p. 45.

[45] WEIL, Prosper.  O direito administrativo. Coimbra: Almedina, 1977, pp. 10-11.

[46] BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. S. Paulo: Saraiva, 2002, p. XIII.

[47] BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 18-19.

[48] Ibidem, p. XIX

[49] Ibidem, p. 31.


Informações Sobre o Autor

Robertônio Santos Pessoa

Doutor em Direito Administrativo, Professor de Direito Administrativo da UFPI, Procurador da Fazenda Nacional


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