Contornando dois óbices à usucapião rural: os bens pertencentes a estatais e a usucapião reconhecida apenas como matéria de defesa

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Resumo: O presente artigo trata da usucapião especial rural sob dois aspectos. Primeiramente, pelas lentes da famosa distinção entre estatais prestadoras de serviço público e exploradoras de atividades econômicas, estuda-se a possibilidade de usucapir bens rurais de estatais, concluindo pela restrita vedação aos casos em que efetivamente o bem esteja afetado ao serviço público. Em seguida, argumenta-se pela possibilidade de registro de sentença de ação em que a usucapião rural foi reconhecida como matéria de defesa apenas, por relevantes razões sociais e de economia processual.

Palavras-chave: usucapião especial rural; empresas estatais; matéria de defesa; registro de sentença.

Sumário: Introdução; 1.Usucapião rural de imóvel de titularidade de empresa estatal; 1.2 Entendimento originário resultante do cotejo do art. 191, §único da cf com o art. 98 e ss. do código civil; 1.3 Reviravolta gerada pelo supremo tribunal federal e a repercussão sobre a imprescritibilidade de bens de certas estatais; 1.4 Do retorno à situação referida em 1.2, por razões diversas; 2. Usucapião constitucional rural como matéria de defesa; conclusão; referências.     

INTRODUÇÃO

O presente artigo trata de duas importantes questões envolvendo a usucapião rural: a possibilidade de usucapir bem rural de titularidade de empresa estatal (empresa pública ou sociedade de economia mista) e os efeitos do reconhecimento da usucapião rural alegada como matéria de defesa.

Quanto à primeira questão o que se estudará são os efeitos do reconhecimento atual do Supremo Tribunal Federal de que certas empresas estatais, mesmo gozando de personalidade jurídica de direito privado, teriam o mesmo tratamento dispensado à Fazenda Pública, sobre a possibilidade de usucapir bens rurais de titularidade dessas empresas.

No que se refere ao segundo ponto, quer-se estudar as consequências do julgamento de improcedência de uma reivindicatória ou possessória por força do reconhecimento da usucapião.

Mais precisamente, perquere-se se é uma sentença desse tipo título de propriedade suficiente, inclusive passível de registro, o que se tentará responder à luz do princípio da função social da propriedade rural e também do novo regramento do novel Código de Processo Civil sobre o instituto da coisa julgada.

O percurso dar-se-á nos seguintes passos. Primeiramente, responder-se-á à primeira questão, trazendo à colação jurisprudência sobre a usucapião de bens de estatais antes e depois da emblemática assentada do STF sobre a Empresa de Correios e Telégrafos (ECT).

Já na resposta à segunda questão, será analisada principalmente com respeito principalmente à usucapião rural constitucional prevista no art. 182, em cotejo com o disciplinamento da coisa julgada no Código de Processo Civil de 2015.

1. USUCAPIÃO RURAL DE IMÓVEL DE TITULARIDADE DE EMPRESA ESTATAL

No presente tópico, estuda-se o tratamento jurídico dos imóveis pertencentes a empresas estatais, no Código Civil e na Constituição e na jurisprudência do passado e do presente, com o objetivo de responder à questão posta na introdução.

1.2 ENTENDIMENTO ORIGINÁRIO RESULTANTE DO COTEJO DO ART. 191, §ÚNICO DA CF COM O ART. 98 E SS. DO CÓDIGO CIVIL

Impende primeiramente, apresentar brevemente o panorama legislativo sobre o tema. Em primeiro lugar, a dicção constitucional, ei-la:

Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”.

Depois disso, deve-se buscar no ordenamento a definição de bem público, que se encontra no Código Civil, in litteris:

“Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.

Art. 99. São bens públicos:

I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;

II – os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias;

III – os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.

Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado.

Art. 102. Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião.”

Assim, até certo ponto, era o tratamento jurídico da questão bastante simples. Se determinado bem fosse titularizado por empresa estatal, ou seja, empresa pública ou sociedade de economia mista, seria bem privado, simplesmente porque pertencente a pessoa jurídica de direito privado e, assim, passível de usucapião rural. Isso porque o art. 98 do Código Civil emprega definição meramente subjetiva de bem público, importando a natureza jurídica a priori formal da pessoa.

Representativamente desse entendimento, o seguinte aresto do TRF-1ª Região:

“USUCAPIÃO. IMÓVEL URBANO DE PROPRIEDADE DE EMPRESA PÚBLICA. NATUREZA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO. AQUISIÇÃO POR USUCAPIÃO. POSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE CARÊNCIA DE AÇÃO.

1. "Tendo as empresas públicas natureza jurídica de direito privado, regendo-se pelas normas comuns às demais empresas privadas (art. 173, parágrafo 1º – CF), os seus bens não estão imunes à aquisição por usucapião"

(AC 93.01.31311-1/MG, Rel. Desembargador Federal OLINDO MENEZES, Terceira Turma, DJ de 01/07/1998, p.119).

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2. Assim sendo, não se aplica aos bens de empresa pública a vedação contida nos artigos 183, § 3º e 191, parágrafo único, da Carta Magna.

3. Afastada a carência de ação reconhecida (C.P.C., art. 267, VI), não é possível prosseguir no julgamento do mérito, na forma do § 3º do artigo 515 do Código de Processo Civil, uma vez que a questão não é exclusivamente de direito, porquanto depende da análise de provas documentais e testemunhais produzidas nos autos.

4. Apelação a que se dá provimento em parte." (TRF – PRIMEIRA REGIÃO, APELAÇÃO CIVEL – 200237000013947, SEXTA TURMAData da decisão: 21/2/2005)

Portanto, não era necessária análise muito acurada da questão. Sendo empresa estatal e, consequentemente, a personalidade jurídica de direito privado, seus bens não seriam imprescritíveis, não se aplicando, segundo o acórdão o § único do art. 191, da CF, referido acima.

1.3. REVIRAVOLTA GERADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A REPERCUSSÃO SOBRE A IMPRESCRITIBILIDADE DE BENS DE CERTAS ESTATAIS

Segundo jurisprudência atual do STF e entendimento de parte da doutrina, a exploração de atividade econômica por parte do Estado não se confunde com a prestação de serviços públicos. É o que se extrai, por exemplo, do julgamento da ADPF 46, por parte do Supremo Tribunal Federal, no qual se fez diferenciação clara entre os dois institutos: “A atividade econômica em sentido amplo é gênero que compreende duas espécies, o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito” (STF, 2009).

Portanto, quando o Estado atua diretamente no domínio econômico, o faz de assumindo duas facetas – ou explora atividade econômica em sentido estrito, ou presta serviços públicos. A referida distinção é embasada em firme construção jurisprudencial acerca do tema, pautada em acurada análise sistemática da Constituição e, embora cercada de controvérsias, amparada, integral ou parcialmente, pela melhor doutrina.

Essa premissa serve de base para a compreensão de uma cisão existente entre as empresas estatais, divisão essa crucial para o entendimento e a aplicação do art. 173, da CF.

De um lado, emergem as empresas estatais exploradoras de atividade econômica (em sentido estrito), sujeitas com maior veemência ao regime de direito privado – exceto, obviamente, as já citadas normas de direito públicos incidentes sobre elas, em decorrência do controle da pessoa federativa a que estiverem subordinadas – e sob o regime previsto pelo art. 173 da ordem econômica constitucional. A elas se refere o § 1º do citado artigo, ao limitar o âmbito de sua incidência às empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços.

Por outro viés, têm-se as empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos, submetidas a um regime de direito privado mais mitigado, com a incidência de normas de direito público que vão muito além daquelas decorrentes do controle do capital pelo Estado – seus bens são considerados públicos, pois que afetados a atividade de interesse público (a despeito do que diz o art. 98 do Código Civil) e elas se sujeitariam ao regime dos precatórios para pagamento de suas dívidas, por se equipararem à fazenda pública.

Embora alvo de muita controvérsia, a citada cisão na classificação das empresas estatais encontra respaldo em ampla jurisprudência da Colenda Corte:

“Distinção entre empresas estatais prestadoras de serviço público e empresas estatais que desenvolvem atividade econômica em sentido estrito. (…). As sociedades de economia mista e as empresas públicas que explorem atividade econômica em sentido estrito estão sujeitas, nos termos do disposto no § 1º do art. 173 da Constituição do Brasil, ao regime jurídico próprio das empresas privadas. (…). O § 1º do art. 173 da Constituição do Brasil não se aplica às empresas públicas, sociedades de economia mista e entidades (estatais) que prestam serviço público.” (ADI 1.642, rel. min. Eros Grau, julgamento em 3-4-2008, Plenário, DJE de 19-9-2008.) No mesmo sentido: ARE 689.588-AgR, rel. min. Luiz Fux, julgamento em 27-11-2012, Primeira Turma, DJE de 13-2-2012.

“Assim, não se aplicam às empresas públicas, às sociedades de economia mista e a outras entidades estatais ou paraestatais que explorem serviços públicos a restrição contida no art. 173, § 1º, da CF, isto é, a submissão ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias, nem a vedação do gozo de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado (CF, artigo 173, § 2º).” (RE 220.906, voto do rel. min. Maurício Corrêa, julgamento em 16-11-2000, Plenário, DJ de 14-11-2002.) Vide: RE 596.729-AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 19-10-2010, Primeira Turma, DJE de 10-11-2010.”

José dos Santos Carvalho Filho, entretanto, alerta para um ponto específico, que nos parece não sempre observado pela jurisprudência: não é rígida nem perfeitamente delimitável a fronteira entre prestação de serviço público e a exploração de atividade econômica em sentido estrito – empresas estatais que prestem serviço público que também pode ser prestado por particulares – em regime de concorrência com delegatárias desse mesmo serviço, por exemplo –, deveriam ser consideradas no segundo grupo, dado que, em verdade, são pessoas estatais que participam diretamente da atividade econômica em concorrência com particulares (CARVALHO FILHO, 2015).

Diz o citado doutrinador: “se essas entidades executam serviços públicos em regime de competição com empresas privadas, tais serviços, mesmo caracterizando-se como serviços públicos, guardam bastante aproximação com as atividades econômicas em sentido estrito, de modo que nenhuma justificativa razoável se poderia invocar para que lhes sejam outorgadas situações de privilégio, não extensíveis às demais empresas privadas (…)”.

A redação do art. 173, § 1º, da Constituição não ajuda na solução da dúvida, uma vez que estabelece estarem a ele sujeitas as empresas estatais que explorem atividade econômica em exploração de atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, não se precisando se a referência se faz à exploração de atividade econômica em sentido amplo, englobando a prestação de serviços, ou à exploração de atividade econômica em sentido estrito, e ainda que se conclua pela segunda afirmação, se da atividade econômica em sentido estrito estão excluídos todos os serviços públicos ou somente aqueles revestidos de caráter público típico (serviços públicos não econômicos, também chamados de serviços públicos típicos).

Fato é que firme jurisprudência do STF se limita à seguinte distinção, conforme julgado supratranscrito: somente as empresas públicas e sociedades de economia mista exploradoras de atividade econômica (em sentido estrito) se submetem ao regime constitucional referente à atuação direta do Estado na economia, previsto no art. 173 da Carta Magna.

A primeira consequência disso é a submissão, das mencionadas pessoas jurídicas, a um regime de igualdade com as empresas privadas, notadamente quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários. Nesse sentido, tem-se a ausência de privilégios processuais (prazos em dobro para contestar e recorrer atribuídos à Fazenda pública; reexame necessário), civis (impenhorabilidade e imprescritibilidade dos bens, rectius impossibilidade de terem seus bens afetados usucapidos), tributários (imunidades), fiscais ou comerciais.

Nesse contexto, emergem conclusões exemplares da jurisprudência, em aplicação concreta do disposto no art. 173, § 1º, II, da CF. Em primeiro lugar, apresentam-se alguns julgados do STF a respeito dessa situação:

Os privilégios da Fazenda Pública são inextensíveis às sociedades de economia mista que executam atividades em regime de concorrência ou que tenham como objetivo distribuir lucros aos seus acionistas. Portanto, a empresa Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. (ELETRONORTE) não pode se beneficiar do sistema de pagamento por precatório de dívidas decorrentes de decisões judiciais (art. 100 da Constituição).” (RE 599.628, rel. p/ o ac. min. Joaquim Barbosa, julgamento em 25-5-2011, Plenário, DJE de 17-10-2011, com repercussão geral.)

"Esta Corte orientou-se no sentido de que as disposições constitucionais que regem os atos administrativos não podem ser invocadas para estender aos funcionários de sociedade de economia mista, que seguem a CLT, uma estabilidade aplicável somente aos servidores públicos, estes sim submetidos a uma relação de direito administrativo. A aplicação das normas de dispensa trabalhista aos empregados de pessoas jurídicas de direito privado está em consonância com o disposto no § 1º do art. 173 da Lei Maior, sem ofensa ao art. 37, caput e II, da Carta Federal." (AI 468.580-AgR, rel. min. Ellen Gracie, julgamento em 13-12-2005, Segunda Turma, DJ de 24-2-2006.)

Merece destaque para o presente artigo julgado em que o STJ considerou sujeitos a usucapião os bens de sociedade de economia mista exploradora de atividade econômica (REsp 647.357-MG, 3ª Turma, Rel. Min. Castro Filho, julg. Em 19.09.2006)

Nem todos, entretanto, segundo o já citado José dos Santos Carvalho Filho, concordam com a visão do STF, pois “se o Estado se despiu de sua potestade para atuar no campo econômico, não deveria ser merecedor da benesse de estarem as pessoas que criou para esse fim excluídas do processo falimentar. Desse modo, se justificável a exclusão dessas entidades quando prestadoras de serviços públicos, não há justificativa plausível para descartar também as que explorem atividade meramente econômica”.

Após essa orientação do STF, passou, portanto, a jurisprudência a rejeitar a possibilidade de usucapião de bens pertencentes a empresas estatais prestadoras de serviços públicos, já que equiparadas à Fazenda Pública. Nesse sentido, representativo o seguinte precedente do TRF-2ª Região, ad litteram:

CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. SENTENÇA PROFERIDA NOS TERMOS DO ART. 285-A DO CPC. INTERPOSIÇÃO DE RECURSO. AUSENCIA DE CITAÇÃO DOS RÉUS. NULIDADE. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS – ECT. BENS PÚBLICOS. USUCAPIÃO. IMPOSSIBILIDADE. (…)

– Ademais, o deslinde da controvérsia trazida a exame, passa pela análise da natureza jurídica dos bens das empresas públicas, como é o caso da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, ora Apelante, tendo em vista que, se forem considerados bens públicos, submetem-se ao regime jurídico da imprescritibilidade, ao passo que, se detiverem a natureza privada, podem ser adquiridos por usucapião.

– O conceito de bem público foi estabelecido pelo art. 98 do Código Civil, que dispõe: são públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.

– Também são considerados bens públicos aqueles que, embora não pertencentes às pessoas jurídicas de direito público, estejam afetados à prestação de um serviço público. Com relação às empresas públicas, cuja natureza jurídica é de direito privado, há duas situações distintas, uma vez que essas entidades estatais podem ser prestadoras de serviço público ou exploradoras de atividade econômica.

– Os bens das empresas públicas prestadoras de serviço público e que estejam afetados a essa finalidade são considerados bens públicos. Já os bens das estatais exploradoras de atividade econômica são bens privados, pois, atuando nessa qualidade, sujeitam-se ao regramento previsto no art. 173, da Carta Magna, que determina, em seu § 1º, II, a submissão ao regime jurídico próprio das empresas privadas.

– O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 220.906/DF, declarou a impenhorabilidade de bens da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, tendo em vista que a atividade econômica precípua da ECT está direcionada à prestação de serviço público de caráter essencial à coletividade.

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– No caso, a área objeto da presente demanda deve ser considerada bem público, na medida em que pertence à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos que, apesar de constituída como Empresa Pública Federal, possui natureza tipicamente pública, por prestar serviço público sujeito à responsabilidade exclusiva da Administração Direta, restando, por conseguinte, insuscetível de aquisição por usucapião, conforme, aliás, prevê expressamente a Constituição Federal (art. 183, § 3º e art. 191, Parágrafo único).

– Recurso de apelação parcialmente provido para anular a sentença.”

Vê-se que o precedente é interessante, pois, embora colocando dois requisitos para vedar a usucapião de bens de empresa pública (pertencer a empresa pública prestadora de serviço público + afetação ao serviço público), acaba por decidir em abstrato, contentando-se com o suposto de que se cuida da empresa pública federal considerada pelo STF como prestadora de serviço público.

Não há qualquer menção efetiva à circunstância de os bens em questão estarem afetados ao serviço público, mesmo porque se afigura altamente improvável que um bem esteja afetado ao serviço público e, ao mesmo tempo, seja usucapido, pois se cuida de circunstâncias, à primeira vista, excludentes.

1.4. DO RETORNO À SITUAÇÃO REFERIDA EM 1.2, POR RAZÕES DIVERSAS

Já se viu que é pacífico hoje que há empresas estatais consideradas de regime equiparado à Fazenda Pública, o que se refletiria na consequente imprescritibilidade de seus bens.

Entretanto, nossa posição pessoal é de que não basta ser a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público. É necessário, adicionalmente, que haja verdadeira afetação ao serviço público por ela prestado, para que se evite a usucapião.

E, ao fim e ao cabo, essa afetação não se verificará, em regra, se ocorrer o preenchimento dos requisitos da usucapião rural.

No sentido aqui defendido, encontra-se o seguinte precedente do TRF-5ª Região, in litteris:

“EMENTA CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. EMBRAPA. EMPRESA PÚBLICA PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO. REGIME JURÍDICO HÍBRIDO. GLEBAS OCUPADAS PELOS RÉUS NÃO AFETADAS A FINALIDADE PÚBLICA. USUCAPIÃO ESPECIAL RURAL. ART. 191 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. REQUISITOS. OBSERVÂNCIA. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA.1. Apelo de sentença que julgou improcedente o pedido da Embrapa que objetiva a reintegração na posse de uma área de terra denominada "Estação Experimental de João Pessoa", por ter reconhecido que os réus faziam jus à aquisição do domínio das respectivas glebas, por força da usucapião constitucional rural, nos moldes do art. 191 da CF.2. "As Empresas Estatais – Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista – são dotadas de personalidade jurídica de direito privado e possuem regime híbrido, isto é, predominará o público ou o privado a depender da finalidade da estatal – se prestadora de serviço público ou exploradora de atividade econômica". (STJ, RESP 200602256610, Rel Min. Laurita Vaz, 5ª Turma, 02/08/2010)3. Não obstante a Embrapa seja uma empresa pública prestadora de serviço público (atividade de pesquisa agropecuária), verifica-se que os bens a que se reporta a inicial não eram afetados a essa finalidade, mesmo porque se tratam de modestas glebas (a maior de 2 hectares) ocupadas desde os idos de 1970 e 1980 que não interferem na utilização do restante do imóvel para o fim que se destina, já que o bem "Estação Experimental de João Pessoa" possui uma área de 200 hectares, não, havendo, pois, a descontinuidade da prestação do serviço público, razão pela qual as glebas ocupadas pelos demandados não são consideradas bens públicos porque não são afetadas a finalidade pública, sendo, portanto, passíveis de aquisição por usucapião especial rural. 4. Presentes os requisitos constantes no art. 191 da CF, a saber, a) não ser o possuidor proprietário de imóvel rural ou urbano; b) demonstrar o exercício da posse por um período ininterrupto de 5 anos; c) tratar-se de área em zona rural não superior a 50 hectares; d) que o possuidor tenha tornado a terra produtiva; e e) não se tratar o imóvel de bem público, é de ser reconhecida a aquisição do domínio das glebas aos réus, por força da usucapião especial constitucional rural.5. Apelação improvida para manter a sentença de improcedência da ação de reintegração de posse.AC Nº 451570/PB (A-02) ACÓRDÃO. Vistos, etc. Decide a Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, por unanimidade, negar provimento à apelação, nos termos do Relatório, Voto e notas taquigráficas constantes dos autos, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Recife, 23 de novembro de 2010”. (Data de julgamento)

A tese afirmada, bastante razoável, é que, cuidando-se de pessoa jurídica de direito privado, o reconhecimento da prestação do serviço público não tem o condão de tornar seus bens públicos automaticamente, devendo havendo verificação individual de afetação.

Tem-se a impressão de que essa tese equivale a retornar à situação descrita no ponto 2.1, de modo que é, em linha de princípio, possível a usucapião de bens pertencentes a estatais, pois que formalmente pessoas jurídicas de direito privado, porquanto altamente improvável que, ao mesmo tempo, seja o bem afetado ao serviço público e usucapido.

Diz-se altamente improvável e não impossível, pois se encontrou na pesquisa jurisprudencial um caso em que se verificou a coexistência das duas situações, quais sejam, usucapião e afetação ao serviço público, senão vejamos:

“APELAÇÃO CÍVEL – USUCAPIÃO DE IMÓVEL RURAL – BEM DESAPROPRIADO PELA CEMIG – SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO – BEM EMPREGADO NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO – ÁREA DE SEGURANÇA E PRESERVAÇÃO PERMANENTE – PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO – BEM NÃO INSUSCETÍVEL DE USUCAPIÃO – RECURSO NÃO PROVIDO.

1. Os bens da Sociedade de Economia Mista prestadoras de serviço que estiverem afetados à consecução destes, não se sujeitam à mesma regra dos bens privados, mas dos públicos, não se sujeitando à ação de usucapião.

2. Disciplinado pelo Código Florestal que a área às margens de usina hidrelétrica é preservação permanente, está comprovada a destinação específica para a prestação de serviço público”. (TJ-MG – Apelação Cível : AC 10431130011098001 MG)

No referido caso, como as Áreas de Preservação Permanente são efetivamente não-edificantes, não se pode dizer que, como parte do complexo hidroeletétrico, a área não fosse afetada, de modo, aplicando-se a orientação do STF de aceitar a existência de empresas estatais prestadoras de serviços públicas, na espécie, a usucapião ter-se-ia operado de fato sobre área afetada.

Cuida-se, entretanto, de situação muito excepcional, razão pela qual, pela coerência com a própria ratio decindendi das decisões do Pretório Excelso, não se deve aceitar publicação do regime jurídico de bens desafetados ao serviço público, conclusão a que se chega não só a contrario sensu do último precedente citado como diretamente pelo do TRF-5ª Região.

Sendo assim, volta-se mesmo ao regime original tratado em 2.1, pois, como, pelo art. 98 do Código Civil, são bens públicos os pertencentes a pessoas jurídicas de direito público, incluídos os desafetados (dominicais) do art. 99 do mesmo diploma, claro é que os bens de empresas estatais devem ser considerados privados, desde que não se cuide de bens de titularidade de estatais prestadoras de serviço público e afetados à prestação do serviço público.

2. USUCAPIÃO CONSTITUCIONAL RURAL COMO MATÉRIA DE DEFESA

Discute-se aqui a possibilidade de o reconhecimento de usucapião rural alegada em defesa valer ou não como título de propriedade, na usucapião constitucional rural, ao que se responderá afirmativamente, com certas condicionantes e levando em consideração se tratar de importante dispositivo constitucional e a função social da propriedade rural.

O tema deve ser apreciado pelo cotejo, primeiramente, entre a lei 6.969/81 e a súmula 237 do STF.

A primeira, cronologicamente posterior à súmula, dita: “Art. 7º – A usucapião especial[1] poderá ser invocada como matéria de defesa, valendo a sentença que a reconhecer como título para transcrição no Registro de Imóveis. ”

Prevê a súmula 237, editada em 1963, in litteris: “O usucapião[2] pode ser argüído em defesa”.

Vê-se que a previsão legal é mais benéfica e diz mais que a súmula. Essa última limita-se a permitir a arguição em sede de defesa, ao passo que a lei permite que aquilo que foi alegado como defesa, se for reconhecido pela sentença, valha como título (OPTIZ, 2014).

É maneira de garantir-se mais eficazmente a função social da propriedade rural e, inclusive, permitir sua livre circulação no mercado, através da regularidade no registro imobiliário que o registro da sentença permite.

Permite-se, assim, expressamente, que uma questão decidida incidentalmente transite em julgado, mesmo sem a ação declaratória incidental que era prevista pelo CPC de 1973[3].

Ou seja, mesmo sob a égide da lei processual civil anterior, que não reconhecia a força de coisa julgada do reconhecimento por sentença da usucapião, havia previsão legal permitindo tal quanto à usucapião especial, o que deve ser estendido sem dúvida à usucapião constitucional rural, pois, como já dito acima, absorveu a primeira.

É de se notar que o novo CPC não mais previu essa ação declaratória incidental, permitindo, por outro lado, que certas questões prejudiciais transitem em julgado, conforme se depreende do seguinte dispositivo, in verbis:

“Art. 503. A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida.

§ 1o O disposto no caput aplica-se à resolução de questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo, se:

I – dessa resolução depender o julgamento do mérito;

II – a seu respeito tiver havido contraditório prévio e efetivo, não se aplicando no caso de revelia;

III – o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão principal.”

O reconhecimento da usucapião para julgar improcedente a reivindicatória é certamente uma questão prejudicial[4], razão pela qual é possível, em tese, a incidência do novo preceptivo processual civil.

Os requisitos dos incisos I e III são provavelmente atendidos, pois, no primeiro caso, não se pode decidir o mérito sem resolver a questão da usucapião alegada em defesa e, no caso do inciso III, geralmente a competência do juízo engloba ambas as situações.

Pode-se questionar se o teor do inciso II é atendido, pois é sabido que a ação de usucapião é complexa e depende da oitiva do Ministério Público, de proprietários confinantes e da publicação de editais.

Por essa razão, só pode incidir o dispositivo, afora a situação da usucapião especial tratada acima e que goza de previsão específica mais favorável (igualmente no caso da usucapião especial rural, como argumentado), se houver atendimento a esses requisitos formais.

Para tanto, recomenda-se que haja efetivamente a propositura de uma reconvenção, para evitar alegação de que não se atendeu ao art. 503 do CPC/2015, notadamente a proteção ao contraditório em toda sua amplitude.

Entretanto, não tendo havido formalmente a reconvenção, é de se ponderar no caso concreto se o contraditório realmente foi prejudicado e se há interesses de terceiros que não foram protegidos. Isso porque, sendo o interessado apenas o reivindicante, será mais fácil, já na resolução da questão prejudicial, resolver a questão sob os auspícios do contraditório, sem alegações de nulidades processuais.

Quanto às modalidades especiais de usucapião rural referidas, esses óbices se apresentam de menor monta, pois a carga protetiva do usucapiente é maior, o que recomenda que se lhe atribua tratamento processual mais benéfico, de modo que, basta sua contestação para que obtenha título registrável.

CONCLUSÃO

Pela argumentação expendida, foi possível, portanto, trazer subsídios para afastar dois importantes óbices ao reconhecimento da usucapião.

No primeiro caso, argumentou-se pela necessidade de exigir verdadeira afetação do bem teoricamente usucapido ao serviço público prestado pela empresa estatal que o titularizava não só como o próprio sentido da proteção conferida ao STF a essas empresas prestadoras de serviço públicos (proteger os bens afetados ao serviço público e, assim, permitir sua continuidade) como também como modo de permitir a realização da função social da propriedade rural.

No segundo caso, o objeto alcançado foi estender o regramento da lei sobre usucapião especial primeiramente à usucapião rural constitucional, sobretudo pela similaridade de situações, mas também pelo tratamento mais favorável à questão dado pelo CPC. Além disso, deixou-se aberta a possibilidade de, em qualquer ação de usucapião rural, permitir que tal reconhecimento da questão como prejudicial valha como título que possa ir a registro.

Em ambas as situações, fez-se valer a função social da propriedade rural, levando-se em consideração os instrumentos legais processuais ou não, que permitem realizá-la.

 

Referências
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Curso de Direito Administrativo.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: vol. 1. Salvador: JusPodivm, 2014.
OPTIZ, Oswaldo. Curso completo de Direito Agrário. São Paulo: Saraiva, 2014.
 
Notas
[1] Pode-se dizer que a usucapião especial foi absorvida pela constitucional, que trouxe previsão até mais benéfica, aumentando a área usucapível.
Eis a previsão legal da usucapião especial, na lei 6.969/81:
Art. 1º – Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, possuir como sua, por 5 (cinco) anos ininterruptos, sem oposição, área rural contínua, não excedente de 25 (vinte e cinco) hectares, e a houver tornado produtiva com seu trabalho e nela tiver sua morada, adquirir-lhe-á o domínio, independentemente de justo título e boa-fé, podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para transcrição no Registro de Imóveis.
Parágrafo único. Prevalecerá a área do módulo rural aplicável à espécie, na forma da legislação específica, se aquele for superior a 25 (vinte e cinco) hectares.
Já a Carta Maior prevê:
Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

[2] Preferimos, à diferença da súmula, usar usucapião no feminino, como igualmente aceito no vernáculo.

[3] Com efeito, previa o CPC de 1973, in verbis:
Art. 469. Não fazem coisa julgada:
I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença;
Il – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença;
III – a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.
Assim, no Código anterior, como a questão prejudicial não fazia coisa julgada (art. 469, III, do CPC-73), era necessário que houvesse ação declaratória incidental, fulcrada no seguinte dispositivo do CPC-73, in litteris:
Art. 470. Faz, todavia, coisa julgada a resolução da questão prejudicial, se a parte o requerer (arts. 5o e 325), o juiz for competente em razão da matéria e constituir pressuposto necessário para o julgamento da lide. Vide Lei nº 13.105, de 2015)  (Vigência)

[4] Conforme Fredie Didier Jr., “considera-se questão prejudicial aquela de cuja solução dependerá não a possibilidade nem a forma de pronunciamento sobre a outra questão, mas o teor mesmo desse pronunciamento” (DIDIER, 2014). Assim, a existência de usucapião determinará diretamente a procedência/improcedência da reivindicatória, razão pela qual é claramente uma questão prejudicial.


Informações Sobre o Autor

André Borges Coelho de Miranda Freire

Advogado. Graduado do Curso de Direito do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB


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