Resumo: O meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à qualidade de vida das presentes e futuras gerações, preconizado no artigo 25, “caput”, da Constituição Federal, encontra concretude na eficiente proteção jurídica dos vários elementos que o compõem. Neste sentido, o Direito Ambiental brasileiro dispõe de instrumentos para a proteção da flora, enquanto elemento essencial do meio ambiente natural, que evoluíram no sentido de uma proteção não somente individualizada de tal elemento, mas, principalmente, da proteção de biomas e ecossistemas que com ele interagem harmonicamente. O presente artigo, portanto, tem por objetivo a análise dos principais instrumentos de proteção jurídica da flora brasileira, sem intenção de esgotar o tema, mas com a preocupação de contribuir para sua organização.
Palavras-chave: Meio Ambiente. Flora. Instrumentos de proteção. Organização.
Abstract: The ecologically balanced environment, which is essential to the quality of life of present and future generations, as recommended in article 25, "caput", of the Federal Constitution, finds concrete in the efficient legal protection of the various elements that compose it. In this sense, the Brazilian Environmental Law has instruments for the protection of flora, as an essential element of the natural environment, which have evolved in the sense of not only individualized protection of such element, but, mainly, of the protection of biomes and ecosystems that with it interacts harmoniously. The present article, therefore, has the objective of analyzing the various instruments of protection of the Brazilian forests, without intending to exhaust the theme, but with the concern of contributing to its better organization.
Key Words: Environment. Forests. Protective instruments. Organization.
Sumário: Introdução. 1. O meio ambiente ecologicamente equilibrado. 2. A flora como elemento essencial do meio ambiente. 3. Proteção constitucional da flora brasileira. 4. Organização dos instrumentos de proteção da flora brasileira. 4.1 Áreas de Preservação Permanente – APP. 4.2 Reserva Florestal Legal. 4.3. Demais instrumentos de proteção jurídica da flora. Conclusão. Referências.
Introdução
Um dos temas ambientais mais debatidos na atualidade é questão da proteção jurídica da flora, principalmente no que se refere à sua efetividade. O meio ambiente natural, composto de interações bióticas e abióticas, é constituído por elementos como a flora, fauna, recursos hídricos, solo, biodiversidade etc., que tem sido objeto de um conjunto de leis que formam uma verdadeira colcha de retalhos, decorrente, muitas vezes, não só da convivência das competências administrativa e legislativa em matéria ambiental do Estado federativo brasileiro, como também da sucessão de atos normativos no tempo. Diante dessa constatação básica, é salutar um esforço da ciência jurídica no sentido de organizar os diversos instrumentos jurídicos de proteção, a fim de melhor compreendê-los e concretizá-los, sendo esta a preocupação central deste breve estudo. Para se atingir tal fim, serão revisitados temas tradicionais, tais como o conceito de meio ambiente ecologicamente equilibrado, verificando-se em que medida a flora contribui para ele, como seu elemento constitutivo. Posteriormente, se abordam as normas constitucionais basilares do sistema jurídico protetivo da flora para, finalmente, se propor um modelo básico de organização dos instrumentos de proteção.
1. O meio ambiente ecologicamente equilibrado.
A Constituição Federal de 1988, na esteira dos documentos internacionais que lhe precederam, instituiu um conceito inovador em relação ao meio ambiente: a caracterização como ecologicamente equilibrado e essencial à qualidade de vida, para a presente e futura geração (artigo 225, “caput”, da Constituição Federal).
O legislador constituinte brasileiro não se preocupou com um meio ambiente qualquer, mas sim com aquele qualificado pelo equilíbrio ecológico, o que significa dizer que se considera de suma importância a existência de relações saudáveis entre os seres vivos e seu meio.
No sistema ecológico, as relações entre a flora, fauna, atmosfera, recursos hídricos, solo, dentre outros, devem subsistir em equilíbrio, competindo à ação humana não alterá-las. Esse preceito constitucional, por sua vez, também é essencial à dignidade e manutenção da vida no planeta Terra, sendo por isso mesmo a razão de existir do ser humano.
Portanto, mesmo que a ordem constitucional, em relação ao meio ambiente, seja influenciada pela cosmovisão antropocentrista, em que o homem é colocado como o destinatário da proteção jurídica e não o meio ambiente em si, é inegável que, em comparação aos textos constitucionais anteriores, houve evidente avanço.
Para a melhor compreensão do meio ambiente enquanto objeto de estudo, convencionou-se dividi-lo em meio ambiente natural e artificial, tomando-se por critério diferenciador a ação humana sobre o meio.
A primeira categoria, o meio ambiente natural, é aquele considerado sem ação humana, constituído por flora, fauna, biodiversidade, recursos hídricos, atmosfera etc.
Na segunda categoria, o meio ambiente artificial, onde se pode considerar incluído o meio ambiente cultural e do trabalho, é o ambiente sobre o qual incidiu a ação antrópica dirigida à utilização dos recursos naturais.
Esta divisão é de natureza doutrinária e visa facilitar a compreensão do meio ambiente enquanto objeto de estudo da ciência jurídica. Ou seja, trata-se de uma ficção jurídica com finalidade meramente didática que, apesar de certa incompletude técnica, auxilia na citada compreensão.
Em relação ao meio ambiente, também é possível se detectar na ciência jurídica certa discussão quanto à sua natureza jurídica, motivada pela imprecisão do conceito inserido no texto constitucional.
Na medida em que se conceituou o meio ambiente como bem de uso comum do povo, muitas discussões surgiram quanto à natureza jurídica de tal “bem”, conforme as categorias mais tradicionais e estanques, numa contraposição entre bens de domínio público ou privado.
Essa discussão, de certo modo, encontra-se superada, uma vez que se chega à conclusão que o termo “bem” pode ser conceituado, segundo a teoria geral do Direito, como objeto de relações jurídicas e a expressão “uso comum do povo” não ser aquela do direito administrativo, mas, pura e simplesmente, uma alusão genérica de fruição pela coletividade.
Nessa linha é a compreensão de José Afonso da Silva[1] e Maria Sylvia Zanella Di Pietro[2], que entendem o meio ambiente como um bem jurídico de natureza jurídica especial, própria, diferenciada da velha dicotomia administrativista e civilista, competindo ao Estado não a titularidade, porém a função de gestão, uma vez que o bem é também, nitidamente, de natureza difusa, impossível de apropriação individual, portanto.
Por outro lado, não é incomum também se localizar nos textos jurídicos expressões como “bens de interesse comum a todos”, “patrimônio público”, “bem de uso comum do povo” e “patrimônio nacional”, para a designação do meio ambiente, o que, de certo modo, também contribui para lançar luzes sobre a ideia de generalidade do uso, que se caracteriza pela impossibilidade de apropriação privada, até mesmo pelo seu estado incorpóreo, ressaltando sua natureza difusa.
Deste prisma, não há como o Estado ser titular de sua propriedade, devendo apenas dele ser o gestor em parceria com a coletividade, conforme mesmo o princípio da cooperação ou participação, numa relação em que, tanto as pessoas públicas, quanto as pessoas privadas, têm o dever de guarda e tutela.
Ao Estado, assim, restringe-se a coordenação dessa gestão responsável do meio ambiente.
De tudo o que se expôs, a título de arremate inicial, é possível afirmar que existe uma espécie “sui generis” de bem jurídico, o que também não é incomum ser defendida pelos doutrinadores jus-ambientalistas, que não se amolda a qualquer regime jurídico de domínio, mas, tão somente, de uso, fruição, conservação, observados os limites da lei ambiental para sustentabilidade.
2. A flora como elemento essencial do meio ambiente.
Chega-se ao momento de se analisar a importância da flora no meio ambiente natural. Houve um tempo em que se discutiu a existência de diferença de significado do termo flora, diante de outros termos, tais como “florestas”, “matas” etc.
A razão da aparente confusão terminológica decorria, em grande parte, da falta de tecnicidade do texto constitucional.
Uma das formas encontradas, então, para se dirimir tal confusão terminológica, foi a adoção de conceitos mais técnicos, das ciências biológicas, definidores dos termos “flora”, “florestas”, “matas” etc.
Nesse sentido, para as ciências biológicas, o termo “flora” teria um significado de coletividade de espécies vegetais ou plantas, considerando-se o elemento espacial de cada região, área, país ou continente.
O termo floresta, por sua vez, poderia ser definido como uma espécie de flora, como um maciço vegetal composto por indivíduos arbóreos de determinado porte, num determinado espaço territorial, ou seja, com certa densidade arbórea e sobre um terreno de magnitude extensiva.
Outra forma possível de se explicar a terminologia é considerar que “a flora constituiu gênero, do qual as florestas são espécie” (GRANZIERA, 2014, p. 230).
Independentemente das impropriedades técnicas dos textos jurídicos, para a finalidade da sua proteção, tem-se que a flora e, consequentemente, a floresta, constituem ecossistemas complexos, de interações biológicas entre elementos orgânicos e inorgânicos, de seres vivos vegetais ou não.
Para aperfeiçoamento das definições técnicas, o ecossistema foi considerado como o conjunto formado por comunidades biológicas que interagem em determinado território, inclusiva com os elementos abióticos.
Em outras palavras, o ecossistema configuraria uma interação da biota (seres vivos) entre si e com os elementos abióticos (atmosfera, clima, bacias hidrográficas).
O bioma, por seu turno, pode ser considerado como um conjunto de ecossistemas.
O Brasil, comparado aos outros países do mundo, possui ainda uma extensa biodiversidade, conta com uma das maiores reservas de água doce e com um terço das florestas tropicas do globo terrestre.
Há uma vasta diversidade de forrações vegetais e ecossistemas no país, que formam a flora mais exuberante conhecida no planeta.
Por exemplo, segundo dados, existem cerca de 7.880 espécies arbóreas nacionais (FAO, 2005, p. 104) e cerca de 11.120 espécies arbóreas somente na Floresta Amazônica (HUBBELL et al., 2008, p. 11501). Computa-se, também, que no Brasil há uma em cada dez das espécies de plantas e animais do mundo.
Diante dessa magnitude, houve a preocupação de se criar um sistema de informações florestais, por meio da Lei nº. 11.284/2006 (Lei do Sistema Nacional de Informações Florestais – SNIF), pela criação de um órgão que integra tais informações junto ao Sistema Nacional de Informação sobre o Meio Ambiente – SINIMA.
O objetivo geral do SNIF é produzir, organizar, armazenar, processar e disseminar dados, informações e conhecimentos sobre as florestas, com o intuito de subsidiar políticas de gestão ambiental.
Segundo estimativas do SNIF, o Brasil possui aproximadamente 493,5 milhões de hectares (58% do seu território) composto de florestas naturais e plantadas.
Essa extensão florestal se divide em 485,8 milhões de hectares de florestas nativas e 7,7 milhões de hectares de flores plantadas.
Os números demonstram a riqueza da diversidade da flora brasileira, sendo indispensável para a manutenção da quantidade e qualidade dos recursos hídricos, para a estabilidade do solo, para a qualidade do ar atmosférico, para a manutenção da biodiversidade, da vida dos indivíduos faunísticos e, em consequência, do próprio ser humano.
E, exatamente por conta dessa complexidade biológica e das funções ecológicas que a flora desempenha nos ecossistemas e biomas, que se torna indispensável a sua cuidadosa proteção jurídica.
Apesar de não ser possível caracterizar a flora como propriedade privada, de pessoa pública ou privada, costumeiramente, ocorrem casos em que ela é vista como fonte de riquezas pessoais.
Desde a colonização houve a exploração predatória da flora brasileira pelos colonizadores, não se sabendo até hoje contabilizar o lucro gerado dessa exploração, porém é visível o prejuízo ambiental imposto ao Brasil, por exemplo, com a ínfima área que permaneceu recoberta pela Mata Atlântica.
Se por um lado a exploração da flora de forma não sustentável traz evidentes prejuízos ambientais, por outro, ainda há unidades da federação em que a exploração florestal é indispensável para a movimentação da economia e geração de empregos. Segundo LENTINI: “Os principais Estados produtores de madeira da Amazônia mantiveram sua importância relativa na geração de empregos (…), totalizando em 1998 cerca de 90% dos postos de trabalho gerados e, em 2004, aproximadamente 92 %” (LENTINI et al, 2005, p. 65).
O mercado florestal atrai investidores nacionais e internacionais, formando um mercado valioso, que se pode perceber, por exemplo, na Amazônia Legal, onde “o valor das exportações de produtos madeireiros (…) aumentou quase 250% entre 1998 e 2004, passando de US$ 381 para US$ 943 milhões” (LENTINI et al, 2005, p. 96).
Outro fator que tem gerado fortes pressões sobre os recursos naturais em geral e, em especial, sobre a flora, é o crescimento populacional, pois milhares de quilômetros são desarborizados para a instalação de espaços residenciais e industriais, bem como, gradeados para o manejo da agricultura e pecuária.
Disso tudo, é evidente a necessidade de uma continuação da exploração da flora, porém com a devida compatibilização com a sua proteção às futuras gerações, em obediência ao princípio do desenvolvimento sustentável (artigos 170, inciso VI e 225, Constituição Federal).
Por meio de tal proteção não se pretende vedar o uso e fruição dos bens naturais, para o atingimento de desenvolvimento econômico, porém, servirá o Direito e a lei a estabelecer os limites de tal uso e fruição, por meio de instrumentos jurídicos de proteção, conforme se analisa no tópico seguinte.
3. Proteção constitucional da flora brasileira.
A proteção constitucional da flora brasileira se encontra na competência administrativa comum dos entes federativos para a proteção das “florestas, a fauna e a flora” (artigo 23, inciso VII, da Constituição Federal), na competência legislativa concorrente entre a União, Distrito Federal e Estados (artigo 24, inciso VI, da Constituição Federal) e no próprio artigo 225, §§ 1º e 4º, da Constituição Federal, na previsão de que as florestas compõem “patrimônio nacional”, expressão figurativa de relevância que não deve ser entendida como a inclusão delas no acervo patrimonial do poder público federal (OLIVEIRA, 2013, p. 48).
Em relação aos Municípios, apesar de não existir expressa regra de competência legislativa em matéria ambiental, a doutrina entende que ela existe no exercício da competência para legislar dentro de seu interesse local (artigo 30, inciso I, Constituição Federal), aí se incluindo também a proteção, por exemplo, de elementos do meio ambiente natural, como a flora e a fauna, uma vez que, em cada região, tais elementos também podem deter especificidades biológicas, ou seja, devem ser salvaguardados de forma específica pelos ente federativo mais próximo, sendo este evidente interesse local.
Em relação à proteção da fauna e flora, há um exemplo paradigmático ocorrido no município de Curitiba, onde se combinou competências constitucionais (artigo 30, inciso I com o art. 144, § 8º da Constituição Federal) para a criação pioneira de guardas municipais ambientais (FREITAS, 2008, p.13).
Finalmente, na mesma regra do artigo 225, da Constituição Federal, há a ideia de que é um direito fundamental a proteção e manutenção do ecossistema equilibrado e sadio, por imposição de dever ao Poder Público e à coletividade, para as presente e futuras gerações, dentro de uma ideia de pacto intergeracional de proteção do meio ambiente.
Na esteira constitucional, foi recepcionada a Lei n. 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente) que dispõe sobre os instrumentos mais gerais de proteção do meio ambiente e, quanto à flora, houve uma sucessão de três códigos florestais que organizaram os instrumentos específicos, objeto da análise do tópico seguinte.
4. Organização dos instrumentos de proteção da flora brasileira.
O Código Constitucional de 1934 foi o primeiro a versar sobre instrumentos de proteção florística, ao estabelecer, por exemplo, “os critérios para a proteção dos principais ecossistemas florestais e demais formas de vegetação naturais do País, além de introduzir a ideia de categorias de manejo em função dos objetivos e finalidades da área criada”. (MEDEIROS et al, 2004, p. 84/85).
Nesse mesmo código pioneiro, foi prevista a figura das florestas protetoras, o que equivale às atuais áreas de preservação permanente.
O Código Florestal de 1965 sedimentou os conceitos de área de preservação permanente e reserva legal que também foram mantidos no atual, a Lei nº. 12.651/2012, numa concepção muito mais ampla do que a proteção somente da flora individualmente considerada, mas de sua inserção no ecossistema e biomas.
Na concepção do novo diploma de proteção florística, os biomas locais devem ser protegidos como um todo dentro do ecossistema, numa ideia de se resguardar o pleno espaço territorial, leia-se a flora, a fauna, a atmosfera, os recursos hídricos, e os demais componente, reunidos e integrados.
Segundo definição do IBGE, o Bioma é composto pelo conjunto de vida vegetal e animal, identificáveis pelos tipos regionais que se definem em condições geoclimáticas similares e resultem em diversidade biológica própria. É posição majoritária que, no Brasil, existem seis biomas continentais: Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga, Pampa e Pantanal.
Neste azo que, conforme, Convenção da Diversidade Biológica, da qual o Brasil fez parte, a área protegida é definida como “área definida geograficamente que é destinada, ou regulamentada, e administrada para alcançar objetivos específicos de conservação” (artigo 2º), sendo os instrumentos de proteção da flora nacional também dirigidos para esse fim. Tais áreas, relacionando-se diretamente com as unidades de conservação, são objeto de preocupação também no Decreto nº 5.758/2006, que institui o Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas – PNAP.
Segundo tal decreto, a área protegida inclui áreas terrestres e marinhas do Sistema Nacional de Unidades de Conservação; terras indígenas; territórios quilombolas; áreas de preservação permanente e reserva legal florestal. Ou seja, tanto a área de preservação permanente, quanto a reserva legal, disciplinadas também no Código Florestal de 2012, são áreas protegidas, submetidas a determinadas diretrizes preservacionistas e conservacionistas.
4.1 Áreas de Preservação Permanente – APP.
As áreas de preservação permanente (APP), está conceituada no Código Florestal como “área protegida nos termos dos arts. 2ª e 3º desta Lei, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas” (artigo 1º, § 2º, inciso II).
Uma primeira classificação, tomando por base o texto legal, é de APP por imposição legal (artigo 4º, da Lei 12.651/2012) ou por ato do poder público (artigo 6º), sendo as primeiras pré-definidas casuisticamente na lei e as segundas dependentes de uma constituição por ato administrativo.
As APPs legais são aquelas que a lei define nos casos de proteção de cursos d’água (APPs marginais), cujas dimensões, em regra, são definidas pela largura do citado curso. A função ecológica clara é de proteção de tais cursos d’água, por exemplo, evitando a lixiviação e assoreamento de seus leitos. Noutras palavras, “não é necessária a emissão de qualquer ato do Poder Executivo (Federal, Estadual, do Distrito Federal ou Municipal) para que haja uma APP nos moldes previstos pelo art. 4º desta Lei” (MACHADO, 2012, p. 143).
Além dessas, há também as APPs no entorno de lagos e lagoas naturais, cuja dimensão é estabelecida em função da área com água e da localização, seja em área rural (com dimensão maior) ou em área urbana (com dimensão menor). Somam-se, ainda, as APPs de entorno de reservatórios d’água artificiais, com dimensão definida no licenciamento ambiental; APPs de entorno das nascentes e dos corpos d’água perenes, no raio mínimo de cinquenta metros; APPs de encostas ou morro de inclinação mínima de 45º (quarenta e cinco graus) equivalente a cem por cento na linha do maior declive; APPs de restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues (áreas litorâneas de vegetação rasteiras), onde se deve preservação de cem por cento da área, bem como no próprio manguezal; APPs de bordas dos tabuleiros ou chapadas, até a linha de ruptura do relevo, em faixa nunca inferior a cem metros, podendo esses casos serem entendidos como relevos de topo reto, mas seguido de linha do plano para declividade.
No entorno de morros, montes, serras e montanhas, com altura maior ou igual a cem metros e com inclinação média maior que vinte e cinco graus, nas áreas delimitadas pela curva de nível equivalente a dois terços da altura mínima de elevação em relação a base, há as APPs de morros e, nas áreas em altitude superior a 1800 (mil e oitocentos) metros, as APPs de altitude, em que se exige cem por cento de proteção.
Nas veredas, a faixa marginal projetada horizontalmente, devem obedecer a largura mínima de 50 (cinquenta) metros, a partir do limite do espaço brejoso e encharcado.
Em relação aos reservatórios artificiais para segregação energética, as APPs de entorno devem ter faixa variável, tanto na zona rural, como na urbana.
O segundo grupo de APPs, como dito, são aquelas constituídas a partir de um ato administrativo do poder público. Por esse motivo, são denominadas de APPs administrativas, por alguns doutrinadores.
Nessa espécie, o poder público avalia a situação concreta a ser submetida à proteção, porém conforme critérios técnicos de proteção que são: conter a erosão do solo e mitigar riscos de enchentes e deslizamentos de terra e de rocha; proteger as restingas ou veredas; proteger várzeas; abrigar exemplares da fauna ou da flora ameaçados de extinção; proteger sítios de excepcional beleza ou de valor científico, cultural ou histórico; formar faixas de proteção ao longo de rodovias e ferrovias; assegurar condições de bem-estar público; auxiliar a defesa do território nacional, a critério das autoridades militares e proteger áreas úmidas, especialmente as de importância internacional.
Esclarecedor é o conceito de BORGES et al (2011, p. 1203), no sentido de que as APPs se relacionam com funções ambientais, regularizando “a vazão, retenção de sedimentos, conservação do solo, recarga do lençol freático, ecoturismo, biodiversidade, enfim, a uma infinidade de benefícios ambientais”.
Apesar de seguirem um modelo mais preservacionista, o Código Florestal admite a supressão das APPs (art. 8º), mediante determinadas condições.
Aliada à supressão, ainda existe o conceito de exploração sustentável da APP, tais como, em pequena propriedade rural ou de posse rural familiar para o plantio de culturas temporárias e sazonais, de ciclo curto, desde que não implique supressão de novas áreas nativas e seja conservada a qualidade da água de do solo, protegida a fauna silvestre.
Essas atividades, segundo o Código Florestal, podem ser praticadas também tendo em vista o tamanho da propriedade rural e o atendimento de condições específicas, tais como adoção de práticas de manejo de solo, água e de recursos hídricos; compatibilidade com os planos de bacia ou gestão hídricas; realização de licenciamento pelo órgão competente; inscrição no Cadastro Ambiental Rural – CAR e obrigação no sentido de não se permitir nova supressão da vegetação nativa.
O Código Florestal, também se preocupou com as áreas degradadas e sua recomposição florística (artigo 7ª), ao prever um dever geral ao proprietário, possuidor ou ocupante da área, pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, de manutenção da vegetação.
Caso ocorra a supressão de vegetação situada em APP, o proprietário, possuidor ou ocupante deverá promover a recomposição, ressalvadas exceções legais.
Trata-se de uma obrigação propter rem (que acompanha a coisa), vinculada à APP degradada, conforme remansosa jurisprudência (por exemplo, STJ, AgRg no AREsp 327687 SP 2013/0108750-1 (STJ), publicado em 26 de agosto de 2013), cuja ementa contém o seguinte: “1. A jurisprudência desta Corte está firmada no sentido de que os deveres associados às APPs e à Reserva Legal têm natureza de obrigação propter rem, isto é, aderem ao título de domínio ou posse, independente do fato de ter sido ou não o proprietário o autor da degradação ambiental. Casos em que não há falar em culpa ou nexo causal como determinantes do dever de recuperar a área de preservação permanente.”.
Quanto às limitações da propriedade, devem ser aplicadas em concomitância ao princípio da proporcionalidade, para que não haja esvaziamento de sua função econômica, caso em que, em tese, seria possível uma indenização por desapropriação indireta.
Tendo em vista a nítida natureza jurídica de limitações administrativas, principalmente das APPs legais, não se cogita de pagamento de indenização aos proprietários por ela atingidos. A razão é simples, essas APPs atingem igualmente a todos, constituindo mesmo os limites da propriedade privada, conforme a função socioambiental da propriedade.
Entretanto, em relação às APPs administrativas, criadas especificamente diante do proprietário especifico, alterando os limites originais da propriedade, em tese, é possível se cogitar em indenização ao proprietário atingido.
Na medida em que a APP por força de ato administrativo impôs ao proprietário um gravame especifico, para satisfação do interesse público, é conatural a correspondente indenização, com fundamento no princípio da solidariedade. A sociedade como um todo, beneficiada pela área protegida, em prejuízo de seu proprietário, terá que suportar ônus de pagar indenização ao particular atingido pela limitação da propriedade.
Na medida em que a sociedade tem interesse na preservação ambiental, não é exagero entender que o proprietário que sofreu o gravame extraordinário seja indenizado.
Como arremate, não é demais transcrever o escólio de OLIVEIRA (2013, p. 81) a respeito das características das APPs:
“a. A generalidade, na medida em que são fixadas, com efeito “erga omnes”;
b. Em regra, gratuidade, na medida em que não é cabível a indenização ao proprietário do imóvel pela sua instituição;
c. Unilateral, na medida em que corporificam verdadeira imposição de vontade do Estado sobre a do particular, decorrente, portanto, do princípio da supremacia do interesse público;
d. São localizadas na zona rural;
e. São espécies de territórios especialmente protegidos;
f. São limitações a propriedade privada, com imposição de deveres positivos e negativos aos proprietários dos imóveis, como a de florestamento ou reflorestamento, entre outras medidas;
g. Não são suscetíveis de implantação de empreendimento exclusivamente econômicos, para geração de lucro individual;
h. Poder ser públicas ou privadas, tanto que o Código Florestal não as diferencia em razão do seu domínio.”
Finalmente, na zona urbana também se aplica o regime jurídico da APP, com a finalidade, por exemplo, de se dispersar poluição, amenizar temperaturas, melhorar paisagens, aumentar a umidade do ar, absorver ruídos, proteger nascentes, assim como todos outros conceitos da área rural.
Finalmente, tendo em vista a sua função socioambiental, a doutrina se inclina pacificada no sentido de sua proteção, mesmo que sem vegetação, o que não lhe retira a natureza.
4.2 Reserva Florestal Legal
O Código Florestal de 1934 previa um instrumento bastante assemelhado à atual reserva legal (RL) ou reserva florestal legal (RFL), chamado, na época, “reserva florestal” (SODRÉ, 2013, p. 115).
Outro instrumento de proteção da flora é a reserva legal (RL) ou reserva florestal legal (RFL), definida como “área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, delimitada nos termos do art. 12, com a função de assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do imóvel rural, auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e promover a conservação da biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora nativa” (artigo 3º, inciso III, do Código Florestal).
A reserva florestal legal corresponde a um percentual territorial do domínio privado, estipulado em porcentagens diversas, de acordo com o ecossistema regional, correlacionado no artigo 12 do Código Florestal.
Esses percentuais são divididos, em um primeiro momento, por áreas localizadas no território da Amazônia Legal e áreas localizadas na demais regiões do País.
A descrição do conceito de território da Amazônia Legal consta no inciso I, do artigo 3º, do Código Florestal como os Estados do Acre, Pará, Amazonas, Roraima, Rondônia, Amapá, Mato Grosso, demais regiões Norte do paralelo 13ºS dos Estados de Tocantins e Goiás, ao Oeste do meridiano 44ºW do Estado do Maranhão.
Os proprietários ou possuidores de terras em áreas da Amazônia Legal, acima descritas, devem seguir os percentuais de RFL em: 80% (oitenta por cento) quando interagir diretamente no território da floresta; 35% (trinta e cinco por cento) quando situada em área de cerrado e 20% (vinte por cento) quando situada em campos gerais.
Excepciona-se tais percentuais, de acordo com artigo 12, §§4º e 5º, diminuído por até 50% (cinquenta por cento) quando o Município tiver mais de 50% da área ocupada por unidades de conservação legal e por terras indígenas homologadas, ou quando o Estado tiver Zoneamento Ecológico-Econômico aprovado, mais de sessenta e cinco por cento de território ocupado por unidades de conservação legal e território indígena homologado.
As demais regiões do País seguem o percentual de 20% (vinte por cento) de seu ecossistema regional protegido em RFL das propriedades.
Nas situações em que a área servir para instalações de infraestrutura aos serviços públicos essenciais, de água e esgoto, fornecimento de energia, ferrovias e rodovias, não se aplica a RFL (artigo 12, §§ 6º e 7º do Código Florestal).
O regime jurídico da RFL é diferenciado em relação ao das APPs, na medida em que na primeira se permite o manejo florestal sustentável, além de coleta de produtos não madeireiros, tudo com ou sem propósito comercial, desde que com prévia autorização legal, na forma dos artigos 17, §§ 1º e 2º; artigo 20; artigo 21 e artigo 26, todos do Código Florestal.
4.3. Demais instrumentos de proteção jurídica da flora.
O novo Código Florestal também não desconsiderou outros instrumentos de tutela jurídica da flora que, inclusive, foram aperfeiçoados em relação à disciplina do código anterior. Exemplo disso é a proibição individualizada de corte (artigo 70, do Código Florestal), que permite ao poder público federal, estadual e municipal declarar uma determinada árvore protegida, tal como um tombamento, não podendo ser cortada. O indivíduo assim protegido é aquele que seja raro, endêmico, com perigo de extinção, servidor à subsistência de populações tradicionais, beleza, entre outros aspectos a cargo do órgão que determinar sua proteção.
A natureza jurídica da proibição individualizada de corte é assemelhada ao tombamento, apesar deste ser um instituto de direito administrativo muito mais voltado à proteção de elementos do meio ambiente cultural, a ela podendo, inclusive, ser adotadas as modalidades desse último, a compulsória, a voluntária e a de ofício (OLIVEIRA, 2013, p. 110). Na proibição individualizada de corte compulsória, o poder público a aplica sobre uma árvore localizada em propriedade privada. Na voluntária, o próprio proprietário da área sobre a qual se localiza a árvore requer. No de ofício, o poder público impõe sobre árvore localizada sobre um terreno público a citada proibição de corte.
Certamente, a natureza jurídica desse instituto protetivo da flora não pode ser assemelhada à área de preservação permanente e nem à reserva florestal legal, uma vez que estas são de caráter geral, enquanto a proibição de corte, como a própria terminologia indica, é individualizada.
Dessa diferenciação, portanto, muitos doutrinadores defendem a possibilidade do proprietário atingido por tal instrumento de tutela da flora o requerimento de indenização, na medida em que se comprovar a diminuição patrimonial decorrente da proteção ambiental (MORAES, 2009, p. 191).
A servidão ambiental é outro instrumento de proteção da flora que é instituída por vontade do proprietário sobre a vegetação que exceder a RFL (artigos 13, §1; 15, §2º, do Código Florestal), num regime jurídico de autolimitação do uso e exploração. Esse instrumento, por sua vez, pode também por vontade do proprietário, justificar a emissão de títulos representativos da floresta “em pé”, conservada. Esse título é a cota de reserva ambiental (artigo 44, inciso I, do Código Florestal) e pode servir como poderoso instrumento para a compensação ambiental. Ou seja, um proprietário de área rural que não tenha recomposto sua RFL poderá adquirir cotas de reserva ambiental, a fim de cumprir o percentual legal daquela reserva. O procedimento, os requisitos formais do título, as formalidades, entre outros aspectos desse instrumento são previstos no artigo 78, do Código Florestal de 2012, que alterou a redação do artigo 9º-A da Lei nº. 6938/1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente).
A servidão ambiental, da forma atualmente disciplina, poderá ser melhor utilizada se comparada à antiga servidão florestal, apesar de não terem, a rigor, se diferenciado muito, porém, o novo Código Florestal a disciplinou de forma mais completa, contribuindo, portanto, para o atingimento de sua finalidade protetora da flora (OLIVEIRA, 2013, p. 103).
Ao lado de tais instrumentos expressos no Código Florestal de 2012, não se pode esquecer que existem outros, previstos em leis esparsas que cumprem o mesmo papel de proteção da flora brasileira, sendo exemplos as unidades de conservação (Lei nº. 9.985/2000 – Lei do Sistema Nacional das Unidades de Conservação), reserva da biosfera, ilhas oceânicas, lacustres e de rios (Resolução Conama nº. 302/2002), hortos florestais, jardins zoológicos e paralelogramo de cobertura florestal (Lei nº. 7.754/1989), entre outras.
Conclusão.
O meio ambiente ecologicamente equilibrado, enquanto direito fundamental, depende do aperfeiçoamento de instrumentos, constantes na legislação ambiental, para sua implementação. Nesse sentido, a proteção dos elementos do meio ambiente natural não pode ser divorciada da relação essencial entre eles e, no caso da flora, isso é ainda mais claro, tendo em vista as funções ecológicas que ela desempenha no meio ambiente. A flora é responsável pela retenção de recursos hídricos em nascentes, pela proteção dos cursos d’água, pela fixação do solo, pela estabilidade geológica, pela qualidade do ar atmosférico, pela manutenção de temperaturas adequadas ao ser humano, sendo esses apenas alguns exemplos principais. O novo Código Florestal (Lei nº. 12.651/2012), apesar das acertadas críticas quanto ao seu relativo retrocesso na proteção ambiental, por outro lado, representou uma reorganização dos instrumentos de proteção jurídica da flora e consolidação de uma série de aspectos antes disciplinados em legislação esparsa como, por exemplo, as medidas de áreas de preservação permanente, o manejo florestal sustentável, a certificação florestal, entre outros. O novo Código Florestal deu continuidade à forma existente na lei anterior, de disciplinar a área de preservação permanente e a reserva florestal legal, porém com um nível de detalhamento maior, tendo em vista as especificidades da proteção jurídica proposta pelo novo diploma legal. Apesar da consolidação e mais detalhada elaboração de outros instrumentos, ainda remanesce a relevância das áreas de preservação permanente e da reserva legal florestal, como principais instrumentos dessa proteção jurídica.
Informações Sobre o Autor
Emanuele Pezati Franco de Moraes
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Rio Preto. Advogada na área ambiental. Aluna especial de Direito Ambiental na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo