Conversão do negócio jurídico: Da possibilidade de aproveitamento de atos negociais nulos

Resumo: O presente trabalho visa analisar a Conversão do Negócio Jurídico Nulo, como ferramenta idônea, com prévia cominação legal, capaz de aproveitar, sempre que possível for, os elementos substanciais de um determinado ato negocial nulo, a partir da superveniência de um outro negócio, este válido e perfeito, cujo fim seja, ao menos, equivalente ao fim do ato negocial originalmente celebrado.

Sumário: I. Considerações Iniciais, II. Aspectos Históricos, III. Fundamentos, IV. Pressupostos de Admissibilidade, V. Considerações Finais

O nulo é como a criança que nasceu viva sem poder, em situação normal, viver; não como a criança que veio à luz já morta. Por isso mesmo, é possível pensar-se em que viva, em outra situação, artificial ou excepcional” (VOSS)

I. Considerações Iniciais

Sabe-se que o negócio jurídico é um ato decorrente da vontade humana com determinada finalidade tutelada pelo Ordenamento Jurídico, o qual atribui efeitos a esta manifestação de vontade, devendo a mesma estar sempre em consonância com o interesse social.

Estes efeitos decorrem do princípio pacta sunt servanda, através do qual o ato tem força de lei. Porém, para que sejam válidas, é necessário que não confrontem normas de ordem pública. De sorte que, na ausência deles, o negócio restará comprometido com vícios que prejudicarão sua validade ou, fatalmente, sua existência em hipóteses da falta seus elementos constitutivos.

Em contraposição a uma linha de raciocínio retrógrada, mais ainda adotada, de que os negócios inválidos não poderiam subsistir sob hipótese alguma, devendo ser decretados nulos de plano, surge a conversão, com o advento do Novo Código Civil em seu art. 170, que preceitua:

“Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.”

O referido instituto, por constituir uma medida de salvamento para negócios jurídicos nulos, é de grande valor para a Ciência Jurídica, uma vez que em se operando este aproveitamento de suporte fático, afastam-se as conseqüências nocivas dos vícios de atos negociais, preservando os fins que ficariam prejudicados em face da nulidade do negócio.

O aproveitamento destes atos se dá por meio de um ato decisório através do qual, o magistrado, com observância aos pressupostos – a serem analisados posteriormente – aplicará a conversão, isto é, adequará um modelo jurídico-negocial a outro perfeitamente válido, resguardando o seu conteúdo original no que for possível.

Uma pequena parte da doutrina brasileira, mesmo antes de qualquer amparo legal no Ordenamento Jurídico pátrio, já abordava a temática, abalizando-se nos sistemas jurídicos alienígenas, como os Códigos Civis de Portugal, Itália e, em especial, o Código Civil Alemão, já que foi a primeira disposição expressa do instituto, cuja influência na regulamentação brasileira é nítida.

No tocante à essência da conversão, a doutrina diverge:

Para Pontes de Miranda (2001), a medida corresponde à aplicação do Princípio da convertibilidade, através do qual se salva o máximo possível da vontade negocial, mediante nova determinação de categoria jurídica.

Por sua vez, Azevedo, citado por Del Nero (2001, p. 255), concebe a conversão como um “fenômeno de alteração categorial”. E, segundo a própria acepção da expressão conversão, “implica mudança de tipo de negócio”

Seguindo uma tese adotada por respeitável parcela da doutrina germânica, Triginelli (2003, p. 66) entende que a “transformação de um negócio mal sucedido em um negócio válido é apenas uma forma de aplicação da interpretação integradora”.

Por outro lado, conversão para o doutrinador italiano Betti (2003, p. 57) “é correção da qualificação jurídica do negócio ou de algum de seus elementos”.

II. Aspectos Históricos

O termo conversio tem sua origem no Direito Romano, conforme é possível verificar nos digestos de Ulpiano apresentados por Del Nero (2001) em sua tese de doutoramento.

É mister ressaltar, entretanto, que apesar de não rara a presença da expressão conversão na jurisprudência medieval, a sua aplicação nem sempre estava em consonância à concepção atual que se tem do instituto. Pela análise dos textos romanos, é possível observar que a maioria dos casos narrados se referia à mera confirmação ou novação de obrigação.

Na Alemanha, o tema ganhou destaque, sendo objeto de estudo de monografias e tratados que discutiam sua admissibilidade ou não naquele Ordenamento, já que não havia previsão legal.

Com o advento do Código Civil alemão, em seu §140, sob o título Umdeutung (reinterpretação), deu-se a primeira regulamentação do instituto, pondo fim às discussões quanto à possibilidade de aplicação deste.

No Brasil, algumas normas do período imperial já faziam alusão a esta medida, conforme aponta Del Nero (2001), revelando também uma menção expressa do termo “conversão” no ano de 1941 na Exposição de Motivos do Anteprojeto de Código de Obrigações.

O projeto de Lei nº. 118, criado em 1984, após longa tramitação, instituiu em 10 de janeiro de 2002 a Lei nº. 10.406, ou seja, o novo diploma civil que trouxe em seu arcabouço o regramento para a conversão, objeto de estudo deste trabalho. Esta regulamentação se deu através do art. 170, o qual não dispunha de nenhum dispositivo equivalente nas codificações anteriores.

III. Fundamentos

Inaugurando a temática, ressalta-se o posicionamento de Pontes de Miranda que exprime brilhantemente a preferência da função social dos negócios jurídicos ao rigor excessivo das normas:

“O fundamento da conversão está em que, nas relações da vida, mais se há de atender aos propósitos de cada um, econômicos ou não, do que à coincidência entre tudo que se quis e a regra jurídica em que se pensou, querendo-se determinada categoria jurídica. Mais à vida que à rigidez das normas que em que se atentara, explícita, ou apenas implicitamente, pela pré-escolha do negócio jurídico.” (Miranda, 2001, p. 104)

Em consonância a este pensamento, manifesta-se Betti (2003, p. 61), considerando como principal característica da conversão o propósito de zelar pela “função econômico-social da autonomia privada”. Nesta oportunidade, menciona a atuação da conversão no Direito Administrativo, decorrente do princípio da fungibilidade dos atos administrativos e a supremacia do interesse público.

No tocante aos princípios que justificam o instituto em estudo, embora muito se relacione a conversão ao princípio da conservação, estas figuras não podem ter tratamento sinonímico, pois como Betti (2003, p. 65) observa, nesta última “não há mudança na qualificação jurídica, mas é precisamente mantido em vida tal qual como é: um negócio do mesmo tipo que foi escolhido pela parte.”

Sobre a mesma questão observa Soares apud Triginelli (2003, p. 64) que “essencial na noção de conversão é a idéia de substituição de um negócio jurídico”, acrescenta nesta oportunidade que o que se conserva na realidade é “a relevância jurídica da declaração de vontade.

Para Del Nero (2001), a conversão, quando não houver previsão legal, pode se estabelecer na doutrina que buscará alicerce nos princípios gerais de direito. Por outro lado, quando o sistema jurídico gozar de regulamentação, afirma o autor que o instituto é fundado em um poder jurídico-legislativo.

IV. Pressupostos de admissibilidade

a) Negócio Jurídico Nulo

O art. 170, diferentemente do dispositivo lusitano, refere-se expressamente aos negócios jurídicos nulos, não abrangendo os atos anuláveis. Há, entretanto, uma forte tendência doutrinária no sentido de que a conversão deva se estender também aos negócios jurídicos anuláveis.

Com toda a vênia, em contraste aos atos nulos, os atos anuláveis são passíveis de ratificação e convalidação. Neste sentido, é muito mais prático optar pela confirmação a mover o aparelho estatal, uma vez que a conversão pressupõe ato judicial

Bigliazzi-Geri, citado por Del Nero (2001, p. 358) conclui: “Deve pois, deduzir-se que a conversão pode referir-se apenas a negócios nulos. Mas isso não significa que se refira a qualquer um, seja qual for a causa de nulidade”.

Nesta mesma oportunidade, Del Nero preconiza que para que os atos sejam passíveis de conversão, não devem ser contrários aos bons costumes, isto é, a finalidade deve ser lícita.

Lembrando a análise do negócio jurídico em planos de Azevedo, temos que os vícios que acometem o negócio jurídico não devem ser tão graves a ponto de comprometer sua existência, visto que atos inexistentes não adentram o mundo jurídico. Logo, os negócios jurídicos nulos encerram vícios de validade e não de existência.

b) Ignorância da nulidade

Segundo lição de Miranda (2001, p. 105), a conversão pressupõe que as partes não tivessem conhecimento da nulidade, pois se assim o fosse, presumir-se-ia que esta fosse premeditada, ou seja, que eles quiseram o negócio jurídico nulo para que este não produzisse efeitos.

c) Forma

Nos casos em que a lei prevê uma forma específica para aquele determinado ato, a mesma deverá ser atendida. Ou seja, se o negócio jurídico precedente contiver vícios de forma, o negócio sucedâneo não se desincumbe de observar solenidade a ele imputada.

A conversão só é possível e legítima quando há, dentro do sistema jurídico, um modelo negocial com menos exigências formais que o anteriormente celebrado. Verificando-se que o negócio jurídico nulo atende às formalidades de um outro negócio em que há identidade de efeitos entre ambos os modelos, transforma-se aquele viciado em um outro perfeito em sua forma.

d) Identidade de efeitos

A identidade de efeitos, por sua vez, justifica-se pelo próprio princípio norteador do instituto, o princípio da conservação. Ora, se este instituto se opera para preservar ao máximo o fim que as partes perseguiam, seria ilógico que o negócio posterior não produzisse os efeitos equivalentes ao originalmente celebrado, pois se assim o fosse, estaríamos diante de figura diversa, como novação objetiva ou modificação do negócio jurídico.

e) Ato decisório

Incumbe ao magistrado analisar quanto a operabilidade da conversão, efetivando-a a partir de decretação de sentença.

Sobre a questão, preceitua Del Nero (2001, p.375) que o ato decisório em questão implica na “qualificação jurídica em que o grau de correspondência isomórfica ou homóloga entre o negócio jurídico e um outro modelo jurídico é menor que aquele prima facie identificado”

V. Considerações Finais

Não obstante a magnitude da conversão, uma vez que valoriza as relações jurídicas, reforça o fim social dos negócios e prima pela vontade real, resguardando as conseqüências econômicas deles advindas, o instituto, objeto de estudo deste trabalho, é pouco difundido, fato este comprovado pela escassez jurisprudencial atinente ao tema em questão.

Um fato ao qual pode se atribuir a pouca aplicabilidade da medida é o dogmatismo clássico, ainda muito difundido, a exemplo do saudoso mestre Orlando Gomes que, ao se referir ao negócio jurídico nulo, adotou a expressão “natimorto”.

Data maxima venia, a doutrina moderna já não compactua ao entendimento de que o negócio jurídico nulo não tenha adentrado o mundo jurídico, uma vez que, a Teoria da Escada Pontiana demonstra que o negócio jurídico nulo transpõe o plano de existência, sendo obstado, entretanto, na segunda fase de análise, isto é, pelo plano de validade.

Se, a contrario sensu, a premissa de que o ato negocial nulo é inexistente, este seria um “nada jurídico”. Não poderia ser denominado ato, uma vez que sequer teria adentrado a esfera jurídica.

Feitas estas considerações, vemos que a conversão é de extrema relevância para a Ciência Jurídica, visto que os negócios jurídicos, como bem pondera Guerra Júnior (2007, p. 63):

“(…) guardam conseqüências econômicas e/ou sociais; sua utilidade jurídica surge quando estes negócios são admitidos como categorias, e a conseqüência da conservação do negócio no fato de que, como negócio concreto, útil juridicamente e emanado de vontade real, deve ser concluído pela realização da satisfação negocial”.

Quanto ao dogmatismo anteriormente mencionado, Pontes de Miranda, mesmo antes do advento do Código Civil de 2002, já abominava esta concepção, comparando-a à retrógada idéia romanista. Este grande doutrinador contrapunha-se a Gomes e adotava a linha do jurista alemão Voss que, em sua obra Die Konversion dês Rechtsgeschäfts, lecionava:

“O nulo é como a criança que nasceu viva sem poder, em situação normal, viver; não como a criança que veio à luz já morta. Por isso mesmo, é possível pensar-se em que viva, em outra situação, artificial ou excepcional” (VOSS apud MIRANDA, 2001, p. 103)

Vale acrescentar que a medida não constitui forma de manutenção de um negócio inválido. É, na realidade, a transformação de um ato em outro perfeito em sua forma, com um modelo jurídico-negocial menos exigente que o anteriormente pactuado. Por tanto, não há a garantia de que o conteúdo negocial do ato sucedâneo seja exatamente o mesmo do ato originalmente celebrado, mas sim que o fim que visavam as partes não será prejudicado.

 

Referências
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico: Existência, Validade e Eficácia. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
DEL NERO, João Alberto Schützer. Conversão substancial do Negócio Jurídico. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
GUERRA JUNIOR, Celso Souza. Negócios Jurídicos: À Luz de um Novo Sistema de Direito Privafo. Curitiba: Juruá, 2005.
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado – Parte Geral: Negócios Jurídicos, Representação, Conteúdo, Forma, Prova. 2ª Ed. Campinas: Bookseller, 2001.
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado – Parte Geral: Validade, Nulidade, Anulabilidade. 2ª Ed. Campinas: Bookseller, 2001.
TRIGINELLI, Wania do Carmo de Carvalho. Conversão do Negócio Jurídico. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Natália Moreira Brasil

 

Acadêmica de Direito

 


 

logo Âmbito Jurídico