Introdução
Já nos anos 80 a criminalidade avançava a olhos vistos, com os grandes centros urbanos como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, dentre outros, sendo obrigados a conviver com altos índices de homicídios qualificados, latrocínios, estupros e roubos a banco.
A sociedade brasileira esperava providências importantes no sentido de coibir o crime.
O grande foro de debates à época foi, sem dúvida, a Assembléia Nacional Constituinte que teve a grande oportunidade de dar a resposta que a sociedade brasileira merecia no sentido de endurecer a lei penal e estabelecer políticas criminais adequadas para punir com mais severidade criminosos truculentos que praticassem crimes hediondos e com características de perversidade.
Mas a pretensão da sociedade tornou-se frustrada quando os constituintes disseram “não” à pena de morte e à prisão perpétua, que realmente impediriam o avanço dos crimes de altíssima potencialidade.
O tempo passou, a Constituição Federal foi promulgada em 05 de outubro de 1988 e a criminalidade avançou a níveis assustadores. Nossa Carta Fundamental já está para completar 20 anos e o crime tornou-se uma duríssima realidade.
Aumentaram os homicídios qualificados, estupros, extorsões mediante seqüestro, e ainda surgiram “novidades” do final do século, como ações do crime organizado e o domínio dos traficantes de drogas. E nestes quase 20 anos, a sociedade não está tendo a resposta que merece ter por parte do Estado para combater o crime.
Muito pelo contrário: o legislador pátrio admitiu as chamadas penas alternativas, o sursis processual, o livramento condicional, enquanto a sociedade agoniza nas mãos de marginais truculentos, clamando por uma política criminal de “tolerância zero”.
A única lei que ainda mantém o criminoso perigoso cumprindo pena em regime fechado – a Lei 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos) – desejam alguns reformulá-la ou revogá-la incitando sua inconstitucionalidade, enquanto nossas crianças são retiradas do convívio familiar por seqüestradores e a sociedade brasileira continua sendo “refém” de traficantes e do crime organizado.
Argüir a inconstitucionalidade da lei 8.072/90 ou parte dela nos parece uma temeridade jurídica, um “aberratio finis argumentandum”, sendo certo que esta tese apenas serve para aumentar a insegurança da população e a descrença no poder estatal. Usar deste argumento é, no mínimo, querer tripudiar em cima de uma população já amedrontada.
Previsão legal
– Artigo 5º inciso XLIII da C.F.
– Lei nº 8.072/90
No caso, o legislador pátrio de 1990, autorizado pelo constituinte de 1988, definiu quais os delitos que devem ser considerados hediondos na Lei nº 8.072/90 com redação determinada pela Lei nº 8.930/94.
Conceito
Podemos, com toda acuidade, definir como hediondos, os crimes cometidos com crueldade, com sadismo, mostrando-se repugnantes aos olhos humanos.
Taxativamente o artigo 1º da Lei 8.072/90 com redação determinada pela Lei 8.930/94 considerou como hediondos os seguintes tipos penais, tanto nas formas consumadas, quanto tentadas:[1]
I. Homicídio (Art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (Art. 121 § 2º. I, II, III, IV e V);
II. Latrocínio (Art. 157 §3º);
III. Extorsão qualificada pela morte (Art. 158 §2º);
IV. Extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (Art. 159, caput e §§ 1º, 2º e 3º);
V. Estupro (Art. 213 e sua combinação com o artigo 233, caput e parágrafo único);
VI. Atentado violento ao pudor (Art. 214 e sua combinação com o Art. 233, caput e parágrafo único);
VII. Epidemia com resultado de morte (Art. 267, §1º), bem como falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (Art. 273, caput, e §1º, §1ºA e §1ºB).
O parágrafo único da Lei 8.072/90 considera também hediondo o crime de genocídio previsto nos artigos 1º, 2º e 3º da Lei 2.889/56.
Ressalte-se que a prática de tortura, o tráfico de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo não são considerados crimes hediondos, mas assemelhados, com as mesmas conseqüências penais e processuais penais.
Conseqüências penais e processuais penais da lei 8.072/90
A conseqüência mais significativa da lei em exame é aquela que determina que a pena prevista, para os crimes hediondos e assemelhados seja cumprida integralmente em regime fechado, disposto no § 1º do art. 2º. “Andou” muito bem o legislador, “bebericando” em boas águas. Realmente, não teria cabimento que este tipo de criminoso pudesse cumprir pena em regime semi-aberto ou aberto. Tanto é que a lei não admite a possibilidade de qualquer progressão.
É importante salientar que o criminoso hediondo deverá cumprir sua pena em estabelecimentos penais de segurança máxima.
Outra conseqüência da Lei 8.072/90 é a impossibilidade da concessão de anistia, graça, indulto, fiança e liberdade provisória aos praticantes de crimes hediondos, realçando assim o significado altamente negativo do crime hediondo, incompatível com as tradicionais clemências.
Conseqüência também relevante da aplicação da Lei 8.072/90 é a impossibilidade da concessão de sursis, decorrente de condenação por crime hediondo ou assemelhado. A lei não deixa nenhuma margem para a suspensão condicional da pena, sendo certo que haveria incompatibilidade em atribuir este benefício a quem comete um crime bárbaro e é obrigado por lei a cumprir a pena em regime fechado. Nesse sentido, o STF tem se manifestado ao afirmar que: “o instituto do sursis é incompatível com o tratamento penal dispensado pelo legislador aos condenados pela prática dos chamados crimes hediondos.”[2]
Convém também, estabelecermos a importância da Lei 8.072/90 no que diz respeito à prisão temporária.
Enquanto que para crimes não considerados hediondos o prazo legal para permanência de presos temporários, à luz da lei 7.960/89, é de cinco dias (prorrogáveis por igual período), com relação aos cidadãos que tem a prisão temporária decretada por cometimento de crimes hediondos o prazo é mais longo, sendo de trinta dias prorrogáveis por mais trinta.
Com relação a alguns tipos penais como estupro, atentado violento ao pudor, extorsão mediante seqüestro, o art. 9º da Lei 8.072/90 majorou suas penas significativamente respeitando o limite superior de trinta anos de reclusão.
As demais conseqüências da aplicabilidade da Lei 8.072/90 podem ser consideradas benéficas, como a possibilidade de o réu apelar em liberdade, como também as regras estabelecidas no art. 83 inciso V do Código Penal, para o livramento condicional. Isto quer dizer que, cumprindo mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo e assemelhados, não sendo o apenado reincidente específico em crimes dessa natureza, poderá obter tal benefício.
Por derradeiro, convém ressaltar que com o advento da Lei nº 8.072/90, o ordenamento jurídico brasileiro passou a contar com três espécies de bando ou quadrilha, como bem nos ensinam os nobres professores Alexandre de Moraes e Gianpaolo Roggio Smanio em sua magnífica obra “Legislação Penal Especial”:
1- Bando ou quadrilha genérica – ocorrerá quando mais de três pessoas se associarem com a finalidade de praticar quaisquer crimes, executando-se os crimes hediondos e assemelhados. Nessa espécie, tanto a definição típica quanto à pena, que é de reclusão de um a três anos, são previstas no art. 288 do Código Penal;
2- Bando ou quadrilha específica para prática de crimes hediondos ou assemelhados – ocorrerá quando mais de três pessoas se associarem com a finalidade específica de praticar crimes hediondos e assemelhados, salvo o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. Nessa espécie, a definição típica e a prevista no art. 288 do Código Penal, enquanto a pena, que é de reclusão de três a seis anos, é prevista no art. 8º da Lei nº 8.072/90;
3- Bando ou quadrilha específica para prática de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins – ocorrerá quando duas ou mais pessoas se associarem com o fim específico de praticar os delitos previstos nos arts. 12 e 13 da Lei nº 6368/76. Nessa espécie, a definição típica será prevista no art. 14 da citada Lei nº 6368/76, enquanto a pena será prevista no art. 8º da Lei nº 8072/90, ou seja, três a seis anos
Constitucionalidade da lei 8.072/90
Enganam-se aqueles que pretendem argüir a inconstitucionalidade dos dispositivos desta lei. Enganam-se ou usam de má fé. Preferimos acreditar na primeira hipótese.
A obrigatoriedade que a lei prevê para que haja o cumprimento integral da pena, em caso de alguém ser condenado pela prática de crime hediondo ou assemelhado, em regime fechado não ofende, de forma alguma, o princípio constitucional da individualização da pena, “uma vez que se trata de matéria infraconstitucional a ser disciplinada por lei ordinária. Assim, da mesma forma como o legislador ordinário tem a discricionariedade para a criação de regimes de cumprimento de pena, bem como as hipóteses de progressão e regressão entre os diversos regimes previstos, poderá também instituir algumas hipóteses em que a progressão estará absolutamente vedada”[3].
Nesse sentido manifestou-se o Pretório Excelso: “à lei ordinária compete fixar parâmetros dentro dos quais o julgador poderá efetivar a concreção ou a individualização da pena. Se o legislador ordinário dispôs, no uso da prerrogativa que lhe foi deferida pela norma constitucional, que nos crimes hediondos o cumprimento da pena será no regime fechado, significa que não quis ele deixar, em relação aos crimes dessa natureza, qualquer discricionariedade ao Juiz na fixação do regime prisional”.[4]
A mesma situação acontece com relação a questão da insuscetibilidade da liberdade provisória ou fiança.
As mesmas vozes insistem também em pretender a inconstitucionalidade do inciso II do art. 2º da lei 8.072/90.
Enganam-se novamente, “uma vez que o tratamento das hipóteses de liberdade provisória é meramente infraconstitucional, não impedindo, dessa forma que outra espécie normativa ordinária (Lei 8.072/90), de idêntica hierarquia ao C.P.P., possa prever algumas hipóteses proibitivas de concessão de liberdade provisória, como no presente caso ao tratar dos crimes hediondos e assemelhados”.[5]
Nesse sentido, manifestou-se o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo ao afirmar que: “a lei deve ser cumprida. Tal e qual pretendeu o legislador, que, em grave momento, em que se tem como certa a disseminação extraordinária dos tóxicos, em todo o mundo, houve por bem, entre nós, editar lei de rigor mais dilatado, que não se reveste de nenhuma inconstitucionalidade. É no caso, lei ordinária, emanada do poder competente, que em nada arranhou as garantias individuais asseguradas pela Lei Maior.”[6]
Conclusão
Seria jocoso se não fosse trágico. Todas as vezes que se pretende “endurecer a lei penal”, atender aos anseios das famílias brasileiras para que não fiquem reféns dos bandidos, aparecem aqueles que, ocupando o poder, chocam a todos nós apresentando propostas dissociadas da realidade fática, como por exemplo a possível alteração ou até a revogação de dispositivos da Lei 8.072/90, com o argumento de que a referida lei é inconstitucional.
No sentido de mantê-la, preservando sua essência é que oferecemos esta pequena contribuição, trazendo para o debate, a lei dos crimes hediondos, o último “armamento pesado”, que a Nação dispõe para combater efetivamente o crime.
Agora, se for para alterar dispositivos desta lei, podemos sugerir algumas mudanças que poderiam ser apreciadas pelo Congresso Nacional.
A primeira delas seria no sentido de alterar o § 2º da Lei 8.072/90 estabelecendo norma proibitiva para que o condenado por crimes hediondos possa apelar em liberdade. Dar-se-ia a seguinte redação:
“§ 2º – Em caso de sentença condenatória, o réu fica impedido de apelar em liberdade”.
A segunda, alterando o inciso V do art. 83 do nosso Código Penal, proibindo de forma categórica e insofismável qualquer possibilidade de os criminosos hediondos, mesmo que seja pela primeira vez, obterem o benefício da liberdade condicional. Daí, o agente criminoso teria que cumprir a pena em regime fechado, sem direito à progressão de regime e sem o benefício da condicional.
Aí sim, a sociedade teria a resposta que merece do Estado. Aí o povo já oprimido e descrente, poderá afirmar nas ruas: “matou para roubar, estuprou, cometeu extorsão mediante seqüestro, matou a esposa a facadas: foi para a cadeia, foi efetivamente punido! Também é inaceitável a argumentação de que não há cadeias suficientes de segurança máxima para manter esses delinqüentes presos. O que se faz então? Abrir simplesmente as portas das cadeias? Ou simplesmente beneficiar o criminoso sem escrúpulos que comete um latrocínio, por exemplo, podendo obter a condicional cumprindo apenas um pouco mais de ⅓ da pena? Seria um “absurdo”!
O Estado que exerça com autoridade sua alta e esperada função. Que empenhe verbas necessárias no orçamento da União para a construção de presídios. Recursos há. Disso sabemos. Falta é vontade política.
E que se faça uma vigília cívica para impedir que qualquer mudança na Lei 8.072/90 seja feita por meio de medidas provisórias, que seria uma verdadeira aberração, ferindo frontalmente o art. 62, § 1º letra “b” de nossa Magna Carta.
Humanizar a pena como preconizou Beccaria não quer dizer expor nossa sociedade ao perigo. Humanizar a pena é, sem dúvida, ter sensibilidade para aplicá-la nas devidas proporções ao crime cometido.
Informações Sobre o Autor
Ricardo Farabulini
Mestre em Direito do Estado – PUC / SP.
Professor da Faculdade de Direito da FAAP – SP