Crise na Execução Penal (II): da assistência material e à saúde

Sumário:
1. Abordagem do tema; 2. Da
assistência, 3. Modalidades de assistência; 3.1. Da assistência material; 3.2.
Da assistência à saúde; 4. Conclusão.

1.
Abordagem do tema

Seguindo a linha de análise a que
nos propusemos fazer, tendo por objeto alguns dos dispositivos da Lei de
Execução Penal, passaremos agora a expor outros aspectos não menos polêmicos e
preocupantes, se comparados àqueles anteriormente tratados.[1]

Cuidaremos, no próximo passo, de
abordar objetivamente o tema referente a “assistência ao preso e ao internado”.

Nesse particular, convenhamos, a
distância existente entre o idealismo normativo e a realidade prática é
assombrosa.

2.
Da assistência

Consoante dispõe o art. 10 da Lei de
Execução Penal, “a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado,
objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”.
E arremata o parágrafo único: “a assistência estende-se ao egresso”.

Preso, evidentemente, é aquele que
se encontra recolhido em estabelecimento prisional, cautelarmente ou em razão
de sentença penal condenatória com trânsito em julgado. Portanto,
preso provisório ou definitivo. A Lei não restringe a assistência apenas e
tão-somente aos condenados

De outro vértice, internado é o que
se encontra submetido a medida de segurança consistente em internação em
hospital de tratamento e custódia, em razão de decisão jurisdicional. Ainda que
se encontre recolhido em estabelecimento prisional aguardando vaga para
transferência ao hospital de tratamento e custódia, por razões óbvias também
tem assegurado os mesmos direitos. Aliás, seria o extremo do absurdo suprimir
direitos daquele que em razão da inércia e do descaso do Estado, que não
disponibiliza hospitais e vagas suficientes para o atendimento da demanda, já
sofre os efeitos decorrentes de tal omissão, com o inegável desvio na execução
de sua conta. Seria puni-lo duas vezes.[2]

Considera-se egresso, nos termos do
art. 26 da Lei de Execução Penal: I – o liberado definitivo, pelo prazo de 1
(um) ano a  contar da saída do estabelecimento;
II- o liberado condicional, durante o período de  prova.

O objetivo da assistência, como está
expresso, é prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.

A assistência aos condenados e aos
internados é exigência básica para se conceber a pena e a medida de segurança
como processo de diálogo entre os destinatários e a comunidade.[3]

A assistência ao egresso consiste em
orientação e apoio para reintegrá-lo à vida em liberdade e na concessão, se
necessária, de alojamento e alimentação em estabelecimento adequado, por dois
meses, prorrogável por uma única vez mediante comprovação idônea de esforço na
obtenção de emprego.[4]

3.
Modalidades de assistência

Tornou-se necessário esclarecer em
que consiste cada uma das espécies de assistência em obediência aos princípios
e regras internacionais sobre os direitos da pessoa presa, especialmente as que
defluem das regras mínimas da ONU (item 41 da Exposição de Motivos da
LEP).

A assistência a ser prestada,
conforme elenca o art. 11 da Lei de Execução Penal, será: I — material; II — à
saúde; III — jurídica; IV — educacional; V — social; VI — religiosa.

Cuidaremos no presente trabalho
apenas das assistências material e à saúde. As demais serão tratadas no
próximo.

3.1.
Da assistência material

A assistência material ao preso e ao
internado consistirá no fornecimento de alimentação, vestuário e instalações
higiênicas.[5]

Dispões ainda o art. 13 da Lei de
Execução Penal que “o estabelecimento disporá de instalações e serviços que
atendam aos presos nas suas necessidades pessoais, além de locais destinados à
venda de produtos e objetos permitidos e não fornecidos pela Administração”.

Mirabete lembra que a regra do art. 13 se justifica em
razão da “natural dificuldade de aquisição pelos presos e internados de objetos
materiais, de consumo ou de uso pessoal”.[6]

Como é cediço, no particular o
Estado só cumpre o que não dá pra evitar. Proporciona a alimentação ao preso e
ao internado; nem sempre adequada. Os demais direitos assegurados e que
envolvem a assistência material não são respeitados.

3.2.
Da assistência à saúde

Nos precisos termos do art. 14, caput, e § 2º, da Lei de Execução Penal,
a assistência à saúde do preso e do internado, de caráter preventivo e
curativo, compreenderá atendimento médico, farmacêutico e odontológico.[7]
Quando o estabelecimento penal não estiver aparelhado para prover a assistência
médica necessária, esta será prestada em outro local, mediante autorização da
direção do estabelecimento.[8]

A realidade nos mostra, entretanto,
que os estabelecimentos penais não dispõem de equipamentos e pessoal
apropriados para o atendimento médico, farmacêutico e odontológico.

De tal sorte, resta aplicar o § 2º
precitado.

Ocorre, entretanto, que também a
rede pública que deveria prestar tais serviços, é carente e não dispõe de
condições adequadas para dar atendimento de qualidade nem mesmo à camada
ordeira da população e que também necessita de tal assistência Estatal.

O Estado não conseguiu efetivar tais
direitos. Não os assegura, de fato, ainda hoje, nem mesmo aos pagadores de
impostos.

Desrespeita-se, impunemente, a
Constituição Federal; a Lei de Execução Penal; Regras Mínimas da ONU para o
Tratamento de Reclusos, adotadas em 31 de agosto de 1955, pelo Primeiro
Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos
Delinqüentes; Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil. Resolução
n.º 14, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), de
11 de novembro de 1994 (DOU de 02.12.94); Conjunto de Princípios para a
Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão —
Resolução n. 43/173, da Assembléia Geral das Nações Unidas — 76ª Sessão
Plenária, de 9 de dezembro de 1988; Princípios Básicos Relativos ao Tratamento
de Reclusos, ditados pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas,
visando a humanização da justiça penal e a proteção dos direitos do homem;
Princípios Básicos Relativos ao Tratamento de Reclusos, ditados pela Assembléia
Geral da Organização das Nações Unidas, visando a humanização da justiça penal
e a proteção dos direitos do homem; Princípios de Ética Médica aplicáveis à
função do pessoal de saúde, especialmente aos médicos, na proteção de
prisioneiros ou detidos contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas cruéis,
desumanos ou degradantes. Resolução n. 37/194, da Assembléia Geral das Nações
Unidas, de 18 de dezembro de 1982, etc.

Diante de tal quadro, os Tribunais
têm decidido que: “Demonstrada pela Comissão Técnica de Classificação, do
Departamento do Sistema Penitenciário, a necessidade de tratamento e
acompanhamento médico do preso, face à doença que o acomete, e carecendo os
hospitais do órgão de unidade de tratamento intensivo, autoriza-se a prisão
domiciliar até julgamento final do writ” (STJ, 6ª T., rel. Min.
Anselmo Santiago, DJU, 8-4-1996, p. 10490), e que “o preso tem direito à
assistência médica adequada, podendo permanecer em sua residência pelo tempo
que se fizer necessário ao completo restabelecimento de sua saúde, nos termos
do art. 14, § 2º, da Lei n. 7.210/84” (TRF, 3ª Região, HC
95.03.062424/0-SP, 5ª T., rela. Juíza Ramza Tartuce, j. em 25-9-1995, DOU,
21-11-1995, RT 723/682).[9]

4.
Conclusão

Conforme é vontade da Lei e está
expresso, a assistência ao preso e ao internado tem por objetivo prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.

Até aqui, resta evidente que
referidos objetivos ficaram apenas na frieza do papel, que tudo aceita.

A Lei não cumpre o seu destino; não
se presta à sua finalidade; é inócua; uma simples “carta de intenções”
esquecida, abandonada.

O idealismo normativo é excelente;
empolgante. A realidade prática uma vergonha.

Notas:

[1]
MARCÃO. Renato Flávio. Crise na Execução Penal (I), disponível na Internet em:
http://www.ibccrim.org.br.

[2] Na atual
conjuntura entendemos que a medida de internação não deixa de ser uma forma de
“punição”.

[3] MARCÃO.
Renato Flávio. Lei de execução penal anotada. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 42.

[4] MARCÃO.
Renato Flávio. Lei de execução penal anotada. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 42.

[5] Art. 12
da LEP.

[6]
MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal, 9ª ed., São Paulo: Atlas, 2000, p.
65.

[7]
Disposição do caput

[8]
Disposição do § 2º.

[9] cf., MARCÃO. Renato Flávio. Lei de
execução penal anotada. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 48-9.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Renato Flávio Marcão

 

Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).

 


 

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