Resumo: Como se cumpre a sentença internacional? O artigo investiga como se faz, no continente e no País, o cumprimento das sentenças prolatadas por tribunais internacionais, especialmente a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Palavras-chave: Direito Internacional; Sentença Internacional.
Abstract: How do Brazilians enforce an international judgment? The article examines how an international award is enforced in the continent and in Brazil. The case of the Inter-American Court of Human Rights’ judgments deserves special attention.
Keywords: International law; International judgment.
Sumário: 1 Conceito e natureza jurídica da sentença internacional; 2 A sentença internacional no direito brasileiro; 3 Cumprimento da sentença internacional nas Américas; 4 Cumprimento da sentença internacional no Brasil: o caso da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos; 5 Conclusão; Bibliografia.
As organizações internacionais, cuja origem remonta ao final do século XIX, proliferaram após a II Guerra Mundial, quando se tornou evidente a necessidade de mecanismos aptos a harmonizar os conflitos entre os países e a promover seus interesses comuns. Em 2004, elas já eram mais de 6.000[1]. Uma boa definição de organização internacional é dada por Sereni[2]:
“organização internacional é uma associação voluntária de sujeitos de direito internacional, constituída por ato internacional e disciplinada nas relações entre as partes por normas de direito internacional, que se realiza em um ente de aspecto estável, que possui um ordenamento jurídico interno próprio e é dotado de órgãos e institutos próprios, por meio dos quais realiza as finalidades comuns de seus membros mediante funções particulares e o exercício de poderes que lhe foram conferidos.”
A mais conhecida organização internacional, a Organização das Nações Unidas (ONU) foi criada em 1945 e hoje conta com mais de 190 países-membros. Seu principal propósito é manter a paz e a segurança internacional, além de promover a cooperação e os direitos humanos em todo o mundo (art. 1o da Carta das Nações Unidas). A ONU apresenta alcance universal e finalidade política. Como explica Rezek[3], o alcance universal traduz-se na “propensão congênita a congregar, um dia, a generalidade dos Estados soberanos”, enquanto a finalidade política se evidencia em seu propósito.
Com alcance regional, a Organização dos Estados Americanos (OEA), criada em 1951, assume como vocação precípua a “manutenção da paz entre seus próprios membros”[4]. Conquanto se assemelhe à ONU no escopo político, a OEA projeta-se em um espaço delimitado.
Já a Organização Mundial do Comércio (OMC) tem alcance mundial e escopo específico, que é a criação de um quadro institucional para a condução das relações comerciais entre os países-membros (art. 1o do Acordo Constitutivo da OMC – 1994).
Finalmente, o Mercosul, cujo fim —sugerido pelo próprio nome e ainda não atingido — é a criação de um mercado comum, oferece um exemplo de organização internacional com alcance regional e escopo específico.
Para cumprir seu papel, a organização internacional pode promover a celebração de tratados, além de expedir resoluções, declarações e recomendações, as quais integram o chamado soft law, ou seja, direito não cogente ou recomendatório. Várias dispõem também de órgãos jurisdicionais para solucionar controvérsias entre elas e os países-membros, ou deles entre si (e até controvérsias envolvendo terceiros países, no caso da Corte Internacional de Justiça, e apresentadas por reclamações de indivíduos, como nos painéis do Mercosul).
Quando a sentença do órgão com funções jurisdicionais, a sentença internacional, não é cumprida voluntariamente, podem ser impostas sanções no plano internacional, políticas ou econômicas, como a suspensão de concessões ou a compensação motivadas pelo desrespeito a decisões tomadas no sistema de solução de controvérsias da OMC (art. 22 do Entendimento relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias) ou do Mercosul (art. 31 do Protocolo de Olivos).
E, no plano interno: haverá remédio para o não-cumprimento voluntário da sentença internacional?
1. Conceito e natureza jurídica da sentença internacional.
Na primeira metade do século XX, os internacionalistas controvertiam sobre a natureza do tribunal internacional e da sentença internacional, especialmente ao tratarem da Corte Permanente de Justiça Internacional (CPJI), criada sob os auspícios da Sociedade das Nações (SDN). Segundo Romano, a corte da Haia seria um órgão da SDN, que, embora não tivesse personalidade jurídica de direito internacional, teria uma vontade própria a ser externada por seus órgãos, geradora de poderes, direitos e obrigações para os países-membros[5]. Mas Morelli discordava de Romano, pois somente os entes providos de personalidade possuiriam vontade em sentido jurídico, enquanto os demais, entre os quais Morelli incluía a SDN, além do indivíduo (no plano internacional), apenas poderiam externar vontade no sentido sociológico, não no jurídico[6]. Para Morelli, os tribunais internacionais seriam institutos, em vez de órgãos[7]. A diferença entre uns e outros consistiria na possibilidade de imputar a vontade manifestada pelos órgãos a um sujeito, isto é, a um ente dotado de personalidade jurídica de direito internacional, inexistente no caso dos institutos, que agiriam no interesse de um sujeito, sem se confundir com ele[8].
Correlatamente, Morelli sustentava que a sentença internacional, prolatada por um tribunal internacional, teria a natureza de fato jurídico em sentido estrito, já que nela não vislumbrava qualquer manifestação de vontade de um sujeito do direito internacional, hipótese na qual se teria um ato jurídico (vale lembrar: o fato jurídico em sentido lato é aquele apto a gerar consequências jurídicas, podendo caracterizar um ato jurídico, quando consiste em uma manifestação de vontade, ou, do contrário, um fato jurídico em sentido estrito, tal qual a morte). A posição de Morelli está claramente sintetizada neste trecho[9]:
“Cri […] haver precisado a natureza jurídica da sentença internacional, indicando que esta, sem dúvida fato jurídico em sentido lato e materialmente consistente, em minha opinião […], em um fato volitivo, deva considerar-se não como um ato jurídico, mas como um fato jurídico em sentido estrito, pois a declaração de vontade, em que consiste a sentença internacional, não é imputável a qualquer sujeito de direito internacional.” [Traduzimos.]
A controvérsia sobre a natureza dos tribunais internacionais, com reflexos na determinação da natureza das sentenças internacionais, foi superada quando a Carta das Nações Unidas (art. 7o) incluiu a Corte Internacional de Justiça (CIJ) entre os órgãos da ONU, diversamente do que se dava no Pacto da SDN, e a CIJ decidiu que a ONU detém personalidade jurídica. A partir daí, a doutrina e os tratados instituidores de organizações internacionais passaram considerá-las sujeitos no direito internacional.
Revisitando as lições de Morelli, podemos concluir que a sentença internacional tem a natureza jurídica, à luz do direito internacional, de ato jurídico, pois consiste em uma declaração de vontade apta a produzir efeitos no direito internacional e imputável a um ente dotado de personalidade jurídica, que é a organização internacional.
A par das considerações que podem ser feitas sobre a sentença internacional com base no direito internacional, outro tanto se poderá questionar acerca de seu valor no direito interno. Será que o descumprimento da sentença internacional produz consequências no âmbito interno do Estado inadimplente? Como se cumprem, dentro de cada país, as sentenças internacionais?
De acordo com Grandino Rodas, a multiplicação de organizações internacionais sugere a importância do tema, que, contudo, contrasta com a escassez dos estudos doutrinários a respeito[10]. Neste trabalho, tentaremos responder às questões, dedicando especial atenção a como devem ser cumpridas as sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no Brasil. Antes disso, porém, serão examinados: (a) a natureza da sentença internacional segundo o direito brasileiro; e, (b) o cumprimento de sentenças internacionais nos demais países do continente.
2 A sentença internacional no direito brasileiro.
A sentença internacional não se confunde com a nacional ou a estrangeira. As três são uma prestação jurisdicional provocada pelo exercício do direito de ação. A sentença, seja nacional, internacional ou estrangeira, é uma afirmação do direito para o caso concreto, feita por um sujeito imparcial e em resposta ao pedido do interessado. Ela pode ser considerada meramente terminativa, quando se limita a pôr fim ao processo, ou definitiva, quando decide o mérito da causa. Sem prejuízo dos traços comuns, as sentenças nacional, internacional e estrangeira diferenciam-se conforme o órgão prolator, o ordenamento jurídico que lhes dá suporte e o regime jurídico a que se sujeitam.
De acordo com o art. 162, § 1º, do Código de Processo Civil, a sentença nacional é o ato do juiz nacional que resolve o mérito do processo nos termos do art. 269, quando se fala em sentença definitiva, ou então o ato que extingue o processo sem resolução do mérito, nos termos do art. 267, quando se fala em sentença terminativa. Embora não se explicite que a definição do art. 162, § 1º, se refere à sentença nacional, tal conclusão decorre da natureza das coisas: o legislador brasileiro não teria competência para ditar o que se deve entender como sentença em um país estrangeiro, mister do legislador local, nem tampouco para conceituar a sentença internacional, o que cabe a um tratado.
A sentença internacional é aquela proferida por um organismo internacional com funções jurisdicionais, disciplinada pelo direito internacional público, cuja principal fonte normativa é o direito convencional, i.e., os tratados. São sentenças internacionais as prolatadas por tribunais internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, por árbitros que julguem controvérsias entre Estados, ou ainda por painéis de organizações de livre comércio, como os da Organização Mundial do Comércio.
José Carlos Magalhães define a sentença internacional desta forma[11]:
“Sentença internacional consiste em ato judicial emanado de órgão judiciário internacional de que o Estado faz parte, seja porque aceitou a sua jurisdição obrigatória, como é o caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos, seja porque, em acordo especial, concordou em submeter a solução de determinada controvérsia a um organismo internacional, como a Corte Internacional de Justiça. O mesmo pode-se dizer da submissão de um litígio a um juízo arbitral internacional, mediante compromisso arbitral, conferindo jurisdição específica para a autoridade nomeada decidir a controvérsia.”
A sentença estrangeira não se confunde com a internacional, pois a primeira é prolatada pelo judiciário estrangeiro nos termos do direito estrangeiro — em cuja elaboração o Estado receptor não pode interferir —, enquanto a outra o é por um órgão cuja jurisdição foi aceita pelo Estado em que se quer fazê-la valer e é embasada em normas convencionais com as quais ele anuiu. Agustinho Fernandes Dias da Silva afirma[12]:
“As sentenças internacionais, proferidas por tribunal de que participe o Brasil, não são pròpriamente sentenças estrangeiras. Emanam da própria vontade do estado, por intermédio de seu representante no tribunal. Assim sendo, estão dispensadas de homologação, devendo ser executadas de acordo com o ato internacional que as rege.”
Finalmente, a sentença internacional tampouco se identifica com a nacional, que é ditada pelo judiciário nacional com base no direito local. Conclui-se, então, que a sentença estrangeira, a internacional e a interna, por serem essencialmente diversas, devem sujeitar-se a regimes próprios de cumprimento no Brasil.
Desde a Lei 11.232/05, que introduziu o processo sincrético no Brasil, a sentença nacional definitiva não necessariamente põe fim ao processo, mas somente à controvérsia. Ela encerra a fase cognitiva do processo, na qual o juiz aplica o direito à espécie, após terem sido apurados os fatos. Em seguida, pode ter lugar, se necessário, a execução do direito afirmado pelo juiz, com a qual se transporá o comando judicial do mundo jurídico para o mundo dos fatos, ou seja, concretizar-se-á o direito do credor. Um só processo poderá condensar a atividade cognitiva e executiva. Condensará, sempre que se tratar de sentença condenatória e inexistir o cumprimento voluntário por parte do devedor, à exceção das hipóteses indicadas no parágrafo único do art. 475-N do Código de Processo Civil e da execução contra a Fazenda Pública. Não condensará quando for desnecessária a atividade executiva, como ocorre com as sentenças declaratórias e constitutivas, que por si mesmas têm “aptidão para satisfazer por completo o litigante vitorioso”[13].
Todavia, o processo sincrético somente pode ser aplicado à sentença nacional, que é gerada no curso de um processo perante o juiz brasileiro. Ele não é aplicado à sentença estrangeira nem à internacional. Como a cognição prévia ao julgado estrangeiro se dá no processo estrangeiro, descabe pretender jungir a ela a atividade executiva no Brasil. O mesmo se pode dizer da sentença internacional, que é o ato em que culmina a cognição feita por um tribunal internacional, em um processo internacional. Se se quiser executá-la no Brasil, não se poderá pretender um processo sincrético, i.e., em que as atividades cognitiva e executiva se desenvolvem no curso de um só processo.
Além de exigir a instauração de um processo de execução, diversamente do que acontece com a sentença nacional em geral, a sentença estrangeira deve submeter-se ao processo de homologação, que tem curso perante o Superior Tribunal de Justiça (art. 105, I, i, da Constituição), para ser executada no Brasil (CR, art. 109, X). Além disso, e conquanto possam existir exceções à regra da necessidade de homologação, previstas no art. 15, par. ún., da Lei de Introdução ao Código Civil e em alguns tratados, a princípio a sentença estrangeira, seja condenatória, declaratória ou constitutiva, precisa ser homologada para se tornar eficaz no Brasil (CPC, art. 483). Se agasalhar uma condenação, a sentença estrangeira homologada consubstanciará um título executivo judicial (CPC, art. 475-N, inc. VI) e permitirá a instauração do processo de execução, perante a Justiça Federal de primeiro grau (CR, art. 109, X).
Enfim, o cumprimento da sentença nacional diferencia-se daquele da sentença estrangeira, em primeiro lugar, porque essa última muitas vezes se sujeita ao processo de homologação para fazer valer no Brasil os seus efeitos e, em segundo lugar, porque a condenação estrangeira homologada somente será executada após a instauração de um novo processo. Quanto ao mais, a sentença estrangeira será executada da mesma forma que a nacional (CPC, art. 484).
Enquanto a lei brasileira disciplina o cumprimento da sentença nacional e estrangeira, nada se diz sobre a sentença internacional. Seria o caso de equipará-la à sentença nacional ou à estrangeira? Ou a nenhuma delas? Sobre isso falaremos no item 4. Antes, porém, examinemos como nossos vizinhos têm resolvido a questão.
3 Cumprimento da sentença internacional nas Américas.
Na maior parte dos países-membros da Organização dos Estados Americanos, incluindo o Brasil, inexiste um procedimento-padrão para o cumprimento de decisões de organismos internacionais com funções jurisdicionais e faltam mecanismos eficazes para executá-las[14]. Provisões específicas sobre o cumprimento de sentenças de tribunais penais internacionais podem ser encontradas nos Estados Unidos e no Canadá. Já o Peru editou uma lei processual para disciplinar o cumprimento de sentenças internacionais em geral[15]. Vale a pena estudá-la.
A Lei 27.775, de 5 de julho de 2002, disciplina o cumprimento, pelo judiciário peruano, de sentenças proferidas contra o Peru em processos perante tribunais internacionais constituídos por tratados ratificados pelo país (art. 1o da lei). As sentenças internacionais devem ser transmitidas pelo Ministério das Relações Exteriores ao Presidente da Corte Suprema, que as remete à seção (“Sala”) em que se tiver esgotado a jurisdição interna relativa à causa julgada pelo tribunal internacional e determina a sua execução pelo julgador do processo prévio. Se não tiver havido um processo prévio, a execução se fará pelo juiz competente conforme as regras processuais.
Em se tratando de condenação internacional a pagar dinheiro, o juiz da execução notificará o Ministério da Justiça para que o faça em dez dias. Se necessário, a lei prevê procedimentos para a liquidação da sentença internacional (art. 2o). Exemplificando: se a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenasse o Peru a indenizar o dano moral causado a uma pessoa que fosse preterida em um concurso público por sua religião, o juiz da execução expediria uma notificação para que o Ministério da Justiça pagasse o valor devido em dez dias.
Já as sentenças internacionais que impõem medidas não indenizatórias ensejam a emissão de uma ordem do juiz da execução, determinando que os órgãos e instituições estatais envolvidos, sejam quais forem, cessem a situação que tenha dado azo à sentença internacional, e indicando as medidas cabíveis (art. 4o).
No caso Loayza Tamayo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Peru por haver violado o direito de uma mulher, María Elena Loayza Tamayo, de não ser processada duas vezes pelo mesmo fato, nem ser condenada após uma absolvição penal transitada em julgado. A sentença internacional ordenou que a presa fosse posta em liberdade em um prazo razoável, além de determinar a apuração dos danos materiais e morais causados a Loayza Tamayo[16]. Fosse o caso de executar-se a sentença internacional de acordo com a Lei 27.775, o juiz peruano deveria conceder uma ordem para a soltura de Loayza Tamayo, além de determinar o pagamento do valor previamente liquidado em dez dias.
Ademais, a Lei 27.775 determina que as medidas provisórias (cautelar e antecipação de tutela) concedidas pelo tribunal internacional sejam cumpridas em 24 horas (art. 2o).
Em suma, sem necessidade de homologação ou procedimento análogo, a sentença internacional é executada pelos juízes peruanos de uma forma que, sob certos aspectos, é mais simples que a adotada para a sentença local. Se se tratar de uma condenação internacional a pagar dinheiro, deverá ser cumprida em dez dias, independentemente de precatório; se se tratar de uma sentença que imponha outras medidas, também será executada como uma ordem em sede de mandado de segurança.
A Lei 27.775 rege a sentença internacional com normas próprias, diversas das aplicadas no Peru para a sentença nacional ou estrangeira. Ela tem o mérito de promover a cooperação com o tribunal internacional. Todavia, alguns parlamentares descontentes apresentaram um projeto de lei, em janeiro de 2007, visando a revogar a Lei 27.775. A execução da condenação internacional seria mais fácil que a execução da condenação contra o Estado em âmbito local, submetida ao regime dos precatórios. Nisso haveria iniquidade. O credor cujo direito houvesse sido reconhecido pela sentença internacional seria privilegiado em relação àquele beneficiado por uma sentença local. Se o projeto fosse convertido em lei, a execução de sentenças emitidas por tribunais internacionais passaria a seguir as mesmas normas das condenações contra a Fazenda Pública na esfera interna. Na exposição de motivos do Projeto de Lei 853, lê-se que a Lei 27.775 confere um tratamento anti-isonômico aos credores do Estado, conforme tenham sido beneficiados por sentenças internacionais ou internas, sendo as primeiras raríssimas (em janeiro de 2007, havia 22 sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos em execução no Peru) e as últimas abundantes.
Aliás, é interessante notar que a própria Convenção Interamericana de Direitos Humanos, em seu art. 68.2, prevê que a execução das suas condenações indenizatórias dentro do país sucumbente siga o trâmite da execução de sentenças locais contra a Fazenda Pública. Por outro lado, o Pacto de São José da Costa Rica (PSJCR) silencia quanto à execução das demais sentenças, diversamente da Lei 27.775. Poderia, então, questionar-se se o sistema convencionado não seria obrigatório. A verdade, contudo, é que a convenção assegura um mínimo de eficácia interna à sentença internacional. Nada impede que os países, como fez o Peru, ampliem as garantias fornecidas por ela.
Além do Peru, a Colômbia editou a Lei 288/1996, de escopo mais restrito, para disciplinar o cumprimento de indenizações impostas pelo Comitê de Direitos Humanos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas ou pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A Argentina elaborou um projeto de lei sobre o tema, mas que não ia prosperando[17].
No México, a Lei sobre celebração de tratados, de 2 de janeiro de 1992, dispõe em seu art. 11, conforme referido por Osuna[18]:
“Las sentencias, laudos arbitrales y demás resoluciones jurisdiccionales derivados de la aplicación de los mecanismos internacionales para la solución de controversias a que se refiere el artículo 81 (sobre los lineamientos que debe contener cualquier tratado o acuerdo interinstitucional que establezcan mecanismos internacionales para la solución de controversias legales en que son parte, por un lado la Federación, o personas físicas o morales extranjeras u organizaciones internacionales), tendrán eficacia y serán reconocidos en la República, y podrán utilizarse como prueba en los casos de nacionales que se encuentren en la misma situación jurídica, de conformidad con el Código Federal de Procedimientos Civiles y los tratados aplicables.”
Todavia, o mesmo dispositivo ressalva a segurança do Estado, a ordem pública e o interesse essencial da nação, os quais justificariam o não-reconhecimento da sentença internacional no âmbito interno.
Embora as demais legislações internas em nosso continente não disciplinem a forma do cumprimento de sentenças internacionais, alguns tratados o fazem. Por exemplo, o art. 68 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos prevê que a execução da sentença internacional que condena a pagar dinheiro seja feita do mesmo modo que o adotado para a execução de condenações locais contra a Fazenda Pública: “Art. 68. […] 2. A parte da sentença que determinar indenização compensatória poderá ser executada no país respectivo pelo processo interno vigente para a execução de sentenças contra o Estado.” Em vigor no Brasil, apesar de muitas vezes esquecido pelos nossos juízes, o Código Bustamante disciplinou o tema de forma pioneira[19], impondo à sentença internacional o mesmo regime da sentença estrangeira: “Art. 433. Aplicar-se-á também esse mesmo procedimento às sentenças cíveis proferidas em qualquer dos Estados contratantes por um tribunal internacional que se refiram a pessoas ou interesses privados.” Essa é a norma que encerra o capítulo referente à execução de sentenças proferidas por tribunais estrangeiros em matéria cível. No próximo item, voltaremos a ela. Por ora, vale esclarecer que Costa Rica, onde está sediada a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ratificou o Código Bustamante, motivo por que o art. 433 poderia, se não existisse o art. 68.2 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, ser invocado para as decisões dessa corte, quando devessem ser cumpridas por outros ratificantes.
4 Cumprimento da sentença internacional no Brasil: o caso da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos é um organismo internacional com atuação jurisdicional, criado pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos e incumbido de interpretá-la e aplicá-la (art. 62.3 do PSJCR). Suas funções, contudo, vão além, pois detém competência para, a título de consulta, interpretar outros tratados de direitos humanos aplicáveis no continente americano (art. 64 do PSJCR). Em sua atividade jurisdicional, o tribunal julga violações de direitos humanos, que podem ser denunciadas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, um órgão da OEA, ou por países-parte na Convenção Interamericana de Direitos Humanos que tenham aceitado a jurisdição do tribunal internacional.
Quando procedente a alegação de violação, a Corte Interamericana de Direitos Humanos ordenará que seja interrompido o ato transgressivo, executada a medida necessária para o respeito ao direito humano lesado, ou finalmente paga uma justa indenização pelo dano material ou moral (art. 63.1 do PSJCR).
De acordo com uma decisão da própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, os Estados-partes devem fazer todo o possível para cumprir as sentenças internacionais, sob pena de a inadimplência ser submetida à Assembléia Geral da OEA (art. 65 do PSJCR)[20]. Trata-se de uma sanção internacional, de natureza política. Aliás, em geral as sentenças da Corte Interamericana são cumpridas espontaneamente, consoante o testemunho de Cançado Trindade, à época vice-presidente do tribunal[21]:
“Por enquanto, o alentador índice de cumprimento —caso por caso— de todas as sentenças da Corte Interamericana até o presente se deve sobretudo à boa fé e lealdade processual com que neste particular os Estados demandados têm acatado as referidas sentenças, também contribuindo desse modo à consolidação do sistema regional de proteção.”
Nesta oportunidade, o ponto que nos interessa examinar mais detidamente é o valor da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos dentro do Brasil. Como se dá o cumprimento da sentença internacional no País?
Em primeiro lugar, é preciso lembrar, o ideal é que o Brasil cumpra espontaneamente a sentença internacional. Nesse caso, será desnecessário qualquer expediente judicial para fazê-la valer dentro do Brasil. Foi o que se deu no Caso Damião Ximenes Lopes; tendo havido a condenação do Brasil, o Decreto 6.185, de 13 de agosto de 2007, autorizou “a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República a dar cumprimento à sentença exarada pela Corte Interamericana de Direitos”.
Se não houver o cumprimento espontâneo, a execução nem sempre será possível. A Corte Interamericana de Direitos Humanos pode, por exemplo, condenar o Brasil a realizar reformas legislativas, o que não pode ser conseguido à força, pela via judicial.
Se a execução da sentença internacional condenatória for possível, e não havendo cumprimento espontâneo, caberá distinguir se se tem uma condenação ao pagamento de indenização ou a outro tipo de prestação. Na primeira hipótese, aplicar-se-ão diretamente as normas próprias da sentença nacional contra o Estado, por força do art. 68.2 do Pacto de São José da Costa Rica. Uma vez que a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos foi aceita pelo Brasil em 1998 e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos se encontra devidamente internalizada em nosso país, o artigo sob comento assume valor supralegal, por reger matéria relativa a direitos humanos, como recentemente reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal. Como lei, o art. 68.2 pode acrescentar e, de fato, acrescenta ao rol do art. 475-N do Código de Processo Civil um novo título executivo judicial: a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condena a pagar uma indenização compensatória. Sua execução deve ser feita nos termos dos arts. 730 e 731 do CPC, que tratam da execução contra a Fazenda Pública.
Admitir que uma sentença internacional não homologada seja um título executivo judicial no Brasil é compatível com a Constituição, qualquer que seja o entendimento adotado sobre a necessidade de homologação de sentenças estrangeiras. Explique-se: Haroldo Valladão sustentava a existência de um princípio constitucional da necessidade de homologação, que serviria para preservar a competência concentrada, à época do Supremo Tribunal Federal e, atualmente, do Superior Tribunal de Justiça, para controlar a idoneidade da sentença estrangeira à qual se quisessem atribuir efeitos locais[22]. No entanto, a sentença internacional, como vimos, não é estrangeira; e nem mesmo quem endossasse a tese de Valladão, ao contrário de nós, deveria, em consequência, exigir a homologação da sentença internacional que condena a pagar dinheiro.
Enquanto uma sentença é prolatada no seio de uma organização internacional, que é uma pessoa jurídica de direito internacional criada pela vontade dos Estados, a outra deriva de uma soberania estrangeira. Dado que o próprio Estado, no exercício de sua soberania no plano internacional, cria a organização internacional dotando-lhe de certas competências, reconhecer a eficácia da sentença internacional, nos termos previstos no tratado, é uma simples questão de coerência. A situação é bem diversa do reconhecimento da sentença estrangeira, para cuja formação a vontade do Estado receptor não concorre em momento algum, senão posteriormente, quando a sentença já prolatada pretende produzir efeitos em seu território. Em conclusão: a Constituição (art. 105, inc. I, i) prevê apenas a competência do Superior Tribunal de Justiça para homologar as sentenças estrangeiras, entre as quais não se incluem as internacionais, porque são coisas distintas e, quanto a essas últimas, não se deveria falar em homologação (mas o Código Bustamante o faz, como veremos adiante).
No sentido de dispensar a sentença internacional de homologação, já se manifestaram diversos juristas. Segundo Hitters[23]:
“Não nos deve passar inadvertido que, no âmbito da proteção internacional dos direitos humanos, o art. 68, apartado 2, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, chamada também Pacto de San José de Costa Rica, expressa que a parte da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que imponha indenização compensatória poderá ser executada no país respectivo pelo procedimento interno vigente para a execução de sentenças contra o Estado, isso sem nenhum tipo de exequatur nem trâmite de conhecimento prévio.”
O ministro Dipp esposa opinião semelhante, como noticiado por Bastos[24]:
“Não é necessário que uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos seja internalizada por meio de homologação de sentença estrangeira ou de concessão de exequátur a carta rogatória. As decisões da Corte têm eficácia e aplicabilidade imediata no ordenamento interno brasileiro. As afirmações foram feitas pelo ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), durante palestra no Seminário ‘O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Brasil’, proferida nesta terça-feira (17) pela manhã, no auditório externo do Tribunal.”
Mazzuoli segue na mesma direção, embora equiparando indevidamente o art. 105, I, i, da Constituição ao art. 483 do CPC[25]:
“Segundo a nossa concepção, as sentenças proferidas por tribunais internacionais dispensam homologação pelo Superior Tribunal de Justiça. No caso específico das sentenças proferidas pela Corte Interamericana não há que se falar na aplicação da regra contida no art. 105, I, i, introduzido pela Emenda Constitucional 45/2004, repetida pelo art. 483 do CPC, que dispõe que “a sentença proferida por tribunal estrangeiro não terá eficácia no Brasil senão depois de homologada pelo Supremo Tribunal Federal” [entenda-se, agora, Superior Tribunal de Justiça] (grifo nosso). Sentenças proferidas por “tribunais internacionais” não se enquadram na roupagem de sentenças estrangeiras a que se referem os dispositivos citados. Por sentença estrangeira se deve entender aquela proferida por um tribunal afeto à soberania de determinado Estado, e não a emanada de um tribunal internacional que tem jurisdição sobre os Estados.”
Essa lição aplica-se, em nossa opinião, sem ressalvas sempre que houver lei interna ou tratado erigindo a sentença internacional em um título executivo judicial, como faz o art. 68.2 do PSJCR, ou, de outro modo, atribuindo-lhe valor jurídico no direito interno. Em relação às sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenem o Brasil a pagar uma indenização, não há dúvidas: devem ser executadas como as sentenças nacionais contra a Fazenda.
Todavia, em se tratando de sentenças diversas das que condenam a pagar dinheiro, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos silencia a respeito da execução, e o Código Bustamante, que está em vigor no Brasil, prevê a aplicação do processo nele previsto para o cumprimento de sentenças estrangeiras também para as internacionais. Isso significa que o código equipara o regime das sentenças internacionais ao das estrangeiras, embora sejam institutos diversos. Não foi uma opção feliz. Em todo caso, o fato de a norma ter de prever a equiparação já denuncia que são coisas diversas, pois, de outro modo, ela seria supérflua.
Os dispositivos pertinentes do Código Bustamante são o art. 424: “A execução da sentença deverá ser solicitada ao juiz do tribunal competente para a levar a efeito, depois de satisfeitas as formalidades requeridas pela legislação interna” (no Brasil, a homologação, segundo o art. 483 do CPC); e, o art. 433, que estende a aplicação do primeiro, referente especificamente à sentença estrangeira, também à internacional: “Aplicar-se-á também esse mesmo procedimento às sentenças cíveis proferidas em qualquer dos Estados contratantes por um tribunal internacional que se refiram a pessoas ou interesses privados.” Vez que a Corte Interamericana de Direitos Humanos está sediada em Costa Rica, um dos ratificantes do Código Bustamante juntamente com o Brasil, os dispositivos citados se aplicam. Ou seja, a princípio poder-se-ia cogitar de homologar a condenação da CIDH que obrigasse o Brasil a uma prestação diversa do pagamento de indenização, a fim de executá-la.
Todavia, e por tudo o quanto foi exposto acima, o melhor seria deixar de lado o art. 433 do Código Bustamante e, ao menos na execução das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, aplicar analogicamente o 68.2 do PSJCR às condenações que não sejam a pagar dinheiro ––isso se não ocorrer, como é desejável, o cumprimento espontâneo.
Na execução de condenações não indenizatórias, assim como se passa com as indenizatórias, a competência para a execução será do juiz federal, seja nos termos do art. 109, inc. I, da Constituição, já que o processo será dirigido contra a União, seja, ainda, ex vi do inc. III: “Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: […] III – as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional”.
Quanto à legitimidade passiva, o processo deve ser dirigido contra a União, afinal ela representa o Brasil nas relações internacionais e terá de prestar contas da eventual inadimplência (CR, art. 21, inc. I). Sobre a competência para executar a sentença internacional, podem ser citadas as palavras do juiz federal Adriano Enivaldo de Oliveira[26]:
“Sob outro prisma é importante destacar que a responsabilidade perante as Cortes Internacionais, por violações aos direitos humanos, é do Brasil, independentemente do estado federado em que se tenha praticado a violação. A execução de eventual condenação seria feita na Justiça Federal, pois a União Federal seria a ré. Mais ainda: a execução de eventual sentença estrangeira, proferida por Corte Internacional como, por exemplo, a Corte Interamericana de Direito Humanos, seria feita também pela Justiça Federal, devendo esta tomar as medidas necessárias contra o estado infrator.”
No entanto, é possível o litisconsórcio passivo. A União não mantém relações internacionais em nome próprio, mas em representação do País, e, portanto, a execução poderá e deverá ser dirigida contra a União e o ente federado responsável por cumprir a sentença internacional, se diversos. Por exemplo, cabe aos municípios organizar o serviço público local de caráter essencial, incluindo o transporte coletivo (art. 30, inc. V, da CR). Se, por absurdo, em algum município brasileiro as companhias de ônibus discriminarem alguns passageiros, impedindo o seu acesso ao serviço público, em razão de sua orientação sexual, e esse incidente, esgotados os recursos internos, motivar um julgamento e uma condenação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, nesse caso o município deverá também figurar no pólo passivo do processo executivo, pois a ele caberá fazer cessar a violação. A União, em todo caso, não poderá ser excluída, pois terá representado o País no processo internacional.
Ponto que pode suscitar dúvidas é a legitimidade ativa para propor a ação de execução da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Se houver um beneficiário individualizado, ele será legitimado; do contrário, será legitimado o Ministério Público, a quem cabe zelar pelos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da CR) e promover a ação civil pública para proteger interesses difusos e coletivos (art. 129, inc. III, CR). O Ministério Público Federal terá legitimidade sempre, admitindo-se eventualmente o litisconsórcio facultativo de que trata o art. 5o, § 5o, da Lei 7.357/1985, se houver interesse local na execução da sentença internacional.
5 Conclusão.
A Constituição da República, no art. 7º dos Atos das disposições constitucionais transitórias, determina que “O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional de direitos humanos”. Na verdade, a norma chegou tarde. A proposta de criação da Corte Interamericana de Direitos Humanos havia sido formulada pelo Brasil e aceita décadas antes, e, sem embargo, demoramos a admitir a jurisdição da corte, o que só aconteceu em 1998. Também consta da nossa Constituição que o Brasil buscará a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (art. 4o, IX), ideal que, por mais difícil que seja precisá-lo, certamente inclui o respeito aos tratados e às decisões dos tribunais internacionais.
Quando o Brasil for condenado pela CIDH, a sentença deverá ser cumprida espontaneamente. Se isso não acontecer, e se se tratar de condenação a pagar indenização, será executada na forma do art. 68.2 do PSJCR, ou seja, tal qual uma sentença nacional contra a Fazenda, independentemente de homologação. Por outro lado, se se tratar de uma condenação diversa, caberá aplicar o mesmo dispositivo por analogia, já que não há norma específica para as demais condenações.
No que toca ao cumprimento da sentença internacional, como em outros relevantes temas do direito internacional, o ordenamento brasileiro é lacunoso. Aplica-se aos brasileiros, portanto, a advertência de Cançado Trindade[27]:
“[…] a grande maioria dos Estados Partes na Convenção Americana ainda não tomou qualquer providência, legislativa ou de outra natureza, nesse sentido. Por conseguinte, as vítimas de violações de direitos humanos, em cujo favor tenha a Corte Interamericana declarado um direito —quanto ao mérito do caso, ou reparações lato sensu,— ainda não têm inteira e legalmente assegurada a execução das sentenças respectivas no âmbito do direito interno dos Estados demandados. Cumpre remediar prontamente esta situação.”
Informações Sobre o Autor
Marcela Harumi Takahashi Pereira
Promotora de Justiça – MG. Doutora em direito internacional – UERJ