Resumo: O presente estudo tem o objetivo de aprofundar-se no que tange a função de curadoria exercida pelo Ministério Público sobre as fundações de direito privado, co-relacionando a importância dessas últimas para o desenvolvimento social de nosso país e a atribuição fundamental do Ministério Público na defesa dos interesses da sociedade.
Sumário: 1. Introdução. 2. As Fundações Privadas. 3. A Função do Ministério Público. 4. Provedoria de Fundações. 5. Dificuldades e Peculiaridades da Curadoria de Fundações. 6. Conclusão. 7. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
O Ministério Público possui um grande aliado em potencial para exercer a tutela dos direitos coletivos: o terceiro setor.
O primeiro setor é o governo, a máquina estatal; o segundo setor é composto pelas empresas, associações que possuem o lucro como objetivo; e o terceiro setor é a sociedade civil organizada, o voluntariado, entidades sem fins lucrativos. Pinho (2004) descreve:
O movimento do terceiro setor surgiu na Itália e ganhou força na década passada, quando associações e pequenas cooperativas sem finalidade lucrativa conscientizaram-se de que não só poderiam, como deveriam, auxiliar o Estado na perseguição do bem-estar social. Na verdade o terceiro setor é auxiliado e auxilia os outros dois, formando um movimento que lembra, guardadas as devidas proporções, os freios e contrapesos que mantém o equilíbrio entre as três funções do Estado.
As fundações privadas estão inseridas neste terceiro setor e é função do Ministério Público zelar pelo funcionamento correto destas.
O benefício do sistema fundacional é muito amplo, sendo “capaz de assegurar o exercício pleno da cidadania em seus três aspectos, ou seja, garantindo-se os direitos individuais, políticos e sociais através da atividade fundacional”. (FERREIRA, 2004).
O próprio Ministério Público usufrui desses benefícios, com as atividades das Fundações Escola do Ministério Público, presentes em várias unidades estaduais. Trata-se de fundações de apoio, modalidade fundacional de grande relevância, como afirma Luiz Fabião Guasque (2004b):
Praticamente todos os Ministérios Públicos dos Estados instituíram Fundações Escola para projetos de desenvolvimento científico da instituição, realizando cursos preparatórios para o ingresso na carreira.
Desta forma, criam fonte privada de receita apta a agilizar o aperfeiçoamento de seus membros através da realização de seminários, palestras, e outras atividades, utilizando o crédito proveniente do ensino.
O presente trabalho tem como objetivo aprofundar-se no exercício da Curadoria de Fundações, atribuição do Ministério Público, com ênfase na importância social que estas representam para o país. Embora sejam abordados aspectos gerais relevantes do Direito Fundacional, este trabalho será focalizado no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.
2. AS FUNDAÇÕES PRIVADAS
O primeiro objetivo de criação de uma fundação foi o da filantropia. O propósito da ajuda ao próximo, e embora existam outros tipos de fundações, ainda estão em maiorias as que dirigem seu patrimônio para a filantropia.
Segundo lição de Ferreira (2004, grifos do autor):
A idéia de fundação nasceu da necessidade humana de mútua ajuda. Mesmo antes de Cristo, os mais abastados, movidos pela solidariedade, já separavam parte de seu patrimônio em socorro aos menos favorecidos.
Historiadores citam a doação da Biblioteca de Alexandria pelos Ptolomeus como um dos primeiros casos de deslocamento de patrimônio de seus titulares com fins altruísticos. Outro exemplo é encontrado na Escola fundada por PLATÃO nos jardins de Academos (Academia), legada por ele a todos os discípulos sucessores.
Na Roma antiga, sob a influência da Grécia, as fundações floresceram por razões humanitárias, com finalidades variadas, desde o culto funerário, assistência aos enfermos, às viúvas, até a distribuição de alimentos.
Embora no Direito Romano clássico só fosse atribuída personalidade jurídica às associações, já existiam patrimônios vinculados a determinada finalidade, cuja transferência a uma cidade ou collegium se operava inter vivos ou por disposição testamentária.
Enquanto as fundações não foram concebidas como titulares de direitos e obrigações, os romanos doavam ou legavam seus próprios bens a uma pessoa jurídica com o encargo de destiná-los aos fins pretendidos pelos doadores e com estipulação de pena pecuniária em caso de inexecução, cuja fiscalização exercia-se através do curator reipublicae.
Com exceção da personalidade, estas entidades muito se assemelhavam às fundações do direito moderno.
A outorga de personalidade jurídica a uma massa de bens destinados a um fim assistencial ou cultural ocorreu bem mais tarde, em decorrência da evolução da doutrina cristã inspirada na pia causa, quando foi admitida a pessoa jurídica no direito positivo.
No Brasil, as fundações se inspiraram nas ações de caridade e solidariedade das ordens religiosas que aqui se instalaram.
A Fundação Romão de Matos Duarte, criada em 1752, embora funcionasse agregada à Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, é tida como o primeiro esboço de fundação em nosso país.
Entretanto, somente com o advento da Lei n.º 173, em 1903, foi atribuída personalidade jurídica às entidades com fins literários, científicos e religiosos, sendo que, em 1912, a Nova Consolidação do Direito Civil de Carlos de Carvalho já previa as fundações como pessoas jurídicas de direito privado.
Contudo, foi em 1916, com a entrada em vigor do Código Civil brasileiro, que foi consolidada a figura da fundação já existente em legislações esparsas.
Ainda no que tange Direito Fundacional e Direito Romano, de acordo com Lincoln Antônio de Castro (1995, p. 3, apud GUASQUE, 2004a):
Para os romanos, fundação era, em sentido amplo, toda destinação de patrimônio gravado de qualquer encargo. Entretanto, fundação é propriamente uma instituição do Cristianismo, tendo como escopo fazer caridade (piae causae). A Fundação forma-se para consecução de objetivos, tendo como beneficiárias pessoas estranhas aos instituidores e administradores da entidade. As fundações são designadas com a expressão universitates rerum, nelas preponderando o elemento patrimonial; enquanto que, nas associações, predomina o elemento pessoal, traduzindo agrupamento de pessoas e com seu objeto direcionados aos instituidores e demais participantes. Por isso, as associações e sociedades civis, são designadas por universitates personarum.
Quanto ao conceito e natureza jurídica das fundações citamos:
(…) a atribuição de personalidade jurídica a um patrimônio, que a vontade humana destina a uma finalidade social. É um pecúlio, ou um acervo de bens, que recebe da ordem legal a faculdade de agir no mundo jurídico, e realizar as finalidades a que visou o seu instituidor. (PEREIRA, 1974, p. 303 apud FERREIRA, 2004).
(…) constituindo um patrimônio em função do fim a que se destina, vê-se logo seu substrato material, representado pela idéia ou pela afetação patrimonial que as caracteriza, diferentemente das sociedades e das associações, cujo substrato é a vontade das pessoas.
O acervo de bens que as integra desprende-se da vontade criadora para cumprir sua destinação de forma absolutamente autônoma, cuja atuação se dá através de seus órgãos com poder de deliberação. (FERREIRA, 2004).
Maria Sylvia Dipietro esclarece que: “em cada caso concreto, a conclusão sobre a natureza jurídica da fundação pública ou privada tem que ser extraída do exame da sua lei instituidora e dos respectivos estatutos (…)”. (DIPIETRO, 1998, p. 322 apud PAES, 2003).
Como citado anteriormente, o Código Civil de 1916 consolidou a base legal das fundações de direito privado e conseqüentemente o atual código mantém esta base com ligeiras diferenças. Os artigos 62 até 69 do Código Civil regulam a matéria, além dos artigos 1.199 a 1.204 do Código de Processo Civil.
A seguir um breve relato sobre a regulamentação normativa das fundações no que tange sua instituição, fiscalização, elaboração de estatuto, reforma e extinção:
Em síntese, nascem de um ato constitutivo representado pela inequívoca manifestação de vontade do instituidor, declarada através de escritura pública ou testamento, no sentido de se fazer a dotação patrimonial, composta por bens livres e desimpedidos, e a determinação do fim a que se destina. [Art. 62 do Código Civil].
A apreciação do ato constitutivo, estatuto, compete ao Ministério Público do Estado em que a fundação terá sede, podendo aceitá-lo, sugerir modificações ou rejeitá-lo, cabendo ao interessado obter o suprimento judicial nos dois últimos casos. [Art. 1201 do Código de Processo Civil].
Aliás, a própria elaboração do estatuto poderá ser feita pelo Ministério Público, não a fazendo o instituidor nem nomeando quem a faça, ou, ainda, não cumprindo o responsável o encargo, dentro de seis meses, caso não tenha havido estipulação de prazo. Nesta hipótese, o ato constitutivo deverá ser submetido à aprovação judicial. [Art. 65, parágrafo único do Código Civil e Art. 1202 do Código de Processo Civil].
Tal apreciação abrangerá a licitude dos fins a que se destina, a suficiência da dotação para o cumprimento de suas finalidades. Sendo esta insuficiente, os bens serão convertidos em Títulos da Dívida Pública, para complementação por meio dos rendimentos auferidos, se diversamente não dispôs o testador. [Art. 63 do Código Civil].
Obtida a aprovação, far-se-á o registro, no Ofício do Registro Civil das Pessoas Jurídicas, com o qual a fundação adquire personalidade jurídica, não podendo ser alcançada por ato revogatório.
Da mesma forma, as alterações estatutárias serão submetidas ao Ministério Público, cabendo, também, apreciação pelo Judiciário em caso de denegação. [Art. 1203 do Código de Processo Civil e Art. 67, III do Código Civil].
No que tange ao ato de extinção das fundações, tornando-se ilícito o seu objeto, impossível a sua manutenção ou vencendo-se o prazo de sua existência, poderá ser pleiteado pelo Ministério Público ou por qualquer outro interessado, revertendo-se o patrimônio da entidade extinta a outra de fins similares. [Art. 69 do Código Civil e Art. 1204 do Código de Processo Civil].
Saliente-se, ainda, que cabe ao Ministério Público o afastamento de administradores e gestores de seus cargos, não prestando contas de seus atos ou por má gestão na administração da entidade.
Enfim, cumpre assinalar que também estão submetidas ao Ministério Público as fundações internacionais, nos termos do art. 11 da Lei de Introdução ao Código Civil, desde que atuem diretamente no Brasil.
Outro ponto importante a ressaltar é que, na qualidade de entidades filantrópicas, as fundações gozam de privilégios tributários, conforme assegura o art. 150, inciso VI, alínea “c”, da Constituição Federal e art. 14 do Código Tributário Nacional [a receita excedente, fora salários, é parcela de reinvestimento e deve ser aplicada na própria atividade], bem como da isenção de contribuições previdenciárias. (FERREIRA, 2004).
Maria Dolores Ferreira, em seu artigo “Sistema Fundacional e responsabilidade social” concluiu (2004, grifo do autor):
Não obstante estarem as fundações de direito privado inseridas no âmbito da sociedade civil e não no do governo, apresentam características de formalismo em suas estruturas jurídica e financeira, fator que as coloca como entidades de maior potencial para responder de forma eficaz às tarefas do Terceiro Setor, garantindo a credibilidade das instituições e estreitando o relacionamento com o Estado.
Sem questionar a imprecisão dos dados estatísticos em nosso país, fala-se, hoje, na existência de cerca de cento e oitenta mil entidades filantrópicas, dentre associações, institutos e fundações. Esta realidade leva à inabalável conclusão da necessidade imperiosa de organização de um sistema fundacional eficiente, pronto a promover a efetivação dos direitos sociais.
Podemos observar que a criação de entidades associativas no mundo fundacional tem seguido, até então, critérios geopolíticos, e, conforme citamos, doze unidades da federação já se organizaram em federações, centros ou associações de fundações.
Entendemos que o sistema fundacional brasileiro, assim iniciado, deve expandir-se, seguindo, a par do critério mencionado, outros que levassem em conta a especificidade das instituições que viessem a congregar, viabilizando, de modo mais ágil, o mútuo conhecimento, a identificação de problemas, o pensar junto, o estabelecimento de rotinas uniformes válidas para todas as entidades agregadas pela rede, enfim, a busca de resultados de forma homogênea, segundo o campo de atuação.
É grande o potencial das fundações no campo filantrópico, acerca disso:
As atividades beneficentes ou filantrópicas não constituem monopólio das fundações, embora sejam estas as instituições que melhor se ajustam àquele tipo de atividades. De fato, não se admite nas fundações privadas a figura do sócio ou do associado, sob pena de descaracterizá-la. Girando em torno dos interesses imediatos dos integrantes do quadro social, as sociedades e associações realizam seus objetivos, norteando-se as atividades para uma compensadora remuneração do investimento ou para assegurar benefícios diretos aos próprios associados.
Nas fundações, porém, os participantes concorrem com recursos ou esforços para consecução de fins imediatamente direcionados a terceiros, prestando assim serviços desinteressadamente à coletividade. As atividades altruísticas, inerentes a qualquer fundação privada, denotam a preponderância do interesse social ou comunitário. (CASTRO, 2004).
3. A FUNÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Discorrer sobre a instância social do Ministério Público trata-se, por si só, de tema para trabalho monográfico. Desta forma buscaremos resumir em sua relação com as fundações e o terceiro setor de maneira geral.
A Carta Suprema deu novos desígnios ao integrante do Ministério Público, sobretudo na defesa e tutela dos interesses coletivos. Sobre o impacto da nova norma constitucional sobre esta instituição, repetimos as palavras de Luiz Fabião Guasque (2004a, grifo do autor):
Na busca da efetividade dos direitos que a carta da república assegura ao povo, criou-se uma função do Estado, representativa desse poder soberano, de forma a transformar a falácia de que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (parágrafo único do art. 1º) em realidade.
Para tanto, incumbiu-lhe a defesa da ordem jurídica, que se expressa pela tutela de todas as questões de ordem pública ou denominadas questões de Estado como: direitos de incapazes e ausentes, dissoluções de vínculo conjugal, em face de importância da família na constituição do Estado, segurança dos direitos previstos na constituição e não observados nos processos civil e penal, enfim, todas as questões que expressem a segurança das relações jurídicas no Estado de Direito.
O regime democrático, que se apresenta pela garantia de exercício de todas as liberdades públicas no Brasil, assegurado com a observância da democracia representativa, que deve ser expressão da vontade dos eleitores na intermediação de seus interesses. A direta, através do exercício de plebiscitos e referendos populares e talvez a mais importante: a participativa, que comete o controle das contas municipais aos contribuintes (art. 31, § 3º); possibilita a qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato a legitimidade para denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União (art.74, § 2º); determina que a seguridade social tenha caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados (art. 194, inc.VII); o ensino público seja gerido democraticamente, nos termos da lei (art. 206, inc.VI) e que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promova a proteção ao patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação , e outras formas de acautelamento e preservação (art. 216,§ 1º). Enfim, possibilitando a participação cidadã de todos na construção da nossa felicidade.
Nessa última espécie de democracia, é importante destacar, a mobilização da sociedade através de associações civis sem fins lucrativos, Fundações, estas espécies daquela destinadas a servir a humanidade, associações de moradores, escolas de samba etc.
Todas entidades integrantes do denominado terceiro setor, ou seja, o setor da atividade humanística e não lucrativa da sociedade. O Estado, primeiro setor, com papel de regulador. O mercado, segundo setor, gerador de tributos e com a responsabilidade social como um dos elementos de sua atividade, mas todos com deveres e responsabilidades sociais.
Os interesses sociais são expressos pelos direitos da sociedade moderna que constituem as chamadas “violações de massa” como são exemplos os direitos do consumidor, a proteção contra fraudes bancárias, alimentares etc.
Os individuais indisponíveis são todos os direitos fundamentais assegurados na Constituição. [Art. 127 da Constituição Federal]
Na medida em que a proteção dos direitos republicanos passa a ser tema dominante em todo o mundo, torna-se cada vez mais claro que é preciso “refundar a república” o que coloca o Ministério Público, pela legitimação constitucional referida, como um importante elemento nesse processo.
A democracia não pode limitar-se a afirmar uma liberdade negativa de não ser incomodado, e sim compreender uma liberdade republicana e participativa voltada para a proteção da res publica; que a democracia e a administração pública burocrática – as duas instituições criadas para proteger o patrimônio público – devem mudar: a democracia tem que ser aperfeiçoada para tornar-se mais participativa ou mais direta, e a administração pública burocrática devem ser substituída por uma administração pública gerencial.
A consciência disso, ou seja, o reforço da esfera do controle social, provavelmente implicará o desenvolvimento pelo representante do poder do povo (Ministério Público), de mecanismos que possibilitem a exposição pública dos interesses particulares – em vez do seu encobrimento espúrio sob forma de interesse público – e que dêem ensejo a processos de deliberação pública, através dos quais os sujeitos sociais possam chegar à definição de temas e problemas de interesse comum e seu respectivo acompanhamento.
Relacionando o sistema fundacional e a responsabilidade social inerente às atividades que não visam a lucratividade, citamos:
É nítida a responsabilidade do Ministério Público perante a cidadania, e não podemos esquecer que foi na área de fundações que exerceu pioneiramente seu mister de defensor da sociedade com feitio de instituição social, seguido pela atuação em outros setores do direito social, como no campo do consumidor, do meio ambiente, do acidente de trabalho, da infância e da juventude, dos incapazes e tantos outros.
Tomando em consideração esta responsabilidade, ousamos trazer, como ponto de reflexão, a extensão da atuação do Ministério Público a todas as entidades filantrópicas, além das fundações, reforçando tese também defendida pelo Dr. LINCOLN ANTÔNIO DE CASTRO. Sobre o que fazer e como fazer, o agir nesta direção faz parte da saudável transformação permanente, indispensável ao aprimoramento das instituições em geral, e do Ministério Público em particular, por constituir-se verdadeiro instrumento da democracia social. (FERREIRA, 2004, grifo do autor).
A defesa dos interesses difusos e coletivos, mais claramente a partir de 1988, passa a ser dever do Ministério Público.
No contexto constitucional, é nítida a preocupação quanto à tutela de interesses sociais e individuais indisponíveis. A defesa dos interesses difusos e coletivos insere-se entre as funções institucionais do Ministério Público. A par de ser instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, o Ministério Público ostenta incomparável missão, extrajudicialmente, na efetivação dos direitos sociais. (CASTRO, 2004).
Conseqüentemente, as fundações de direito privado tornam-se meios de exercício da instância social do Ministério Público para promover a efetivação dos direitos sociais.
No momento em que o Estado abre espaços aos membros da sociedade para promover a efetivação dos direitos sociais, certamente as entidades filantrópicas passam a constituir eficiente instrumento para a canalização de recursos e esforços, com intensa e fecunda participação comunitária, na direção da exata consecução de objetivos relacionados com a promoção do bem comum. Em relação às fundações de direito privado, excluídas as instituídas e mantidas pelo Poder Público e aquelas enquadradas como entidades fechadas de previdência privada, o Ministério Público exerce provedoria. Vela pelas fundações (…) independentemente de serem ou não destinatárias de verbas públicas. Certamente, o prestígio das fundações privadas, com acesso amplo ao apoio financeiro do Poder Público e da própria iniciativa privada, resulta da eficiente provedoria exercida pelo Ministério Público. (CASTRO, 2004).
4. PROVEDORIA DE FUNDAÇÕES
Inicialmente sobre o termo “provedoria” temos a explicação de Luiz Fabião Guasque (2004a):
A expressão Provedoria da qual deriva Provedor, foi utilizada pela primeira vez com a edição do ato normativo interna corporis, que estabeleceu direcionamentos na atuação do Promotor de Justiça. Hoje, em face da legitimação constitucional desse poder do povo que é o Ministério Público, o termo ganha relevância, pois cabe ao mesmo prover o exercício da democracia através de atuação das organizações da sociedade civil de interesse público, que deve ser fundada em princípios básicos e essenciais do regime democrático: governo do povo.
Lincoln Antônio de Castro em sua tese aprovada no 2º Congresso Nacional do Ministério Público, realizado em setembro de 1992 em Salvador, acrescentou acerca da relação de provedoria/curadoria entre o Ministério Público e as fundações (2004):
(…) o Ministério Público participa dos atos da vida das fundações privadas. O vetusto Código Civil já atribuía, e agora se justifica com maior razão manter, o encargo de velar pelas fundações. E velar, aqui, significa interessar-se grandemente, com zelo vigilante, pela consecução dos objetivos e pela preservação do patrimônio das fundações. Tal interesse não se restringe a atos de fiscalização. Desde a criação até a extinção, as fundações privadas comportam a tutela ministerial ou provedoria, a fim de que seja efetivamente respeitada a vontade dos respectivos instituidores, traduzida na afetação de bens dotados a determinados e altruísticos objetivos.
O fundamento legal para a atuação do Ministério Público no campo fundacional é encontrada nos artigos 127, caput, e 129, II e III, da Carta Federal, nos artigos 65 até 69 do Código Civil e nos artigos 82, III (hipótese de intervenção processual), 1200 até 1204 do Código de Processo Civil.
Neste momento, devemos ressaltar que as fundações de previdência complementar, embora sejam de direito privado, não estão sob o velamento do órgão do Ministério Público, mas do Ministério da Previdência e Assistência Social. De acordo com o que reza o Art. 72 da Lei Complementar n. º 109 de 29 de maio de 2001:
Art. 72. Compete privativamente ao órgão regulador e fiscalizador das entidades fechadas zelar pelas sociedades civis e fundações, como definido no art. 31 desta Lei Complementar, não se aplicando a estas o disposto nos arts. 26 e 30 do Código Civil e 1.200 a 1.204 do Código de Processo Civil e demais disposições em contrário.
Contudo, existe a possibilidade do Ministério Público intervir na forma do Art. 82, I do Código de Processo Civil caso haja interesse público que justifique essa intervenção. Em relação a isso, citamos:
Quanto à competência, necessário se faz esclarecer que não tem o Ministério Público, por intermédio dos Promotores de Justiça (Curadores de Fundações), atribuição para velar pelas fundações de previdência privada. No entanto, cabe ressaltar que poderá haver ações cuja decisão, ao final, redundará em grande repercussão social, sendo possível a presença do interesse público, por força do art. 82, I do CPC, que justifique a atuação do Ministério Público. (PAES, 2003).
As atribuições do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro estão delineadas na Lei Complementar n. º 28 de 21 de maio de 1982. Esta lei foi revogada pela Lei Complementar n. º 106/2003, com exceção dos artigos que cuidam das atribuições dos órgãos de execução do Ministério Público. Os órgãos de execução dividem-se em primeiro e segundo grau de jurisdição, as Curadorias de Justiça situam-se no primeiro, e a Curadoria de Fundações é uma das Curadorias de Justiça. Citamos o artigo que trata especificamente das Curadorias de Fundações:
Art. 32 – Compete aos Curadores de Fundações:
I – velar pelas fundações que tenham sede ou atuem no território de sua Comarca;
II – fiscalizar a regularidade dos atos de dotação de bens para constituição de fundações e os atos constitutivos destas, aprovando seus estatutos e respectivas alterações e promovendo as medidas necessárias ao regular funcionamento destas entidades;
III – examinar as contas prestadas anualmente pelas fundações, aprovando-as ou não;
IV – exigir a prestação de contas por parte dos administradores de fundações que as não apresentem no prazo e na forma regulares;
V – fiscalizar o funcionamento das fundações, para controle da adequação da atividade da instituição a seus fins, e da legalidade e pertinência dos atos de seus administradores, levando em conta as disposições legais e regulamentares;
VI – promover a realização de auditorias, estudos atuariais e técnicos, e perícias, correndo as despesas por conta da entidade fiscalizada;
VII – comparecer, quando necessário, às dependências das fundações e às reuniões dos órgãos destas, com a faculdade de discussão das matérias, nas mesmas condições asseguradas aos membros daqueles órgãos;
VIII – promover a remoção de administradores das fundações, nos casos de gestão irregular ou ruinosa, e a nomeação de quem os substitua;
IX – promover a declaração de invalidade ou de ineficácia de atos praticados pelos administradores das fundações;
X – receber ou requisitar relatórios, orçamentos, planos de custeio, elementos contábeis, informações, cópias autenticadas de atas, de atos gerais, regulamentares e especiais dos administradores das entidades e demais documentos que interessem à fiscalização das fundações;
XI – apreciar os pedidos de alienação e de oneração de bens patrimoniais das fundações;
XII – elaborar os estatutos das fundações, submetendo-os à aprovação judicial, nos casos previstos em lei;
XIII – determinar as alterações estatutárias necessárias à consecução dos fins fundacionais;
XIV – promover a extinção das fundações, nos casos legais;
XV – atuar pelo Ministério Público, como parte, nos feitos de interesse das fundações e nos mesmos intervir como fiscal da lei, nos termos do art. 82, III, do Código de Processo Civil;
XVI – promover outras medidas administrativas ou judiciais pertinentes ao exercício de sua Curadoria.
§ 1º – Dos atos dos Curadores de Fundações caberá recursos para o Procurador-Geral de Justiça.
§ 2º – Não se aplica o disposto neste artigo às fundações instituídas pelo Poder Público e sujeitas à supervisão administrativa.
Anteriormente, mas subordinada às disposições acima, em 13 de novembro de 1979, a Procuradoria-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro definiu as normas gerais sobre competência em matéria fundacional e instituiu o sistema da Provedoria de Fundações com a Resolução n. º 68. Este ato normativo trouxe substanciais mudanças e inovações ao exercício de Provedoria de Fundações, detalhes estes descritos mais adiante.
Aprofundando-se na atuação do Ministério Público (FERREIRA, 2004, grifo do autor):
No exercício de suas atribuições constitucionais, o Ministério Público assume o papel de garantidor da cidadania, velando pela concretização dos objetivos previstos no art. 3º e seus incisos, da Constituição Federal.
É campo propício para sua atuação os direitos sociais enumerados no art. 6º da Carta Magna, como a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.
Ora, sendo as fundações o instrumento de efetivação destes direitos, é, por excelência, o Ministério Público a instituição adequada para exercer a fiscalização das entidades fundacionais.
Entretanto, o papel do Ministério Público junto às fundações não se restringe à mera fiscalização ou controle dos atos de gestão, mas tem caráter de atividade de provedoria, vocábulo que deriva do latim providere, isto é, atividade de auxílio, de ajuda, de trabalho conjunto na busca de soluções, enfim, de parceria com as fundações.
A atividade ministerial nesta área tem também respaldo no reconhecimento do Ministério Público como instituição responsável pelo pleno exercício da cidadania, patenteado na Carta de 1988, que lhe reservou funções relevantíssimas na tutela de interesses sociais e individuais indisponíveis.
A natureza jurídica de tal atuação é nitidamente protetiva, o que leva à conclusão tranqüila de que tem o Ministério Público atribuição legítima para velar não só pelas fundações, mas também pelas demais entidades de natureza filantrópica, bastando para tal enfrentar o desafio, já superado quanto às primeiras, com a galhardia que lhe é inerente.
De fato, o próprio estatuto da fundação deve prever a intervenção do Ministério Público. Essa previsão, naturalmente, não prejudica a da lei, contudo harmoniza as atividades administrativas da fundação com as do Ministério Público. Assim afirma José Eduardo Sabo Paes (2003):
O velamento do Ministério Público deve ser previsto no estatuto de forma a, efetivamente, possibilitar o acompanhamento do órgão do Ministério Público às atividades da fundação no campo administrativo, sendo convidado a participar de reuniões de seus conselhos e acompanhar a atuação de seus administradores; no campo contábil-financeiro, recebendo e aprovando sua prestação de contas e realizando auditorias direta ou indiretamente; no campo finalístico, verificando se a entidade cumpre e atende aos fins para os quais foi criada; no campo patrimonial e financeiro, zelando pela preservação e boa utilização do seu patrimônio e a administração de suas receitas e despesas.
A análise do estatuto pelo Ministério Público é o primeiro contato que este tem com a futura fundação. Como já afirmado, a aprovação do estatuto é condição prévia da instituição, e segundo José Eduardo Sabo Paes (2003, grifo do autor):
Essa aprovação – ato do Poder Público que detém legalmente o Ministério Público – é uma função de natureza jurídica constitutiva integrativa, segundo lição de Pontes de Miranda, semelhante à de certos notários e sucedâneos, ambas, historicamente, da função euremática dos índices chartulari.
A aprovação é exigência acertada da lei brasileira, pois o que se protege e resguarda é o interesse público, que se sobrepõe a qualquer interesse particular, mesmo o do instituidor. É importante ressaltar que o oficial do Cartório de Pessoas Jurídicas não poderá registrar o estatuto de uma fundação sem a aprovação do órgão do MP. No entanto, caso seja efetuado o registro do estatuto sem aprovação ministerial, o terceiro de boa-fé que desconhecia o vício não poderá sofrer prejuízo.
Esclareça-se que na aprovação do estatuto pelo Ministério Público deverá ser verificado pelo órgão ministerial, normalmente um Promotor de Justiça/Curador de Fundações, se forma e estão sendo observadas todas as regras jurídicas a respeito da organização e funcionamento de uma fundação: aspectos contábeis, financeiros, as bases das fundações, se os bens são suficientes para a finalidade (sempre lícita) a que se destina o ente.
Portanto, há um sistema de reconhecimento das fundações pelo Estado, que, no caso brasileiro, poderíamos denominar de reconhecimento específico ou reconhecimento condicionado, igual ao sistema seguido atualmente pelos Direitos alemão, italiano, francês e português, cujos ordenamentos fazem com que a aquisição da personalidade jurídica pela fundação dependa de um ato da autoridade pública que a concede em cada caso. Um segundo sistema, denominado de livre constituição, corresponde ao dos ordenamentos jurídicos que estabelecem a aquisição automática da personalidade jurídica, quando cumpridos determinados requisitos estabelecidos pela lei para todos os casos, sem necessidade alguma da intervenção dos poderes públicos. Esse é o caso do Direito sueco. Em terceiro lugar, existe um ordenamento – como exemplo os Direitos espanhol e suiço, que adotam um sistema de reconhecimento normativo ou genérico -, que exige, para a aquisição da personalidade jurídica, uma vez cumpridos os requisitos legais, a efetivação da inscrição em um registro público.
Ainda sobre a avaliação do estatuto e dos atos geridos pela fundação, citamos:
A aprovação do ato de instituição da dotação inicial e do estatuto, pelo Ministério Público, é elemento essencial à constituição de uma fundação, integrando-o e funcionando como pressuposto do seu registro. Qualquer reforma estatutária submete-se à aprovação prévia do Ministério Público, não se admitindo alteração que contrarie os fins fundacionais. Cabe-lhe promover a extinção da fundação quando vencer o prazo de sua existência, tornar-se ilícito o seu objeto ou for impossível sua manutenção, zelando pela exata destinação do patrimônio.
Devem ser submetidos à autorização prévia do Ministério Público os negócios fundacionais que exorbitem da gestão ordinária. Prestando contas ao Ministério Público, os administradores apresentam demonstrações financeiras e relatório circunstanciado das atividades, propiciando averiguar a consecução dos fins e a preservação do patrimônio. (CASTRO, 2004).
O Promotor de Justiça Lincoln Antônio de Castro também em sua tese traçou um paralelo entre as sociedades por ações e as fundações no tocante à atuação do Ministério Público (2004):
No âmbito das sociedades comerciais, “o acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender” (art. 116, parágrafo único, da Lei nº 6.404/76). Por sua vez, “o administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa” (art. 154 da Lei nº 6.404/76). Não é demais assinalar, ainda, que as sociedades por ações, em face dos intensos interesses sociais envolvidos em suas atividades econômicas, receberam estatuto legal minucioso.
Nele há princípios norteadores da atuação dos administradores, que se aplicam às fundações e às demais entidades filantrópicas, sendo pertinente reivindicar para esta edição de estatuto legal específico, eis que parcas as normas legais sobre a matéria. Na defesa dos interesses difusos e coletivos, por força de preceitos constitucionais, extensa revela-se a atuação do Ministério Público em face das sociedades comerciais e das entidades civis, envolvendo provedoria específica, a saber: consumidor, meio ambiente, patrimônio cultural, interesses das crianças e dos adolescentes, entre outros.
Presume-se que a provedoria exercida pelo Ministério Público supera a mera fiscalização e acompanhamento dos atos fundacionais. A provedoria abrange também a parceria entre o órgão ministerial e as fundações, como já foi dito anteriormente. O Ministério Público age como um acionista, cujo chefe é a sociedade e o objetivo é o interesse social.
Não obstante, revela-se fundamental a provedoria preventiva. Através de auditorias, valendo-se de profissionais especializados, cabe ao Ministério Público identificar as medidas a serem adotadas pela fundação para melhor preservação e aplicação do patrimônio, e ainda para lograr mais perfeita consecução dos fins com menores ônus e maiores benefícios para destinatários da entidade Fundacional. Constata-se, portanto, que a provedoria é mais ampla que a simples fiscalização ou controle formal dos atos de gestão. O elementar reside em comprovar a legalidade e avaliar os resultados da gestão, quanto à eficácia e eficiência. Programar e otimizar os recursos e serviços, através de auditorias, envolvem intervenção ministerial respaldada em parâmetros técnicos, que supera a mera fiscalização quanto a fatos passados. (CASTRO, 2004).
Lincoln Antônio de Castro, em sua tese “Ministério Público e as entidades filantrópicas” concluiu (2004):
Em sede constitucional, há de se manter a previsão quanto ao controle externo, exercido com o auxílio dos Tribunais ou Conselhos de Contas, relativamente aos órgãos e entidades da administração pública direta e indireta, às sociedades controladas ou com participação estatal e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público. Entre as funções institucionais do Ministério Público, postua-se prever o encargo de velar pelas fundações privadas e demais entidades privadas de natureza filantrópica ou beneficente, não só por serem destinatárias eventualmente de verbas públicas, mas principalmente por envolverem suas atividades interesses sociais relevantes.
Com a presente contribuição singela, resultante porém da constatação de preocupante dispersão de recursos financeiros na área social, pretende-se debater o papel do Ministério Público na proteção dos interesses sociais, presentes nas atividades das instituições filantrópicas. Acreditamos que as medidas preventivas, mediante provedoria, superam em eficiência as tradicionais ações fiscalizadoras. Finalmente, a intervenção do Ministério Público, na ordem social, há de ser marcada pela preservação das iniciativas privadas na efetivação dos direitos sociais, conforme aliás preconiza a Carta Magna.
5. DIFICULDADES E PECULIARIDADES DA CURADORIA DE FUNDAÇÕES
Inexiste impedimento legal para que uma pessoa jurídica institua uma fundação, e embora seja uma relação, no mínimo, estranha, o engajamento de empresas no campo social seria amplamente vantajoso para todos. Porém deve ficar claro, à medida que vêm aumentando o número de empresas na condição de instituidoras de fundações de direito privado, de que se tratam de dois entes jurídicos distintos. A não observância disso acarreta anomalias, segundo termo utilizado por José Eduardo Sabo Paes em sua obra Fundações e entidades de interesse social em que disse:
Na prática, muitas vezes, identificamos a existência de empresas instituidoras de fundações e que não se desvinculam da fundação instituída em nenhum momento. A par de atuarem diretamente na administração influenciando ou até decidindo sobre o direcionamento de suas finalidades, inclusive condicionando seu orçamento (e sua própria sobrevivência) ao estabelecer repasses ou doações de forma indefinida e esporádica.
Esse tipo se fundação – por nós denominada de “fundação-empresa” – não pode e não deve ser constituída e gerida da forma acima relatada, sob pena de total descaracterização de sua personalidade jurídica fundacional.
Há casos concretos de fundações que são instituídas por empresas que servem tão-somente como forma de captação de recursos governamentais para repassá-los à instituidora, para que esta, ao seu talante, os administre e gerencie. Na verdade, essa é uma “fundação-empresa” totalmente desvirtuada, pois ela não cumpre nenhum papel social, tampouco suas próprias finalidades, uma vez que é a sua instituidora – a empresa comercial – que recebe todos os recursos e executa suas finalidades, mas de forma mercantil ou comercial, deixando a fundação de direito privado inativa.
Há também uma anomalia ou uma dificuldade que se apresenta no funcionamento desse tipo de fundação, que é a de dependência direta de contribuições regulares por parte da empresa instituidora.
Para diminuir esta dependência, que pode gerar instabilidade e insegurança, sugere-se o estabelecimento, já na estrutura, da instituição de uma doação suficiente para possibilitar a manutenção e o crescimento da fundação, como, por exemplo, transferência de ações da empresa instituidora.
Por esse motivo, o Curador de Fundações deve ter cuidado redobrado quando analisar os atos de uma fundação instituída por pessoa jurídica. Mesmo que, por exemplo, a pessoa jurídica seja um partido político, o Curador deve avaliar se o patrimônio fundacional está sendo aplicado integralmente para a finalidade do ente, e não ao da pessoa jurídica.
Outra dificuldade é a inexistência de normas que definam o local de registro da escritura de instituição. José Eduardo Sabo Paes (2003) afirmou:
A Lei de Registros Públicos – Lei n. º 6.015/73 – não define o local no qual deve proceder-se ao registro dos atos constitutivos das fundações e das sociedades civis, assim como das pessoas jurídicas em geral. Da mesma forma, a Lei n. º 8.935, de 18 de novembro de 1994, que regulamenta o art. 236 da CF e dispôs sobre serviços notoriais e de registro, não versa sobre a matéria.
Assim, a lei, por omissão, permite que uma fundação seja registrada em um cartório de notas de uma cidade distinta daquela em que apresenta como sendo sua sede, podendo ter sua sede em outro Estado da Federação.
É evidente que a omissão da lei em não estabelecer que as sociedades civis sem fins lucrativos e as fundações sejam registradas no local onde venham a exercer suas principais atividades traz insegurança e prejuízo ao acompanhamento e à fiscalização do próprio Estado.
Por outro lado, a Promotora de Justiça do Estado de Pernambuco, Liliane da Fonseca Lima Rocha (2004) dispõe de outra forma sobre a ausência de regulamentação do local de registro das fundações:
Tendo em vista que as fundações só podem ser levadas a registro com a aprovação dos seus estatutos pelo Ministério Público (art.1200 do Código de Processo Civil), o Promotor de Justiça poderá solicitar do Promotor da comarca de atuação da fundação, seu parecer. Entretanto, relativamente às demais entidades, que se constituem sem qualquer intervenção Ministerial, o prejuízo é evidente.
De qualquer forma, a ausência de amparo legal, obriga o integrante do Ministério Público a sobrepujar o obstáculo atuando administrativamente.
Prática especial, no tocante às fontes do Direito fundacional no Brasil, ocorre no Estado do Rio de Janeiro, onde os editos do Provedor de fundações servem como fontes ou até mesmo precedentes, de forma semelhante ao utilizado nos Estados Unidos, Inglaterra e na Austrália.
A origem dos editos encontra-se no Direito romano, segundo lição de Luiz Fabião Guasque (2004a): “os editos eram publicações que os magistrados romanos faziam ao assumir e das quais constava as regras que eles próprios seguiriam no exercício dos respectivos cargos”.
Luiz Fabião Guasque em sua tese “O Ministério Público e a defesa do regime democrático” discorreu de forma mais aprofundada sobre a matéria (2004a):
No caso do Estado do Rio de Janeiro, a publicação da Resolução 68/79 da Procuradoria Geral de Justiça, teve o grande mérito de editar um conjunto de normas de comportamento aplicáveis às fundações, que foram, ao longo desses mais de vinte anos, obedecidas de maneira constante e uniforme pela convicção de sua obrigatoriedade.
Como resultado, criaram o costume como fonte do direito fundacional no Brasil, o que podemos constatar pelo seu elemento objetivo, qual seja: a reiteração, a constância, a uniformidade, e generalidade da prática de determinados atos, como por exemplo, a consulta ao Provedor de Fundações sobre a possibilidade ou não da prática de negócios jurídicos entre a empresa instituidora da fundação ou mesmo da qual faça parte algum de seus dirigentes.
Dessa maneira, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro busca de forma inovadora solucionar os problemas das “fundações-empresa” mencionadas anteriormente.
Os editos funcionam como parâmetros norteadores de decisões futuras das curadorias de fundações que levam em conta o costume e a ética.
Os editos do Provedor de Fundações são fonte formal do Direito fundacional?
Se estivéssemos falando da sentença judicial, veríamos que a solução difere conforme o sistema de Direito adotado. Assim, na Inglaterra e nos Estados Unidos à sentença pode constituir um precedente seguível no futuro e, destarte é fonte do Direito. No continente europeu, onde o juiz aplica uma norma geral (quase sempre a lei) ao caso concreto, as coisas se apresentam com outro aspecto, pois assim como no Brasil, a sentença não cria normas gerais, embora ajude a manter a ordem jurídica.
No nosso caso, embasam a atuação administrativa e judicial do Ministério Público e ajudam na formulação do marco legal do terceiro setor, dentre outras finalidades, como veremos adiante. (GUASQUE, 2004a).
Em nossa opinião, embora louvável a iniciativa, é duvidosa a estabilidade desta situação. O preenchimento da lacuna legislativa no que tange fundações instituídas por empresas por um sistema que difere do sistema jurídico nacional, embora inovador, não possui abrangência federal, o que torna isolada a posição carioca e, por conseguinte, limitado o velamento em nível nacional.
Mas essa posição foi fortalecida recentemente com a criação do Arquivo de Precedentes da Provedoria de Fundações pela Resolução Complementar n.º 4 de 28 de fevereiro de 2000 do Ministério Público do Rio de Janeiro.
Não poderia deixar de ser mencionado o Conselho de Eqüidade Filantrópica, criado pela Resolução Complementar n.º 6 de 14 de dezembro de 2000, cuja composição abrange sete representantes sorteados de fundações e o Provedor de Fundações com a finalidade prevista no art. 1º da resolução mencionada:
Art. 1º – Fica criado o Conselho de Eqüidade Filantrópica – CEF, com a finalidade de informar, a juízo discricionário do Promotor de Justiça, as decisões dos Provedores de Fundações em procedimentos de Prestação de Contas ou atos praticados na utilização de verbas públicas, incentivos fiscais no setor não lucrativo, ou qualquer ato ou procedimento que viole os deveres de observância aos princípios da filantropia, ou mesmo dúvidas nos costumes da atividade filantrópica.
Parágrafo único – As manifestações do CEF servirão como consulta às decisões do Provedor de Fundações, e em nenhuma hipótese podem mitigar o princípio da independência funcional assegurado na Constituição da República.
Sobre a atuação do Conselho de Eqüidade Filantrópica, Luiz Fabião Guasque (2004a) esclareceu:
Após as deliberações constantes em ata, o Provedor elabora os editos de forma a regulamentar e possibilitar a construção normativa do que é ético dentro da atividade filantrópica do 3º setor.
Em uma sociedade de massa, cada vez mais representada por grupos, classes, categorias, surge a questão de como se desenvolverão essas relações cada vez mais importantes não só no processo de diminuição do Estado, mas no regramento para a imposição de condutas dentro desses grupos sociais, onde a falta de regulamentação os coloca em uma zona de autêntico vácuo legislativo, onde quase tudo é legalmente permitido, porque não existe lei que proíba, mas pode ser eticamente censurável, por não conter finalidade inerente à filantropia.
Comentando sobre outras atos normativos da área de Provedoria de Fundações do Ministério Público do Rio de Janeiro, evidenciamos a Resolução Complementar n. º 9 de 27 de fevereiro de 2002. Esta resolução, citando sua ementa, “Regulamenta o procedimento de autorização para a prática de atos ou negócios por parte dos administradores de Fundações”. Acreditamos essa ser a resolução de maior importância, embora tenhamos dúvidas de sua real aplicação.
As Resoluções Complementares de números 10, 11, 12 revelam a crescente importância da estruturação das realizações de auditorias das fundações. O presente trabalho não possui a pretensão de aprofundar-se neste assunto, mas ressalta a importância de tais medidas, uma vez que, objetiva apurar a existência ou não de desvio de finalidade das instituições, o que é, afinal de contas, a finalidade da Contabilidade como Ciência Social. Conforme declaração sobre as origens da Contabilidade de Fábio Ulhoa Coelho (2002, p. 445 apud HOOG; MÜLLER, 2004): “foi na Inglaterra no ano de 1856, com o objetivo de evitar desvios de finalidade na administração de sociedades por ações, e preservar os interesses dos investidores”.
Contudo, o mais importante é a vontade do órgão do Ministério Público de adaptar-se às novas situações, nos dizeres de Luiz Fabião Guasque na Resolução Complementar n. º 6 “considerando que o direito fundacional no Brasil não é regulamentado”.
CONCLUSÃO
Tendo em vista os fatos, concluímos que o exercício de Curadoria de Fundações ainda tem que evoluir para melhor atender as necessidades da sociedade. Por um lado, normas deverão ser instituídas em âmbito nacional para facilitar a ação mais eficaz das divisões estaduais do Ministério Público; e mais imediatamente por outro, os procedimentos internos desta última devem ser aprimorados. As auditorias realizadas pelo Ministério Público em face das fundações privadas devem ser feitas com mais empenho e rigor para garantir que seus patrimônios sejam usados para o bem social e não para interesses particulares. E no evento desses últimos interesses prevalecerem sobre os primeiros, as fundações privadas deixam de ser benefícios do Estado, e tornam-se encargos do mesmo, uma vez que gozam de inúmeras vantagens tributárias e administrativas que custam caro e não trazem o retorno à sociedade.
Embora este trabalho tenha escopo sobre as fundações privadas, o mesmo se aplica às entidades sem fins lucrativos em geral (universidades, escolas e outras), pois é imperativo que o terceiro setor seja amplamente fiscalizado pelo povo e seus representantes para que os mesmos gozem de seus benefícios.
Acuradamente, o Promotor de Justiça, Humberto Dalla Bernadina de Pinho rezou em seu artigo “a importância da parceria entre o Ministério Público e o terceiro setor na jurisdição coletiva” (2004):
Assim como o Estado não pode arcar, sozinho, com o ônus da garantia do bem estar social, também o Ministério Público, enquanto órgão deste Estado, não pode, confiando apenas em suas forças, promover a adequada tutela dos direitos coletivos em face de um particular, de uma empresa, ou do próprio Estado.
As organizações não governamentais e a sociedade civil organizada podem oferecer valioso auxílio ao Parquet nesta empreitada, sobretudo no que concerne ao apoio técnico, logístico e até mesmo financeiro.
Esperamos que o presente trabalho contribua de alguma forma para o fortalecimento da relação entre o Ministério Público e as fundações para a efetividade da disposição do Art. 129 da Constituição Federal.
Finalizamos com a seguinte afirmação:
Uma sociedade que não exerce com efetividade seus direitos não consegue fazer valer os postulados conquistados em sede constitucional, por mais valiosos e bem definidos que sejam, e isso é facilmente verificado na jurisdição coletiva brasileira. (PINHO, 2004).
Informações Sobre o Autor
André Luiz Junqueira
Advogado e Consultor Empresarial, formado pela Universidade Veiga de Almeida (RJ).
Orientador Jurídico do Grupo APSA – Gestão Patrimonial e Negócios Imobiliários.
Associado ao escritório Schneider & Grechi Advogados Associados.
Coordenador do portal JurisIntel (www.jurisintel.com).