Resumo: De efetivo, o advento de um Código de Processo Civil fecundado em ambiente institucionalmente democrático se revelaplenamente capaz de causar furor em todos aqueles que vivenciam, direta ou indiretamente, o direito.Neste cenário, é até mesmo natural a moção criada em torno da Lei 13.105/15, a qual objetiva influenciar, senão modificar, as estruturas reinantes no cenário forense nacional. Mais candente, ainda, é a maneira pela qual se apresenta a alteração promovida pelo artigo 489, §1° do NCPC, que, de seu turno, propõe o estabelecimentode critérios para a já constitucionalmente exigida motivação das decisões, tão pouco levada a sério por aqueles que se agarram ao status quo do comodismo judicial. Diante disso, e do fato de que cumpre aos operadores do direito perquirirem as nuances, limites e contornos de toda criação legislativa capaz de, ainda que minimamente, fortalecer o viés democrático da atividade judicante, propusemo-nos, neste artigo, a indagar sobre a possibilidade ou não de aplicação do referido dispositivo legal em órbita criminal, asseverando, ao final, os motivos que não permitem que se chegue a conclusão outra senão a de que, sem embargos, devem os sujeitos afetos ao processo penal se valerem, de imediato, das disposições em comento.
Palavras-chave: Motivação. Fundamentação das decisões judiciais. Novo Código de Processo Civil. Direito Processual Penal.
Sumário: 1 -Da indissociabilidade do princípio da fundamentação das decisões judiciais aos Estados Democráticos de Direito; 2 -Do tratamento infraconstitucional dado ao princípio da motivação das decisões judiciais, constante da lei 13.105/2015, novo código de processo civil; 3 -A motivação das decisões judiciais em órbita penal e a aplicação imediata do artigo 489, §1° e incisos do Novo Código de Processo Civil.
1 – Da indissociabilidade do princípio da fundamentação das decisões judiciais aos estados democráticos de direito
É induvidoso o sobrelevado papel exercido nas sociedades contemporâneas –notadamente aquelas minimamente eivadas de legitimidade democrática – do princípio da fundamentação das decisões judiciais(nomenclatura encarada, ao menos neste artigo, como sinônimo da denominação ‘motivação das decisões judiciais’).
Não seria exagero reputar a motivação como conditio sine qua non de legitimidade de todo e qualquer ato imperativo do Estado –na sua concepção de ente soberano jurídica e politicamente organizado.
Nesse esteio, a vigente carta constitucional brasileira, ao tratar da organização dos Poderes (mais precisamente ao se referir aos imperativos inerentes ao Poder Judiciário), dispôs, no artigo 93, inciso IX, que todas as decisões serão fundamentadas, sob pena de nulidade (sendo certo que tal dispositivo, pela ínsita natureza de norma fundamental, há de ser considerado cláusula pétrea, por força da conjugação dos artigos 5°, §2° e 60, §4°, inciso IV da Constituição Federal)[1].
Referida indispensabilidade da exposição motivacional dos provimentos jurisdicionais há de ser compreendida, sobretudo a partir do paradigma constitucional, em um dúplice viés: o primeiro concernente à função endoprocessual; e o segundo voltado a uma função, quiçá primordial na atualidade, para além da situação jurídica concreta (função exoprocessual ou extraprocessual).[2]
O primeiro sentido, de cariz estritamente processual, diz respeito à imperiosidade de o julgador (terceiro imparcial) revelar às partes (protagonistas da situação jurídica desenvolvida sob o crivo inexorável do contraditório) os motivos que o levaram a chegar à uma ou outra conclusão, após o desenvolvimento dialético da questio deduzida no processo (dialeticidade às vezes precária, nos casos em que a urgência da tutela pugnada se revela deveras acentuada a ponto de inviabilizar a oitiva do polo adverso), de modo a oportunizar àquele que porventura não venha a se conformar com o deságue tomado pelo raciocínio silogístico perpetrado, o poder de intentar contra a decisio, através da via do recurso[3].
Nas palavras do mestre português José Joaquim Gomes Canotilho:
“As garantias constitucionais reconhecidas aos magistrados impõem, contudo, que a independência no exercício da função jurisdicional não transforme os juizes num poder silencioso, opaco e incontrolável. Exige-se, por isso: (…); (3) fundamentação das decisões dos tribunais (cfr. 208.71). A exigência da «motivação de sentenças» exclui o carácter voluntarístico e subjectivo do exercício da actividade jurisdicional, possibilita o conhecimento da racionalidade e coerência da argumentação do juiz e permite às partes interessadas invocar perante as instâncias competentes os eventuais vícios e desvios das decisões dos juízes”.[4]
Tal vertente, naturalmente direcionada aos sujeitos do processo em especial, fora aquela que primeiro recebeu a atenção dos ordenamentos positivados[5] (sendo, porquanto, o viés que primeiro se consolidou), tendo a origem no direito pátrio remetida às longínquas Ordenações Filipinas[6] (motivo pelo qual goza de bases melhores solidificadas na doutrina).
A despeito de haver quem sustente a derivação do princípio do Juiz Natural[7], prevalece que a necessidade da motivação das decisões judiciais, no aspecto endoprocessual, se trata de um desdobramento lógico e inarredável do princípio do devido processo legal.
Nas palavras de Nelson Nery Junior:
"O princípio fundamental do processo civil que entendemos como a base sobre a qual todos os outros se sustentam, é o do devido processo legal, expressão oriunda da inglesa due process of law. A Constituição Federal brasileira de 1988 fala expressamente que 'ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal' (art. 5º, n. LIV). ]
Em nosso parecer, bastaria a norma constitucional haver adotado o princípio do due process of law para que daí decorressem todas as consequências processuais que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e uma sentença justa. É, por assim dizer, o gênero do qual todos os demais princípios constitucionais do processo são espécies"[8].
Ocorre que, com a evolução do constitucionalismo, tornou-se insuficiente a sustentação do princípio da fundamentação das decisões judiciais com base única e exclusivamente nesse enfoque (o que não quer dizer, por óbvio, que tal concepção mereça menor atenção atualmente, muito ao contrário).
Isso porque, com a constante superação do Estado Autoritário pelo Estado de Direito (rota natural das sociedades civilizadas), aliada a paulatina consolidação dos preceitos democráticos, a fundamentação das decisões judiciais se tornou indissociável da prestação jurisdicionalnão apenas em relação às partes do processo, mas também em face de toda a sociedade que, na condição de espectadora equidistante, passou a deter o poder deservir de fiscal da legitimidade dos provimentos do Estado-Juiz (função exoprocessual ou extraprocessual)[9].
Na dicção de CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO:
“Mais modernamente, foi sendo salientada a função política da motivação das decisões judiciais, cujos destinatários não são apenas as partes e o juiz competente para julgar eventual recurso, mas quisquis de populo, com a finalidade de aferir-se em concreto a imparcialidade do juiz e a legalidade e justiça das decisões”.[10]
Sobre a função exoprocessual ou extraprocessual do princípio da fundamentação das decisões judiciais, arremata a melhor doutrina que a mesma“viabiliza o controle da decisão do magistrado pela via difusa da democracia participativa, exercida pelo povo em cujo o nome a sentença é pronunciada”.[11]
Prosseguindo, explica que, “não se pode esquecer que o magistrado exerce parcela de poder que lhe é atribuído (o poder jurisdicional), mas que pertence, por força do parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal, ao povo”[12].
De toda sorte, fato é que o princípio da fundamentação das decisões judiciais, em sua dupla função (como faces de uma única e valiosa moeda), consiste em um verdadeiro pressuposto de Estado Democrático de Direito, representando indispensável ferramenta de controle do exercício da função Jurisdicional, tanto pelo indivíduo diretamente interessado (parte) quanto por toda a coletividade (o que se dáem virtude da natural capacidade de tal princípio servir, em benefício de todos, como meio capaz a inibir e repreender o arbítrio).
Importa ressaltar, ademais, que, a posição sistemática ocupada pelo princípio da fundamentação das decisões na Constituição vigente permite a conclusão de que diante estamos de uma norma de aplicação imediata (portanto não postergável), com fulcro no que alude o §1° do artigo 5° (“as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”).
Por derradeiro e, já em transposição para o tópico subsequente (no qual se abordará o papel do Novo CPC em, pragmaticamente, precisar a abrangência do princípio em comento), vale transcrever os ensinamentos do mestre Uadi Lammêgo Bulos, que, ao discorrer sobre o artigo 93, IX, da Constituição Federal, deu à motivação das decisões judiciais o seguinte contorno:
“Para que uma decisão seja motivada não basta a menção pura e simples aos documentos da causa, às testemunhas ou à transcrição dos argumentos dos advogados. O requisito constitucional só será satisfeito se existir análise concreta de todos os elementos e demais provas dos autos, exaurindo-lhes a substância e verificando-lhes a forma. Só assim a higidez de um decisum se aferirá, compatibilizando-se com a mensagem insculpida no preceito em epígrafe”.[13]
2 – Do tratamento infraconstitucional dado ao princípio da motivação das decisões judiciais, constante da lei 13.105/2015, novo código de processo civil
Conforme já explanado, a garantia de que toda decisão judicial deve ser satisfatoriamente motivada configura-se direito fundamental do cidadão que, inclusive, é quem detém o poder de fiscalizar e legitimar a aplicação da função jurisdicional, uma vez que seu detentor.
Nesse eito, o comando Constitucional[14], a tradição jurídica dos países civilizados e a Doutrina especializada, já se prestariam a determinar o alcance e aplicação do princípio da motivação das decisões judiciais, servindo, assim, de suporte à atuação da magistratura em todo território nacional.
Todavia, em nosso país, que enfrentou diversas instabilidades políticas[15], o legislador ordinário entendeu por bem trazer contornos auxiliadores da aplicação de referido instituto.
O CPC/73 (uma vez que o Código de Processo Civil é o único aparato legislativo que trata sobre o tema), que, em seu art. 458 traz os requisitos essenciais da sentença, no inciso II, timidamente, trata da questão da fundamentação da decisão ao aduzir que “são requisitos essenciais da sentença: (…); II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito”.
Com a sanção do NOVO CPC (Lei 13.105/15[16]), primeira legislação processual civil a ser discutida, elaborada e implementada integralmente num regime político democrático, referido dispositivo foi integralmente mantido, também no inciso II, agora do art. 489.
Ocorre que, a despeito dos esforços da magistratura nacional através da Associação dos Magistrados do Brasil – AMB, da Associação dos Juízes Federais do Brasil –AJUFE, e da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho – ANAMATRA, que chegarem até mesmo a expedir ofício à Presidente da República e se reunirem com o Ministro da Justiça[17], não foram vetados os parágrafos encetados no art. 489, nos quais:
“O Novo CPC impõe o cumprimento do que já estava contido na art. 93, IX, da CRFB/1988, […], uma vez que ao analisar o modo como as decisões são (mal) fundamentadas tornou-se imperativa uma perspectiva adequada para a referida cláusula constitucional, inclusive com o respaldo dessa (nova) legislação que promova com efetividade a expansividadee perfectibilidade típicas do modelo constitucional de processo brasileiro”[18].
Antes, porém, de analisa-las, convém uma observação que auxiliará o argumento trazido no presente trabalho.
Trata-se o fato de que o NCPC trouxe um rol de normas fundamentais do processo civil (mas nem por isso restringíveis a este, como se abordará adiante), constantes do capítulo I do Livro I da sua Parte Geral, nos arts. 1º a 12, ora reproduzindo comandos expressos da CF/88 (art. 3º,cujo conteúdo é o mesmo do art. 5º, XXXV; e art. 11, cujo conteúdo é o próprio art. 93, IX, CF/88), ora trazendo outros comandos que, mesmo não havendo expressa previsão constitucional, nela encontram seu fundamento.
É certo que:
“A norma é fundamental, porque estrutura o modelo do processo civil brasileiro e serve de norte para a compreensão de todas as demais normas jurídicas processuais civis”[19], sendo, porém, preciso atentar que “o rol desse capítulo não é, porém, exaustivo. Há outras normas fundamentais do processo civil brasileiro que não estão consagradas expressamente nos doze primeiros artigos do CPC. Há normas fundamentais na Constituição – devido processo legal, juiz natural, proibição de prova ilícita; há normas fundamentais espalhadas no próprio CPC, […]. (…) É preciso compreender este capítulo como se ao seu final houvesse uma cláusula normativa que dissesse: ‘O rol de normas fundamentais previsto neste capítulo não exclui outras normas fundamentais previstas na Constituição da República, nos tratados internacionais, neste Código ou em lei’ – à semelhança do que já ocorre com os direitos fundamentais (art. 5º, §2º, CF/88)”. [20]
Dessa forma, os enunciados constantes dos parágrafos do art. 489, NCPC, devem ser encaradoscomo normas fundamentais do processo brasileiro, uma vez que veiculam direitos fundamentais não só do jurisdicionado, como de todo cidadão, “permitindo um controle mais efetivo dos pronunciamentos judiciais, reduzindo a margem de subjetividade quanto à percepção do que é e o que não é uma decisão fundamentada”[21].Vamos a eles, os quais ora transcrevemos:
“Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
I – o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;
II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;
III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem.
§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
§ 2o No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.
§ 3o A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé.”
Assim, o art. 489 do Novo CPC traz em seu caput e incisos disposições equivalentes às do atual art. 458, sendo que,seus parágrafos, no entanto:
“Mostram uma preocupação do legislador em acolher as críticas que a doutrina jurídica de há muito faz a decisões de fundamentação extremamente deficientes (e superficiais) e que não enfrentam argumentos relevantes trazidos pelas partes, entendidos como tais aqueles aptos a influir no deslinde da causa (o que é uma decorrência lógica da mera subsunção do conteúdo jurídico do direito fundamental ao contraditório, na sua acepção substantiva).[22]
Note-se que o legislador, para esclarecer sua intenção, entendeu por bem usar de argumentação contrariu sensu, ou seja, não definiu o que se entenderia por decisão fundamentada, mas, sim, o que se entende por decisão não fundamentada e, consequentemente, carecedora de legitimidade democrática.
O estudo do §1º do art. 489 é importantíssima no sentido de que esclarece que o dever de motivação deve ser aplicado a qualquer manifestação judicial com conteúdo decisório, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, as quais não serão consideradas fundamentadas se incidirem nas situações descritas nos incisos que se seguem.
O art. 489, §1º, do CPC, de seu turno, traz inovação extremamente relevante, sendo que:
“Embora o seu conteúdo já pudesse ser extraído do dever de fundamentar que decorre da Constituição Federal, é bastante salutar que agora algumas hipóteses em que se considera não-fundamentada a decisão judicial estejam previstas no texto legal. (…) Esse dispositivo tem significativa importância prática. Ele se aplica a todo tipo de pronunciamento judicial com conteúdo decisório, qualquer que seja o procedimento. (…) As hipóteses descritas nos incisos do art. 489, §1º, do CPC são exemplificativas, na medida em que elas visam a concretizar um direito fundamental – o direito à motivação das decisões judiciais (art. 93, IX, CF/88). O rol não poderia, por isso, ser considerado taxativo. Isso significa que há outras situações em que a decisão, a despeito de conter motivação, considera-se não fundamentada.” [23]
O inciso I do art. 489, NCPC, aduz que não será considerada fundamentada a decisão que “se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida”.
Extrai-se que o magistrado, ao apreciar as alegações de fato que compõem as manifestações do autor e do réu, os enunciados normativos em que esses fatos supostamente se enquadram, as provas produzidas e as condutas das partes, enfim, tudo o que fora produzido na dialética processual, deve interpretar a legislação aplicável ao caso concreto e, ao aplica-la, fazer sua devida correlação aos fatos apurados e ao dispositivo da sentença.
O inciso II do art. 489, NCPC, aduz que não será considerada fundamentada a decisão que “empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso”[24].
De acordo com esse dispositivo, quando o magistradoanalisar o ordenamento e se deparar com conceitos indeterminados (entendidos como aqueles em que se contêm conteúdos semânticos vagos/abertos – quando tratam apenas aos conteúdos que compõem a hipótese de incidência da lei – , ou gerais, também chamados de cláusulas gerais – quando atingem não só o conceito da hipótese de incidência mas, também, a consequência jurídica da aplicação da norma), deve determinar, efetivamente, seu conteúdo ao caso sub judice, indicando as razões concretas que justificam sua aplicação.
O inciso III do art. 489, NCPC, aduz que não será considerada fundamentada a decisão que “invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão”.
Segundo esse inciso, “o julgador tem que ingressar no exame da situação concreta posta à sua decisão, e não limitar-se a repetir os termos da lei, sem dar as razões de seu convencimento”.
“É disso que trata o inciso III do §1º, do art. 489: da fundamentação genérica e tão desgarrada do caso concreto que se prestaria a justificar qualquer pronunciamento decisório. Este é um exemplo de fundamentação inútil.” [25]
O inciso IV do art. 489, NCPC, aduz que não será considerada fundamentada a decisão que “não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo e capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”.
Tal preceito nasce da necessidade de o magistrado analisar todos os fundamentos da defesa do réu, para julgar procedente o pedido do autor, bem como, de analisar todos os fundamentos da demanda, quando o julgamento é de improcedência do pedido do autor.
O contrário estaria abrangido na exceção contida na própria regra, quando trata de que o juiz deve enfrentar todos os argumentos capazes de, em tese, infirmar sua conclusão.
O inciso V do art. 489, NCPC, aduz que não será considerada fundamentada a decisão que “se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos”.
No presente caso, trata-se da aplicação da jurisprudência consolidada pelos Tribunais. Trata, especificamente, dos institutos da ratio decidendi (fundamentos determinantes) e do distinguish(que é a distinção que autorizaria a não aplicação de um precedente, por não estarem presentes os mesmos fundamentos determinantes), oriundos do direito consuetudinário – common low, que deverão ser devidamente analisados quando da aplicação da jurisprudência firmada.
O inciso em comento, dessa forma, obriga o magistrado a realizar um juízo analítico tanto da conformação dos fundamentos determinantes do precedente (ratio decidendi) ao caso concreto, quanto da inconformação dos fundamentos determinantes (distinguish) ao caso concreto, o fazendo, em qualquer dos casos, de forma expressa e devidamente motivada.
O inciso VI do art. 489, NCPC, aduz que não será considerada fundamentada a decisão que “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou superação do entendimento”.
Trata-se, assim como no inciso anterior, de regramento para a devida motivação das decisões que aplicam a jurisprudência, todavia trazendo novo instituto, também do common low, além da ratio decidendi e do distinguish, qual seja, o da superação (ou overrulling), no qual, ao contrário do fenômeno da distinção (no qual se demonstra que o precedente não se aplica por não serem aplicáveis seus fundamentos determinantes – ratio decidendi), tem-se a perda da força vinculante do precedente e sua substituição por outro, com novos fundamentos determinantes, que não se aplicariam ao caso posto em juízo.
Dessa forma, assim como no inciso anterior, o magistrado está obrigado a realizar um juízo analítico tanto da inconformação dos fundamentos determinantes (distinguish) ao caso concreto, quanto da superação do precedente invocado pelas partes, o fazendo, em qualquer dos casos, de forma expressa e devidamente motivada.
No que tange ao parágrafo 2º do art. 489, NCPC, trataremos do mesmo em artigo específico, dada a magnitude e complexidade envolvida no debate, bem como, pela limitação da questão ora exposta em sede de artigo científico.
Já o parágrafo 3º do art. 489, NCPC, traz o desfecho técnico-teórico desse capítulo, determinando que “A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé”.
Referido dispositivo chancela que o art. 489 deve ser interpretado em consonância e combinação com os arts. 1º, 5º, 6º, 7º, 8º e 11 do NCPC[26], bem como a todos os demais direitos fundamentais espraiados pelo ordenamento jurídico pátrio, no sentido de dar a maior efetividade possível ao seu comando, na busca da justiça e legitimidade das decisões judiciais e do desenvolvimento da democracia.
III – A motivação das decisões judiciais em órbita penal e a aplicação imediata do artigo 489, §1° e incisos do novo código de processo civil.
O dever de motivação das decisões judiciais, correlato lógico de todo Estado Democrático de Direito, apresenta, sem dúvidas, sobrelevada importância no campo do Direito Processual Penal.
Se é verdade que o grau de legitimidade dos atos jurisdicionais mede-se, em geral, pelo nível da fundamentação das decisões, mais acertado ainda é dizer que, em sede penal, trata-se de verdadeira condicionante ao exercício do Jus Puniendi.
Sendo a motivação um dever inestimável e fator indissociável da jurisdição cível (destinada à solução de conflitos, via de regra, envolvendo particulares), quem dirá na seara criminal, onde coloca-se em posição antagônica Estado e indivíduo, em patente posição de (natural) desigualdade, com o gravame de estar em jogo o mais caro bem jurídico; a liberdade.
Nas palavras do destacado processualista Aury Lopes Jr.:
“Para o controle da eficácia do contraditório e do direito de defesa, bem como de que existe prova suficiente para sepultar a presunção de inocência, é fundamental que as decisões judiciais (sentenças e decisões interlocutórias) estejam suficientemente motivadas. Só a fundamentação permite avaliar se a racionalidade da decisão predominou sobre o poder, premissa fundante de um processo penal democrático. Nesta linha, está expressamente consagrada no art. 93, IX, da CB”.[27]
Sendo certo que toda pena pressuporá a certeza da prática de um fato típico, significantemente lesivo, antijurídico e realizado por um agente punível, e que esta certeza, pragmática e concretamente, apenas será possível ao final de um devido processo no qual se tenha garantido ao imputado o contraditório, a ampla de defesa (em paridade de armas) e que tenha sido presidido por um Juiz objetiva e subjetivamente imparcial, o resultado conclusivo que marcará a sentença condenatória deverá, consequentemente, ser fruto de um silogismo cujas justificantes (premissas) se revelem válidas e convincentes, ou, melhor, que apresentem-se de maneira racional, motivo pelo qual devemos considerar que “a motivação serve para o controle da racionalidade da decisão judicial”, assim como que, em processo penal, “o mais importante é explicar o porquê da decisão, o que o levou a tal conclusão sobre a autoria e materialidade”.[28]
“A motivação sobre a matéria fática demonstra o saber que legitima o poder, pois a pena somente pode ser imposta a quem – racionalmente – pode ser considerado autor do fato criminoso imputado”.[29]
Pois bem, acertado o papel desempenhado pela fundamentação das decisões em âmbito penal, calha adentrar no efetivo propósito deste trabalho e perquirir se, afinal, a inovação infraconstitucional constante do Novo Código de Processo Civil que vem a delinear requisitos mínimos para que uma decisão possa, de fato, ser considerada fundamentada (o que fora, como dito alhures, feito pelo método de exclusão, ou seja, exemplificando-se hipóteses de fundamentação inidônea) se aplica, ou não, ao Direito Processual Penal.
Sem maiores delongas (até mesmo porque o deduzido neste simplório trabalho já é o bastante para tornar à evidência a posição dos autores), compreendemos ser incontestável a exigibilidade da imediata aplicação das diretrizes trazidas pelo artigo 489 do NCPC no processo criminal.
Primeiramente, porque, conforme mencionado, a aludida inovação legislativa, malgrado o conteúdo de norma também fundamental, não representa nada além do detalhamento do preceito já insculpido na própria Constituição Federal no artigo 93, inciso IX, sendo, de per si, dotado de aplicabilidade imediata (além de, repisa-se, se tratar de cláusula pétrea), e que, porquanto, deveria, desde muito, estar recebendo voluntário cumprimento.
Como visto, não fosse a relutância de nossa Magistratura em respeitar imperativos Constitucionais (alheamento aos princípios fundantes que proporcionou a estandardização das decisões penais, a ponto de chegarmos ao apogeu do declínio com prisões cautelares decretadas pela mera aposição de um ‘x’)[30], poder-se-ia considerar até mesmo despiciendo o delineamento promovido pela legislação subalterna, que se apresenta, mutatis mutandis, como verdadeira forma de advertência ao aplicador do direito, gozando, pois, de caráter genuinamente pedagógico.
Com efeito, a novidade trazida pelo artigo 389 do NCPC, inobstante o fato de vir em boa hora e para desempenhar importante papel (sendo digna de louvor e revelando ser injustificáveis as massivas críticas promovidas pela Magistratura), nada mais é, em essência, que uma personificação, agora em plano infraconstitucional, do direito fundamental da fundamentação das decisões judiciais já consagrado pelo Constituinte (artigo 93, inciso IX da Constituição Federal).
Sobre a certa e imediata incidência do dispositivo em comento na seara penal é, aliás, o posicionamento do Procurador de Justiça Rômulo de Andrade Moreira que, em brilhante artigo, aduz:
“Para nós a resposta é, sem dúvidas, afirmativa, especialmente porque a fundamentação é exigência constitucional, prevista no art. 93, IX da Constituição, segundo o qual todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.
Portanto, o novo dispositivo legal apenas realça em sede infraconstitucional o que já é um mandamento constitucional. A bem da verdade, sequer era preciso um dispositivo desta natureza”.[31]
Ademais, outro argumento[32] que, de seu turno, também solidifica o entendimento pela imediata aplicação do §1° e incisos do artigo 489 do NCPC no processo criminal, é a existência, no Decreto-lei n°3.689/41 (Código de Processo Penal), do artigo 3°, o qual dispõe que “a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”.
Tal regra, como se percebe, permite que a legislação processual penal se socorra, em não havendo normatização específica, dos princípios gerais do direito, bem como de disposições próprias inerentes à outras esferas (dentre os quais, por certo, o Direito Processual Civil).
Neste diapasão, é lugar comum na jurisprudência dos tribunais superiores que, “ausente regulamentação específica para o processo penal, deve-se buscar as regras previstas no Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente por força do artigo 3º do Estatuto Processual Penal”[33].
Assim, “a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica em apregoar a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil ao processo penal”.[34]
Gize-se, destarte, que, no que tange à motivação das decisões penais (nada obstante ser imperativo de rigor, por força de princípio Constitucional, como já explicado), o Código de Processo Penal (e, portanto, o plano infraconstitucional) é omisso (mormente por se tratar de um aparato legal demasiadamente obsoleto, inspirado no direito fascista italiano – Código Rocco, e oriundo de um período brasileiro autoritário e de pouca, ou nenhuma, oxigenação democrática), concluindo-se, a partir de então, ser absolutamente aplicável a integração com o novel artigo 489 do NCPC, por força, também, do indigitado artigo 3°.
Conclusâo
Em suma, a observância ao disposto no artigo 389, §1° do NCPC haverá de ser pronta e imediata, sob pena de nulidade, não apenas no processo civil, mas, também, no processo penal.
O princípio da motivação das decisões judiciais, pedra fundamental do exercício jurisdicional em um Estado Democrático (tanto em virtude de seu viés endoprocessual como exoprocessual), decorre diretamente, em nosso ordenamento, do artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, que é norma fundamental e de aplicabilidade imediata, e que, portanto, não pressuporia qualquer intermediação da legislação infraconstitucional
Entrementes, a resistência dos representantes dos poderes constituídos em conferir, no grau devido, respeito e observância às diretrizes da Carta Maior, tornou imperativa a atuação positiva do legislador subalterno, que, com o escopo de reforçar a real abrangência do princípio em destaque (motivação das decisões), trouxe regramento de condições mínimas de fundamentação, aplicáveis, em razão da própria natureza, aos processos de toda natureza, mormente o criminal, que recebe como reforço argumentativo, ainda, à cláusula de abertura constante do artigo 3° da vigente Lei adjetiva.
Informações Sobre os Autores
Rodrigo Muterle Ribeiro
Advogado pós-graduando em Direito Constitucional e Administrativo pela EPD
Matheus Henrique Sasseron
Advogado. Especializado em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Escola Paulista de Direito – EDP