Da irresignação recursal contra o deferimento de medida protetiva de urgência na Lei Maria da Penha


Sem nenhum átimo de dúvida, a Lei Ordinária Federal n. 11.340, de 07 de Agosto de 2006, conhecida mais como “Lei Maria da Penha”, é espécie normativa de indisfarçável e predominante conteúdo penal. E não se chega a esta conclusão por precipitado exagero sensacionalista ou adesão a certa moda feminista deslumbrada. As razões de sua edição e suas disposições legais protetivas desautorizam patentemente outra ilação.


A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, de 1994), Diploma internacional predecessor e idealizador da Lei 11.340/2006, em toda a sua extensão enfatiza o seu desprendimento à tutela penal da mulher objeto de violência. O Art. 7º, deste Tratado das Américas, impõe como dever de seus Estados-signatários a inclusão nas suas próprias legislações internas de normas penais que sejam necessárias e suficientes para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. A alínea “d” deste dispositivo, mais especificamente, deve ser considerada a gênese das medidas protetivas de urgência da Lei 11.340/2006, que assinala que também deverão os Estados-Partes adotar medidas jurídicas que exijam do agressor abster-se de fustigar, perseguir, intimidar, ameaçar, machucar ou pôr em perigo a vida da mulher de qualquer forma que atente contra sua integridade ou prejudique sua propriedade.


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Outrossim, a Lei 11.340/2006, complementa norma constitucional de eficácia relativa complementável (ou dependente de complementação legislativa), qual seja, o luminoso Parágrafo 8º, do Art. 226, da Constituição Federal de 1988. Rezando este dispositivo que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. Ou seja, na qualidade de norma integrativa infraconstitucional, deve a Lei 11.340/2006 servientemente positivar a proteção contra a violência doméstica no âmbito do núcleo familiar.


Colmatando o desejo do constituinte originário, de especial proteção do Estado à família – definida como base da sociedade – a Lei 11.340/2006, minudentemente, cumpre o seu desiderato normativo com substância. É mesmo Lei de vanguarda, desacostumada com o desprezo e indiferença do Código de Processo Penal de 1941 pelo estudo e aplicação da vitimologia, ainda tão enraizados lamentavelmente na hermenêutica penal hodierna. Nos dias de hoje, incompreensivelmente, parece que qualquer medida tendente a resguardar a integridade da vítima no processo penal deve ser concebida como o Oitavo Passageiro, coisa dos domínios invencíveis das ações cíveis ex delicto.


Desta forma, a Lei 11.340/2006 não deve ser convidada a detonar sua aplicabilidade a quaisquer lides, indistintamente, senão àquelas que versem precisamente sobre a questão da violência doméstica e familiar contra a mulher, sob pena de desvirtuamento e banalização de seu alcance infraconstitucional integrativo.


Logo de início, para fazer contraposição jurídico-material às Varas de Famílias comuns, cria a Lei 11.340/2006 os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, aonde nestes a prática da violência consistirá no seu elemento necessário de atração para fins de fixação de sua competência, juntamente com o propósito de processo e julgamento de infrações penais baseadas no gênero, que causem à mulher morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico, patrimonial ou moral. Daí o motivo pelo qual levou o legislador ordinário a estabelecer que, enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as Varas Criminais comuns acumularão competência para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, e não as Varas Cíveis ou de Família. Mantém-se, assim, o respeito à cadência dos juízes criminais, sem ofensa também à liberdade de organização judiciária dos Estados.


Não se confundem as hipóteses de formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, arroladas no Art. 7º e Incisos da Lei 11.340/2006, com simples e inocentes casos de condutas desonrosas ou atos que importem em grave violação dos deveres do casamento tornando a vida em comum insuportável para os cônjuges. Definitivamente, a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos, e a pena ao final infligida ao agressor deverá representar sanção necessária e suficiente para reprovação e prevenção da barbárie familiar. O que tradicionalmente nas Varas de Família é concebido como falta de respeito e consideração a importar em descumprimento dos deveres do cônjuge varão no casamento, acaso cometido com o uso de violência real ou moral, em determinado momento deverá ser deflagrada a dualidade de instâncias – “instância” naquela acepção de “processo” de JOÃO MONTEIRO – , para (a) dissolução da sociedade e do vínculo conjugal na Vara de Família e, noutra ponta, para (b) processo e julgamento da prática de violência nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, sem nenhuma relação de litispendência ou prejudicialidade entre estes juízos diversos, senão aquela genérica estampada nos Arts. 65, 66 e 67, do Código de Processo Penal.


O Art. 10 da Lei 11.340/2006, no mesmo sentir, é revelador da natureza penal deste novel Diploma da Mulher, quando estatui que quando da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, “a Autoridade Policial que tomar conhecimento da ocorrência” adotará, de imediato, as providências legais cabíveis. Ora, a Polícia Civil é sabidamente Órgão componente do Sistema de Segurança Pública traçado pela Lex Fundamentalis, dirigida por Delegados de Polícia, incumbindo-lhe a função estrita de apuração das infrações penais. A primeira autoridade pública, eleita pela Lei 11.340/2006, a estrear na hipótese de iminência ou da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, bem revela, assim, que estamos em área reservada ao Direito Penal. Não é dado aos Delegados de Polícia exercer as atividades de postulação ao Poder Judiciário, nem de consultoria, assessoria e direção jurídicas.


Não se nega, aqui, vigência ao Art. 14 da Lei 11.340/2006 que dispõe que os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher terão competência criminal e cível, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. Mas processo penal serve ao processo e julgamento de infrações penais (crimes e contravenções penais) e o processo civil, por sua vez, presta-se no caso ao processo e julgamento de causas cíveis para formação de título executivo judicial (sentença de mérito) com eficácia declaratória, constitutiva ou condenatória. As coisas não se confundem. A Lei 11.340/2006 não trouxe inovação surreal ou impraticável. Aonde já efetivamente instalados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher deverá ser implementada essa dupla competência material, mas, isto não quer dizer que se dará tudo em um simultaneus processus, em um único feito, mediante prolação de sentença mista, dividida em capítulos cíveis e criminais. Não se retrocede para transformar os juízes no Profeta Moisés, único legislador e juiz solitário do povo de Israel, que julgava todas as causas segundo o que Deus lhe revelava. Não se pode olvidar a advertência de Jetro, não se deve admitir o insuportável e inconciliável.


Ter competência jurisdicional cível e criminal não significa o abandono das regras de congruência e adstrição, procedimentais próprias relativas ao respeito ao devido processo legal, nem artifício para que o Juiz componha lides envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher do modo como lhe mais convenha ou seja interessante em cada caso. A separação judicial, a dissolução do casamento, ou a cessação de seus efeitos civis, decorrentes da prática da violência doméstica e familiar contra a mulher (violação dos deveres do casamento), serão processadas e julgadas em ações cíveis próprias no Juizado da Mulher onde instalados. Enquanto que a condenação ou absolvição do suposto agressor se dará, neste mesmo Juizado especializado, mas em outro processo, iniciado mediante ação penal pública ou privada, conforme o caso. E, se versar a lide matéria de Direito de Família, apartada da questão da violência em quaisquer de suas modalidades, a competência será das Varas de Família para solução do imbróglio familiar mais sereno. É, nada mais nada menos do que a velha síntese teórica imanentista de CLÓVIS que preconizava que a todo direito corresponde uma ação própria que o assegura. A antagonista teoria abstrata de LIEBMAN também não autoriza ao jurisdicionado bater às portas da Justiça para requerer instauração de um feixe instrumental único para resolução de todos os tipos de pretensões cíveis e criminais conjuntamente, buscando-se pronunciamento judicial singular (sentença única) sobre diversas questões variadas de mérito.


Por todos, BUZAID bem sintetizou a questão, quando na confecção do Art. 292 do seu Código Civil de Ritos, disse que será permitida a cumulação, num único processo, contra o mesmo réu, de vários pedidos, ainda que entre eles não haja conexão, quando (a) os pedidos sejam compatíveis entre si; (b) que seja competente para conhecer deles o mesmo juízo; e, (c) que seja adequado para todos os pedidos o tipo de procedimento. Igualmente, o feito deve ser extinto em seu nascedouro, quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual.


Sensato, afastando qualquer possibilidade de procedimento material híbrido (cível e criminal), o Art. 15 da Lei 11.340/2006 estabelece regras de competência tão-somente para os processos cíveis decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, mantendo, de outra banda, a regra clássica do Art. 69 et seq. do Código de Processo Penal para os casos de fixação da competência para os processos criminais. E, assim também é o seu seguinte Art. 16, quando emprega as expressões “ações penais públicas condicionadas à representação”, “renúncia (retratação) à representação”, “recebimento da denúncia” e “Ministério Público” (titular privativo da ação penal publica), absolutamente estranhas e não invocáveis nas demandas cíveis privadas.


Pois bem, recebido o expediente policial anotado pelo Delegado de Polícia, com o pedido da ofendida, caberá ao Magistrado às pressas decidir sobre as medidas protetivas de urgência requeridas, comunicando de tudo após o Ministério Público para que adote as providências cabíveis. Perceba-se, o veículo de aporte das medidas protetivas no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher é o expediente da Autoridade Policial, que, como dito linhas acima, exerce nos limites de sua respectiva circunscrição a atividade precípua de apuração das infrações penais e da sua autoria. Não desejou a Lei 11.340/2006, desse modo, que fossem requeridas medidas protetivas quando não estivessem em jogo a prática e apuração de infrações penais. A princípio, assim, a medida protetiva de urgência é instituto exclusivo do Direito Processual Penal. Ou, noutras, palavras, nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher somente serão deferidas medidas protetivas de urgência quando apoiadas em procedimento penal, inquisitivo ou judicial. Quando atuando no exercício de sua competência cível, o Julgador do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher deverá, para garantia e efetividade do provimento cognitivo final de mérito, valer-se de seu poder geral de cautela, sem prejuízo, inclusive, do emprego da analogia para outorgar-se à autora da ação cível provimento cautelar protetivo idêntico àquele a que faria jus no processo penal, como, p. ex., o afastamento do réu-devedor de alimentos do lar numa ação de cobrança. Mas, aí neste caso, por óbvio, será incabível a decretação pelo Juiz deste feito cível da prisão preventiva de que trata o Art. 313, Inciso IV, para garantir a execução da medida protetiva de urgência analogicamente aplicada. A solução, para o Julgador do cível, no entanto, será novamente recorrer à analogia para aplicar o disposto no Parágrafo 5º, do Art. 461, do Código de Processo Civil, que estabelece que para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o Juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso (astreintes), busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial. É claro, poderá ainda esse Magistrado do cível, como “qualquer do povo”, prender em flagrante delito este réu recalcitrante pelo crime de desobediência, apresentando-o imediatamente à Autoridade Policial, para comunicação do flagrante ao Juiz natural, mas, aí, outro será o busílis.


Corroborando o ponto referido, é de se salientar que a comunicação do expediente policial ao Ministério Público, após a análise do pedido de medidas protetivas pelo Juiz, para que aquele adote as providências cabíveis, repousa no fato de que é função institucional do Parquet promover, privativamente, a ação penal pública. Ora, a conhecida intervenção do Ministério Público para atuar como fiscal da lei nas ações cíveis pressupõe a existência, é claro, de processo em curso, e, neste caso, não há processo, mas mero expediente policial. A determinação de encaminhamento do expediente policial ao Ministério Público revela o nítido conteúdo penal dessa peça de informação, quando se sabe, como dito, competir ao Ministério Público a promoção privativa da ação penal pública, e, outrossim, exerce esta Instituição o controle externo da atividade policial, podendo requisitar diligências investigatórias e a instauração de Inquérito Policial. No juízo cível a inércia inicial do Juiz deve ser superada necessariamente através da petição inicial ajuizada pela parte patrocinada por Advogado, operando-se a partir daí a angularização da relação processual, no sentido de só assim ser oportunizada a abertura de vistas ao Ministério Público como Fiscal da Lei.


Qualquer argumento de uma possível natureza cível das medidas protetivas de urgência instituídas pela Lei 11.340/2006 caem por terra, definitivamente, quando se atinge o Art. 19 desse mesmo Diploma protetivo da mulher. Reza este dispositivo que as medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo Juiz de ofício, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida. O irredutível Princípio Dispositivo informador de toda a teoria geral do processo civil jamais admitiria a concessão de medida acautelatória ou assecuratória de tão larga envergadura sem a iniciativa da parte. A legitimidade do Ministério Público para requerimento de medidas protetivas repousa no fato de que tem esta Instituição poderes para requisitar a instauração de Inquérito Policial e formular requerimentos que bem entender, com a intervenção do Poder Judiciário, quando for o caso, antes mesmo da formação da lide penal pelo oferecimento da Denúncia. E pela expressão “pedido da ofendida” é sabido que não há ofendido vs. ofensor nos feitos cíveis, mas, sim, autor e réu.


Se assim não fosse, indaga-se, por que o instituto da prisão provisória do “agressor” – e não “réu” – , medida típica do processo penal, foi inserida dentro do capítulo destinado às medidas protetivas de urgência (Art. 20)? Porque proclama o Art. 313, Inciso IV, do Código de Processo Penal que será admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, “para garantir a execução das medidas protetivas de urgência”. Noutras palavras, a prisão preventiva é medida extrema e subsidiária, que só deverá ser imposta quando as medidas protetivas se revelarem ineficazes. E é regra pueril em Direito a de que só há prisão preventiva em processo criminal. Por esta razão que a Lei 11.340/2006 situou a medida acessória da prisão preventiva dentro do capítulo reservado às medidas protetivas de urgência, ambos institutos de natureza eminentemente penal.


Poderia ser argüir, entretanto, que muitas das medidas protetivas de urgência arroladas pela Lei 11.340/2006 encontram disposição semelhante no Código de Processo Civil e legislação processual civil em vigor, como, p. ex., a separação de corpos. E, por isto, também seriam as medidas protetivas de urgência providência de natureza cível.


Em primeiro lugar, não se concederá medida protetiva de urgência da separação de corpos – e nenhuma outra! – em caso de mera violação dos deveres conjugais, mas, sim, em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher, a revelar que imediatamente deve se dar a largada ao período de reflexão de um ano para que após seja levado a efeito a desejada e profilática dissolução do casamento pelo divórcio no juízo de família. Do contrário, se não fosse aquela medida assecuratória penal da separação de corpos, estaria ainda a ofendida submetida ao capricho de seu carrasco, com grande abalo à ordem pública que estaria ameaçada pela possibilidade da reiteração criminosa. Sem falar que a separação de corpos decretada no processo penal isenta a vítima de qualquer dever de fidelidade e coabitação com o seu agressor, o que seria verdadeiro disparate. Pelo que, no exemplo dado, a medida protetiva da separação de corpos não atinge um fim em si mesma, não apresenta conteúdo satisfativo, apenas assegura à mulher violentada a certeza da ruptura de sua vida em comum com seu ofensor, prestigiando-se, por esta via tão-somente o exercício efetivo do direito à vida em paz.


Quanto ao argumento de que muitas das medidas protetivas de urgência arroladas pela Lei 11.340/2006 encontram disposição semelhante no Código de Processo Civil e na legislação processual civil em vigor, o mesmo, ao contrário, também sempre foi sentido por aqueles que militam com o processo penal, mas sem nenhum alarde. Ora, se o vigente Código de Processo Civil de 1973 possui entre seus procedimentos cautelares específicos o Arresto, o Seqüestro, a Busca e Apreensão, a Produção Antecipada de Provas, entre outros, o Código de Processo Penal de 1941, há mais de três décadas antes, já previa em seus Arts. 134, 125, 240 e 366, respectivamente, as mesmas medidas de cautela previstas naquele primeiro Codex. Seriam aqueles provimentos do Estatuto de Ritos Civil medidas de natureza processual penal, importados do vetusto Código de Processo Penal? Ou seriam mesmo medidas de natureza civil repetidas do Código de Processo Civil de 1939?


Nem uma coisa e nem outra. É fácil desfazer-se a ligeira confusão recitada. Para isto, basta lembrarmos que a decisão cautelar não é de mérito, mas sim, quando muito, acessória do mérito da ação principal. A ação principal é que será de natureza cível ou penal, jamais a medida protetiva de urgência ou cautelar (ou assecuratória) subjacentes. A tutela através da medida protetiva (tutela preventiva), deveras, não atinge nem soluciona o mérito da causa principal, mas no âmbito exclusivo dessa tutela preventiva contém-se uma pretensão de segurança, traduzida num pedido de medida concreta para eliminar o risco à integridade da ofendida, já abatida pela perpetração da violência no seio familiar.


E, como asseverado, se a medida protetiva de urgência é acessória do mérito da ação principal, e, se a Lei 11.340/2006 cravou aquela medida protetiva como instrumento de garantia da ordem pública no processo penal, para garantia da incolumidade da mulher violentada (não reiteração criminosa), temos assim que as medidas protetivas em discussão são nitidamente de natureza penal e não cível, por força do objeto da ação principal – apuração de infração penal (crime ou contravenção penal) – . Tudo, então, a desafiar a sistemática recursal prevista no Código de Processo Penal, à luz das regras da taxatividade e adequação. A interposição do recurso de Agravo de Instrumento, do Código de Processo Civil, revela inaceitável erro grosseiro, que sequer chega a ser escorado pela implícita regra da fungibilidade recursal ainda admitida por alguns.


Mas, não só pela evidente inadequação da via eleita, caracterizador do erro grosseiro, que se afasta a regra da fungibilidade recursal mantida viva pelos saudosistas do Código de Processo Civil de 1939 – perceba-se, não é nem no Código de Processo Penal que se mantém a brecha recursal, mas em Diploma estranho ao Direito Processual Penal por força de analogia com lei revogada! – , mas, também, pela hipótese de ausência do pressuposto objetivo da boa-fé, quando é sabido por todos que a interposição do Agravo de Instrumento diretamente nos Tribunais de Justiça elimina por completo a possibilidade do Julgador a quo sustentar sua Decisão, robustecendo-a, e, inclusive fazendo juntar ao recurso os traslados que lhe parecerem necessários para manutenção da medida protetiva pelo Órgão Colegiado ad quem.


A via recursal do Agravo de Instrumento revela-se, assim, meio de subtrair do juízo de origem a possibilidade de sustentação da decisão concessiva da medida protetiva de urgência – direito-poder do Magistrado que não pode ser mitigado – , e também da possibilidade deste Órgão Julgador de piso de instruir o recurso com as peças que entender necessárias e úteis para melhor análise e manutenção da medida assecuratória de urgência (efeito regressivo, também chamado de iterativo, reiterativo ou diferido). O volume numeroso e assustador de processos que já se encontram tramitando em todos os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do País – reflexo da falência dos valores familiares e morais – bem revela que decisões concessivas de medidas protetivas são concedidas a todo o momento, com a urgência que a Lei 11.340/2006 determina (48 horas, Art. 18, Inciso I), não havendo, por óbvio, espaços para dissertação minuciosa em 1º Grau, uma vez que o tempo conspira. Será, então, no momento da sustentação de sua decisão que o Magistrado deverá proceder ao profundo cotejo do fumus boni iuris e do periculum in mora com as provas carreadas aos autos do processo ou expediente. E, só então, após este trâmite no juízo de origem, com as contra-razões, o recurso subirá para a Instância superior.


Após a Reforma de 2001 do Código de Processo Civil, a solicitação de informações pelo Juiz da causa nos recursos de Agravo de Instrumento passou a ser uma faculdade do Relator no Tribunal, que poderá dispensá-las, deixando o Magistrado de 1º Grau em verdadeiro estado de perplexidade, eis que, como cediço, deverá este recurso ser conhecido tão-somente com a juntada de cópias da decisão agravada, da certidão da respectiva intimação e das procurações outorgadas aos Advogados do Agravante e do Agravado. Ao contrário do que se dá no Recurso em Sentido Estrito, onde Juiz e ofendida-recorrida, no despacho de sustentação e nas contra-razões, respectivamente, poderão juntar todo o acervo probatório que entenderem pertinentes para manutenção da decisão concessiva da medida protetiva no Tribunal, afastando-se em muito a possibilidade da concessão de medida liminar inaudita alter pars pelo Relator.


Pela equivocada via do Agravo de Instrumento, contra decisão concessiva de medida protetiva de urgência, afasta-se, também, a possibilidade da aferição dos pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade pelo Juiz da causa, que só é exercido nesta espécie recursal pelo Relator do Tribunal, porque o mesmo é interposto diretamente nesta 2ª Instancia. Já o adequado Recurso em Sentido Estrito, sofre essa dupla avaliação, tanto pelo juízo de origem, como pela Corte revisora. O que denota ser inaceitável para fins de pretendida e incabível fungibilidade recursal a interposição daquele recurso de Agravo de Instrumento.


Pela sistemática criada pelos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, só será admitida a interposição de Agravo de Instrumento nas ações propriamente cíveis, dentro do específico âmbito de competência cível que também possui este Juizado da Mulher, onde já efetivamente instalados, para enfrentamento de todas e quaisquer decisões interlocutórias, inclusive aquelas onde concedidas medidas semelhantes às típicas medidas protetivas de urgência da Lei 11.340/2006 por força da analogia, mas sem olvidar que o objeto da ação principal deverá conter pedido de provimento final de natureza cível, qual seja, a declaração, a constituição ou a condenação sobre determinado bem da vida (sentença de mérito cível), jamais o processo e julgamento de infração penal (sentença penal), onde ressoa mais evidente a violação dos direitos humanos da mulher.



Informações Sobre o Autor

Carlos Eduardo Rios do Amaral

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Defensor Público do Estado do Espírito Santo


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