Resumo: As técnicas de reprodução humana medicamente assistida dissociaram a manutenção de relações sexuais da procriação, entretanto, para que haja fecundação e concepção, ainda é necessária a tradicional fusão entre espermatozóide e óvulo. Nesse contexto, pessoas sozinhas recorrem às clínicas que realizam tais procedimentos para que consigam ter um filho a partir da utilização de gametas de doadores, uma vez que não possuem cônjuge, companheiro e não pretendem manter relações sexuais com um estranho para poderem conceber o filho que desejam. Considerando que não existe lei no Brasil que trate especificamente do tema, apenas uma Resolução do Conselho Federal de Medicina, o presente trabalho tem como objetivo analisar a possibilidade da realização das “produções independentes” sob a ótica deste documento, bem como analisar juridicamente a monoparentalidade programada imposta à criança a ser gerada. Diante do conflito entre dignidades de pessoas diferentes, a saber, da criança a ser gerada e de seu pai ou mãe sozinhos, recorreu-se à ponderação dos direitos envolvidos neste cenário para, ao final, apresentar-se um posicionamento jurídico em relação à referida prática.
Palavras-chave: Reprodução Humana Medicamente Assistida. Resolução n. 1.957/10 do Conselho Federal de Medicina. Monoparentalidade. Ponderação. Melhor interesse da criança.
Abstract: The techniques of medically assisted human reproduction disassociated the maintenance of sex from procreation, however, that there is fertilization and conception, it still requires the traditional fusion of sperm and egg. In this context, people rely on their own to clinics that perform these procedures so they can have a child from the use of donor gametes, they do not have a spouse, partner and do not want to have sex with a stranger in order to conceive the child that want. Considering that in Brazil there is no law that specifically addresses the issue, only a resolution of the Federal Council of Medicine, this study aims to examine the possibility of carrying out "independent productions" in light of this document, and analyze legally single parenthood imposed upon the child scheduled to be generated. Given the conflict between different dignities of people, namely the child to be generated and their father or mother alone, we used to balance the rights involved in this scenario to, ultimately, present a legal position in relation to that practice.
Keywords: Medically Assisted Human Reproduction. Resolution n. 1.957/10 of the Federal Council of Medicine. Single parenthood. Weighting. Child's best interest.
Sumário: Introdução. 1 O caminho percorrido pelas famílias e sua função social na atualidade. 2 Do direito ao livre planejamento familiar. 3 Da regulamentação da reprodução humana assistida pelo Conselho Federal de Medicina e Princípios Bioéticos. 4 Análise da “produção independente” sob a perspectiva do Biodireito. 4.1 Os direitos dos pretensos mãe ou pai. 4.2 Os direitos da criança a ser gerada 4.3 O conflito entre os direitos dos pretensos mãe ou pai e da criança a ser gerada. Consideração Finais. Referências.
INTRODUÇão
Tradicionalmente, a procriação sempre esteve atrelada à manutenção de relações sexuais. Entretanto, atualmente, através dos avanços da Medicina, aquela tornou-se possível mesmo sem a ocorrência destas, através da utilização das técnicas de reprodução humana medicamente assistida.
Embora estejam sendo cada vez mais divulgadas e praticadas, referidas técnicas não possuem nenhuma regulamentação legal, embora sua realização produza, inevitavelmente, efeitos no âmbito jurídico. A única normativa acerca do tema é a Resolução no 2.013/2.013 do Conselho Federal de Medicina, que apresenta regras deontológicas (relativas à ética profissional) dirigidas aos médicos, centros e clínicas que realizam reprodução assistida.
Considerando que na reprodução assistida o trabalho dos geneticistas substitui a relação sexual, é perfeitamente possível, em tese, que uma mulher sozinha consiga engravidar através do sêmen de um doador. Tal prática tem sido realizada e é popularmente denominada “produção independente”. Ademais, poderia um homem sozinho lançar mão da técnica de gestação de substituição para ter um filho só seu.
Pretende-se, no presente trabalho, analisar as “produções independentes” sob o ponto de vista jurídico, mais precisamente através da perspectiva da dignidade da pessoa humana, seja da mulher ou do homem que recorre a este procedimento, exercendo sua autonomia, seja da criança que dele será gerada e, portanto, privada da biparentalidade de forma planejada.
Embora as famílias monoparentais sejam reconhecidas para fins de proteção do Estado, seria a monoparentalidade programada estimulada pelo legislador constituinte?
Para responder a tal questionamento, este trabalho desenvolveu-se através de uma pesquisa qualitativa, essencialmente bibliográfica e documental, construída dialeticamente a partir do diálogo entre Constituição Federal, Direito de Família, princípios Bioéticos, Resolução no 2.013/2.013 do Conselho Federal de Medicina e doutrina acerca do tema.
O trabalho foi dividido em três fases:
Primeiramente, foi feita uma apresentação da evolução pela qual passou a família no Brasil até os dias atuais, definindo-se o contexto em que o tema proposto será discutido.
Posteriormente, foram elucidados alguns aspectos da Resolução no 2.013/2.013 do Conselho Federal de Medicina, a qual impõe restrições éticas à prática da reprodução assistida.
Por fim, passou-se à analise jurídica das “produções independentes”. Demonstrando que tal prática enseja o conflito entre os direitos da mulher que pretende ter um filho sozinha e os direitos deste à biparentalidade e à paternidade/maternidade responsável, utilizou-se a técnica da ponderação de interesses para chegar-se à um posicionamento que parece ser o mais acertado do ponto de vista do melhor interesse da criança, à qual o Estado deve proteção integral.
1 O CAMINHO PERCORRIDO PELAS FAMÍLIAS E sua função social NA ATUALIDADE
Nem sempre as famílias se apresentaram da forma plural e democrática como na atualidade, sendo necessário destacar as principais mudanças que as atingiram com o objetivo de, através da demonstração da evolução de determinados aspectos, elucidar sua função social nos dias de hoje para, a partir daí, analisar criticamente as “produções independentes”, formadoras de familias monoparentais, ou seja, constituídas por um dos genitores e sua prole.
Na Antigüidade, o casamento era a única forma legítima de união entre duas pessoas e tinha como objetivo a geração de descendentes. Isto porque, naquele tempo, conforme descrito por COULANGES (2002, p. 13-64), o que unia os membros da família antiga era algo mais poderoso que o nascimento, o sentimento ou a força física: um poder que se encontrava na religião do lar e no culto dos antepassados. Imaginava-se que, após a morte, uma pessoa continuava vivendo debaixo da terra, depois de enterrada. Assim, seus descendentes deveriam fazer oferendas para saciar-lhes a fome e, em troca, os ascendentes, considerados divindades, lhes garantiam prosperidade e proteção. O vivo não podia passar sem o morto, nem este sem aquele. No entanto, os mortos eram considerados deuses apenas enquanto seus descendentes os contemplassem com seu culto.
Daí derivou a regra de deverem todas as famílias perpetuar-se para todo o sempre. Ressalte-se que o culto doméstico somente passava de varão para varão, sendo de extrema preocupação para uma família a existência de um descendente do sexo masculino que pudesse levar as oferendas ao túmulo de seus ascendentes. O casamento era um contrato apenas para perpetuar a família e garantir a manutenção do culto.
Relatando um momento social posterior, LISBOA (2006, p. 33-34) destaca que
“Tanto os gregos como os romanos tiveram, basicamente, duas concepções acerca da família e do casamento: a do dever cívico e a da formação da prole.
Inicialmente, a união entre o homem e a mulher era vista como um dever cívico, para os fins de procriação e de desenvolvimento das novas pessoas geradas, que serviriam aos exércitos de seus respectivos países, anos depois, durante a juventude.
Diante desse objetivo, a prole masculina era muito mais esperada que a feminina, tendo-se a perspectiva do fortalecimento dos exércitos, de novas conquistas e da segurança da nação, com a preponderância dos nascimentos de crianças do sexo masculino.
Com o decorrer do tempo, tal conceituação foi sendo paulatinamente substituída pelos ideais de continuidade da entidade familiar, concebendo-se a família e o casamento para os fins de perpetuação da espécie, com o nascimento dos filhos.
Restringia-se a idéia de relação sexual no casamento, assim, para os fins imediatos de procriação.”
Além de tais funções – o dever cívico e a perpetuação da espécie – a família constituía verdadeira unidade de produção agrícola e artesanal, sob o comando do patriarca. Quanto mais numerosa a família, mais renda seria capaz de gerar, de modo que era interessante ter muitos filhos. Neste período, o homem era considerado o chefe da família, sendo os filhos e a mulher compeltamente submissos a ele, que detinha o direito de vida e de morte daqueles. Segundo afirma DIAS (2006, p. 28),
“A família tinha uma formação extensiva, verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes, formando unidade de produção, com amplo incentivo à procriação. Sendo entidade patrimonializada, seus membros eram força de trabalho. O crescimento da família ensejava melhores consições de sobrevivência a todos. O núcleo familiar dispunha de perfil hierárquico e patriarcal.”
Com a Revolução Industrial, as máquinas tiraram o emprego de muitas pessoas que precisaram largar a economia familiar e passaram a trabalhar nas fábricas. A partir daí, “uma lenta repersonalização das relações familiares estava por vir, destacando-se a saída da mulher de sua casa para o exercício da jornada de trabalho e a quebra do ciclo de continuidade da atividade paterna pelos filhos” (DIAS, 2006, p. 34). Nas palavras de MONTEIRO (2004, p. 10)
“Movimentos sociais, a industrialização, duas Grandes Guerras quebraram aquela estabilidade e passou a ser inevitável a intervenção estatal na economia e nas relações privadas, com a chamada socialização do Direito Civil, que perdeu o caráter individualista e passou a voltar-se à proteção do indivíduo integrado na sociedade. As atenções voltaram-se para a pessoa em si mesma, à tutela de sua personalidade, de sua dignidade como ser humano”.
A saída da mulher e dos filhos do âmbito exclusivamente familiar e o fato de terem começado a contribuir para o sustento da família, fez com que as relações familiares se modificassem e os mesmos começassem a ter mais importância neste contexto. Tal processo é resumido por LISBOA (2006, p. 36) da seguinte forma:
“Como os contratos de adesão acarretaram uma série de situações iníquas em desfavor do prestador de serviços contratado pelo fabricante comitente, a massa de trabalhadores passou a se organizar, assim como a sociedade civil em geral (insatisfeita com as ineficazes medidas de proteção tomadas pelo poder público), exigindo finalmente uma participação positiva ou ativa no processo político. Surgiram, assim, os elementos embrionários do sindicalismo e do associativismo modernos, bem como dos partidos políticos.
Tais acontecimentos contribuíram decisivamente para que a mulher e o jovem pudessem vir a reivindicar por seus direitos.”
Com o passar do tempo, gradativamente, as esposas e filhos foram tendo seus direitos respeitados. Importante ressaltar que, na década de 60, a difusão da pílula anticoncepcional deu mais independência à mulher, pois, ao desatrelar a prática de relações sexuais da reprodução, aquela também começou a experimentar o sexo por prazer, um comportamento que, até então, era, praticamente, de exclusividade masculina.
O ponto alto que marcou definitivamente essa conquista de direitos foi a Constituição Federal de 1988. Além de ter deixado expresso que a família é a base da sociedade (art. 226, caput), merecendo especial proteção do Estado, reconheceu a existência jurídica das famílias monoparentais e as constituídas a partir da manutenção de união estável (art. 226, §§ 3o. e 4o.). Garantiu direitos iguais ao homem e à mulher (conseqüentemente no que diz respeito a chefia da família, conforme determina o art. 226, § 5º) e a igualdade de direitos entre os filhos, seja qual for a sua origem, matrimonial ou não (art. 226, § 6º). Aquela antiga relação de soberania do marido em relação à mulher e aos filhos, transformou-se em uma relação de coordenação, onde todos estão em pé de igualdade (art. 226, § 8º).
Ademais, a Carta Magna estabeleceu a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro (art. 1o. III), devendo a proteção e promoção da mesma constituir uma lente para que todo o ordenamento jurídico seja enxergado e interpretado nesse sentido.
Desta forma, consolidou-se o movimento de repersonalização e despatrimonialização do Direito Civil, que significam, resumidamente, o fato de que a valorização da dignidade humana, atrelada ao princípio da solidariedade, afastou o caráter patrimonialista nas relações interpessoais bem como o individualismo excessivo, prejudicial às relações sociais.
Nesse cenário, cada membro da família em si considerado foi valorizado individualmente e a família ganhou uma função social, conforme será demonstrado a seguir.
Segundo anteriormente mencionado, a família foi considerada pelo legislador constituinte base da sociedade, merecedora de especial proteção do Estado. Isso porque a família é responsável pelo desenvolvimento da personalidade de seus membros, sendo que, teoricamente, indivíduos desenvolvidos e formados de forma sadia dariam origem, conseqüentemente, a cidadãos ideais, o que contribuiria para a ordem e harmonia sociais.
Assim, a família da atualidade tem como função social a promoção e proteção da dignidade de seus membros. As relações familiares, portanto, precisam se desenvolver da forma mais harmônica possível, uma vez que disso depende o desenvolvimento da personalidade sadia de seus integrantes.
Nesse sentido, DIAS (2006, p. 43) destaca que
“A família-instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja, ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado”.
Conforme explica PERLINGIERI (apud ASSUMPÇÃO, 204, p. 41),
“O tema da funcionalização como fenômeno, em geral, dos institutos jurídicos está intimamente ligado aos valores fundamentais do ordenamento, portanto, em primeiro lugar, ao valor dos valores, a tutela, precisamente, da pessoa humana”.
A dignidade da pessoa humana, elevada pela Constituição Federal a fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro, engloba outros valores essenciais, tais como a vida digna, a saúde, a liberdade, a igualdade, a autonomia, dentre vários outros que promovem o desenvolvimento pleno da personalidade de uma pessoa. Por não ser tarefa fácil sua conceituação, oportuna a transcrição do conceito formulado por MORAES (2002, p. 128-129),
“A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e traz consigo a pretensão por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.”
A dignidade da pessoa humana, segundo clássica definição de SARLET (apud MARTINS, 2005, p. 119) é
“Qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”
Complementando esta definição, MORAES (2003, p. 85) explica que a ideia de dignidade desdobra-se em quarto postulados:
“i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele, ii) merecedores do mesmo respeito à digninade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relaçÃo ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado.”
Referida autora defende, ainda, que decorrem de tais formulações “os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral – psicofísica –, da liberdade e da solidariedade” (MORAES, 2003, p. 85). E acrescenta que
“Esta decomposição serve, ainda, a demonstrar que, embora possa haver conflitos entre duas ou mais situações jurídicas subjetivas, cada uma delas amparada por um desses princípios, e, portanto, conflito entre princípios de igual importância hierárquica, o fiel da balança, a medida da ponderação, o objetivo a ser alcançado, já está determinado, a priori, em favor do princípio, hoje absoluto, da dignidade da pessoa humana. (…) A dignidade, assim como ocorre com a justiça, vem à tona no caso concreto, se bem feita aquela ponderação” (MORAES, 2003, p. 85).
A dignidade da pessoa humana deve ser respeitada tanto pelo Estado em relação aos seus cidadãos, como por estes, em suas relações particulares. Desta forma, deve ser buscada, logicamente, no âmbito das relações familiares, concretizando a função social da família.
Seguindo os valores e princípios constitucionais, o Código Civil de 2002 entrou em vigor ratificando diversas disposições constitucionais sobre a família, disposições estas que podem ser resumidas em um único valor: a solidariedade familiar. Conforme explica MADALENO (2008, p. 64) Madaleno,
“A solidariedade é princípio e oxigênio de todas as relações familiares e afetivas, porque esses vínculos só podem se sustentar e se desenvolver em ambiente recíproco de compreensão e cooperação, ajudando-se mutuamente sempre que se fizer necessário”.
Desta forma, a solidariedade engloba tanto o dever de assistência moral quanto material.
No tocante aos filhos menores, importante salientar que a constituição Federal assegura sua proteção integral4, devendo seu interesse prevalecer em todas as situações, uma vez que considerados pessoas humanas em desenvolvimento.
Tendo em mente a função social da família e o direito de todos os seus membros à felicidade, está demarcado o contexto no qual o presente estudo se desenvolverá.
2 do direito ao livre planejamento familiar
Além das inovações trazidas pela Constituição Federal de 1988 já mencionadas no capítulo anterior, a mesma determinou que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas, desde que respeitado o princípio da paternidade/maternidade responsável e da proteção integral dos interesses da criança (art. 226, § 7º e art. 227).
Tendo em vista esta disposição constitucional, o direito à reprodução tem sido proclamado, por parte da doutrina, um direito fundamental, bem como o direito à reprodução assistida, este em razão do que o estigma da não-descendência representa na esfera íntima de uma pessoa.
A lista dos chamados direitos fundamentais tem crescido na proporção da conscientização da valorização da dignidade da pessoa humana, flexibilização esta possibilitada pela Constituição Federal5. Entretanto, para que se possa considerar um direito como sendo fundamental, ainda que não expressamente previsto constitucionalmente como tal, deve-se observar se o mesmo é tão importante quanto os que receberam tal previsão e se é coerente com relação aos mesmos, sendo que a afirmação da fundamentalidade deve “ancorar-se nas necessidades vitais do homem e não em meros desejos não essenciais” (NABAIS apud KRELL, 2006, p. 100).
Partindo-se desse pressuposto, faz-se necessário destacar que existe uma grande diferença entre o direito à reprodução via conjunção carnal e o direito à reprodução assistida6. Procurar-se-á responder à indagação sobre se o direito à esta é fundamental ou se só haveria um direito subjetivo individual à mesma – condicionado à verificação de problemas de fertilidade ou para evitar a transmissão de doenças à criança que será gerada –, uma vez que desta conclusão depende a análise jurídica da situação conhecida como “produção independente”.
O direito à reprodução via conjunção carnal, que não é um direito de exercício individual – tanto que a própria Constituição Federal, parâmetro para a interpretação de todo o ordenamento jurídico, limitou o livre exercício do planejamento familiar ao casal –, é um direito fundamental, ainda que, na teoria, encontre limites na paternidade responsável e na dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, SILVA (2003, p. 243) ressalta que
“O direito de ter filhos é natural e inerente a todos os seres humanos, porém, ele encontra limites não só nas leis da Natureza, mas também nas leis que regem a sociedade civil. Estas têm como princípio fundamental a dignidade da pessoa humana e por isso, qualquer ato que atente contra tal princípio deve ser retaliado. A medicina prima por buscar a satisfação e o bem-estar do ser humano, porém deve encontrar limites sempre que o desejo de um indivíduo implicar na invasão dos direitos do outro.”
Assim, o motivo de se considerar o direito à reprodução como fundamental consiste no fato de que a perpetuação da espécie é considerada desdobramento natural dos seres vivos e, portanto, um direito inafastável do ser humano, intimamente ligado à sua personalidade.
Regulamentando o planejamento familiar constitucionalmente assegurado a todo casal, a Lei nº 9.263/1996, dispõe que:
“Art. 1o. O planejamento familiar é direito de todo cidadão, observado o disposto nesta lei.
Art. 2o, caput. Para os fins dessa Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.
Art.3o, caput. O planejamento familiar é parte integrante do conjunto de Ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde.
Art. 4o, caput. O planejamento familiar orienta-se por ações preventivas e educativas e pela garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade.” (sem grifos no original)
Desta forma, o planejamento familiar, para os fins da Lei nº 9.263/1996, não se traduz na vontade de planejar ter ou não prole, mas nas ações de regulação da fecundidade, fazendo parte de uma política de atenção à saúde pública.
Os que defendem a fundamentalidade do direito à reprodução assistida baseiam-se, principalmente, no fato de que a “Lei de Planejamento Familiar” garantiu este direito a todo cidadão. Entretanto, para uma compreensão acertada do que vem a ser “planejamento familiar”, é imprescindível uma leitura crítica e conjunta do dispositivo constitucional que a ele se refere (art. 226, §7º) e da lei específica que o regulamenta (Lei nº 9.263/1996). No âmbito constitucional, o livre planejamento familiar está descrito como forma de garantia ao direito à liberdade, mais precisamente quanto à autonomia reprodutiva, não podendo nenhum órgão, público ou privado, impor a esterilização forçada ou mesmo determinar o número máximo de filhos que uma pessoa terá, como ocorre na China (política do filho único). Já no âmbito da lei ordinária que dispõe sobre o planejamento familiar, este é considerado uma preocupação com a saúde reprodutiva da população e com a conseqüente disponibilização de políticas públicas voltadas para esta área.
DIAS (2006, p. 298) destaca que este planejamento familiar de origem governamental “é dotado de natureza promocional, não coercitiva, orientado por ações preventivas e educativas e por garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade”.
“Não há grandes divergências (…) no sentido de que o right to procreate tem um conteúdo negativo, isto é, que atribui ao indivíduo uma defesa contra qualquer privação ou limitação, por parte do Estado, da liberdade de escolha quanto a procriar ou não” (BARBOZA, 2004, p. 228), de modo que a liberdade de elaboração do planejamento familiar tanto não é absoluta que o aborto provocado, utilizado como forma de colocar fim a uma gestação indesejada, é considerado crime no Brasil7.
Dessa forma, é direito de todo cidadão receber orientações e meios para evitar uma gravidez – através, por exemplo, da disponibilização gratuita de pílulas anticoncepcionais, preservativos, cirurgias de ligadura de trompas ou vasectomia pelo Sistema Único de Saúde –, bem como para remediar uma situação patológica de infertilidade, esterilidade ou baixa fertilidade8 – através do acesso às técnicas de reprodução humana assistida.
Assim, pode-se concluir que, no Brasil, o direito à reprodução assistida está a serviço do direito fundamental à saúde9, não podendo ser utilizado como argumento para suprir a falta de um parceiro. Justamente em razão de sua finalidade terapêutica, o uso de métodos de reprodução assistida está contido no contexto da saúde e “deve representar a última alternativa para a pessoa que pretende procriar, e não simplesmente um modo alternativo de reproduzir” (MEIRELLES, 2002, p. 395).
Ainda que o direito à reprodução assistida seja considerado fundamental, alicerçado no direito à liberdade e não no direito à saúde, importante destacar que nenhum direito, ainda que fundamental, é ilimitado ou absoluto, encontrando limites na dignidade dos que serão afetados pelo exercício do mesmo.
Finalmente, DINIZ (2010, p. 142-143) alega que os direitos reprodutivos não são absolutos, “pois os direitos da prole e o bem comum impõem seus limites. Por isso não se pode falar de uma liberdade procriadora exercida de qualquer maneira, mas de uma liberdade responsável”.
3 DA REGULAMENTAÇÃO DA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA PELO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA E PRiNCÍPIOS BIOÉTICOS
Conforme exposto anteriormente, o único documento normativo brasileiro que fixa os requisitos éticos para a realização das técnicas de reprodução humana assistida é a Resolução no 2.013/2.013 do Conselho Federal de Medicina.
A mesma, em sua parte introdutória, considera a importância da infertilidade humana como um problema de saúde, com implicações médicas e psicológicas, sendo legítimo o anseio de superá-la através das técnicas de reprodução assistida. Ademais, faz menção ao fato de que o Supremo Tribunal Federal reconheceu as uniões homoafetivas como entidades familiares e, por isso, as técnicas de reprodução assistida devem estar à serviço deste tipo de família. Por fim, expressa-se de forma a insinuar que tais técnicas poderão ser utilizadas para solucionar “problemas de reprodução humana”.
Embora o Conselho Federal de Medicina não tenha sido explícito no sentido de elucidar quais seriam esses problemas, da leitura da Resolução conclui-se que não seriam problemas de saúde reprodutiva, especificamente.
Atualmente, a ética médica (que não se confunde com a ética jurídica) permite o recurso às reprodução assistida nos seguintes casos, todos explicitados no documento sob comento: 1) Para remediar problemas de saúde reprodutiva; 2) Para evitar transmissão de doenças à prole, situação em que, excepcionalmente, permite-se a seleção do sexo do bebê; 3) Para que casais homoafetivos consigam ter filhos; 4) Para que pessoas solteiras consigam ter filhos; 5) Para garantir a compatibilidade genética do filho a nascer com outro filho já nascido e doente, com o objetivo de transplante de células-tronco e doção de órgãos; e, por último; e 6) Para possibilitar que pessoas vivas possam ter filhos de cônjuge ou companheiro(a) já falecido, caso o de cujus tenha se manifestado favoravelmente, de forma expressa (reprodução assistida post mortem) e desde que haja embriões contendo carga genética do mesmo ou na hipótese de seus gametas estarem crioconservados em clínicas reprodutivas.
Note-se, portanto, que é muito amplo o espectro daqueles que podem se beneficiar das técnicas de reprodução assistida as quais, conforme estabelece a Resolução 2.013/2.013, possuem o papel de auxiliar na resolução dos problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação10.
Da forma como a temática foi abordada pela vigente Resolução do Conselho Federal de Medicina é muito tentador concluir que a reprodução assistida consistiria em um meio alternativo de procriação e não um recurso excepcional colocado à disposição daqueles que possuírem problemas reprodutivos. É tentador, mas seria ético? É possível através dos avanços da Medicina, mas seria desejável sob ponto de vista do Direito?
Se, por um lado, a referida resolução foge totalmente às regras da natureza, artificializando o processo reprodutivo, por outro, paradoxalmente, tenta imitar a natureza ao determinar que as mulheres que pretenderem gerar seus filhos poderão ter, no máximo, 50 anos, idade a partir da qual, via de regra, as mulheres já estariam na menopausa, impossibilitadas, portanto, de engravidarem naturalmente.
Outra polêmica ensejada pela normativa em questão foi o fato de ter previsto que, nos casos de pessoas sozinhas ou pares homoafetivos, o médico poderá recusar a aplicação das técnicas referidas, sendo sua objeção de consciência respeitada, o que dá margem a comportamentos que acabam por fomentar o preconceito em torno das famílias homoafetivas. Ou essas pessoas podem ser pacientes da reprodução assistida ou não podem.
Se houve esta ressalva expressa relativa às famílias homoafetivas e às pessoas sozinhas que querem ter filhos é porque não houve consenso acerca da tratativa de tais casos.
Frise-se que, ainda que “produções independentes” desejadas por mulheres sejam facilmente resolvidas pelos médicos, o mesmo não ocorre se o paciente for um homem querendo ser um pai solteiro, uma vez que teria que fazer uso da gestação por substituição.
Contudo, conforme estabelece a Resolução, tal situação poderá ser cogitada desde que exista um problema medico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética ou em caso de união homoafetiva. Em outras palavras, a Resolução não prevê o recurso à gestação por substituição ao homem sozinho que deseja ter um filho. Qual teria sido o critério a possibilitar “produções independentes” às mulheres e não aos homens?
Mesmo diante de tantas polêmicas, a Resolução caminhou bem ao prever a necessidade de manifestação do consentimento informado de todos os que participarem da realização das técnicas de reprodução assistida, inclusive dos doadores de gametas.
De qualquer forma, importante ressaltar que a Resolução ora comentada não possui força de lei, devendo a reprodução assistida ser objeto de análise jurídica e bioética.
Considerando que este capítulo aborda a Resolução no 2.013/2.013 do Conselho Federal de Medicina, a qual estabelece normas éticas para a realização da reprodução assistida, oportuna a análise da mesma sob o enfoque bioético, para, no capítulo seguinte, referida análise ser feita no âmbito do Biodireito, mesclando os princípios bioéticos aos fundamentos do ordenamento jurídico pátrio.
Primeiramente, portanto, é importante esclarecer o que vem a ser Bioética. Segundo DINIZ (2010, p. 9),
“O termo foi empregado pela primeira vez pelo oncologista e biólogo norte-americano Van Rensselder Potter, da universidade de Wisconsin, em Madison, em sua obra Bioethics: bridge to future, publicada em 1971, num sentido ecológico, considerando-a “ciência da sobrevivência”. Para esse autor, a bioética seria então uma nova disciplina que recorreria às ciências biológicas para melhorar a qualidade de vida do ser humano, permitindo a participação do homem na evolução biológica e preservando a harmonia universal.”
Conforme explica a mesma autora, esse sentido é totalmente diverso do empregado na atualidade, qual seja, o de ética das ciências da vida. Assim, a mesma entende que
“A bioética seria, em sentido amplo, uma resposta da ética às novas situações oriundas da ciência no âmbito da saúde, ocupando-se não só dos problemas éticos, provocados pelas tecnociências biométicas e alusivos ao início e fim da vida humana, às pesquisas em seres humanos, às formas de eutanásia, à distanásia, às técnicas de engenharia genética, às terapias gênicas, aos métodos de reprodução assistida, à eugenia, à eleição do sexo do futuro descendente a ser concebido, à clonagem de seres humanos à maternidade substitutiva, à escolha do tempo para nascer ou morrer, à mudança de sexo em caso de transexualidade, à esterilização compulsória de deficientes físicos ou mentais, à utilização da tecnologia do DNA recombinante, às práticas laboratoriais de manipulação de agentes patogênicos etc., como também dos decorrentes da degradação do meio ambiente, da destruição do equilíbrio ecológico e do uso de armas químicas” (DINIZ, 2010, p.12).
A autora ressalta que a bioética precisa de um “paradigma de referência antropológico-moral: o valor supremo da pessoa humana, de sua vida, dignidade e liberdade ou autonomia, dentro da linguagem dos direitos humanos e em busca de uma qualidade de vida digna (…)” (DINIZ, 2010, p. 15).
Nesse contexto, a bioética se caracteriza pelo estudo deontológico, ou seja, dos deveres morais, do agir humano perante os conflitos trazidos pela biomedicina. Tais valores derivam de quatro princípios basilares, quais sejam, da beneficência, da autonomia, da justiça e da não-maleficência, sendo que os três primeiros foram elaborados em 1978 e constam do Relatório Belmont (Belmont Report), apresentado pela “Comissão Norte Americana para a Proteção da Pessoa Humana na Pesquisa Biomédica e Comportamental”. Já o princípio da não-maleficência foi acrescentado um ano depois.
A seguir, serão abordados os princípios que norteiam a Bioética, os quais são fundamentais para a discussão do tema ora proposto.
Quanto ao Princípio da Autonomia, DINIZ (2010, p. 14), explica que o mesmo
“Reconhece o domínio do paciente sobre a própria vida (corpo e mente) e o respeito à sua intimidade, restringindo, com isso, a intromissão alheia no mundo daquele que está sendo submetido a um tratamento. Considera o paciente capaz de autogovernar-se, ou seja, de fazer suas opções e agir sob a orientação dessas deliberações tomadas, devendo, por tal razão, ser tratado com autonomia. Aquele que tiver sua vontade reduzida deverá ser protegido. Autonomia seria a capacidade de atuar com conhecimento de causa e sem qualquer coação ou influência externa. Desse principio decorrem a exigência do consentimento livre e informado e a maneira de como tomar decisões de substituição quando uma pessoa for incompetente ou incapaz, ou seja, não tiver autonomia suficiente para realizar a ação de que se trate, por estar preso ou ter alguma deficiência mental”.
Com relação ao princípio da beneficência pode-se dizer que o mesmo tem sua origem no juramento de Hipócrates e prega o objetivo de que seja feito o bem do paciente. Segundo DINIZ (2010, p. 15),
“Requer o atendimento por parte do médico ou do geneticista aos mais importantes interesses das pessoas envolvidas nas práticas biomédicas ou médicas, para atingir seu bem-estar, evitando, na medida do possível, quaisquer danos. Baseia-se na tradição hipocrática de que o profissional de saúde, em particular o médico, só pode usar o tratamento para o bem do enfermo, segundo sua capacidade e juízo, e nunca para fazer o mal ou praticar injustiça. No que concerne a moléstias, devera ele criar na práxis médica o hábito de duas: auxiliar ou socorrer, sem prejudicar ou causar mal ou dano ao paciente”.
Em outras palavras, PESSINI e BARCHIFONTAINE (1997, p. 58)
“No principio da beneficiência, o Relatório Belmont rechaça claramente a ideia clássica de beneficiência como caridade e diz que a considera, de uma forma mais radical, uma obrigação. Neste sentido são formuladas duas regras como expressões complementares dos atos de beneficiência: a) não causar dano e b) maximizar os benefícios e minimizar os possíveis riscos”.
Como verdadeiro desdobramento do Princípio da Beneficência, o Princípio da Não-maleficência, determina que o profissional da área médica deve fazer o bem, sem, contudo, acarretar dano intencional ao paciente. Para PETRY (2005)
“Há duas formulações para o princípio da não-maleficência, uma positiva e outra negativa. No principialismo, assim como muitas vezes ocorre na ética, a forma negativa é predominante, pois o dever de não causar dano parece ter maior peso moral do que um imperativo de beneficência: deve-se primeiro prevenir um dano para, depois, promover um bem”.
Com relação ao Princípio da Justiça, GUERRA (2005, p. 10) explica que
“É o princípio que garante a relação equânime, justa e universal dos benefícios dos serviceos de saúde, significando, logo, eqüidade no tratamento, obrigando instituições de saúde e Governo, naquilo que concerne à organização e recursos à saúde. Segundo ele, deve haver uma distribuição justa e eqüitativa dos recursos técnicos e financeiros da atividade científica e dos serviços de saúde; mas ao que se deve somar uma necessária retidão na difusão de benesses e riscos, dentro das práticas científicas, sob justificativa de que “os iguais deverão ser tratados igualmente”.
Importante destacar que os princípios acima transcritos não devem ser utilizados de forma mecânica, mas levando em consideração as peculiaridades do caso concreto. Isso porque os mesmos não se excluem, são complementares, e devem ser objeto de ponderação na busca da melhor solução para os dilemas bioéticos.
4 ANÁLISE DA “PRODUÇÃO INDEPENdENTE” SOB A PERSPECTIVA DO BIODIREITO
Conforme abordado no primeiro capítulo, a família e, conseqüentemente, o Direito de Família, passaram por muitas transformações ao longo dos tempos. Paralelamente a isto, ocorreu a evolução alucinante da ciência, que colocou à disposição da sociedade várias técnicas de reprodução humana assistida, interferindo diretamente no instituto da filiação. Tal fato trouxe esperança para as pessoas que não podiam procriar em virtude de problemas de cunho reprodutivo.
Além disso, tais técnicas trouxeram a possibilidade de que pessoas sozinhas realizem seu sonho de maternidade ou paternidade, sem precisar de um parceiro para concretizá-lo.
Tal opção tem sido cada vez mais divulgada na atualidade, já que as mulheres, muito preocupadas com sua colocação no mercado de trabalho e aperfeiçoamento profissional, acabam deixando em segundo plano sua vida pessoal, inclusive a busca de um parceiro ideal para, juntos, construírem uma família.
Entretanto, estaria esta opção pela “produção independente” amparada pelo Direito brasileiro? Na tentativa de chegar-se a uma resposta para esta indagação, serão abordados adiante os direitos da pretensa mãe ou pai e os da criança a ser gerada. Após, será feita a ponderação desses direitos.
4.1 OS DIREITOS DOS PRETENSOS MÃE OU PAI
Os que defendem a “produção independente”, além de alegarem que a mesma é expressão da autonomia da vontade da mulher ou do homem que deseja ter um filho mesmo sem terem um parceiro, ressaltam que a família monoparental, formada por um dos genitores e sua prole, está prevista na Constituição Federal. Alegam, também, que a adoção pode ser deferida a uma pessoa sozinha, de modo que, quando efetivada, gerará uma família monoparental.
Neste sentido, DIAS (2006, p. 199-200) defende que
“De modo bastante freqüente, mulheres sozinhas que desejam engravidar fazem uso da inseminação artificial. A família monoparental proveniente de inseminação em mulheres solteiras, pelo fato de a criança já nascer sem pai, tem gerado opiniões controversas. É no mínimo preconceituosa a postura doutrinária que sustenta que a mulher solteira não deve fazer uso de método reprodutivo assexual, por se prestar a interesses egoísticos. Com não lhe é vedado o direito adotar, nada a impede de gerar o filho no próprio ventre. O reconhecimento da igualdade não admite negar a uma mulher o uso de técnicas de procriação assistida somente pelo fato de ser solteira. O planejamento familiar é direito constitucionalmente assegurado e não comporta limitações. (…) está comprovado que o filho não tem seu desenvolvimento prejudicado por ter sido gerado por inseminação artificial. O interesse da criança deve ser preponderante, mas isso não implicaria concluir que não possa a vir integrar família monoparental, desde que o genitor isolado forneça todas as condições necessárias para que o filho se desenvolva com dignidade e afeto”.
Considerando o primeiro argumento – o de que homem e mulheres sozinhos possuem autonomia reprodutiva – não se pode esquecer que nenhum direito é absoluto, devendo ser relativizado quando ferir direitos de terceiros. O próprio direito à reprodução pelo método natural tradicional vem sendo considerado como não absoluto. BRANCO (2006, p. 134-136) defende que pode existir situações em que
“(…) a decisão de conceber um filho encontra, sob o ponto de vista jurídico, alguma espécie de limite a partir do qual o exercício desse direito pode ser considerado abusivo e, como tal, tornar-se causa eficaz para a produção do dano moral, suficiente para determinar a responsabilização dos pais. (…)
Logo, não se pode aceitar em nosso sistema que o direito à procriação seja considerado como de natureza absoluta, como defendem alguns, ainda que busquem fundamento para tal assertiva no direito à intimidade ou ao próprio corpo (art. 5º, X, da CF). O limite para o exercício daquele direito está na assunção da responsabilidade pelo futuro do produto do ato reprodutivo, pois não se pode deixar de reconhecer o seu caráter transcendente, do qual resulta a formação de uma nova vida, de um indivíduo, cuja existência se destaca dos responsáveis por sua concepção.”
Quanto ao planejamento familiar, ao contrário do que afirma a autora acima citada, a Constituição Federal determina expressamente que o mesmo é de livre decisão do casal, observados o princípios da paternidade/maternidade responsáveis e a proteção da dignidade da criança a ser gerada.
Quanto à comparação da “produção independente” feita por mulher solteira à família monoparental adotiva, é fundamental destacar que nas ações de adoção o pretenso adotante passa por uma rigorosa análise, inclusive psicossocial, para que consiga seu objetivo, sendo preservado o melhor interesse da criança, o que não acontece nas “produções independentes”.
Ademais, pode-se verificar que a Constituição Federal, ao determinar que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, não estimula a existência de famílias monoparentais, mas as protege e confere direitos. Se assim não fosse, não poderiam desfrutar da impenhorabilidade do bem de família, por exemplo. Assim, o legislador constituinte buscou proteger a família monoparental assim formada em função de separação, divórcio ou de morte de um dos ascendentes.
Por fim, outro argumento é utilizado por aqueles que desejam uma “produção independente”: a Constituição Federal determina não ser ninguém obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão em virtude de lei, sendo certo que não há lei que vede expressamente tal conduta.
4.2 OS DIREITOS DA CRIANÇA A SER GERADA
A criança, por ser uma pessoa humana em desenvolvimento, tem proteção integral por parte do Estado. Seu melhor interesse sempre deverá ser buscado, daí a importância do princípio da paternidade/maternidade responsáveis. Assim, considerando que a função social da família é a proteção e a promoção da dignidade de seus membros, não há como negar que a criança é o membro da família que merece mais atenção.
Seja qual for a forma de constituição de uma família, à criança é devida assistência moral, material e intelectual.
Os princípios do melhor interesse da criança e o de sua proteção integral podem ser observados na Constituição Federal, no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). Um reflexo dessa necessária proteção especial da criança fez com que o pátrio poder – atual poder familiar – fosse considerado mais um pátrio dever, revolucionando o conceito daquele.
Para BARBOZA (1999, P. 140) pode-se “afirmar não ser mais possível qualquer leitura relativa à filiação, maternidade, paternidade, senão com as lentes da doutrina da proteção integral, tendo como objetivo único o de atender ao melhor interesse da criança”. A doutrina da proteção integral não só reafirmou o princípio do melhor interesse da criança como critério hermenêutico, ou seja, como critério para interpretação de uma norma, como também lhe conferiu natureza constitucional.
Quando se cogita a realização de uma “produção independente” seja por uma mulher ou homem, sozinhos, é notório que esta retira da criança seu direito à biparentalidade. Há imposição programada da monoparentalidade. Sob o ponto de vista jurídico, tal conduta poderia ser considerada abuso de direito: o pretenso pai ou mãe extrapola a seara de seus direitos e atinge os direitos do futuro filho.
Segundo determina o art. 187 do Código Civil, o abuso de direito é considerado tipo de ato ilícito para fins de reparação civil, bastando a demonstração entre a conduta danosa praticada pelo ofensor e o dano experimentado pela vítima. Segundo ALVES (2006, p. 487),
“O abuso de direito nas relações familiares, além de consistir um vício do direito, um direito desviado das cláusulas gerais de conduta, se constitui, sobretudo, em indicativo de ilicitude revestida de maior gravidade, por atentar contra a dignidade constitucional da família, onde de conseqüência o controle e a reprimenda judicial deverão refletir e formular soluções mais adequadas, com novos métodos de avaliação, inclusive profiláticas e preventivas.”
4.3 O CONFLITO ENTRE OS DIREITOS DOS PRETENSOS MÃE OU PAI E DA CRIANÇA A SER GERADA
Conforme demonstram os sub-capítulos anteriores, no caso das “produções independentes” os direitos dos pretensos pai ou mãe conflitam com os da criança a ser gerada. Há conflito entre dignidades de pessoas distintas.
Explicando este tipo de confronto, NUNES (2002, p. 49-50) ressalta que, embora a dignidade nasça com a pessoa, sendo inerente à sua essência, há que se ter em mente que nenhum indivíduo é isolado: ele nasce, cresce e vive no meio social. Nesse contexto sua dignidade ganha – ou, pelo menos, tem o direito de ganhar – um acréscimo de dignidade. Ele nasce com integridade física e psíquica, mas chega um momento de seu desenvolvimento que seu pensamento tem de ser respeitado, suas ações e seu comportamento – isto é, sua liberdade – sua imagem, sua intimidade, sua consciência – religiosa, científica, espiritual – etc., sendo certo afirmar que todos esses aspectos compõem sua dignidade. Precisa-se, portanto, incorporar no conceito de dignidade uma qualidade social como limite à possibilidade de garantia. Ou seja, a dignidade só é garantia ilimitada se não ferir outra.
Assim, quando a dignidade de uma pessoa entra em confronto com a de outra, faz-se necessária a ponderação dos direitos conflitantes, cada um representando um subprincípio componente do princípio maior da dignidade da pessoa humana.
A atividade de ponderação entre princípios é marcada pela busca da proporcionalidade e da razoabilidade.
Segundo afirma FARIAS, é preciso realçar os matizes da técnica de ponderação de interesses como importante critério de afirmação dos valores constitucionais e da própria efetividade da norma maior. É que a norma constitucional (normas-regra e normas-princípio) reclama efetividade, e “a técnica de ponderação de interesses (ou proporcionalidade) apresenta-se como mecanismo para materializar a legalidade constitucional” (2006, p. 141).
ALEXY (apud ROTHENBURG, 2003, p. 33) ensina que quando houver conflito entre princípios, um deles
“(…) tem que ceder ante o outro. Porém isto não significa declarar inválido o princípio afastado nem que no princípio afastado tenha que se introduzir uma cláusula de exceção. O que sucede, mais exatamente, é que, sob certas circunstâncias, um dos princípios precede o outro. Sob outras circunstâncias, a questão da precedência pode ser solucionada de maneira inversa. É isto o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm diferente peso e que prevalece o princípio com maior peso. Os conflitos de regras resolvem-se na dimensão da validade; a colisão de princípios – como só podem entrar em colisão princípios válidos – tem lugar para além da dimensão da validade, na dimensão do peso.”
Assim, colocando na balança, de um lado, a autonomia reprodutiva da mulher ou do homem sozinhos e, de outro, o direito do filho de não ser privado propositalmente da biparentalidade, parece que este tende a prevalecer, levando-se em conta a argumentação feita nos subcapítulos anteriores.
É importante ressaltar que o direito de procriar não é de exercício individual, pois tanto a mulher quanto o homem precisam de gametas do sexo oposto, fornecidos por doador(a), quando pretende ter uma “produção independente”. Diferentemente, o direito de ter um filho pode ser exercido individualmente, através da concessão judicial da adoção. Nota-se que, neste caso, há uma equipe multidisciplinar para garantir que a adoção resguarda o melhor interesse da criança, com vistas à efetivação da exigência da paternidade/maternidade responsável, o que não ocorre nas clínicas de realização as técnicas de reprodução assistida.
Trazendo à baila os princípios bioéticos já explicitados no Capítulo 3, pode-se chegar à conclusão de que na “produção independente”, como não há análise sobre a verificação do melhor interesse da criança, pode ser que o mesmo seja negligenciado, o que deve ser repelido em virtude da garantia constitucional de proteção integral à criança. Assim, pode ser que haja um benefício aos pretensos pai ou mãe, mas uma desvantagem para a criança. Desta forma, o princípio da Não-maleficência (ao filho) deve se sobrepor ao da Beneficência (aos que querem ter um filho).
Quanto ao princípio bioético da Autonomia, apenas o homem ou a mulher que desejam a “produção independente” poderiam usufruir do mesmo, uma vez que ao futuro filho, por não existir, ainda, não é dada a chance de se manifestar sobre se prefere ter apenas um genitor ou não. Assim, a imposição programada da monoparentalidade, expressão da autonomia individual, deve ser limitada por restringir direitos do filho.
Por fim, evocando-se o princípio bioético da Justiça, o qual diz que os benefícios da Medicina devem ser distribuídos de forma equânime, considerando as peculiaridades de cada um na busca da efetivação de uma igualdade material, conclui-se que a Resolução no 2.013/2.013 do Conselho Federal de Medicina viola tal prescrição por não tratar de forma equânime homem e mulher que desejam recorrer à “produção independente”, já que garante esta possibilidade somente à mulher sozinha que pretende ter um filho.
Não se defende que homem e mulher possam recorrer às “produções independentes”, mas, caso este venha a ser o posicionamento do Direito pátrio sobre a temática – o que não se espera – tal opção teria que ser garantida a ambos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Pai e mãe – ouro de mina”.Djavan
No contexto das técnicas de reprodução humana assistida, as chamadas “produções independentes”, realizadas por pessoas sozinhas que desejam exercer a paternidade/maternidade, caracterizam-se por impor à criança a ser gerada uma monoparentalidade programada. Diante de todo o exposto no desenvolvimento deste trabalho, percebeu-se que daí deriva um conflito entre direitos dos pretensos pai ou mãe e os da criança a ser gerada.
Conforme restou demonstrado, o direito de procriar encontra limites na dignidade da criança que será gerada, bem como na garantia de proteção de seu melhor interesse.
Desta forma, concluiu-se serem as “produções independentes” ilegítimas sob as perspectivas jurídica e bioética e, portanto, sob o prisma do Biodireito.
Embora não tenha sido abordado neste estudo, importante dizer, também, a título de informação, que a conclusão aqui chegada vai ao encontro do Projeto de Lei 90/99 e seus substitutivos que só permitem a utilização das técnicas de reprodução assistida para tratamentos de problemas de saúde reprodutiva, bem como para prevenção e tratamento de doenças genéticas ou hereditárias. Sendo assim, a “produção independente” não deveria ser realizada, por afastar-se dos objetivos que legitimam o recurso àquelas técnicas.
Informações Sobre os Autores
Laira Carone Rachid Domith
Mestre em Direito Público e Evolução Social pela UNESA, Especialista em Direito da Saúde pela Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora (Suprema), Professora de Biodireito e Direito de Família do curso de Direito da Faculdade Doctum de Juiz de Fora
Natalia Carone Rachid
Graduada em Direito pelo Instituto Vianna Júnior