Sumário: Introdução.1) Da Ação Civil Pública.1.1. conceito, objeto e abrangência. 1.2. dos interesses difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos; 1.3. da legitimidade ativa; 2) Da Ação Civil Pública em Matéria Tributária. 2.1. posicionamento doutrinário e jurisprudencial pela impossibilidade da ação civil pública em matéria tributária; 2.2. a medida provisória nº 2.180-35, de 24.08.2001; 2.3. a doutrina favorável; 2.4. uma nova visão; Conclusão.
Analisa a possibilidade da ação civil pública em matéria tributária após o advento da medida provisória n.º 2180-35, de 24.08.2001, que acrescentou o parágrafo único ao art. 1º da Lei 7.347/85.
Introdução
A ação civil pública tem se mostrado como meio adequado para a tutela dos interesses coletivos em sentido amplo, contribuindo para o efetivo acesso à justiça, reflexo de uma preocupação do legislador constituinte em trazer ao seio do Judiciário as funções institucionais do Ministério Público, consagrando, ainda, os princípios da economia e celeridade processuais.
A utilização de tal tutela coletiva na seara tributária apresenta divergências, à medida que não há entre doutrina e jurisprudência consenso a respeito do seu cabimento.
Com o advento da medida provisória n.º 2180-35, de 24.08.2001, que acrescentou o parágrafo único ao art. 1º da Lei 7.347/85, vedando a possibilidade da ação civil pública em matéria tributária, elevaram-se as discussões a respeito.
Neste contexto, exsurge o presente estudo, apresentando os aspectos gerais da ação civil pública, tais como conceito, objeto, abrangência e legitimidade, e argumentando sua utilização na proteção e controle do patrimônio público, quando considerado interesse difuso, com a possibilidade também da defesa do direito dos contribuintes, tendo como legitimado ativo para a propositura da ação: o Ministério Público.
Por fim, feita essa abordagem global dos principais aspectos do trabalho a serem desenvolvidos, para uma visualização prévia do seu conjunto, passaremos a análise dos tópicos específicos.
1) Da Ação Civil Pública
1.1. conceito, objeto e abrangência.
A ação civil pública, prevista no direito pátrio na Lei n.º 7.347, de 24 de julho de 1985, é um instituto processual para a tutela de interesses não penais e coletivos em sentido amplo, tendo como questões as decorrentes de danos “morais e patrimoniais causados: I – ao meio ambiente; II – ao consumidor; III – à ordem urbanística; IV – a qualquer outro interesse difuso ou coletivo; V – por infração da ordem econômica e da economia popular” (art. 1º, da Lei n.º 7.347/85, com as alterações advindas pela Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990; pela Lei n.º 10.257, de 10 de julho de 2001; pela Medida Provisória n.º 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, em vigor conforme art. 2º, da EC nº 32/2001).
Consoante magistério de PEDRO DA SILVA DINAMARCO:
“(…) ela pode ser entendida como um novo mecanismo processual que pode ser acionado pelas pessoas e entes expressamente elencados pela Lei n.º 7.347/85, de 24 de julho de 1985, visando à proteção de interesses grupais (ou seja, difusos, coletivos e individuais homogêneos), seja porque a tutela jurisdicional individual seria (quase) impossível, seja porque ela seria antieconômica e menos eficaz.” (in Ação Civil Pública, São Paulo, Saraiva, 2000, p. 16).
Diversos são os doutrinadores que criticam a expressão “ação civil pública”, como JOSÉ MARCELO MENEZES VIGLIAR, que traça duas principais impropriedades. A primeira, porque “não se deve adjetivar o instituto jurídico-processual denominado ação”. A segunda, pois, na realidade, “toda ação é pública” (in Ação Civil Pública, São Paulo, Editora Atlas S/A, 2001, pp. 28/29). Outros entendem, ainda, como HUGO NIGRO MAZZILLI, que “se o autor da ação foi o Ministério Público, teremos sempre uma ação civil pública; se o autor da ação for qualquer co-legitimado que não o próprio órgão ministerial, mais próprio será chamar a ação de coletiva” (in A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses, São Paulo, Saraiva, 2000, p. 61). Na realidade, o que se objetivou com a expressão “ação civil pública” foi distingui-la da ação penal pública. De fato, o projeto final aprovado pelas Casas Legislativas teve como origem o anteprojeto do Ministério Público do Estado de São Paulo, que se baseou em sua Lei Orgânica Nacional. Desta forma, tendo como escopo a ação civil pública a tutela de interesses não penais, e considerando que o Ministério Público também teria legitimidade para a sua propositura, a ação civil pública, para o referido anteprojeto, seria a ação não penal proposta pelo Ministério Público. De todo modo, a terminologia “ação civil pública” já se tornou consagrada pela praxe forense.
A ação civil pública destina-se ao interesse público, este não no sentido restrito do termo (interesse público secundário), onde o Estado é o seu titular enquanto administração, mas em sua acepção ampla (interesse público primário), alcançando, assim, a coletividade como um todo. Vale dizer: exatamente porque se percebeu a existência de uma categoria de interesses que pairavam acima dos interesses jurídicos individuais e do próprio interesse público, este na titularidade do Estado enquanto administração (interesse público secundário), é que se verificou a necessidade da criação de uma tutela jurisdicional específica, cuja finalidade seria a proteção daqueles interesses próprios da coletividade (interesse público primário), da sociedade em geral, que passaram a ser designados como metaindividuais, transindividuais, grupais, ou, simplesmente, interesses coletivos em sentido amplo.
Cuidando sobre o tema, CAIO MÁRCIO LOUREIRO bem elucida o assunto:
“Na realidade, os interesses coletivos ‘lato sensu’ nada têm a ver com o interesse público do Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno (União, Estados, Municípios e Distrito Federal), ou seja, que tem como titular o Estado. Mas enquanto encarados como preponderantes ao bem geral, como de fato o são, não há como negar que também são interesses públicos. Outrossim, não se duvida da existência de características próprias dos interesses coletivos ‘lato sensu’. Daí porque, mencionou-se como intermediários ao interesse privado e público. A propósito, há na doutrina, como aponta José Marcelo Menezes Vigliar, dois enfoques empregados ao interesse público, podendo ser primário (referindo-se ao interesse do bem geral, interesse da sociedade ou da coletividade como um todo), como secundário (quando levado em conta sob o ponto de vista da Administração, ou melhor, da maneira como os órgãos da estrutura estatal observam o interesse público). Razão pela qual é possível ocorrer que o interesse efetivo da comunidade não venha a coincidir com o interesse da Administração, apesar de ambos serem interesses públicos. Em verdade, o que inquietou a doutrina foi a dificuldade de promover a defesa em juízo dos interesses coletivos ‘lato sensu’, ou porque não se amoldavam aos tradicionais parâmetros de privado ou público, ou porque, não se amoldando nesta dicotomia do privado e do público, não há como aferir a legitimidade para agir, posto que, nessa circunstância, não se encaixam nos interesses de determinado indivíduo, tampouco do próprio Estado.” (in Ação Civil Pública e o Acesso à Justiça, São Paulo, Editora Método, 2004, pp. 127/128, destacou-se)
1.2. dos interesses difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos
No Brasil, não foi só com o advento da ação civil pública, que os interesses coletivos em sentido amplo passaram a ser tutelados. A Lei da Ação Popular (Lei n.º 4.717, de 29 de junho de 1965) pode ser considerada a primeira lei brasileira a tratar da matéria, concedendo a legitimidade ao cidadão para a defesa de certas ações ou omissões do Poder Público. Também, a Lei da Política Nacional do Meio-Ambiente (a Lei n.º 6.938, de 31 de agosto de 1981), tomando como foco o meio-ambiente, autorizou sua defesa pelo Ministério Público. Mas, o maior impacto, sem sombra de qualquer dúvida, à época, veio com a Lei n.º 7.347, de 24 de julho de 1985, que, instituindo a ação civil pública, traçou uma ampliação no campo de sua aplicação, bem como às pessoas legitimadas ativamente para tanto.
Foi com o Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990) que a Lei n.º 7.347/85 teve a sua mais relevante alteração, clareando para o cenário jurídico nacional as espécies de interesses coletivos em sentido amplo: os difusos, os coletivos em sentido estrito e os individuais homogêneos, bem como autorizando a utilização da ação civil pública, além das hipóteses legais até então existentes na Lei n.º 7.347/85, “para qualquer outro interesse difuso ou coletivo” (art. 110, do Código de Defesa do Consumidor), e para os individuais homogêneos em favor de consumidores (arts. 91 e seguintes, do Código de Defesa do Consumidor).
Assim, os interesses coletivos em sentido amplo, diante do Código de Defesa do Consumidor, passaram a ser compreendidos como:
– interesses difusos: aqueles de caráter indivisível, cujos titulares sejam pessoas indeterminadas ou indetermináveis e ligadas por circunstância de fato (parágrafo único, inciso I, do art. 81, do Código de Defesa do Consumidor: “interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.”);
– interesses coletivos em sentido estrito: aqueles de caráter indivisível, que compreendem a um grupo, categoria ou classe de indivíduos, estes determinados ou determináveis e ligados por uma relação jurídica-base preexistente à própria lesão ou ameaça de lesão (parágrafo único, inciso II, do art. 81, do Código de Defesa do Consumidor: “interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica-base.”);
– interesses individuais homogêneos: aqueles de caráter divisível, cujos titulares sejam plenamente determinados ou determináveis e vinculados por uma relação jurídica-base que exsurge após a lesão (parágrafo único, inciso III, do art. 81, do Código de Defesa do Consumidor: “III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.”)
Na verdade, nada impede que em uma mesma situação haja todas as espécies de interesses. No caso em concreto, vai depender da pretensão deduzida em juízo para se determinar a espécie de interesse que se pretende tutelar. Na hipótese exemplificada por CAIO MÁRCIO LOUREIRO (in ob. cit., pp. 150/151): uma fábrica que joga poluentes em um rio, no qual, às suas margens, se encontra instalada uma associação de degustadores de vinho, e uma favela, onde crianças brincam no rio e são afetadas pela poluição. Nesta hipótese, é possível identificar o interesse difuso (meio-ambiente, com a cessação da poluição e reconstituição da vida do rio); o interesse coletivo em sentido estrito (a associação de degustadores de vinho, com a cessação do mau cheiro, para que o interesse do grupo seja protegido); o interesse individual homogêneo (as pessoas que ficaram contaminadas e ficaram doentes, com o pedido de indenização).
Vê-se, assim, que, além dos critérios de diferenciação já acima citados, os interesses difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos são distinguidos pelo tipo de tutela pleiteada. Com efeito, o art. 3º, da Lei n.º 7.347/85, dispõe que “A ação civil poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer”. Nestas condições, o pedido de proteção aos interesses difusos é essencialmente inibitório ou preventivo, ou seja, consistirá num fazer ou, mais freqüentemente, num não-fazer. Do mesmo modo, o pedido de proteção aos interesses coletivos em sentido estrito visará num fazer ou um não-fazer, mas aqui será mais usual a obrigação de fazer. Para os individuais homogêneos, a obrigação será necessariamente pecuniária.
Em específico aos interesses individuais homogêneos, discute-se muito na doutrina e na jurisprudência se a defesa de tais interesses poderia dar-se em qualquer ação civil pública, ainda que não diga respeito ao consumidor. HELY LOPES MEIRELLES, ARNOLDO WALD e HUMBERTO THEDORO JÚNIOR são contra a extensão. Para estes doutrinadores, como o Código de Defesa do Consumidor é quem definiu os interesses coletivos em sentido amplo, classificando-os em interesses difusos, coletivos em sentido estrito e em individuais homogêneos, apenas arrolando, em seu art. 110, os interesses difusos e coletivos em sentido estrito para ação civil pública, a vontade foi a de não estender a proteção de todo e qualquer agrupamento de direitos homogêneos. Também, para tais doutrinadores, o art. 21, da Lei n.º 7.347/85, ao aludir “no que for cabível”, restringiu a atuação da ação civil pública para outras questões que não fossem os individuais homogêneos em favor dos consumidores: “Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor.”
A principal importância da ação civil pública, como a todo instituto voltado à defesa da tutela coletiva, afora o desafogamento do Poder Judiciário, já que um único processo resolve problemas que seriam diluídos em milhares deles, o prestígio da justiça, evitando decisões diametralmente opostas sejam proferidas para situações absolutamente idênticas, é a sua conscientização política. Isto porque, “sem a propositura da ação civil pública, certamente muitas pessoas, por conformismo ou por receio dos custos de um processo, ficam sem a tutela jurisdicional, apesar de conservarem dentro de si todos esses anseios, angústias e insatisfações. Com isso, a tutela coletiva proporcionou um novo canal de acesso ao Judiciário, dando efetividade à garantia da inafastabilidade da tutela jurisdicional.” (PEDRO DA SILVA DINAMARCO, in ob. cit., pp. 43/44)
1.3. da legitimidade ativa
Pelo art. 5º, da Lei n.º 7.347/85, vários são os entes legitimados ativamente para a propositura da ação civil pública, dentre os quais – e quem tem maior enfoque – está o Ministério Público (além da União, Estados, Municípios, autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista e associações, estas últimas desde que preenchidos certos requisitos legais).
Isto se deve pelo fato do Ministério Público, com a Carta Magna de 1988, em seu art. 129, ter ganhado um papel decisivo, obtendo funções institucionais relevantes em prol da coletividade, o que, a propósito, melhor será analisado no decorrer deste trabalho.
Porém, o Ministério Público não pode tudo. É que nem todo interesse coletivo em sentido amplo estará o parquet autorizado a agir. A doutrina e a jurisprudência majoritárias entendem que para o interesse difuso, o Ministério Público sempre poderá atuar, mas nem sempre o será para o interesse coletivo em sentido estrito ou para o individual homogêneo. Para tais interesses, dependerá de análise do caso em concreto, se relevante ao ponto da necessidade de intervenção do próprio Ministério Público.
A lição é de JOSÉ MARCELO MENEZES VIGLIAR:
“Quanto à legitimação do Ministério Público há as seguintes divergências em sede doutrinária, centradas em sua legitimação (…): (a) a quem entenda que o Ministério Público estará sempre legitimado para a defesa de quaisquer dos interesses transindividuais (difusos, coletivos ou individuais homogêneos); (b) há quem entenda que o Ministério Público sempre estará legitimado somente para a defesa dos interesses difusos e dos coletivos, porque os individuais homogêneos não teriam sido disciplinados pelo art. 129, inciso III, do Texto Supremo, em que algumas de suas funções institucionais acham-se elencadas; (c) há quem reconheça a legitimação para a defesa dos interesses individuais homogêneos, pelo Ministério Público, apresentando algumas restrições. É a corrente que conta com grande simpatia da doutrina, apresentando adeptos da envergadura de Kazuo Watanabe, que também a restringe aos interesses coletivos. Essa é a posição dominante do Ministério Público de São Paulo.” (in ob. cit., pp. 85, destacou-se)
Em síntese, para os coletivos em sentido estrito e os individuais homogêneos, o Ministério Público teria legitimidade para o ajuizamento da ação civil pública se os interesses nela veiculados fossem efetivamente compatíveis com sua destinação institucional prevista no art. 127, da Constituição Federal de 1988:
“Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.”
2) Da Ação Civil Pública em Matéria Tributária
Após o estudo até o momento efetuado, pergunta-se: a ação civil pública é cabível, em se tratando de matéria tributária?
2.1. posicionamento doutrinário e jurisprudencial pela impossibilidade da ação civil pública em matéria tributária
Lamentavelmente, a tendência atual, seja na doutrina, seja na jurisprudência, é considerar inviável a utilização da ação civil pública, tendo como objeto a defesa dos contribuintes, para o não recolhimento de tributos, sob o argumento de sua ilegalidade ou inconstitucionalidade.
Os principais argumentos seriam:
– cuidar-se-ia de um interesse individual homogêneo, e, desta forma, impossível seria o emprego da ação civil pública. É que a propositura para a ação civil pública, em caso de interesse individual homogêneo, seria somente em prol de consumidores. Consumidor e contribuinte são figuras distintas que não se confundem. Este, por exemplo, é o entendimento de OSMAR TOGNOLO: “(…) o Estado, quando exige tributos da sociedade para consecução de seus fins, não se qualifica como fornecedor de qualquer bem produzido ou a ser produzido ou de serviço prestado ou a ser prestado. Ele está, apenas, exercendo seu poder que lhe é inerente e que a Constituição lhe assegura, qual seja, o de instituir, pelos mecanismos legais, fontes compulsórias de abastecimento dos cofres públicos. Visualizar relação de consumo no vínculo jurídico-tributário que, em decorrência de lei – o tributo, objeto dessa relação, é obrigação ‘ex lege’ – se estabelece entre o Estado e o cidadão, representa inegável inversão de conceitos do Direito Tributário e das normas de defesa do consumidor. Assim, ausente qualquer relação de consumo no ato estatal de exigir tributos e, no da sociedade, de pagá-los, não podem ser confundidas as figuras de consumidor, destinatário da proteção a que se refere a Lei nº 8.087/90, e de contribuinte, sujeito passivo da relação tributária e responsável pelo pagamento do tributo. Não havendo relação de consumo e inexistente, via de conseqüência, o consumidor, incabível a invocação do inc. II, art. 1º, da Lei nº 7.347/85 para justificar a propositura de ACP em matéria tributária.” (Ação Civil Pública em Matéria Tributária, in Revista de Estudos Tributários nº 10, NOV-DEZ/1999, p. 155);
– para outros, não seria sequer interesse homogêneo, mas sim um direito exclusivamente individual, disponível (cabível de renúncia) e divisível, afastando, por completo, a possibilidade da via da ação civil pública. É a posição, por exemplo, de CÉLIO ARMANDO JANCZESKI: “O questionamento de tributos na esfera judicial, trata-se de exercício de direito individual disponível, não albergando processualmente pela via da ação civil pública. O direito individual e disponível em questão, não é do Ministério Público ou da associação, mas do contribuinte, que de acordo com sua vontade poderá ou não querer discutir o tributo dito como indevido. (…) O direito individual do contribuinte, disponível e divisível, não pode ser tido como homogêneo, ‘na medida em que níveis diferentes de tributação (tributos progressivos, seletivos ou proporcionais), tornam sempre, em qualquer espaço geográfico ou período histórico, a tributação heterogênea, mesmo que à luz apenas da proporcionalidade da imposição.” (A Legitimidade Ativa para a Ação Civil Pública em Matéria Tributária, in Juris Síntese nº 34, MAR-ABR/2002);
– a ação civil pública não poderia funcionar como verdadeira ação direta de inconstitucionalidade. É o pensamento, por exemplo, de VINÍCIUS CALDAS DA GAMA E ABREU: “Uma das grandes impropriedades do uso da ação civil pública ocorre quando ela usurpa funções inerentes à ação direta de inconstitucionalidade. E é exatamente o que acontece quando a ação civil pública é usada para afastar cobrança de tributo inconstitucional. (…) A decisão que julga a ação civil pública também possui efeitos ‘erga omnes’. Desse modo, a ação civil pública que busca a declaração do direito dos contribuintes a não recolher um tributo por ser ele inconstitucional estaria, disfarçadamente, visando a declaração da inconstitucionalidade da lei que instituiu o aludido tributo, por juízo monocrático, com efeitos ‘erga omnes’. Tal fato a caracterizaria como uma espécie de substituta da ação direta de inconstitucionalidade, configurando uma óbvia e ilegítima usurpação da competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal.” (Ação Civil Pública em Matéria Tributária, in http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3610)
Ademais, dentre os autores que não admitem o uso da ação civil pública há nomes de peso, tais como FRANCISCO CONTE e IVES GANDRA DA SILVA MARTINS.
Também, a jurisprudência encontra-se inclinada a afastar a possibilidade da ação civil pública em matéria tributária.
No Superior Tribunal de Justiça, ambas as turmas da primeira seção, a quem cabe o julgamento de questões relativas a tributos de modo geral, já tornaram remansosa a posição quanto ao tema em apreço, proclamando a tese de ilegitimidade do Ministério Público para pleitear, em sede de ação civil pública, a declaração de inconstitucionalidade de lei ou a defesa de direitos divisíveis para impedir a cobrança de tributos.
A Revista Dialética de Direito Tributário enumera diversos julgamentos a respeito:
– nº 02/155: Ação civil pública – IPTU – defesa de contribuintes – ilegitimidade do Ministério Público (STJ – 1ª Turma);
– nº 34/199: Ação civil pública – matéria tributária – distinção entre consumidores e contribuintes (STJ – 2ª Turma);
– nº 34/199: Ação civil pública – substituição de ação direta de inconstitucionalidade – impossibilidade (STJ – 1ª Turma);
– nº 37/203: Ação civil pública – IPTU – defesa de contribuintes – ilegitimidade do Ministério Público (STJ – 1ª Turma);
– nº 40/203: Ação civil pública em matéria tributária – impossibilidade (STJ – 2ª Turma);
– nº 53/203: Ação civil pública – relação tributária – ilegitimidade ativa do Ministério Público (STJ – 1ª Turma);
– nº 58/186: Ação civil pública – direitos individuais disponíveis – taxa de iluminação pública – ilegitimidade do Ministério Público (STJ – 1ª Turma);
– nº 67/204: Ação civil pública – meio inadequado a obstar cobrança de taxas (STJ – 2ª Turma);
– nº 87/204: Ação civil pública – questão de natureza tributária – ilegitimidade do Ministério Público (STJ – 1ª Turma).
No site do Superior Tribunal de Justiça, há inúmeros julgados, destacando-se os mais recentes:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TRIBUTOS MUNICIPAIS. COBRANÇA RELAÇÃO JURÍDICO-TRIBUTÁRIA ESTABELECIDA ENTRE A FAZENDA MUNICIPAL E O CONTRIBUINTE. NÃO APLICABILIDADE, AO CASO, DO ART. 21, DA LEI Nº 7.347/85, POSTO QUE A REFERIDA AÇÃO PRESTA-SE À PROTEÇÃO DOS INTERESSES E DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS, QUANDO OS SEUS TITULARES SOFREREM DANOS NA CONDIÇÃO DE CONSUMIDORES. ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO RECONHECIDA. PRECEDENTES DESTA CORTE. 1 – Agravo regimental contra decisão que proveu o recurso especial da parte agravada, ao entendimento de que o Ministério Público é parte ativa ilegítima para ajuizar ação civil pública para obstar a cobrança de tributos municipais (taxas) instituídos por Lei Municipal. 2 – A Ação Civil Pública não se presta como meio adequado a obstar a cobrança de tributos instituídos por Lei Municipal, face ao fato de que a relação jurídica estabelecida desenvolve-se entre a Fazenda Municipal e o contribuinte, não revestindo este último o conceito de consumidor constante do art. 21, da Lei nº 7.347/85, a autorizar o uso da referida ação. 3 – Os interesses e direitos individuais homogêneos, de que trata o art. 21, da Lei nº 7.347/85, somente poderão ser tutelados, pela via da ação coletiva, quando os seus titulares sofrerem danos na condição de consumidores. 4 – A ação civil pública não pode servir de meio para a declaração, com efeito ‘erga omnes’, de inconstitucionalidade de lei. 5 – Ilegitimidade ativa do Ministério Público reconhecida. Precedentes desta Casa Julgadora. 6. Agravo regimental não provido.” (1ª Turma do STJ, AgRg no REsp. n. 539399 – ES, julg. em 14.10.2003, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, destacou-se)
“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TAXA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA. ILEGITIMIDADE ATIVA. MINISTÉRIO PÚBLICO. 1 – O Ministério Público não tem legitimidade para promover ação civil pública com o objetivo de impedir a cobrança de tributos na defesa de contribuintes, pois seus interesses são divisíveis, disponíveis e individualizáveis, oriundos de relações jurídicas assemelhadas, mas distintas entre si. Contribuintes não são consumidores, não havendo como se vislumbrar sua equiparação aos portadores de direitos difusos ou coletivos. 2 – Recurso improvido.” (2ª Turma do STJ, REsp. n. 82461 – MG, julg. em 03.08.2004, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, destacou-se)
No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que o Ministério Público não tem legitimidade para aforar ação civil pública para o fim de impugnar a cobrança de tributos ou para pleitear a sua restituição, alegando não haver, entre o sujeito ativo (poder público) e o sujeito passivo (contribuinte) relação de consumo:
“CONSTITUCIONAL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – IMPOSTOS – IPTU – MINISTÉRIO PÚBLICO – LEGITIMIDADE – Lei nº 7.374, de 1985, art. 1º, II, e art. 21, com a redação do art. 117 da Lei nº 8.078, de 1990 (Código do Consumidor); Lei nº 8.625, de 1993, art. 25. C.F., artigos 127 e 129, III. I – A ação civil pública presta-se a defesa de direitos individuais homogêneos, legitimado o Ministério Público para aforá-la, quando os titulares daqueles interesses ou direitos estiverem na situação ou na condição de consumidores, ou quando houver uma relação de consumo. Lei nº 7.374/85, art. 1º, II, e art. 21, com a redação do art. 117 da Lei nº 8.078/90 (Código do Consumidor); Lei nº 8.625, de 1993, art. 25. II – Certos direitos individuais homogêneos podem ser classificados como interesses ou direitos coletivos, ou identificar-se com interesses sociais e individuais indisponíveis. Nesses casos, a ação civil pública presta-se a defesa dos mesmos, legitimado o Ministério Público para a causa. C.F., art. 127, caput, e art. 129, III. III – O Ministério Público não tem legitimidade para aforar ação civil pública para o fim de impugnar a cobrança e pleitear a restituição de imposto 3/4 no caso o IPTU 3/4 pago indevidamente, nem essa ação seria cabível, dado que, tratando-se de tributos, não há, entre o sujeito ativo (poder público) e o sujeito passivo (contribuinte) uma relação de consumo (Lei nº 7.374/85, art. 1º, II, art. 21, redação do art. 117 da Lei nº 8.078/90 (Código do Consumidor); Lei nº 8.625/93, art. 25, IV; C.F., art. 129, III), nem seria possível identificar o direito do contribuinte com ‘interesses sociais e individuais indisponíveis’ (C.F., art. 127, ‘caput’). IV. – RE. não conhecido.” (RE. n. 195056 – PR, DJU de 30.05.2003, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, destacou-se)
2.2. a medida provisória nº 2.180-35, de 24.08.2001
Talvez, na tentativa de por fim a controvérsia (que, na realidade, ainda permanece intensa, ao menos doutrinariamente, como no item a seguir será esmiuçado), a Medida Provisória nº 2.180-35, de 24.08.2001, acrescentando parágrafo único ao art. 1º, da Lei n.º 7.347/85, vedou a possibilidade de propositura de ação civil pública em assunto que envolva tributos:
“Art. 1º (…)”.
(…)
Parágrafo único. Não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados.”
Em primeiro, há que se dispor que a Medida Provisória em tela continua em vigor, uma vez que o art. 2º, da EC n.º 32/2001, estabeleceu que as medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação da emenda continuam em vigor até que a medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional.
Em segundo, elucida-se que a Medida Provisória teve intenção eminentemente política, eis que, à época de sua edição, estava muito em voga a discussão a respeito do FGTS. Ou seja, o intuito do Governo Federal foi de impedir o ajuizamento de tutelas coletivas que fossem voltadas contra ele mesmo:
“O que faz o Governo Federal temer a ação civil pública e baixar uma tal vedação e estancar o acesso coletivo à Justiça? A resposta à primeira e à última destas questões, fica lançada, não está, ao menos em um primeiro plano, na vedação da ação civil pública tributária. Ela está muito mais voltada às ações civis públicas que versem sobre contribuições previdenciárias (‘v.g.’ INSS), FGTS e ‘outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados. (In)feliz coincidência: justamente em maio deste ano, teve início no Supremo Tribunal Federal, o julgamento do Recurso Extraordinário n. 226.855 em que se discute, fundamentalmente, a correção monetária dos depósitos do FGTS correspondente a diversos planos econômicos (Bresser, de julho de 1997; Verão, de fevereiro de 1989; Collor I, de março de 1990 e Collor II, de fevereiro de 1991). E foi em maio que se jurou a ação civil pública de morte pela primeira vez. A expectativa é que, em alguma medida, o Supremo Tribunal Federal entenda cabível a correção monetária do Fundo naqueles ou em alguns períodos, reconhecendo, assim, a ilegitimidade dos expurgos inflacionários declarados à época. Dados oficiais afirmam que uma ‘derrota’ do Governo perante o Supremo Tribunal Federal nestes casos significará uma perda de pouco mais de R$ 53 bilhões. Embora a magnitude destes valores tenha provocado reações e discordâncias as mais diversas, inclusive quanto à exatidão dos números apresentados, não é menos verdade que ‘nisto’ repousa a urgência que fundamentou a edição da Medida Provisória.” (CASSIO SCARPINELLA BUENO, in Réquiem para a Ação Civil Pública, retirado de: http://www.saraivajur.com.br)
Em terceiro, diversos são os doutrinadores que discutem sobre a constitucionalidade desta medida. É que restou por impedir o acesso coletivo à jurisdição, que é uma garantia constitucional. Com efeito, a atual Lei Maior garantiu o acesso à jurisdição não apenas sob o aspecto individual, mas também no âmbito coletivo, razão pela qual nenhuma lei infraconstitucional poderia proibir qualquer acesso, seja o individual, seja o coletivo.
As palavras são de HUGO NIGRO MAZZILLI:
“O parágrafo único do art. 1º da LACP, introduzido pela Medida Provisória n.º 2.180-35/01, fere, pois, a regra constitucional de que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito – não só o direito individual como o coletivo. Considerando que o sistema processual clássico não viabiliza a defesa judicial em caso de lesões difusas, coletivas ou individual homogêneas, a Constituição de 88 instituiu o acesso coletivo à jurisdição, garantia que tem a mesma índole que a referente ao acesso individual. Suprimida que fosse a possibilidade de acesso coletivo, inúmeras lesões transindividuais ficariam efetivamente sem proteção judicial, pois o acesso individual em casos de lesões fragmentárias é simplesmente inviável.” (in A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, São Paulo, Saraiva, 2002, p. 122)
No mesmo diapasão, é o ensinamento de CAIO MÁRCIO LOUREIRO:
“Quanto à disposição constante do parágrafo único do art. 1º da Lei da Ação Civil Pública, não pode ser avocado como pretexto a impedir a que seja objeto da ação civil pública a tutela jurisdicional de interesses individuais homogêneos, posto que de todo inconstitucional, refletindo, no fundo, verdadeiro autoritarismo do Estado. (…) Destarte, encontra-se assegurada também a tutela jurisdicional dos interesses individuais homogêneos pela ação civil pública, podendo o específico bem da vida a que se pretende proteger por meio desta ação, ser interesse dessa natureza. Ademais, reitere-se: com o art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, não há como sustentar a restrição ao acesso à justiça para defender referidos interesses, sem que se esbarre na inconstitucionalidade.” (in ob. cit., pp. 159/160)
2.3. a doutrina favorável
De qualquer forma, muitos são os doutrinadores de renome que consideram, mesmo interpretando-se o interesse do contribuinte como sendo individual homogêneo, possível o manuseio da ação civil pública em matéria tributária.
Dentre eles, os ilustres professores RICARDO LOBO TORRES e WELBER BARRAL. Em igual posição, ANA LÚCIA AMARAL e LUIZA CRISTINA FONSECA FRISCHEISEN, as quais fazem alusão ao art. 127, da Carta Magna de 1988, que incumbiu ao Ministério Público a defesa da ordem pública, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais homogêneos.
Ainda, JAMES MARINS, que assim compreende:
“Sem dúvida os danos tributários causados na esfera econômica dos contribuintes, através de atos de arrecadação pública ilegais ou inconstitucionais, são espécies de interesse coletivo, mais especificamente, na maioria das hipóteses, interesses individuais homogêneos, perfeitamente tuteláveis, portanto, através da ação civil pública.” (in Ação Civil Pública em Defesa do Meio Ambiente, do Patrimônio Cultural e dos Consumidores, São Paulo, RT, 2002, p. 41)
Na mesma trilha, ANTONIO SOUZA PRUDENTE:
“(…) em matéria tributária, os interesses individuais homogêneos, legalmente definidos como aqueles decorrentes de origem comum, uma vez agredidos coletivamente, em seu núcleo originário (hipótese de incidência tributária e conseqüente evento tributário, de natureza homogênea, a gestar obrigações tributárias e resultantes interesses individuais também homogêneos), sofrem, por força do impacto agressor, o fenômeno da atomização processual, em defesa de interesse coletivo e social relevantes, a legitimar a pronta atuação do Ministério Público, na linha de determinação institucional dos arts. 127, ‘caput’ e 129, III, da Constituição da República, traduzidos nas disposições dos arts. 5º, II, ‘a’ e 6º, II, ‘a’ e ‘d’ e XII, da Lei Complementar 75/93.” (A Legitimação Constitucional do Ministério Público para Ação Civil Pública em Matéria Tributária, na Defesa dos Individuais Homogêneos, in Revista de Estudos Tributários nº 10, NOV-DEZ/1999, p. 152)
Em resumo, as argumentações favoráveis seriam:
– para alguns doutrinadores, a legitimidade do Ministério Público adviria como forma de garantir o acesso à justiça, o que permitira, através de uma só medida, ver reconhecido o direito de um grande número de pessoas afetadas por atos lesivos governamentais;
– ainda, haveria a proteção ao princípio da celeridade processual, posto que, diversamente, haveria sobrecarga do Poder Judiciário, caso cada contribuinte pleiteasse individualmente a ilegalidade da cobrança do tributo;
– a sustação da cobrança do tributo indevido seria, embora respaldado no interesse individual homogêneo, pedido com manifesto interesse social, evidenciado pela dimensão e característica do dano, visto que este atingiria uma gama enorme de pessoas altamente dispersas, assim como estaria presente a relevância social do bem jurídico decorrente da proteção à ordem jurídica tributária.
2.4. uma nova visão
Não se pode olvidar que as receitas tributárias fazem parte do patrimônio público.
Realmente, considerando que o patrimônio trata-se do “conjunto de bens de que alguém é titular, abrangendo todas as relações jurídicas passíveis de avaliação pecuniária e imputáveis à mesma pessoa” (RICARDO BEZOSA SALIBA, Da Utilização da Ação Civil Pública em Matéria Tributária, in Revista de Direito Tributário nº 83, p. 235), é evidente que o patrimônio público é constituído pelo conjunto de bens, valores, direitos pertencentes ao Estado, abrangendo, conseqüentemente, todas as receitas arrecadadas por este em sua atividade financeira.
Por seu turno, as receitas são as somas de dinheiro que recebem o Estado e os demais entes públicos para cobrir com elas seus gastos. Nelas, certamente, estão as receitas tributárias, assim definidas por CELSO RIBEIRO BASTOS:
“São as receitas que o Estado obtém mediante o recurso ao seu poder de autoridade, impondo aos particulares um sacrifício patrimonial que não tem por finalidade puni-los nem resulta de qualquer contrato com eles estabelecido, mas tem como fundamento assegurar a co-participação dos cidadãos na cobertura dos encargos públicos ou prosseguir outros fins públicos.” (in Curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário, São Paulo, Saraiva, 2001, p. 19)
Em outras palavras: sem as receitas tributárias, o Estado não tem condições de efetivar suas funções institucionais. Mas, também tem o dever de dar a devida destinação, como bem assevera ROQUE ANTONIO CARRAZA:
“Parece certo que o estado ao exercer a tributação deve observar os limites que a ordem constitucional lhe impôs, inclusive no que diz respeito aos direitos subjetivos públicos das pessoas.” (in Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Malheiros, 2003, p. 383)
De outro lado, o art. 129, inciso III, é cristalino ao conceder ao Ministério Público a legitimidade para a proteção do referido patrimônio público:
“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
(…)
III – promover o inquérito civil e a AÇÃO CIVIL PÚBLICA, PARA A PROTEÇÃO do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.” (destacou-se)
A doutrina é translúcida quanto à legitimidade do Ministério Público para a defesa do patrimônio público:
“(…) o Superior Tribunal de Justiça terminou por sedimentar sua jurisprudência no sentido de que a ação civil pública é instrumento adequado à defesa do patrimônio público, ‘in verbis’: ‘Processual Civil. Ação Civil Pública. Defesa do Patrimônio Público. Ministério Público. Legitimidade Ativa. Inteligência do art. 129, III, da CF/88 c/c o Art. 1º, da Lei nº 7.347/85. Precedente. Recurso Especial não Conhecido. I – O campo de atuação do MP foi ampliado pela Constituição de 1988, cabendo ao ‘parquet’ a promoção do inquérito civil e da ação civil pública para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, sem a limitação imposta pelo art. 1º da Lei nº 7.347/85 (REsp. nº 31.547-9-SP). II – Recurso Especial não conhecido.’ O patrimônio público, por evidente, veicula noção eminentemente ampla, alcançando todos os princípios que regem a atividade estatal.” (EMERSON GARCIA, O Ministério Público e a Defesa do Princípio da Impessoalidade, in Juris Síntese nº 36, JUL-AGO/ 2002, destacou-se)
No mesmo diapasão, a jurisprudência abaixo:
“CONSTITUCIONAL – MINISTÉRIO PÚBLICO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO PÚBLICO – LEGITIMIDADE – ART. 129, III, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – I – O entendimento da Corte é no sentido de que o Ministério Público está legitimado à propositura de ação civil pública em defesa do patrimônio público. Precedentes. II – Agravo não provido.” (Ac. da 2ª Turma do STF, AgR. n. 491081 – SP, DJU de 07.05.2004, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, destacou-se)
“RECURSO ESPECIAL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – (…) DANO AO PATRIMÔNIO PÚBLICO – LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA AJUIZAR A AÇÃO – MATÉRIA PACIFICADA NO ÂMBITO DESTA CORTE – Esta Corte Superior de Justiça pacificou o entendimento segundo o qual, nos termos dos artigos 129, III, da Constituição Federal, bem como 1º e 5º da Lei nº 7.347/85, o Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública na hipótese de dano ao erário público. Com efeito, ‘a ação civil pública é adequada à proteção do patrimônio público, visando à tutela do bem jurídico em defesa de um interesse público’ (REsp. 254.358/SP, Rel. Min. PEÇANHA MARTINS, DJ de 09.09.2002) (…).” (Ac. da 2ª Turma do STJ, REsp. n. 236126 – MG, DJU de 17.05.2004, Rel. Min. FRANCIULLI NETTO, destacou-se)
Ora, se as receitas tributárias são integrantes do patrimônio público, cabe ao Ministério Público protegê-lo em nome da coletividade, por meio dos instrumentos processuais cabíveis, como a ação civil pública. Verifica-se, aqui, que o interesse será difuso, e não meramente coletivo em sentido estrito ou individual homogêneo.
Nestas condições, se o patrimônio público tornou-se desfalcado, pela não entrada de receitas aos cofres públicos, em razão de fatos ilegais ou inconstitucionais, é certo que o Ministério Público deverá atuar.
Veja-se o caso de uma isenção ou de uma anistia, onde há a exclusão do pagamento do tributo (art. 175, incisos I e II, do Código Tributário Nacional), ou nas hipóteses de suspensão do crédito, como a moratória e o parcelamento (art. 151, incisos I e VI, do Código Tributário Nacional), quando instituídos ilegalmente, isto é, sem os requisitos legais para tanto (como, por exemplo, a lei específica do ente público competente para a instituição do tributo). É inegável, porque trará sério prejuízo aos cofres públicos, diminuindo as receitas tributárias, que o Ministério Público terá legitimidade para a propositura da respectiva ação civil pública:
Em caso similar, tem-se o seguinte excerto:
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA – TRIBUTO – ICMS – ILEGALIDADE DE TARE – EVASÃO FISCAL – DEFESA DO PATRIMÔNIO PÚBLICO – LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO – 1 – Incumbe ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, cabendo-lhe – entre outras funções institucionais – a promoção da ação civil pública para a defesa do patrimônio público (CF, art. 129, III). 2 – A ação civil pública não se presta a impugnar tributação excessiva. Entretanto, é admissível o seu manejo quando o objetivo visado é a imposição do recolhimento integral de tributo devido, pois a receita tributária é patrimônio público. 3 – Reconhece-se a legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública com vistas à anulação de termos de acordo de regime especial (TARE) supostamente ilegais. 4 – Recurso voluntário provido.” (Ac. da 4ª T. Civ. do TJDF, Ap. n. 20030110879138, DJU de 09.09.2004, Rel. Des. HUMBERTO ADJUTO ULHÔA, destacou-se)
Ainda, o Ministério Público poderá agir, caso o ente estatal descumpra com o seu papel, diminuindo o patrimônio público indevidamente. Neste particular, exsurge a Lei da Improbidade Administrativa (Lei n.º 8.429, de 02 de junho de 1992), a qual, em seu art. 17, confere legitimidade ao Ministério Público para ajuizamento da ação civil pública visando à defesa do patrimônio público e da moralidade administrativa:
“MINISTÉRIO PÚBLICO – Ação civil pública. Interposição baseada em prejuízos financeiros causados ao patrimônio público por má gestão ou desvio de finalidade ou destinação de verbas orçamentárias ou de subvenções, auxílios e empréstimos. Legitimidade ‘ad causam’. Ementa oficial: Por força dos preceitos informadores do nosso ordenamento jurídico, impõe-se reconhecer ao MP legitimidade para propor ACP com o objetivo de proteger o patrimônio público, especialmente quando baseia seu pedido em prejuízos financeiros de finalidade ou destinação das verbas orçamentárias ou de subvenções, auxílios e empréstimos.” (in RT 781/218)
Ademais, a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n.º 101, de 04 de maio de 2000) vem ainda reforçar a idéia da necessidade de controle e fiscalização do patrimônio publico, no tocante à responsabilização do ente público quando da não observância do princípio da legalidade estrita que rege a administração pública. Por conseguinte, em seus arts. 44 e 45, veda a aplicação da receita de capital derivada da alienação de bens e direitos que integram o patrimônio publico para financiamento de despesas correntes, e que novos projetos somente deverão ser realizados após adequadamente atendidos os em andamento, desde que contempladas as despesas de conservação do patrimônio público, nos termos em que dispuser a Lei de Diretrizes Orçamentária.
De outra banda, do mesmo modo que o Ministério Público pode agir, quando da diminuição do patrimônio público, é claro que assim também poderá fazê-lo inversamente, ou seja, quando o ente estatal excede seus poderes, aumentando o acervo econômico patrimonial ilegal ou inconstitucionalmente, instituindo, por exemplo, tributos indevidos, retirando dos contribuintes imunidade já consagrada pelo texto constitucional e etc.
Desta maneira, a legitimidade do Ministério Público, para a defesa dos contribuintes, não estaria fundamentada num mero interesse individual homogêneo, mas sim com base no patrimônio público, estando no rol dos interesses difusos, por afetar um universo de pessoas indeterminadas ou indetermináveis e por ter seu objeto indivisível. Aliás, se a atividade administrativa relacionada à tributação é submetida ao princípio constitucional da legalidade restrita, não pode ficar excluída do controle jurisdicional, muito menos da intervenção do Ministério Público.
De mais a mais, há que se ressaltar que Lei Maior de 1988, a Lei da Ação Civil Pública, e a Lei Orgânica do Ministério Público não apenas autorizam, mas pugnam que o parquet atue na proteção dos interesses dos cidadãos, principalmente contra os abusos estatais.
Consoante o disposto na Carta Magna, em seu art. 129, inciso II, percebe-se que:
“Art. 129. são funções institucionais do Ministério Público:
(…)
II – zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta constituição, promovendo as medidas necessárias as suas garantias.”
É com estribo em tal orientação que é inconteste que o Ministério Público tem o dever de zelar pela defesa do sistema tributário e do patrimônio público.
Tanto assim é que a Lei Complementar nº 75/93, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, em seu art. 5º, dispõe expressamente o seguinte:
“Art. 5º. São funções institucionais do Ministério Público da União:
I – a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e dos interesses individuais indisponíveis, considerados, dentre outros, os seguintes fundamentos e princípios:
(…)
g ) as vedações impostas à União, aos Estados, ao Distrito Federal e Municípios.
(…)
II – zelar pela observância dos princípios constitucionais relativos:
a) ao sistema tributário, às limitações do poder de tributar, à repartição do poder impositivo e das receitas tributárias e aos direitos do contribuinte;
(…)
III – a defesa dos seguintes bens e interesses:
(…)
b) o patrimônio público e social.”
Na realidade, retirar do Órgão Ministerial a propositura da ação civil pública para tais questões, é desprestigiar o aceleramento da entrega da prestação jurisdicional, permitindo que, por via de uma ação, muitos interesses de igual categoria sejam solucionados, pela atuação do Ministério Público.
É desprestigiar, também, o direito fundamental de acesso à justiça:
“Querer que cada contribuinte individualmente entre com uma ação visando extirpar a cobrança do tributo, alem de sobrecarregar o judiciário implicará num processo de seleção em que os mais pobres, por não possuírem recursos para a contratação de um advogado e nem possuírem uma defensoria pública estruturada a ponto de atingir o interior dos estados, continuarão sofrendo indevidamente a cobrança de tributos inconstitucionais, violando no mundo fático o princípio da igualdade.” (AMÉRICO BEDÊ FREIRE JUNIOR, A legitimidade do Ministério Público como forma de garantir o acesso à justiça, in Jornal Síntese nº 48 – FEV/2001, p. 07)
No mesmo sentido:
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA – INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 83, III, DA LEI COMPLEMENTAR Nº 75/93 – O art. 129, III, da CF/88 é claro ao dispor que é função institucional do Ministério Público promover a ação civil pública ‘para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos’. Ora, ainda que não houvesse a previsão constante da Lei Complementar, o MP poderia, em tese, ajuizar ação civil pública para a proteção de interesses difusos e coletivos, porque assim permitiu a constituição. A legislação complementar só veio regulamentar a disposição constitucional, estando em perfeita harmonia com ela. Ademais, não cabe ao juiz restringir as hipóteses de cabimento da ação civil pública fixadas na lei, em consonância com a constituição, que atribuiu ao Ministério Público amplas atribuições para que atinja a incumbência da ‘defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis’ (art. 127, ‘caput’).” (Ac. da 3ª T. do TRT-3ª Reg., RO n. 00783.2003.023.03.00.0, DJMG de 31.07.2004, Rel.ª Juíza MARIA CRISTINA DINIZ CAIXETA, destacou-se)
Portanto, a observação pelo Ministério Público do sistema tributário nacional está prevista não como possibilidade, mas como dever institucional na defesa do patrimônio público.
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VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Ação Civil Pública. São Paulo. Editora Atlas. 2001.
Informações Sobre os Autores
Bárbara Sutter
Fabio M. Suzuki
Liz Costa de Santana
Pós-graduanda em Direito Empresarial com ênfase em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná-PUC
Julianna de Albuquerque Sobral
Jefferson L. Aguiar
Marco Aurélio Castaldo Clomeck