SUMÁRIO: 1.-. Dano e prejuízo. 1.1.-. Dano. 1.2.-. Prejuízo. 1.2.-. Dano reparável. 2.-. Do dano ao feto. 2.1.-. Dano pré-natal. 2.2 .-. Dano pré-concepcional. 2.3.-. Dano genético. 2.4.-. Reparação por dano ao feto. .3.-. O dano pré-concepcional. 3.1.-. Do ressarcimento por dano ao feto. 4.-. Posição do direito moderno
1.-.Os termos dano e prejuízo, condição indispensável da responsabilidade civil, são freqüentemente empregados um pelo outro. A literatura jurídica trata as duas expressões como sinônimas, na concepção de grande parte dos autores.
O direito romano distinguia o damnum do praejudicium. O primeiro designava o atentado à integridade de uma coisa sem que houvesse investigação quanto a ter ela causado ou não um prejuízo a seu proprietário; não continha elemento jurídico, era definido por oposição a lucrum, ganho. O segundo, o praejudicium, se fundava sobre o direito.
Para a doutrina moderna, o dano é atentado material, enquanto o prejuízo é atentado jurídico, já que só a agressão a um direito subjetivo pode ser qualificada de prejuízo. Enquanto o dano é elemento objetivo, o prejuízo é um elemento subjetivo que exige, para sua caracterização, a qualidade da vítima. Assim, o prejuízo limita-se ao quadro da responsabilidade, podendo o dano dela desvincular-se e designar outra lógica de reparação.
1.1.-. Derivado do latim –damnum-, dano significa, genericamente, todo o mal ou ofensa que uma pessoa tenha causado a outrem. Trata-se de elemento essencialmente fático que consiste na diminuição de teres ou na privação de uma vantagem. Juridicamente, a expressão é tomada no sentido do efeito que produz: é o prejuízo causado em virtude de ato de outrem que possa acarretar diminuição patrimonial. É lesão a qualquer bem jurídico. Inclui-se aí o dano moral,[1] a lesão sofrida pelo sujeito físico ou pessoa natural , em seu patrimônio ideal, entendendo-se por este, em contraposição a patrimônio material, o conjunto de tudo aquilo que não seja suscetível de valor econômico.[2]
1.2.-. Prejuízo é a conseqüência do dano. Este, o fato bruto, como o abalroamento de um veículo, a queda de um edifício, o incêndio de uma propriedade, o atentado à vida privada ou à integridade física de uma pessoa. Aquele se analisaria em segundo plano, como a perda material, o sofrimento moral, a diminuição da capacidade física. Em suma, as conseqüências dos fatos. Tal distinção, entretanto, tem pouca ou nenhuma relevância para o Direito, que os emprega indistintamente: reparação do dano, reparação do prejuízo, indenização. Não interessa o momento em que se verificam os prejuízos, desde que o fato lesivo seja a causa do dano[3], numa aplicação da causalidade adequada.
Teoria e lei admitem indenizar todos os tipos de dano à pessoa e aos bens, observando-se, entretanto, regras diferentes. Assim, os danos resultantes de um atentado à pessoa recobrem os diversos aspectos do dano corporal, isto é, um conjunto de danos materiais e morais, tais como o pretium doloris, os gastos com tratamento, etc.
Não há, tampouco, distinção entre as vítimas, de modo que qualquer pessoa que invocar a reparação de um desses danos poderá ter atendida sua pretensão. Especial atenção tem sido dispensada à reparação do dano causado ao feto, como se verá adiante.
1.3.-. Dano reparável constitui, para a doutrina, toda perda, certa e não eventual de uma vantagem lícita, numa noção de dano geralmente descrita como o resultado da comparação entre dois estados: o estado em que se encontra o indivíduo após a ocorrência do dano e o estado hipotético em que ele se encontraria caso o dano não tivesse sido produzido.
Quanto à natureza, distingue-se em material, toda perda patrimonial[4], e moral, caracterizado pela agressão aos valores extrapatrimoniais de uma pessoa. E, ainda, o dano causado por culpa aquiliana ou por culpa contratual. A rigor, a distinção não importa muito; o importante é que o dano preencha, ao menos, três das condições exigidas para ensejar a indenização: ser pessoal, suficientemente certo, e resultar da violação a um interesse legítimo.[5]
2.-. Do dano ao feto
O desenvolvimento recente de técnicas biomédicas tem permitido detectar causas de diversas anomalias fetais, originadas anteriormente à concepção, ou no curso da gravidez, e, conseqüentemente, o reconhecimento do dano pré-natal, e do dano a que se tem denominado dano pré-concepcional.[6]
2.1.-. Dano pré-natal, o mais comum, pode decorrer tanto de atos praticados por terceiros, quanto do comportamento abusivo ou da negligência da mulher e até mesmo resultante de moléstias adquiridas no curso da gravidez.
2.2.-. Dano pré-concepcional, de origem anterior à concepção, resultante da condição hereditária de ambos os pais, até mesmo pelo fato de terem sido ambos ou apenas um deles contaminado por substâncias tóxicas, em geral, como também do fato de a mulher, ela própria, ter sido atingida por moléstia virótica, anteriormente à concepção de um filho. Aqui, a rigor, não está caracterizado um dano, mas a possibilidade de ele vir a ocorrer, em razão de fatores maléficos, ou da possibilidade de eles, os fatores, preexistirem à concepção. Trata-se, pois, mais de um risco que de um dano. Daí, a denominação dano pré-concepcional não ser tecnicamente a mais adequada. Enquadra-se nessa classe o dano genético.
Exemplo de dano pré-natal é fornecido pela jurisprudência do Canadá:[7]
Court d’Appel du Nouveau-Brunswisck
Repertoire: Dobson (Tuteur à l’instance de) c. Dobson
1998: 8 décembre; 1999: 9 juillet
Em 14 de março de 1993, Cynthia Dobson, então na 27ª semana de gravidez, dirigindo seu automóvel, em direção de Moncton (Nouveau-Brunswick), durante uma tempestade de neve, perdeu o controle da direção e seu carro chocou-se com outro veículo que circulava em sentido contrário. O filho, ferido no útero, nasceu prematuramente, por cesariana, acometido de uma incapacidade mental e física permanente, notadamente paralisia cerebral.
Representada pelo avô e tutor, a criança, Ryan Dobson, alegando negligência da mãe ao volante, intentou contra ela ação de responsabilidade para reparação do dano sofrido.
Questionou-se a capacidade jurídica do autor, Ryan Dobson, tendo o juiz de primeira instância considerado ser o mesmo dotado de capacidade jurídica para postular e obter reparação do dano causado pela negligência de sua mãe, argumentando que se uma criança pode intentar uma ação contra seu pai ou sua mãe e se uma ação pode ser intentada contra um estranho por danos sofridos pela criança antes do seu nascimento, parece razoável permitir à criança intentar uma ação contra a própria mãe por dano corporal e pré-natal imputável à negligência desta última.
Discutiu-se também que os atos da mulher grávida, inclusive direção de automóvel, são intrinsecamente ligados ao seu papel no meio familiar, à sua vida profissional e a seu direito à vida privada, à integridade física e à autonomia. E mais. O reconhecimento pelos tribunais desta causa teria graves conseqüências psicológicas tanto sobre a relação materno-filial quanto sobre a família mesma. A imposição de responsabilidade delitual neste contexto teria efeitos profundos sobre cada mulher grávida e sobre a sociedade canadense em geral.
Estes e outros motivos de outros de ordem política no Canadá convenceram os juízes de que a melhor solução consiste em permitir que a obrigação da mulher em relação ao feto é uma obrigação moral reconhecida pela maioria das mulheres e por elas respeitada sem que a lei as obrigue.
2.3.-Dano genético
A elevada importância da genética no quotidiano colocou em evidência a relevância do risco genético. Estudos científicos comprovados revelam que radiações ionozantes e outros produtos químicos podem provocar mutações cromossônicas ou anomalias no patrimônio genético e caracterizar um dano, também de origem pré-concepcional.
O dano genético pode ser entendido como um atentado, de qualquer origem, à integridade ou à diversidade de genes, tendo por efeito a lesão a um interesse individual ou coletivo[8]. Em sua concepção extensiva, ele aparece de maneira difusa, envolvido nas diversas mutações, e vem ganhando espaço nas regras da responsabilidade. É devido, essencialmente, a fatores ambientais ligados a fatos geradores, como as atividades industriais ou nucleares, cujos efeitos somente serão detectados com o correr do tempo, podendo atingir o ser, em estágio embrionário ou fetal, ou até mesmo antes da concepção, aqui examinado dentro da possibilidade de aplicação do vínculo causal à semelhança dos prejuízos por ricochete.
A melhor compreensão da matéria sugere invocar a distinção entre dano e prejuízo; o dano seria a mutação genética, e o prejuízo a alteração daí resultante para o indivíduo.
Dano genético teria, pois, caráter objetivo, traduzindo uma mutação qualquer que seja o ser atingido e qualquer que seja a conseqüência produzida. Prejuízo genético recobriria as conseqüências fisiológicas produzidas sobre o organismo, levando em conta a especificidade do indivíduo atingido, com fundamento em critérios subjetivos. Nessa distinção, poderia existir, segundo MORDEFROY, um dano genético, sem prejuízo genético. A rigor, só será conhecida a mutação genética que gerar efeito sobre a estrutura biológica do indivíduo; apenas esta mutação poderia ser apreendida pela Ciência e pelo Direito. Isto porque sua manifestação ocorrerá seja pela morte do organismo, seja por uma patologia declarada. E tanto a morte quanto a patologia podem corresponder a uma lesão a um interesse juridicamente protegido, por ligar-se ao direito à integridade física ou ao direito ao respeito do corpo.
Se a mutação genética (dano) é internamente ligada à patologia (prejuízo) parece impossível distinguir dano de prejuízo. A mutação genética que não tivesse conseqüência, não apresentaria, então, interesse para o jurista. portanto, a distinção entre dano e prejuízo é destituída de interesse. Os dois termos podem ser utilizados indistintamente[9].
2.4.- Da reparação por dano ao feto
A reparação de um dano pressupõe o exame conjunto das suas características específicas e das condições concernentes ao agente que o provocou e à vítima que, efetivamente, o houver experimentado. Vem, pois, ganhando vulto a idéia que admite a possibilidade de reparação de dano causado ao feto. Mas, a quem caberia responder por tal reparação?
No que concerne ao causador do dano, duas são as situações possíveis:
1) o dano é resultado da ação de um terceiro;
2) o dano resulta de ação da própria mãe.
As implicações decorrentes do dano são múltiplas e diversas. No entanto, para ser aqui tomado como referencial e motivar a responsabilidade civil, o dano busca e encontra nova dimensão teórica e prática, sobre a noção de certeza. O dano ao feto deve ser certo, deve existir, não se prendendo, pois, simplesmente ao campo das hipóteses. Admissível, todavia, a possibilidade de o julgador contentar-se com a certeza judiciária, um grau elevado de probabilidade, conforme o curso normal das coisas[10].
3.- O dano pré-concepcional
O direito reconhecido a uma vítima de obter reparação do prejuízo que sofreu não pode ser dissociado da obrigação que pesa sobre o autor do dano.
Há quem admita, porém, que a possibilidade de reivindicar a reparação de dano, sobretudo de origem pré-concepcional, sugere incluir na classe de agente causador não apenas a mãe, mas também o médico, a quem compete o relevante papel de orientar os casais grávidos sobre os possíveis riscos de anomalias fetais para evitar a propagação do dano e os sofrimentos físicos ou psicológicos a seus filhos.[11] No entanto, as modalidades de indenização genética alcançariam, ainda, outros setores, pela responsabilidade em matéria de produtos perigosos ou em matéria ambiental, áreas particularmente sensíveis, em razão da vontade social de indenizar os danos no mundo dos vivos.
Estas ramificações da responsabilidade civil, suscetíveis de intervir na reparação dos atentados aos genes, constituem alicerce para o regime de dano genético. Insere-se neste contexto o propósito de proteção radiológica do embrião, ser que sofre o reflexo do dano causado a outrem, no caso, os pais, um dos temas de desenvolvimento nas várias áreas de conhecimento.
O princípio da proteção radiológica do embrião, por exemplo, surge de um tipo de sociedade, tecnicamente desenvolvida, amadurecida e consciente de que a necessidade de proteção contra a irradiação de produtos químicos in utero, de conseqüências imprevisíveis, não pode limitar-se apenas a atos técnicos. E, nessa linha de raciocínio, têm os estudiosos questionado se a perda de uma chance pode relacionar-se à indagação de certeza do dano, para fins de indenização.
Na verdade, foi o dano pré-concepcional que abriu a possibilidade de propositura de ação por wrongful life.[12][1]
Wrongful life é expressão americana que não tem equivalente na língua portuguesa. Indica uma variante da ação de reponsabilidade civil que no Canadá tem por fundamento legal o art. 1457 do Código Civil do Quebec, cuja primeira parte enuncia que “toda pessoa tem o dever de respeitar as regras de conduta que, segundo as circunstâncias, os usos ou a lei, se lhe impõem de modo a não causar prejuízo a outrem.”
Esta ação permitiu estabelecer-se o princípio segundo o qual pode uma criança postular em juízo indenização por danos que lhe foram causados no ventre materno. Tem sido intentada por pessoa portadora de alguma anomalia, detectável in utero e marcada por danos físicos e psicológicos, contra médicos, que, por terem sido negligentes no acompanhamento da gravidez, ou por não lhe ter impedido o nascimento, tornaram-se responsáveis pela vida diminuída, vida ingrata que tem.
Muitos julgadores têm declarado, entretanto, que não se encontram devidamente preparados e competentes para decidir entre a superioridade da vida ou aquela do nada[13].
Para a jurisprudência americana, recentemente seguida pela francesa, existe também a ação dos pais, contra o terceiro responsável pela morte in útero de um filho (wrongful death); a ação de perdas e danos dos pais contra os médicos, pelo nascimento prejudicial, ou nascimento não desejado de um filho (wrongful birth) além da ação da criança, ela própria, contra o terceiro responsável por seu nascimento (wrongful life).
As sucessivas reivindicações, neste sentido, abrirão, por certo, caminhos para vários questionamentos. A aceitação, pelos tribunais, de ações contra os médicos por wrongful life, com fundamento no dano pré-concepcional, não estaria a possibilitar a propositura de ações contra a mãe, sob idêntico fundamento?
A admissibilidade de ação contra a mãe por dano ao filho nascituro é dos temas mais contraditórios. Seu exame pode voltar-se, precipuamente, para a pesquisa concernente ao comportamento dos pais: uma pessoa acometida de anomalia genética pode responsabilizar os próprios pais por este dano? Teriam eles, os pais, agido com culpa? Seria possível certificar-se de seu agir consciente, ou de sua omissão na transmissão de uma moléstia aos filhos? Sua ação ou omissão poderia caracterizar culpa delitual, destituída de caráter intencional[14], porém, inescusável, por implicar a consciência da probabilidade de um dano evitável?
Por outro lado, poderia o filho argüir a culpa dos pais por não terem consultado um especialista sobre os riscos de danos genéticos suscetíveis de reproduzir antecedentes familiais?
A matéria traz mais perguntas que respostas; suscita mais dúvidas que certezas. No entanto, as culpas apreciadas in abstracto parecem traduzir a violação de um dever moral a uma regra de conduta, pelo agente por não prever a possibilidade de causar o dano, passível de ser evitado, com prudência e diligência no agir. Poderia ser considerado imprudente o ato dos futuros pais que deixam de informar-se sobre a eventual presença de genes deletérios em seus gametas? Seriam negligentes, os portadores, ainda que potencialmente, desses genes que se privam do acompanhamento médico?
Parece, contudo, que no direito brasileiro, tais ações dificilmente seriam concebíveis com base na regra geral de responsabilidade civil. De uma parte, seu fundamento é contestável por implicar a possibilidade de invocar o direito de não nascer, ainda que o nascer pudesse conduzir a uma vida de qualidade, dita insuficiente. Seus critérios, eminentemente subjetivos, parecem impossíveis de serem aplicados em jurisprudência. Uma concepção objetiva também não poderia aqui ser considerada, pois o direito não pode reconhecer como dano o fato do nascimento tout court.
De outra parte, é difícil admitir, no caso, a culpa por omissão em relação aos pais. Culpa sugere inobservância a uma obrigação legal de agir. Se a lei anuncia a obrigação dos pais em relação à saúde dos filhos[15], haveria também obrigação deles em relação a um filho não ainda concebido?
A questão é especialmente delicada. À pessoa, por ser portadora de alguma deficiência física, caberia comparar sua existência a um nada; admitir que a vida que conhece, como deficiente, é, em si mesma um dano; que sua situação anterior (o não ser) era-lhe infinitamente superior? Admitindo como positiva a resposta, cumpre indagar: ao transmitir-lhe, como herança negativa, uma vida diminuída, haveria negligência da mãe, hábil a ensejar um dever de indenizar?
Exemplo pioneiro e ilustrativo da situação é o acórdão do Tribunal de Piacenza, na Itália, em julgamento de 1950 que admitiu a responsabilidade dos pais por dano pré-concepcional causado à integridade física do filho, a quem transmitiram moléstia contagiosa[16].
Na formulação clássica de MAZEAUD[17], o dano, mesmo sendo pessoal, ligado a um determinado sujeito, pode ser conseqüência de um prejuízo sofrido por outro sujeito, o que exige, com toda evidência, a demonstração do nexo de causalidade entre o fato gerador e o dano.
3.1.- Do ressarcimento por dano ao feto
Na jurisprudência americana, há o registro de uma ação intentada em 1980 contra a mãe por um filho, representado pelo pai, na qualidade de tutor, por danos causados à dentição da criança, em conseqüência de ter a mãe absorvido medicamentos contendo a substância tetracycline. A Corte de Apelação do Michigan reconheceu, no julgamento deste caso, Grodin c. Grodin a existência do dever legal da mãe em relação ao filho, desde a concepção.
Deveria ela ter evitado qualquer comportamento abusivo ou negligente que pudesse causar dano ao filho em formação e não evitou. Esta decisão, no entanto, levou outros estados americanos -Califórnia, Minnesota, Pensylvania- a proibir totalmente ações de filho contra a mãe.
Outro exemplo, no mesmo sentido, vem da Austrália, em julgamento de 1986 que deferiu pedido de indenização de filha contra a mãe[18].
Em 1988, no julgamento do caso Stallman c. Youngquist, a Corte Suprema de Illinois também decidiu pela impossibilidade de propositura de ação de filho contra a mãe por danos pré-natais. Admiti-las, no entendimento dos julgadores, seria exigir um acompanhamento severo e constante, “sous la loupe judiciaire”, no dizer de BERNARDI[19], da vida e do dia-a-dia da mulher grávida, o que significa, em outros termos, a invasão à vida privada e à autonomia da mulher.
4. A doutrina moderna não mais hesita em admitir que o nascituro tem direitos e direito à indenização. Teoricamente, há a possibilidade de a criança propor contra a mãe ação para reparação de danos pré-concepcionais e pré-natais que lhe foram causados na vida intrauterina. Entretanto, nas poucas situações registradas, tal possibilidade se restringiu a ações intentadas depois do nascimento da vítima e por representação.
Algumas reflexões, então, aqui, impõem-se: seria prudente a atribuição dos poderes de representação, nesse caso, a um terceiro, alheio à relação materno-fetal? Não se abriria, assim, uma via para estabelecer, entre os envolvidos, certo ar de animosidade?
E há mais. Se o objetivo buscado nas ações de reparação de dano é muito mais a compensação financeira, que a proteção pré-natal, ainda seria possível afirmar que, efetivamente, existe proteção ao nascituro?
Não mais se ignora que a saúde e o comportamento da mulher grávida podem influenciar na qualidade da saúde e da vida do filho que espera. E que, nem toda grávida segue modelo de vida ideal, voltado prioritariamente para o bem estar do filho, podendo até, com sua conduta, destruir as chances dele de levar uma vida independente. Surge, então, uma das mais controvertidas questões sobre o controle da mulher grávida, concernente à possibilidade de tratamento imposto à mãe no interesse do filho.
A quem compete tal controle? A quem caberia prevenir e evitar as formas de agressão à integridade do feto? E de que maneira?
A proteção do feto tem por ponto de partida a escolha entre o respeito do direito da mulher de agir livremente e a proteção do interesse do nascituro.
Apesar da existência de alguns cuidados pré-natais, avançados em alguns países, oferecidos à mulher grávida, a proteção ao feto é praticamente, inexistente, tanto no âmbito médico quanto no jurídico. Não traz, a lei, restrição à conduta da mulher durante a gravidez. Seu comportamento, considerado aceitável e responsável, é muito mais em resposta à exigência das normas sociais e à orientação médica, que à œ imposição de um dever legal.
A jurisprudência fornece exemplos de julgamentos ordenando intervenções forçadas com objetivos protetivos ao interesse do nascituro. Um dos primeiros casos (Jefferson c. Griffin Spalding County Hospital Authority 274 S.E. ed 457) julgado, em 1981, pela Suprema Corte da Geórgia, ordenou a uma mulher, grávida de trinta e nove semanas, submeter-se, contra sua vontade, a uma cesariana para salvar a vida do feto, ameaçada em razão de um problema na gestação.
A Corte outorgou ao Estado a guarda provisória do nascituro, mas, antes da execução do julgamento, a criança nasceu de parto normal.
Em outro caso (In re A.C. 533 A. 2d 6110, D.C. 1987) a mulher, na 26ª semana de gravidez, encontrava-se em estado terminal, em razão de câncer no sangue. A cesariana ordenada pela Corte foi praticada na tentativa de salvar a vida do feto. Mas não salvou[20].
A tentativa de proteger o feto pode ainda ser demonstrada no caso de Jennifer Johnson, a primeira mulher que, nos Estados Unidos, foi considerada culpada pela Justiça americana e condenada a 15 anos de probation, por ter contaminado o filho, com forte dose de cocaína, por meio do cordão umbilical[21].
Nesse contexto, é possível reconhecer ao que vai nascer direito à reparação dos danos que lhe forem causados, durante sua vida no útero materno.
E, principalmente, o consumo de droga pode prejudicar o feto e levar a mãe a responder pelos danos que lhe causar. É preciso, por outro lado, também admitir a liberdade da mulher. Ela pode fumar, praticar esportes, embora com restrições e sob orientação médica, restrições a que ela não está obrigada a seguir, diante da impossibilidade de alguém limitar-lhe o agir, dentro do seu território de liberdade. Trata-se de campo em que o direito não pode e não (deve) intervir, por não estar caracterizado aí, em princípio, nenhum ato ilícito por ela praticado.
Tratando-se, porém, da mulher em estado de gravidez, o exame da situação deve voltar-se especificamente para os efeitos que de seu comportamento podem resultar. Deve-se esperar uma redução da sua liberdade em favor do filho, embora existam leis que estabelecem certa supremacia dos direitos da mulher em relação aos do filho que concebeu.
Outra não é a hipótese do dano causado em razão do tabagismo, já que se poderia também aqui invocar responsabilidade civil, em razão do comportamento culposo da mãe. Ainda que a mulher entenda estar fazendo uso do seu direito -liberdade para fumar- pode, ela, prejudicar o filho e ser compelida a responder pelos danos que lhe causar. Sua atitude pode não ser ilícita mas não afasta, por si só, a configuração da responsabilidade civil.
Assim, a responsabilidade civil, resultante do comportamento da mulher grávida, apesar do enigma que encerra, e de ser um tabu, só pode ser fundada sobre o direito comum da responsabilidade civil, de maneira semelhante à que é tratada a responsabilidade do profissional da saúde. Em razão da natureza particular e especial da atividade maternal, deve o tratamento dado a ela ser submetido a um conjunto de regras éticas, morais e naturais, bem precisas, cuja violação parece voltada tanto para a responsabilidade civil quanto para a responsabilidade moral, em cujo âmbito não cabe ao direito intervir.
Exemplificando: a mulher grávida que consentir na realização de uma pesquisa envolvendo o foetus que se desenvolve no seu útero, estará, por certo, permitindo expô-lo a riscos de conseqüências não imagináveis. Poderia, ela, autorizar uma intervenção no seu próprio corpo, ainda que com finalidades terapêuticas e humanitárias? Para a Lei de Transplantes, a resposta é negativa, salvo em caso de doação de tecidos para ser utilizado em transplantes de medula óssea, sob a condição de o ato não oferecer risco à saúde da mãe ou ao feto[22].
Poderia, ela, por outro lado, admitir a intervenção sobre seu filho, em estágio embrionário ou fetal, visando a aplicação de medidas diagnósticas e terapêuticas, ou que visem exclusivamente a melhorar-lhe o estado de saúde, e não a saúde de outra pessoa, até mesmo da própria mãe?
Existe, é verdade, um número significativo de bebês que se beneficiam de tratamento adequado e gozam de boa saúde. Há também certas afecções, que, não diagnosticadas, sobretudo em razão do seu caráter desconhecido, levam vários recém-nascidos a conservarem seqüelas, graves ou leves, até permanentes.
Lesões fetais bastante significativas podem ainda resultar da desnutrição da mãe, da desinformação, da falta de cuidados pré-natais, da prática de certas atividades físicas, da conduta negligente, da transmissão de uma doença, de uma condição genética ou ainda a exposição a um ambiente perigoso para a saúde da criança por nascer. A quem atribuir a responsabilidade por tais atos?
Ao nascituro não se outorga o direito de recusar os cuidados da mãe, ou de se deixar cuidar por ela. As implicações em termos de responsabilidade civil não podem ser negadas a todos atores que se envolvem na relação materno-fetal, especialmente médicos, talvez os únicos que podem ver mais de perto os fatos, e apreciá-los tecnicamente.
Na responsabilidade pessoal, a culpa serve para designar o responsável, ao mesmo tempo que é fonte de direito de reparação para vítima. Mas a questão aqui é outra: toda pessoa é suscetível de se ver imputar uma culpa? Durante muito tempo o direito positivo apresentou uma resposta negativa à questão, declarando irresponsáveis as pessoas privadas de razão: alienados, crianças de pouca idade, pessoas morais. A solução era juridicamente justificada pela exigência de uma condição de imputabilidade moral da falta ao agente, condição, hoje, não mais exigida.
A tendência atual, em alguns países, é resolver problemas dessa natureza a favor das crianças, invocando a responsabilidade civil do médico, ao lado da responsabilidade da mulher: logo uma responsabilidade civil compartilhada.
Informações Sobre o Autor
Silma Mendes Berti
Professora de Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
Doutora em Direito Civil