Danos morais e critérios de ponderação

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Sumário: 1. Contextualização da homenagem e do tema. 2. A importância da livre circulação de idéias e de notícias. 3. A velocidade da imprensa e o jornalismo investigativo. 4. A necessidade da ponderação de bens. 4.1. Veracidade da informação jornalística. 4.2. Licitude do meio empregado na obtenção da informação. 4.3. Personalidade pública ou estritamente privada da pessoa objeto da notícia. 4.4. Local e natureza do fato. 4.5. Existência de interesse público na divulgação. 4.6. Preferência por medidas que não envolvam a proibição prévia de divulgação; 5. Quem responde por escritos ofensivos publicados em jornais? 6. Lei de Imprensa (Lei n. 5.250/67). 6.1. São válidos os valores de indenização firmados pela Lei de Imprensa? 6.2. É válido o prazo decadencial previsto na Lei de Imprensa? 6.3. A empresa jornalística precisa ser notificada previamente? 7. Dano moral e televisão. 7.1. Guerra pela audiência. 7.2. Efeito pedagógico da indenização. 8. Outras manifestações do pensamento. 8.1. Programas de humor. 8.2. Charges. 8.3. Comentaristas políticos. 8.4. Biografias não-autorizadas.


1. Contextualização da homenagem e do tema


A Constituição, no que importa para o direito civil, traz como fundamentos da República: a) a dignidade (art. 1º, III); e b) o valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV). E como objetivos fundamentais da República: a) a solidariedade social (art. 3º, I) e a igualdade substancial (art. 3º, III).


Os civilistas formados sob tal orientação estão “convencidos de que as relações privadas não mais se circunscrevem em uma redoma teoria abstrata e neutra, mas, ao contrário, mostram-se redefinidas axiologicamente pela ordem pública constitucional, cuja aplicação direta e imediata permite a constante abertura do sistema com a prevalência das relações existenciais sobre as patrimoniais” (RTDC, editorial, vol. 20, out/dez. 2004).


Por muitos séculos a preocupação prioritária do direito civil foi o patrimônio. Ainda em matérias como o direito de família, havia uma nítida – e mal disfarçada – preocupação com os valores, não existenciais, mas econômicos do sujeito de direito proprietário. Naturalmente, tal preocupação continua presente. Seria ingênuo negá-la. Houve, porém, uma reavaliação qualitativa da proteção, priorizando-se a pessoa, sua realização e seus valores, e apenas secundariamente o patrimônio (Paulo Luiz Netto Lôbo, “Constitucionalização do Direito Civil”. Direitos e Deveres, n. 3, jul./dez. Maceió: Imprensa Universitária, 1998, p. 92).


Atualmente “são visíveis as novas feições dadas aos institutos basilares do direito civil: a propriedade, outrora de caráter absoluto, adquire, com a Constituição, um conteúdo funcionalizado; nas relações contratuais é reconhecida a superação do dogma da autonomia da vontade, fundado em uma igualdade formal, afastada da realidade fática; quanto à família – que se revela sob forma plural – coloca-se como direito vivido, e não mais como direito imposto e imaginário” (Luiz Edson Fachin, Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 301).


Para o direito civil de hoje o patrimônio é instrumento. Embora deva naturalmente ser protegido, não prevalece face à tutela dos valores existenciais. Verifica-se, portanto, que “propriedade, empresa, família, relações contratuais tornam-se institutos funcionalizados à realização da dignidade da pessoa humana, fundamento da República, para a construção de uma sociedade livre, justa, solidária, objetivo central da Constituição brasileira de 1988” (Gustavo Tepedino, Editorial, RTDC, vol.2, abr/jun, 2000).


O STJ, recentemente, reconheceu: “A Constituição da República Federativa do Brasil, de índole pós-positivista e fundamento de todo o ordenamento jurídico, expressa como vontade popular que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana como instrumento realizador de seu ideário de construção de uma sociedade justa e solidária” (STJ, REsp. 802.435, Rel. Min. Luiz Fux, 1a T., j. 19/10/06, p. DJ 30/10/06).


O tempo do patrimônio como senhor absoluto passou, deixando-nos sob um sol de outros dias. Os raios que nos iluminam, projetados por uma Constituição humanitária, traduzem uma preocupação diferenciada com o ser humano. Ao seu bem estar e à sua dignidade não é indiferente à Constituição. Bem por isso, o núcleo valorativo essencial mudou. E mudou para resguardar, em linha de princípio, valores que realizem, da melhor forma, a pessoa humana, sem que se possa postergar sua proteção para escala subsidiária em relação aos bens materiais.


Nos séculos passados, os juristas, com seu conservadorismo inteligente, valiam-se de alterações puramente cosméticas, e continuavam, no essencial, com os mesmos modelos teóricos desenvolvidos em outros contextos sociais. Apenas com o surgimento de estudos intelectualmente corajosos – como os que marcaram a trajetória intelectual do Professor Paulo Lôbo – é que esse estado de coisas começou, aos poucos, a ter um novo rumo. O direito ampliou o seu espectro de atenção, superando uma visão formal, e percebendo que a pessoa humana não era um mero detalhe em seu caminho. 


As noções teoricamente mais atuais, como a dignidade da pessoa humana, os valores sociais em lugar de um individualismo egoísta, se hoje nos parecem tão naturais, é porque houve quem, de forma iconoclasta para a época, defendeu essas posições. O Professor Paulo Luiz Netto Lôbo, tão-logo promulgada a Constituição de 1988, publicou uma série de artigos que se tornaram referência teórica obrigatória desde então. Neles sustentou, de forma premonitória, que o direito civil, a partir da Constituição, deveria ser perspectivado à luz de outros valores. (Paulo Luiz Netto Lôbo, O Direito de Família e a Constituição de 1988. Carlos Alberto Bittar (Organizador). São Paulo: Saraiva, 1989).


E essa sugestão inicial se revelou, com o passar dos anos, de enorme significado hermenêutico. Foi, portanto, um passo considerável – dentre tantos que podem ser creditados à obra do Professor Paulo Lôbo – rumo a um direito civil sensível aos valores da pessoa humana.


Então, se a experiência jurídica atual, particularmente a civil, encontra-se profundamente renovada, é importante que saibamos que isso não foi nos foi dado, mas construído, e construído por juristas que anteviram, muito antes de nós, que não podemos impor aos novos fatos antigas explicações.


Passemos, especificamente, à matéria vinculada ao presente artigo. O tema do dano moral está, em boa medida, vinculado à atuação da imprensa. É delicado o equilíbrio entre o direito de informar e a imagem das pessoas atingidas. Se o exercício diário da liberdade de imprensa garante uma sociedade livre, não é menos certo que não se pode, sob esse pretexto, destruir vidas e tisnar honras.


A época em que vivemos já foi chamada de a “era da informação”, dado o impacto que a difusão do conhecimento atinge em nossos dias. Além disso, “a informação jornalística é destinada a todas as pessoas que se disponham a recebê-la, sem que se possa individualizar e dividir qual informação será difundida para este indivíduo e qual para aquele. Todos são igualmente titulares desse direito de receber informação e é inegável que todos os titulares estão ligados pela circunstância de fato de serem leitores do mesmo jornal, ouvintes do mesmo rádio ou espectadores da mesma emissora de televisão” (Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, Direito de informação e liberdade de expressão, 1999, p. 64).


A Constituição Federal diz serem invioláveis “a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5º, X). O mesmo artigo, no inciso V, confere à vítima o direito a indenização pelo dano material, moral ou à imagem.


Por outro lado, a Constituição Federal, art. 5º, IX, proclama ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Mais adiante, no inciso XIV, assegura “a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. O STJ já ressaltou a necessidade de se “ponderar as duas pontas da liberdade, aquela da preservação da dignidade da pessoa humana e aquela da livre circulação da informação pela mídia” (STJ, REsp. 403.639, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, p. DJ 10/03/03).


2. A importância da livre circulação das idéias e de notícias


Escrevemos em outra ocasião (Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2008) que a Constituição da República valoriza a liberdade de imprensa. É atividade valiosa na construção do pluralismo e do debate de idéias, essenciais à democracia. O Brasil muito deve à imprensa. Certamente não teríamos avançado no combate à corrupção, na depuração de certas práticas políticas nefastas, na fiscalização dos atos de interesse público sem sua decisiva vigilância. Diagnostica Luís Nassif: “A imprensa tem papel institucional da maior importância dentro da vida de um país. Serve não apenas como fiscal de atos públicos e desaguadouro de reivindicações de setores da sociedade, mas principalmente como instrumento central de organização de idéias e de auxílio do diagnóstico dos grandes temas nacionais” (Luís Nassif, O jornalismo dos anos 90. São Paulo: Futura, 2003, p. 190).


Também argumentamos naquela oportunidade que a liberdade de circulação de idéias e notícias alimenta o espírito democrático, fortalece instituições, sofistica (no bom sentido) o debate, aprimora o espírito crítico.“A sociedade moderna gravita em torno da notícia, da informação, do conhecimento e de idéias. Sua livre circulação, portanto, é da essência do sistema democrático e do modelo de sociedade aberta e pluralista que se pretende preservar e ampliar. Caberá ao interessado na não divulgação demonstrar que, em determinada hipótese, existe um interesse privado excepcional que sobrepuja o interesse público residente na própria liberdade de expressão e de informação” (Luís Roberto Barroso e Ana Paula Barcellos, “Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa”, RTDC, vol. 16, out/dez 2003, p. 90/91).


A sociedade brasileira muito deve à imprensa, cuja vigilância constante já propiciou mais de um episódio de avanço institucional. Naturalmente essa constatação não emite um cheque em branco para ofensas. Porém, ofensas à parte, a liberdade de informação e de expressão do pensamento deve ser protegida. Assim, a crítica, ainda que jocosa e feroz, é permitida. A charge, ainda que implacável e zombeteira, é possível. Obviamente que em cada caso, dependendo da personalidade atingida, sua maior ou menor exposição pública, os pesos das ponderações serão, e deverão mesmo ser, diferenciados. Não há, portanto, respostas definitivas e prévias. Cabe apenas dizer que a balança, onde tais circunstâncias serão pesadas, deve pender, em princípio, em favor da liberdade de informação.


3. A velocidade da imprensa e o jornalismo investigativo


O jornalismo investigativo ocupa a vanguarda de muitas investigações relevantes, descobrindo crimes, às vezes, antes da polícia ou do Ministério Público. Afirma-se em terreno doutrinário: “Crimes são fatos noticiáveis por natureza, não podendo ser tratados como questões estritamente privadas. E, por fim, há evidente ‘interesse público’ na sua divulgação, inclusive como fator inibidor de transgressões futuras” (Luís Roberto Barroso e Ana Paula Barcellos, “Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa”, RTDC, vol. 16, out/dez 2003, p. 100).


Contudo, a velocidade com que a imprensa apura e divulga gera, em certas situações, danos irreversíveis a imagem das pessoas vinculadas à notícia. Gustavo Tepedino, analisando a explosiva mistura entre a mídia e certas autoridades com apetite de exposição, argumenta: “Não pode ela, levianamente, divulgar suspeitas sobre pessoas, sem um mínimo controle judicial. Muitos inocentes, mercê da irresistível vocação de certas autoridades para o ‘show biz’, tornam-se irremediavelmente condenados, perante o público, diante de mera suspeita delituosa. O direito à informação não pode sobrepujar a discrição a respeito de inquéritos que, se divulgados, causam danos irreparáveis ao acusado. Provada sua inocência, ninguém mais se interessa pela notícia, e sua reputação fica definitivamente abalada” (Gustavo Tepedino, Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 477).


É certo que a imprensa, na sua tarefa de fiscalizar atos de interesse público, apura e julga com velocidade, como dissemos, nem sempre compatível com a verdade. Percebeu-se que “os abusos contra direitos individuais, a superficialidade, as falsas promessas contidas nas manchetes provocação reações em diversos círculos, dos leitores mais críticos aos poder judiciário – que passou a tratar severamente, até com exagero, as ações contra a imprensa” (Luís Nassif, O jornalismo dos anos 90. São Paulo: Futura, 2003, p. 31/32).


A jurisprudência já proclamou que “não se deve exaltar a liberdade de informação a ponto de se consentir que o direito à própria imagem seja postergado, pois a sua exposição deve condicionar-se à existência de evidente interesse jornalístico que, por sua vez, tem como referencial o interesse público, a ser satisfeito, de receber informações (…)” (STJ, REsp. 58.101, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, 4 T., j. 16/09/97, p. DJ 09/03/98).


O STJ, em julho de 2007, negando seguimento a pedido da Globo Comunicação e Participações S/A, confirmou determinação de pagamento imediato de indenização por danos morais a magistrado, sob pena de penhora e bloqueio de contas-correntes da empresa, além de multa. A condenação em danos morais – cerca de um milhão e duzentos mil reais, em valores atualizados – se deu em virtude da divulgação de que determinado desembargador estava ligado às investigações da operação Anaconda (STJ, MC 12.975, Rel. Min. Fernando Gonçalves, 4a T). 


Por outro lado, não se pode desconhecer a realidade sociológica: numa sociedade desigual como a nossa, marcada por forte herança patrimonialista, a imprensa desempenha um papel vital, denunciando crimes e cobrando a punição pelos meios institucionais. Ninguém desconhece que o aparato judicial funciona severamente contra pessoas humildes, cujos crimes, muitas vezes, apresentam escasso potencial lesivo.


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Já em relação a outros criminosos, confortavelmente situados em plano financeiro ou político, há uma tendência de não efetividade das punições – lamentável sob todos os aspectos. Basta acompanhar a história brasileira das últimas décadas para se chegar a inevitável conclusão: sem a vigilância da imprensa inúmeros crimes não viriam à tona. A divulgação de tais práticas nefastas – inimigas do interesse público primário – assume, portanto, altíssima relevância social, desde que as publicações se mostrem responsáveis e sejam feitas com rigorosa checagem dos dados. É preciso, também, que seja oferecido ao envolvido o direito de apresentar sua versão sobre a denúncia.


De todo modo, os critérios de solução serão sempre circunstanciais. Não se pode exigir da imprensa que aguarde o trânsito em julgado dos processos criminais, mesmo porque, incrivelmente lentos, esvaziaria qualquer interesse jornalístico pelo fato. De outro lado, a condenação sumária, ainda que sirva como instrumento de pressão contra criminosos poderosos, pode eventualmente redundar em trágicas injustiças, impondo-se o difícil equilíbrio, a ser buscando prioritariamente pela própria imprensa, através do ombudsman e outras instâncias de auto-crítica.


É fundamental reconhecer – repetindo, com outras palavras, o que dissemos acima – que o jornalismo investigativo, ainda que com eventuais abusos, tem desempenhado função da mais alta relevância em nosso país. Autoridades que se julgavam intocáveis, aos poucos, em bela página de transformação social, vêem seus negros ilícitos sendo exibidos o que exige que as instituições públicas funcionem também para puni-las – o que dificilmente ocorreria sem a vigilância constante da imprensa.


Cabe repetir a citação com que abrimos este tópico: “Crimes são fatos noticiáveis por natureza, não podendo ser tratados como questões estritamente privadas. E, por fim, há evidente ‘interesse público’ na sua divulgação, inclusive como fator inibidor de transgressões futuras” (Luís Roberto Barroso e Ana Paula Barcellos, “Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa”, RTDC, vol. 16, out/dez 2003, p. 100).


4. A necessidade da ponderação de bens


O direito constitucional contemporâneo maneja, habitualmente, um tema cuja relevância ganha a cada dia intensidade: a ponderação de bens. Como resolver o conflito entre princípios? Como optar por um deles, se ambos tem idêntico status constitucional? No caso da liberdade de imprensa – direito de informar e direito de ser informado – contra o direito à intimidade e a vida privada, temos um clássico caso da necessidade de ponderar bens e princípios. A jurisprudência já percebeu a necessidade de se “ponderar as duas pontas da liberdade, aquela da preservação da dignidade da pessoa humana e aquela da livre circulação da informação pela mídia” (STJ, REsp. 403.639, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, p. DJ 10/03/03).


Não é possível dizer, de modo prévio, qual princípio irá prevalecer. A resposta depende da ponderação dos valores relevantes nas circunstâncias específicas. Nossa ordem jurídica não tolera a censura; por outro lado, também não aceita que se esvazie o princípio que resguarda a intimidade e a vida privada das pessoas. 


Começam a surgir na doutrina tentativas de enfrentar o difícil tema. Com habilidade pondera-se, procurando-se algum nível de objetividade nesse terreno tão pantanoso: “Na colisão entre a liberdade de informação e de expressão, de um lado, e os direitos da personalidade, de outro, destacam-se como elementos de ponderação: a veracidade do fato, a licitude do meio empregado na obtenção da informação, a personalidade pública ou estritamente privada da pessoa objeto da notícia, o local do fato, a natureza do fato, a existência de interesse público na divulgação, especialmente quando o fato decorra da atuação de órgãos ou entidades públicas, e a preferência por medidas que não envolvam a proibição prévia da divulgação. Tais parâmetros servem de guia para o intérprete no exame das circunstâncias do caso concreto e permitem certa objetividade às suas escolhas” (Luís Roberto Barroso e Ana Paula Barcellos, “Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa”, RTDC, vol. 16, out/dez 2003, p. 101).


Analisaremos a seguir, circunstancialmente, a partir dos critérios sugeridos – veracidade do fato, licitude do meio empregado na obtenção da informação, personalidade pública ou estritamente privada da pessoa objeto da notícia, local e natureza do fato, existência de interesse público na divulgação, e a preferência por medidas que não envolvam a proibição prévia da divulgação – alguns critérios de aferição da razoabilidade ou não da divulgação jornalística.


4.1. Veracidade da informação jornalística


Um dos mais importantes critérios a respeito da legitimidade da informação jornalística diz respeito à sua veracidade. Informação cuja divulgação se protege, portanto, é a informação verdadeira. Informação falsa gera indenização por danos morais, cujo arbitramento variará conforme as circunstâncias.


A doutrina, no Brasil e lá fora, reconhece este ponto: “Todos os doutrinadores citados, mesmo os que, em maioria, adotam uma disciplina comum entre expressão e informação, deparam-se com, pelo menos, uma distinção importante entre os dois institutos: a veracidade e a imparcialidade da informação. E é, justamente, em razão dessa distinção fundamental que se deve pensar em um direito de informação que seja distinto em sua natureza da liberdade de expressão” (Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, Direito de informação e liberdade de expressão, 1999, p. 24).


Nem sempre é simples – diríamos até: quase nunca o é – afastar, com clareza, a verdade da mentira. Em grande parte dos casos haverá nebulosidade e contradita. Argumenta a doutrina: “É certo que, nos casos concretos, torna-se difícil estabelecer o que é verdade e o que é falsidade. Qualquer que seja o critério adotado, há que levar em conta essa dificuldade e há que ser flexível. O que se deve exigir dos órgãos de informação é a diligência em apurar a verdade; o que se deve evitar é a despreocupação e a irresponsabilidade em publicar ou divulgar algo que não resista a simples aferição” (Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, Direito de informação e liberdade de expressão, 1999, p. 97).


O que se exige dos veículos de comunicação é que ajam banhados pela boa-fé. Que busquem padrões mínimos de cuidado e zelo, com a constante checagem do que publicam. Serão responsabilizados se agem levianamente nessa delicada tarefa. Diga-se, a bem da verdade, que – excepcionados certos abusos, lamentáveis e nefastos – os órgãos de comunicação brasileiros apresentam níveis louváveis nos pontos referidos.


O autor acima citado, mais adiante, relata: “Antonio Scalisi, depois de examinar a jurisprudência italiana, concluiu que a informação jornalística é legítima se preencher três requisitos: o interesse social da notícia, a verdade do fato narrado e a continência da narração. Finalmente, é continente a narrativa quando a exposição do fato e sua valorização não integram os extremos de uma agressão moral, mas é expressão de uma harmônica fusão do dado objetivo de percepção e do pensamento de quem recebe, além de um justo temperamento do momento histórico e do momento crítico da notícia” (Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, Direito de informação e liberdade de expressão, 1999, p. 230).


4.2. Licitude do meio empregado na obtenção da informação


O meio empregado deve ser lícito. Se não for, a informação surge com esse vício de origem. Informações sigilosas vazam freqüentemente para a imprensa, o que, se por um lado pressiona as instituições públicas a agirem com eficiência e sem corporativismos, por outro pode atingir irreversivelmente pessoas inocentes.


A tendência, em linha de princípio, é guardar prudente cautela diante de informações provindas de meios ilícitos. Não estamos, é certo, em âmbito estritamente processual, a cujo respeito a Constituição Federal, de modo absoluto, proscreve as provas obtidas por meios ilícitos (CF, art. 5º, LVI). O que discutimos neste tópico são informações veiculadas pela imprensa cuja obtenção ocorreu de forma irregular – através de escuta telefônica não autorizada pela justiça, por exemplo, ou escuta telefônica cuja investigação segue em segredo de justiça.  


É preciso, no entanto, não adotar posição inflexível neste tópico. A ponderação de bens deverá atuar também aqui. Não se exclui que o interesse da sociedade na divulgação de certos fatos seja maior do que a preservação da forma eventualmente violada. O direito atual, aliás, caminha no sentido de privilegiar a função no lugar da estrutura, comprometendo-se com fins.


As câmeras escondidas – tão em moda nos últimos anos – se traduzem abusos em certos casos, representam, em outros, relevante mecanismo de exposição de terríveis práticas de corrupção e violência. Não se pode desconhecer isso. As circunstâncias, iluminadas pelos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, ditarão os caminhos que levam a soluções harmônicas com a Constituição da República. Deve-se evitar excessos, naturalmente, próprios de um estado policial. Porém não se pode deslizar no perigo oposto: aquele que, a pretexto de resguardar a intimidade, busca proteger corruptos da incisiva luz da opinião pública.


Diga-se ainda que a Constituição Federal preserva o sigilo da fonte jornalística. Prevê o art. 5º, XIV ser “assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. Um pouco antes, o inciso IX proclama: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.


Se a imprensa obteve a informação a partir de registros públicos, não haverá, em linha de princípio, dever de indenizar por danos morais.  Já se proclamou, a respeito, em doutrina: “Note-se ainda que a circunstância de a informação estar disponível em arquivos públicos ou poder ser obtida por meios regulares e lícitos torna-a pública e, portanto, presume-se que a divulgação desse tipo de informação não afeta a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem dos envolvidos” (Luís Roberto Barroso e Ana Paula Barcellos, “Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa”, RTDC, vol. 16, out/dez 2003, p. 89).


Nesse sentido tem caminhado a jurisprudência: “Civil. Responsabilidade civil. Imprensa. O jornalista, que publica informação à vista da carteira de habilitação do motorista, noticia fielmente, sem que se lhe possa cobrar responsabilidade ao fundamento de que os registros daquele documento não correspondem aos do Departamento de Trânsito, que autorizariam a condução de motocicleta” (STJ, EDcl nos EDcl no AgRg no Ag. 430870, Rel. Min. Ari Pargendler, 3a T., j. 29/11/05, p. DJ 01/02/06). Contextualizou o relator: “Se a carteira de habilitação não estava atualizada por falha de serviço do Detran (Departamento de Trânsito), esse é o órgão que deve ser responsabilizado – e não o que publicou a notícia à vista da carteira de habilitação”. Houve, no caso, publicação por jornal carioca de notícia informando que o então secretário-municipal de trânsito dirigia motocicleta sem habilitação.


Porém, mesmo aqui, certas ponderações se impõem. Conforme já alertamos mais de uma vez neste livro, em se tratando de dano moral, as respostas serão sempre tópicas, circunstanciais, dependendo dos contornos do caso concreto. É possível, em alguns casos, que mesmo que a notícia provenha de registros públicos, sua divulgação se mostre esvaziada de qualquer interesse social, sendo agressiva aos direitos da personalidade.


Nessa ordem de idéias, a “simples reprodução, por empresa jornalística, de informações constantes na denúncia feita pelo Ministério Público ou no boletim policial de ocorrência consiste em exercício do direito de informar”. Relativiza, porém, o Tribunal: “Na espécie, contudo, a empresa jornalística, ao reproduzir na manchete do jornal o cognome – apelido – do autor, com manifesto proveito econômico, feriu o direito dele ao segredo da vida privada, e atuou com abuso de direito, motivo pelo qual deve reparar os conseqüentes danos morais” (STJ, REsp. 613.374, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3a T., j. 17/05/05).


Teremos, na hipótese acima descrita, dano moral. Em outra situação, a editora responsável pela publicação de certo Jornal, em Maringá, foi condenada pela sétima Câmara Cível do TJPR em razão de haver reproduzido boletim de ocorrência que versava sobre flagrante de adultério. O marido traído, que teve a traição tornada pública pelo jornal, receberá quinze mil reais em razão da abusiva divulgação. Note-se que a defesa do jornal se centrou no fato de haver se limitado a divulgar nota constante de boletim de ocorrência elaborado pelo Estado, portanto, se responsabilidade houvesse, seria desse. O Tribunal afastou tal argumentação e condenou o jornal – corretamente, em nosso juízo.


4.3. Personalidade pública ou estritamente privada da pessoa objeto da notícia


Fator da mais alta relevância diz respeito à personalidade pública ou estritamente privada da pessoa objeto da notícia. Alguém que optar, por exemplo, pela vida política, não pode razoavelmente pretender gozar do mesmo grau de privacidade de alguém cuja vida profissional não tenha relação com verbas e interesses públicos.


Ninguém é obrigado a ser político. Quem escolhe funções que decidem os rumos da nação deve arcar com os ônus próprios da representação popular. A privacidade do político é nenhuma no que se refira aos negócios públicos, ainda que travestidos de transações privadas. As lentes da imprensa não podem, contudo, de modo desproporcional, se voltar para aspectos da vida do político que só diga respeito a si ou a sua família (dolorosa morte de sua filha, com câncer, por exemplo).


Argumenta Tepedino: “Stefano Rodotá, um dos mais talentosos juristas europeus da atualidade, sugere critérios interessantes para tais indagações. Afirma, em síntese, que é a própria vida do homem público que deve determinar, em concreto, os confins da informação sobre ele determinada”. E continua: “Mesmo o homem público tem o sagrado direito de ser resguardada sua vida sentimental ou sexual; a manter sigilo em relação a quem recebe ou freqüenta. O mesmo não mais se pode dizer, contudo, se ele professa um moralismo exasperado e é visto, pela imprensa, em situação que contradiga sua pregação e a de seu partido. É, aí, interesse do público e do eleitor ser bem-informado”.


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Conclui: “Em situação não distante está um ministro da Indústria que mantenha relações privadas, ou estreita relação pessoal, com empresários da indústria química ou farmacêutica” (Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 476). Lembremos, rente aos exemplos do jurista italiano, que recentemente a imprensa brasileira revelou que vários dirigentes da ANAC – Agência Nacional de Aviação Civil – mantinham relações comerciais extremamente próximas com as empresas que deviam investigar, em perigosa confusão de interesses.


É preciso ponderar que personalidade pública não significa, necessariamente, ocupante de cargo, emprego ou função pública. O conceito é mais amplo. Cantores, apresentadores, escritores são personalidades públicas, especialmente num mundo cada vez mais cioso da fama e do espetáculo. Devem estar dispostas a um grau menor de privacidade e vida íntima, sem que isso signifique autorização para invasões grosseiras e ofensivas da intimidade de quem quer que seja.


Há alguns anos atrás a imprensa publicou minúcias sobre a vida fiscal do então técnico da seleção brasileira de futebol. Foram publicados, inclusive, extratos de suas declarações de renda – a cujo respeito havia fortes indícios de irregularidade. O cargo em questão, em termos formais, é privado, pois a CBF não integra a administração pública. É inegável, porém, a importância que a função de técnico da seleção ocupa do imaginário popular brasileiro, com fortíssima conotação simbólica.


A respeito, em lírico voto, ponderou o desembargador Rui Domingues: “Um grande jogador de futebol como Jairzinho é tão importante para o povo brasileiro como Kant ou Heidegger para um estudante de filosofia na Alemanha. Tais nomes, tais imagens, não podem ser tomadas em vão, nem a troco de nada” (citado em Carlos Affonso Pereira de Souza, “Contornos atuais do direito à imagem”, in RTDC, ano 4, vol. 13, jan/mar de 2003, p. 69).


4.4. Local e natureza do fato


Aspecto que pode sugerir irrelevância mas que não pode ser negligenciado é o local do fato. Onde ocorreu o fato divulgado? Um político nadando nu na piscina de sua casa poderia ser fotografado por câmera oculta? E se o mesmo político é fotografado saindo de motel com amante? Há relevância social na questão? Trata-se de alguém cuja plataforma política é amparada numa moral austera e rígida?


São infinitas as variáveis neste ponto. Gostaríamos apenas de alertar para a relevância de observamos, também, o local onde o fato divulgado ocorreu – bem como, naturalmente, a própria natureza do fato.


Digamos – valendo-nos do exemplo acima referido – que uma revista pornográfica publique, sem autorização, foto de alguém, conseguida indevidamente enquanto o fotografado tomava banho na piscina de sua casa. Haverá, na espécie, violação do direito à própria imagem, possivelmente aliada à violação do direito à honra. Dessa espécie de violação fala o STJ no acórdão seguinte: “O uso de imagem para fins publicitários, sem autorização, pode caracterizar dano moral se a exposição é feita de forma vexatória, ridícula ou ofensiva ao decoro da pessoa retratada” (STJ, REsp. 230.268, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, 3a T., j. 13/03/01, p. DJ 18/06/01).


Desse modo, “aquele que usa a imagem de terceiro sem autorização, com intuito de auferir lucros e depreciar a vítima, está sujeito à reparação, bastando ao autor provar tão-somente o fato gerador da violação do direito à sua imagem” (STJ, EDcl no REsp. 436.070, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3a T., j. 05/05/05, p. DJ 23/05/05). Continua a Ministra: “Se ao uso indevido da imagem soma-se o intuito de depreciar a vítima, deve a reparação abranger não apenas os danos materiais, mas também os morais” (STJ, REsp. 436.070, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3a T., j. 04/11/04, p. DJ 04/04/05).


É possível que haja dano à imagem sem que haja dano à honra. Eles não se confundem. Se peça publicitária de conhecida marca utiliza a imagem de modelo em início de carreira, ainda que tal uso indevido seja benéfico para a carreira do modelo, e ainda que ausente qualquer lesão à honra, haverá dano à imagem, eis que indevida, porque não autorizada, a utilização, máxime se para fins comerciais.


Ressalte-se, porém, que os parágrafos acima têm como pano de fundo a lesão ao direito de imagem vinculada a peças publicitárias. Em relação aos órgãos de imprensa, seria claramente excessivo exigir, em todos os casos, autorização do fotografado como condição de licitude da publicação. Um senador acusado de corrupção poderia, por exemplo, impedir que os jornais do país publicassem sua foto, esgrimindo o direito de imagem? A resposta negativa é a única que casa com a razoabilidade.


Cabe, a propósito, lembrar o art. 20 do Código Civil, cuja redação está assim posta: “Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”.


Em lúcida análise crítica do dispositivo, argumentou-se: “Suponha-se que uma alta autoridade da República seja atingida por um ovo arremessado por um manifestante e reaja com um insulto preconceituoso. A divulgação do episódio certamente traz uma exposição negativa de sua imagem. O evento, por sua vez, nada tem a ver com a administração da justiça ou com a manutenção da ordem pública. Pergunta-se: é compatível com a Constituição impedir a divulgação desse fato? Parece evidente que não”.


Continuam os autores: “Imagine-se, agora, que um jornalista apure que determinado governador de estado era, até pouco antes da posse, sócio em uma empresa de fachada, acusada de lavagem de dinheiro. Tampouco aqui pareceria legítimo proibir a divulgação da notícia, independentemente de prévia autorização ou de qualquer repercussão sobre a administração da justiça ou a ordem pública. Considere-se um exemplo inverso. Um servidor público é suspeito da prática de ato de improbidade. A autoridade que conduz a investigação decide publicar uma foto do investigado na imprensa, solicitando a todos os que tenham alguma informação relevante para incriminá-lo que se dirijam a determinada repartição. A providência poderá até ser útil para a administração da justiça, mas tal conduta certamente não se afigura legítima à luz da Constituição” (Luís Roberto Barroso e Ana Paula Barcellos, “Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa”, RTDC, vol. 16, out/dez 2003, p. 96).


Os autores que se debruçam sobre o tema não manifestam simpatia em relação à norma em questão. Observa-se que o “art. 20 do novo Código Civil, que representa uma ponderação de interesses por parte do legislador, é desarrazoado, porque valora bens constitucionais de modo contrário aos valores subjacentes na Constituição. A opção do legislador, tomada de modo apriorístico e desconsiderando o bem constitucional da liberdade de informação, pode e deve ser afastada pela interpretação constitucional” (Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, “Direito à informação x direito à privacidade. O conflito de direitos fundamentais”. Revista da AMAERJ, n. 5, 2002, p. 15).  


4.5. Existência de interesse público na divulgação


O interesse público, se existente, permeia de razoabilidade a divulgação da notícia. Havendo interesse público, e sendo verdadeira a informação jornalística, os demais tópicos, ainda que contrários, ficam enfraquecidos.


Vivemos dias férteis em denúncias. Algumas, embora acompanhadas de fortíssimos indícios, são veiculadas pela imprensa e logo depois esquecidas, atropeladas, por assim dizer, por outras, tão ou mais graves. Denúncias de corrupção, escusos acordos políticos, violação a direitos fundamentais, entre tantos outros casos, são exemplos de notícias cuja divulgação se mostra fundamental ao interesse social.


Precauções, porém, são necessárias. Alerta-se em doutrina, discorrendo sobre o interesse público: “É preciso, no entanto, cuidado com essa espécie de cláusula genérica que, historicamente, tem sido empregada, com grande dissimulação, para a prática de variadas formas de arbítrio no cerceamento das liberdades individuais, na imposição de censura e de discursos oficiais de matizes variados. Mesmo porque, vale lembrar que o pleno exercício das liberdades de informação e de expressão constitui um interesse público em si mesmo, a despeito dos eventuais conteúdos que veiculem” (Luís Roberto Barroso e Ana Paula Barcellos, “Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa”, RTDC, vol. 16, out/dez 2003, p. 86/87).


Interesse público obviamente não se confunde com interesse de eventuais governos – sendo, aliás, freqüentemente contrapostos tais interesses. Notou, argutamente, García de Enterría, que “atualmente o interesse público reside na promoção dos direitos fundamentais” (Jaime Rodríguez-Arana, “Nuevas Orientaciones Doctrinales sobre la Responsabilidad Patrimonial de la Administración Pública”, Scientia Iuridica, Universidade do Minho, Braga, n. 293, maio/agosto, 2002, p. 274).


Matéria jornalística que fere a vida privada, divulgando abusivamente a orientação sexual de alguém, por intermédio de seu apelido, enseja danos morais. (STJ, REsp. 613.374, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3a T., j. 17/05/05). O jornal, no caso, referiu-se à vítima sempre como sendo “Carlos Bicha”, o que repercutiu na pequena cidade.


Argumentou a relatora: “Com o delineamento dos fatos, ficou evidenciado que a recorrida, ao reproduzir na manchete do jornal o cognome – ‘apelido’ – do autor (Carlos Bicha), atitude que redundou em manifesto proveito econômico, feriu o direito do recorrente ao segredo de sua vida privada, divulgando desnecessariamente o ‘apelido’ repugnado, e, portanto, atuou com abuso de direito, exsurgindo como conseqüência o ferimento ao direito de todo cidadão manter a vida privada distante do escrutínio público”.


Continua: “É preciso reafirmar que notícia da orientação sexual de determinada pessoa, por si só, não enseja reparação indenizatória, mas, no presente processo, não há dúvidas sobre a indevida agressão ao segredo da vida privada do recorrente porque o cognome do recorrente foi divulgado por toda área de circulação do jornal, além da cidade onde mora. Na aplicação do direito à espécie (art. 257 do RISTJ), fixo a reparação a título de danos morais no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), em observância ao porte econômico da recorrida, ao seu grau de culpabilidade, e às circunstâncias em que ocorreu o evento danoso” (STJ, REsp. 613.374, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3a T., j. 17/05/05). Parece evidente, neste caso, a absoluta ausência de interesse público na divulgação da orientação sexual da vítima.


4.6. Preferência por medidas que não envolvam a proibição prévia da divulgação


Devem ser evitadas quaisquer medidas, judiciais ou administrativas, que turbem o direito à livre circulação de notícias e opiniões. Lembremos que a Constituição Federal, art. 5º, IX, assegura ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Mais adiante, no inciso XIV, garante “a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”.


Apenas em último caso o julgador deve determinar a proibição da veiculação da notícia. Mesmo porque, dada a difusão tecnológica da informação que define nossos dias, o efeito quase sempre é contrário ao pretendido. A indenização por danos morais, o direito de resposta no mesmo veículo e com o mesmo espaço, dentre outras sanções, são preferíveis em linha de princípio.


Porém, novamente, faremos uma contra-argumentação relativamente ao que dissemos. Em certos casos, a lesão pode ser patente, e a publicação gerar danos irreversíveis a alguém. Estatui, a propósito, o Código Civil no art. 12: “Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”. O art. 21 complementa a previsão: “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”. Teremos, nesse caso, a tutela preventiva ou inibitória que – embora importantíssima, especialmente em se tratando da tutela da vida e da saúde humanas, como sempre defendemos em inúmeras ocasiões – deve ser usada com parcimônia na ponderação entre liberdade de imprensa e vida privada.


5. Quem responde por escritos ofensivos publicados em jornais?


Artigos e matérias, assinados ou não, publicados em jornais freqüentemente dão causa a danos morais. Uma pergunta prévia é esta: contra quem deve ser dirigida a ação? Quem figurará no pólo passivo da demanda?


O STJ já teve oportunidade de analisar a questão, decidindo que os jornalistas são civilmente responsáveis, ao lado do dono do veículo de comunicação, pelo que publicam (STJ, Súmula 221: “São civilmente responsáveis pelo ressarcimento de dano, decorrente de publicação pela imprensa, tanto o autor do escritor quanto o proprietário do veículo de divulgação”).


Nessa perspectiva, o jornalista que calunia ou difama comete ato ilícito, respondendo civilmente pelos danos materiais e morais causados (Código Civil, art. 186 ou 187 c/c art. 927). Assim, o “jornalista responsável pela veiculação de notícia ou charge em jornal, de que decorreu a ação indenizatória de dano moral promovida pelo que se julga ofendido em sua honra, tem legitimidade para figurar no seu pólo passivo” (STJ, REsp. 209.981, Rel. Min. César Asfor Rocha, 4a T., j. 09/05/00, p. DJ 26/06/00). Solidariamente, responde o proprietário do veículo de comunicação. A vítima poderá escolher contra quem proporá a ação.


A indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá – de acordo a dicção tautológica do art. 953 do Código Civil – na reparação do dano que delas resulte ao ofendido. O parágrafo único do referido artigo completa: “Se o ofendido não puder provar prejuízo material, caberá ao juiz fixar, eqüitativamente, o valor da indenização, na conformidade das circunstâncias do caso”. Já ponderamos em outra ocasião que a tendência contemporânea é abandonar as indenizações tarifadas, deixando que a prudência do juiz, atento às circunstâncias do caso, defina o razoável e o proporcional.


A jurisprudência anota que “todos aqueles que concorrem para o ato lesivo decorrente da veiculação de notícia na imprensa podem integrar o pólo passivo da ação de responsabilidade civil” (STJ, AgRg no Ag. 702.321, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3a T., j. 18/10/05, p. DJ 01/02/06). Já se ressaltou, contudo, que o “sócio da pessoa jurídica proprietária da revista em que publicada a matéria ofensiva, em princípio, não responde solidariamente com a empresa pela indenização do dano” (STJ, REsp. 336.783, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4a T., j. 16/04/02, p. DJ 10/06/02).


6. Lei de Imprensa (Lei n. 5.250/67)


A Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/67) nunca foi vista com olhos simpáticos pela doutrina, em razão de sua origem: os anos da ditadura militar. Além desse vício de origem, ela se mostra pouco técnica, sendo, de fato, defeituosa em múltiplos pontos. A jurisprudência, atenta a isso, vem reescrevendo muita das suas exigências, como veremos nos itens a seguir.


6.1. São válidos os valores de indenização firmados pela Lei de Imprensa?


A jurisprudência nacional não costuma aceitar que a lei defina limites máximos aos valores de indenização por danos morais. Já se decidiu, por exemplo, que “a estipulação do valor da indenização por danos morais não está restrita aos critérios do Código Brasileiro de Telecomunicações ou da Lei de Imprensa, podendo ser revisto neste Tribunal quando contrariar a lei ou o bom senso, mostrando-se irrisório ou exorbitante” (STJ, REsp. 416.846. Rel. Min. Castro Filho, 3a. T., j. 05/11/02, p. DJ 07/04/03). Tão forte é o entendimento jurisprudencial a propósito que a matéria foi sumulada: “A indenização por dano moral não está sujeita à tarifação prevista na Lei de Imprensa” (STJ/281).


Também não são consideradas válidas as limitações estabelecidas pelo Código Brasileiro de Telecomunicações: “Pacífico o entendimento deste Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o montante arbitrado a título de danos morais não está adstrito aos valores estipulados pelo Código Brasileiro de Telecomunicações” (STJ, REsp 651.088, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, 4a T., j. 10/04/07, DJ 21/05/07).


Julgando o célebre caso da Escola Base – ocorrido em 1994, quando falsas denúncias de abuso sexual destruíram a vida de inocentes, proprietários de uma escola de educação infantil – o STJ, confirmando assim decisão do TJSP, concedeu, a cada uma das vítimas, o valor de R$ 250 mil a título de danos morais, contra o jornal que veiculou as acusações.  O STJ entendeu que o valor em questão não é abusivo, diante das gravíssimas (e falsas) acusações (STJ, Ag. 801.495, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, 4a T., 08/11/06).


6.2. É válido o prazo decadencial previsto na Lei de Imprensa?


A Lei de Imprensa (Lei n. 5.250/67) previu no art. 56: “A ação para haver indenização por dano moral poderá ser exercida separadamente da ação para haver reparação do dano material, e sob pena de decadência deverá ser proposta dentro de 3 meses da data da publicação ou transmissão que lha der causa”.


Esse prazo decadencial de três meses, no entanto, foi corretamente afastado pela jurisprudência nacional. Assim, a “sistemática da reparação do dano moral prevista na Constituição de 1988 não acolheu o prazo decadencial estabelecido no art. 56 da Lei de Imprensa” (STJ, AgRg no REsp. 404.070, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4a T., j. 19/11/02, p. DJ 24/02/03). Prevalece, atualmente, o prazo prescricional de três anos previsto no Código Civil (art. 206, § 3º, V).


6.3. A empresa jornalística precisa ser notificada previamente?


A Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/67) estabelece, art. 57, que “a petição inicial da ação para haver reparação de dano moral deverá ser instruída com o exemplar do jornal ou periódico que tiver publicado o escrito ou notícia, ou com a notificação feita, nos termos do art. 53, 3º, à empresa de radiofusão, e deverá desde logo indicar as provas e as diligências que o autor julgar necessárias, arrolar testemunhas e ser acompanhada da prova documental em que se fundar o pedido”.


O art. 58 da mesma lei proclama: “As empresas permissionárias ou concessionárias de serviços de radiofusão conservar em seus arquivos, pelo prazo de 60 dias, e devidamente autenticados, os textos dos seus programas, inclusive noticiosos”. Mais adiante o § 3º estabelece: “Dentro dos prazos referidos neste artigo, o Ministério Púbico ou qualquer interessado poderá notificar a permissionária ou concessionária, judicial ou extrajudicialmente, para não destruir os textos ou gravações do programa que especificar. Neste caso, sua destruição dependerá de prévia autorização do juiz da ação que vier a ser proposta, ou, caso esta não seja proposta nos prazos de decadência estabelecidos em lei, pelo juiz criminal a que a permissionária ou concessionária pedir autorização”. 


É indispensável, processualmente falando, que o autor da ação de danos morais providencie a notificação em referência, para sua demanda possa prosseguir? A resposta é negativa, e a jurisprudência já se manifestou a propósito:“A orientação do Superior Tribunal de Justiça firmou-se no sentido da dispensabilidade da prévia notificação à emissora de televisão para guarda da cópia original de programa alegadamente ofensivo à moral do autor, como requisito ao ajuizamento da ação indenizatória, porquanto a lesão pode ser demonstrada por outros meios colacionados na fase cognitiva da demanda. Precedentes” (STJ, REsp. 37.170, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, 4a T., j. 15/02/05, p. DJ 25/04/05).


7. Dano moral e televisão


A TV aberta alcança, hoje, todos os municípios brasileiros. O número de moradias com televisores é maior do que o número de domicílios beneficiados com a rede de esgoto, conforme dados do IBGE (Sergio Gardenghi Suiama, “A voz do dono e o dono da voz: o direito de resposta coletivo nos meios de comunicação social”, Boletim Científico da ESMPU, ano I, nº 5, out/dez 2002, p. 109). O potencial de lesão a direitos e interesses metaindividuais, portanto, é espantosamente alto. Sendo uma concessão pública, haverá de estar sujeita a padrões mínimos de responsabilidade, consignando a Constituição no art. 221: “A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”. Não é isso, contudo, que vem ocorrendo.


Analisa Sergio Suiama : “Na busca por pontos no ibope, parece haver um especial prazer das emissoras em explicitar a miséria humana, em todas as suas manifestações. Brigas familiares, exposição de deformações físicas e a submissão de pessoas a constrangimentos de toda a espécie são eventos comuns, acessíveis a milhões de brasileiros. Na precisa observação do psicanalista Jurandir Freire Costa, ‘o jogo se assemelha às visitas que o burguês europeu ‘fin-de-siècle’ fazia a circos, hospícios, hospitais e prisões para ver de perto os ‘monstros degenerados’ e, depois, com suspiro de alívio, dizer: ‘Que bom que não sou eu’” (Sergio Gardenghi Suiama, “A voz do dono e o dono da voz: o direito de resposta coletivo nos meios de comunicação social”, Boletim Científico da ESMPU, ano I, nº 5, out/dez 2002, p. 107). Continua o autor: “Não se trata de moralismo. De há muito que o problema ultrapassou o restrito âmbito das reuniões da Liga das Senhoras Católicas. Trata-se, isso sim, da reiterada violação de direitos fundamentais, pelas emissoras de TV”.


7.1. Guerra pela audiência


A televisão brasileira é acusada de vulgaridade, exibindo, de modo inconseqüente, o que for preciso para garantir vantagens no Ibope. Nessa disputa não é difícil constatar agressões severas a direitos fundamentais.


A jurisprudência tem se mostrado firme em coibir tais excessos. Em 2007, o STJ condenou o SBT a pagar indenização de cerca de duzentos mil reais a cada uma das vítimas de uma comunidade ridicularizada no programa do Ratinho (STJ, REsp. 838.550, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, 4a T., 14/02/07).


Os contornos do caso foram os seguintes: em 1999 a colônia de naturismo Colinas do Sul, situada no município gaúcho de Taquara, recebeu uma equipe de televisão do SBT. O propósito da comunidade era desmistificar o naturismo, mostrando que famílias convivem harmoniosamente na comunidade, sem qualquer conotação sexual. As cenas gravadas – conforme acordo firmado e objeto de cláusula contratual expressa – deveriam ser divulgadas exclusivamente no programa SBT repórter, conduzido pelo jornalista Hermano Henning.


O SBT, contudo, descumprindo o acordo, exibiu posteriormente as imagens no programa do Ratinho, acompanhadas de comentários grosseiros e ofensivos feitos pelo apresentador. O STJ afirmou que “houve abuso e desrespeito na veiculação das imagens dos autores, membros da comunidade naturista, pelo SBT no Programa do Ratinho, inclusive, em descumprimento de cláusula contratual expressa, de forma deliberada” (STJ, REsp. 838.550, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, 4a T., 14/02/07).


Na fixação do valor, o STJ concedeu R$ 200 mil para cada um dos naturistas ofendidos. Reduziu-se, assim, o valor fixado pela Justiça gaúcha, que houvera fixado o valor de mil salários mínimos para cada ofendido, totalizando assim R$ 1,82 milhão – o que perfaria a maior condenação por danos morais da história da justiça brasileira.


7.2. Efeito pedagógico da indenização


Já dissemos que a indenização por danos morais pode fixar uma punição exemplar, como forma de “contribuir para desestimular o ofensor a repetir o ato, inibindo sua conduta antijurídica” (STJ, REsp. 265.133, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4a T., j. 19/09/00, p. DJ 23/10/00). É o chamado caráter dúplice do dano moral: além de compensar a vítima (ou sua família, em caso de morte), apresenta também função punitiva ou pedagógica: “O valor do dano moral tem sido enfrentado no STJ com o escopo de atender a sua dupla função: reparar o dano, buscando minimizar a dor da vítima, e punir o ofensor para que não reincida” (STJ, REsp. 550.317, Rel. Min. Eliana Calmon, 2a T., j. 07/12/04, p. DJ 13/06/05).


A jurisprudência tem reconhecido, em vários casos, o caráter pedagógico que a indenização por danos morais deve ter: “Ademais, a reparação deve ter fim também pedagógico, de modo a desestimular a prática de outros ilícitos similares, sem que sirva, entretanto, a condenação de contributo a enriquecimentos injustificáveis” (STJ, REsp. 355.392, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3a T., j. 26/03/02, p. DJ  17/06/02).


Tal entendimento é partilhado pelo Supremo Tribunal Federal, ao explicitar “a necessária correlação entre o caráter punitivo da obrigação de indenizar e a natureza compensatória para a vítima” (STF, Rel. Min. Celso de Mello, Agravo de Instrumento n. 455.846, j. 11/10/04). A ementa do julgado expressamente consignou: “(…). Dupla função da indenização civil por dano moral (reparação-sanção): a) caráter punitivo ou inibitório (‘exemplary or punitive damages’) e b) natureza compensatória ou reparatória”.


No caso referido no tópico anterior – exibição, pelo SBT, das imagens no programa do Ratinho, acompanhadas de comentários grosseiros e descumprindo o acordo firmado – o relator do caso, além de argumentar que houve abuso e desrespeito por parte da emissora, corretamente ponderou que tal conduta “há de ser reprimida com rigor, não só pela gravidade da situação concreta, como pela necessidade de se coibir novas condutas semelhantes. Há que se dar o caráter punitivo adequado para que não se concretize a vantagem dos altos índices de audiência sobre os riscos advindos da violação dos direitos constitucionalmente garantidos, honra e dignidade” (STJ, REsp. 838.550, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, 4a T., 14/02/07).


Na fixação do valor, o STJ concedeu R$ 200 mil para cada um dos naturistas ofendidos. Reduziu-se, assim, o valor fixado pela Justiça gaúcha, que houvera fixado o valor de mil salários mínimos para cada ofendido, totalizando assim R$ 1,82 milhão – o que perfaria a maior condenação por danos morais da história da justiça brasileira.


8. Outras manifestações do pensamento


Abordaremos a seguir outras manifestações do pensamento que, embora não guardem necessária vinculação temática entre si, traduzem espécies de manifestação da liberdade de pensamento e de opinião, vinculadas, direta ou indiretamente, à atuação da mídia.


8.1. Programas de humor


O brasileiro, povo reconhecidamente alegre e de espírito festivo, tem no humor uma saudável válvula de escape contra as durezas do dia-a-dia. Quando as manifestações satíricas são veiculas pela imprensa – em programas de televisão, ou em charges nos jornais – surgem, freqüentemente, reclamações de agressões a honra por parte daqueles que são objeto da gozação.


Não é fácil delimitar as fronteiras entre o humor, ainda que sarcástico e até duro, e o dano moral. As respostas – repitamos mais uma vez – serão tópicas e circunstanciais. Deve-se lembrar, ainda, que o humor tem variadas funções, algumas de inegável relevância coletiva na crítica política e de costumes. São dimensões que não podem ser negligenciadas.


Não faz sentido impor moral rígida aos programas de humor, exigindo que suavizem críticas e ironias. O mundo político, que é freqüentemente alvo de piadas, vez por outra anuncia a intenção de processar humoristas, quase sempre sem ir adiante.


A pessoa, classe ou categoria objeto da piada é fator que deve ser levado em conta pelo julgador. Ainda que certas generalizações possam ser injustas – piadas associando políticos a corrupção – são compreensíveis e aceitáveis, diante do número de lamentáveis escândalos que os tem como protagonistas. O humorismo, de alguma forma, se vinga, ironizando os corruptos.


Escrevemos em outra oportunidade: “Naturalmente, múltiplos fatores entrarão em linha de consideração, inclusive a imagem que a instituição tem perante a sociedade (um virulento ataque ao Congresso Nacional, em tempos de Mensalão e Sanguessugas, será compreensível, ainda que nem todos os membros do Congresso compactuem com tais práticas)” (Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2007).


Portanto, em linha de princípio, não deverá haver dano moral vinculado a programas humorísticos – salvo, evidentemente, em hipóteses excepcionais, cuja lesão restar suficientemente comprovada. Recentemente – em junho de 2007 – o Programa Casseta e Planeta, da Globo, fez um quadro com os chamados “deputados de programa”. Nele, dentre outras piadas, uma prostituta reage indignada quando lhe perguntam se é deputada. Em outra ocasião, deputados são vacinados contra a “febre afurtosa”. Alguns deputados reagiram raivosamente, e o presidente da Câmara dos Deputados anunciou a intenção de pedir direito de resposta e processar os responsáveis por dano moral.


Os humoristas não quiseram falar sobre o assunto, argumentando “não querer dar importância à concorrência”. Divulgaram, porém, divertidíssima nota de esclarecimento: “Foi com surpresa que nós, integrantes do Grupo CASSETA & PLANETA, tomamos conhecimento, através da imprensa, da intenção do presidente da Câmara dos Deputados de nos processar por causa de uma piada veiculada em nosso programa de televisão. Em vista disso, gostaríamos de esclarecer alguns pontos: 1) Em nenhum momento tivemos a intenção de ofender deputados ou prostitutas. O objetivo da piada era somente de comparar duas categorias profissionais que aceitam dinheiro para mudar de posição. 2) Não vemos nenhum problema em ceder um espaço para o direito de resposta dos deputados. Pelo contrário, consideramos o quadro muito adequado e condizente com a linha do programa. 3) Caso se decidam pelo direito de resposta, informamos que nossas gravações ocorrem às segundas-feiras, o que obrigará os deputados a ‘interromper seu descanso’”.


A jurisprudência, em determinada ocasião, proclamou: “Não cabe ao STJ, portanto, dizer se o humor é ‘inteligente’ ou ‘popular’. Tal classificação é, ‘de per si’, odiosa, porquanto discrimina a atividade humorística não com base nela mesma, mas em função do público que a consome, levando a crer que todos os produtos culturais destinados à parcela menos culta da população são, necessariamente, pejorativos, vulgares, abjetos, se analisados por pessoas de formação intelectual ‘superior’ – e, só por isso, já dariam ensejo à compensação moral quando envolvessem uma dessas pessoas (…)” (STJ, REsp. 736.015, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3a T., j. 16/06/05, p. DJ 01/07/05).


8.2. Charges


O que dissemos acima se aplica integralmente às charges. Recentemente o TJRS decidiu que charge retratando um policial militar fardado, de joelhos, demonstrando ferocidade e sendo conduzido por um cachorro, com os dizeres “policiamento no protesto em Sapiranga e no Beira-Rio”, não enseja danos morais. O episódio a que a charge se refere resultou na morte de trabalhador que participava de manifestação. O relator, Desembargador Paulo Sérgio Scarparo, ponderou: “Incontroverso que o norte é a crítica a essas ações protagonizadas pela Brigada Militar, nas quais seus agentes teriam se excedido”.


A decisão nos parece correta. Seria pouco razoável pretender vigiar severamente a atividade dos chargistas, que com humor e irreverência criticam os costumes políticos e sociais. A própria fiscalização dos atos públicos deve muito ao humor arguto que eles apresentam.


As notícias, ainda que desagradáveis, se verídicas, não ensejam indenização, especialmente se trazem alguma nota de interesse público. Há algum tempo determinada revista semanal publicou reportagem dando conta de ligações perigosas envolvendo ministros de tribunal, grileiros e advogados de famoso político. Segundo a reportagem, grileiros patrocinavam instituto que pagava por serviços prestados por integrantes do Judiciário.  


A 6a Câmara de Direito Privado do TJ/SP, ao analisar o caso, não viu, na espécie, violação à imagem, sendo verdadeiros os fatos narrados, e cabendo, aos homens públicos, além da honestidade, preocupar-se com a aparência dela.  O mesmo TJ/SP, há mais tempo, decidiu: “Indenização – Responsabilidade civil – Dano moral – Lei de Imprensa – Notícia, acompanhada de charge, reputada ofensiva e pejorativa, causando abalo à honra do autor – Crítica proveniente de fato verdadeiro – Inocorrência de versão completamente distorcida, a acarretar maltrato a intimidade – Ação improcedente – Recurso não provido JTJ 232/110. Além disso, imperioso destacar que: INDENIZAÇÃO – Lei de Imprensa – Direito de crítica – Recurso provido. Não cabe indenização por notícia veiculada em jornal, quando é exercido legítimo direito de crítica na divulgação de fato verdadeiro e moralmente reprovável. (TJ – Apelação Cível n. 260.340-1 – São Paulo – 6ª Câmara de Direito Privado – Relator: Ernani de Paiva – 20.06.96).


8.3. Comentaristas políticos


O presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia, ameaçou processar comentarista político em razão do seguinte comentário – reproduzido na rádio CBN, dia 24 de abril de 2007. “Nos primeiros dois meses da atual legislatura, os deputados, em dois meses apenas, pediram o reembolso de 11 milhões e 200 mil reais, pagos com a verba da Câmara.


Os repórteres do Estadão Guilherme Scarance e Silvia Amorim fizeram as contas e concluíram que entre fevereiro e março, com dinheiro público, os deputados teriam gasto um milhão de litros de gasolina. Ou seja, essa quantidade de gasolina daria para dar a volta ao mundo 255 vezes.


São 255 vezes 44.000 quilômetros, que dá a distância de 11.200.000 quilômetros. E aí é que vem a resultante espantosa: a distância da Terra à Lua é de 384 mil quilômetros, ou seja, senhores, senhoras ouvintes, daria para fazer a viagem de ida e volta à Lua 15 vezes”.


Cabe repetir o que já ponderamos em outras oportunidades desta obra. Tais críticas não ensejam danos morais. As instituições públicas, mormente políticas, são – e devem ser – objeto de crítica. Não se concebe democracia sem espírito crítico. Ainda que ácidas e eventualmente injustas – o que não parece ser o caso – as críticas são instrumentos essenciais de aprimoramento político. O espaço do humor irônico e das censuras acres há de ser preservado como bem-vindo ao jogo democrático.


8.4. Biografias não autorizadas


Questão interessantíssima – embora não diga respeito estritamente à atuação da imprensa – diz respeito às biografias não autorizadas. São possíveis? Em que medida? Como avaliar se retratam fielmente a vida do biografado ou estampam agressões? E ainda que retratem fielmente, ele, o biografado, não tem o direito de manter tais circunstâncias longe dos olhos do público? E as fotos? Se o direito de imagem, segundo tranqüila jurisprudência, impede a publicação não autorizada de fotos, como compatibilizar tal proibição com as biografias, onde tais fotos são estampadas?


Em abril de 2007, Roberto Carlos conseguiu uma liminar para proibir a venda de sua biografia. O escritor – historiador Paulo César de Araújo – se disse surpreso com a reação furiosa e destemperada de Roberto Carlos.


Ruy Castro, talvez o mais conhecido biógrafo do Brasil, reclama: “Com isso se torna difícil escrever a história do Brasil”. O próprio Ruy Castro teve problemas a esse respeito. Sua biografia de Garrincha – a Estrela Solitária – teve sua venda e reimpressão proibida durante 11 meses, em razão de uma ação proposta pela família do jogador.


Mais uma vez a ponderação de princípios se impõe. Se as biografias não podem ter sua publicação absurdamente proibida – em regressão ditatorial -, tampouco se pode aceitar que qualquer um de nós esteja livre para escrever o que desejar sobre a vida de outrem. Nem lá nem cá. A necessidade do equilíbrio é óbvia.


A jurisprudência tende a ser rígida, não permitindo, em princípio, o uso não autorizado de imagem alheia: “Civil. Uso indevido da imagem. Indenização de danos morais. O uso não autorizado de uma foto que atinge a própria pessoa, quanto ao decoro, honra, privacidade, etc, e, dependendo das circunstâncias, mesmo sem esses efeitos negativos, pode caracterizar o direito à indenização pelo dano moral, independentemente de prova de prejuízo. Hipótese, todavia, em que o autor da ação foi retratado de forma acidental, num contexto em que o objetivo não foi a exploração de sua imagem” (STJ, REsp. 85.905, Rel. Min. Ari Pargendler, 3a T., j. 19/11/99, p. DJ 13/12/99).


A proibição à utilização da imagem alheia, contudo, não vai ao ponto de criar uma redoma, absolutamente irreal, em torno de alguém. Por exemplo, como teve oportunidade de julgar o STJ, se alguém é acidentalmente fotografado em livraria, ou em loja de vídeo, não seria razoável que uma foto, tirada em tais circunstâncias, impusesse direito à reparação. Nesse sentido decidiu-se: “O uso não autorizado de uma foto que atinge a própria pessoa, quanto ao decoro, honra, privacidade, etc, e, dependendo das circunstâncias, mesmo sem esses efeitos negativos, pode caracterizar o direito à indenização pelo dano moral, independentemente da prova de prejuízo. Hipótese, todavia, em que o autor da ação foi retratado de forma acidental, num contexto em que o objetivo não foi a exploração de sua imagem” (STJ, REsp. 85.905, Rel. Min. Ari Pargendler, 3a T., j. 19/11/99, p. DJ 13/12/99).


Naturalmente, se da utilização da imagem alheia sem autorização, mesmo sem fins lucrativos, surge dever de indenizar, com muito maior razão quando há proveito econômico dessa utilização. Assim, a “utilização da imagem de atleta mundialmente conhecido, com fins econômicos, sem a devida autorização do titular, constitui locupletamento indevido ensejando indenização, sendo legítima a pretensão dos seus sucessores” (STJ, REsp. 74.473, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4a T., j. 23/02/99, p. DJ 21/06/99).


Nesses casos acima mencionados, o valor da indenização não tem como teto o lucro do agressor, podendo ir além: “O valor do dano sofrido pelo titular do direito, cuja imagem foi indevidamente incluída em publicação, não está limitado ao lucro que uma das infratores possa ter auferido, pois o dano do lesado não se confunde com o lucro do infrator, que inclusive pode ter sofrido prejuízo com o negócio” (STJ, REsp.100.764, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4a T., j. 24/11/97, p. DJ 16/03/98).


O direito de imagem não cessa com a morte, cabendo aos herdeiros, verificado o uso indevido, agir para defendê-lo: “Responsabilidade civil. Uso indevido da imagem. Divulgação, em revista de expressiva circulação, de propaganda comercial contendo as fotos do conhecido casal ‘Lampião’ e ‘Maria Bonita’. Falta de autorização. Finalidade comercial. Reparação devida. A utilização da imagem da pessoa, com fins econômicos, sem a sua autorização ou do sucessor, constitui locupletamento indevido, a ensejar a devida reparação” (STJ, REsp. 86.109, Rel. Min. Barros Monteiro, 4a T., j. 28/06/01, p. DJ 01/10/01). Inclusive com legitimidade atividade para, se for o caso, propor ação de dano moral.


Informações Sobre o Autor

Felipe Peixoto Braga Netto

Membro do Ministério Público Federal (Procurador da República), Mestre em Direito Civil pela UFPE,
Professor de Direito Civil e Direito do Consumidor da ESDHC, Procurador Regional Eleitoral substituto em Minas Gerais


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