Resumo: Por intermédio do método científico dedutivo e com base na pesquisa teórico-exploratória legislativa, doutrinária e jurisprudencial, o estudo avalia, inicialmente, os requisitos aplicáveis às espécies de reparação civil. Num segundo momento, aprecia as responsabilidades dos profissionais e estabelecimentos de saúde, do paciente e de seus representantes legais quando se instaura entre eles uma relação jurídica de origem profissional. Para arrematar, aborda as conseqüências jurídicas possíveis de serem acometidas a estes quando há recusa a tratamento vital, e, de maneira pontual, as possíveis hipóteses do surgimento de obrigação indenitária.
Palavras-chave: Responsabilidade Civil. Profissionais da Saúde. Paciente. Representantes Legais. Recusa a Tratamento Vital.
Sumário: 1. Considerações iniciais. 2. Dos aspectos gerais da responsabilidade civil. 3. Da genérica responsabilidade civil dos profissionais e estabelecimentos de saúde. 4. Da responsabilidade civil geral do paciente. 5. Da responsabilidade civil dos representantes legais, nos casos de pacientes incapazes. 6. Da (ir)responsabilidade civil em caso de recusa a tratamento vital. 7. Conclusão. Referências.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A responsabilidade civil se traduz no dever que tem o responsável de indenizar o lesado pelos danos que a este impingiu: a reparação material compreende a reparação de tudo o que a mesma perdeu (danos emergentes), como também o que deixou de ganhar (lucros cessantes) e a indenização imaterial implica na realização de atos (retratação, resposta, desfazimento) ou na entrega de valores que trarão um conforto à vítima, sem a pretensão de traduzir sua dor e angústia em pecúnia.
Não intencionando formar uma plataforma teórica sobre o tema – vez que a responsabilidade civil sempre atinge uma vastidão de dúvidas, pensamentos, observações, propostas e projetos – o objeto pesquisado é mais singelo: a realização de uma análise panorâmica sobre o assunto e a apresentação de alguns rumos que já estão sendo tomados pela comunidade jurídica no que pertine ao tema, qual seja, a possibilidade de recusa a tratamento vital por pacientes e as suas conseqüências jurídicas, mais especificamente aquelas referentes a eventuais responsabilizações.
O primeiro fato a observar-se é que a vida em comunidade ainda não encontrou nada mais perfeito para embasar a tábua axiológica da responsabilidade civil que a máxima romana neminem laedere (Ulpiano), traduzida livremente para o vernáculo como dever geral de não lesar a outrem. Esta expressão fundamenta tanto os limites impostos pela moral e bons costumes, quanto pelo próprio Direito, objetivando sempre uma convivência saudável e harmônica dentro do contexto social.
Diante disto, quando qualquer componente da sociedade transgride essa linha axiológica e normativa, turba a ordem social e ingressa na seara da responsabilidade jurídica.
Isso se torna ainda mais relevante quando se trata de relações que se formam no âmbito hospitalar, especialmente se o paciente se recusar à submissão a tratamento vital, seja movido por razões de ordem religiosa, cultural, econômica etc, em contraposição ao juramento hipocrático efetuado pelos médicos e a todas as normas gerais, éticas ou administrativas a que se submetem todos os profissionais da saúde.
Nesta senda, o brocardo neminem laedere merece ser melhor apreciado, pois quem se recusa a tratamento vital não lesa o outro, mas causa a si mesmo um risco ou até a própria morte, em prol da valorização de um outro bem jurídico que entenda mais relevante, como a dignidade, a liberdade, o sossego… enfim.
Assim, analisa-se neste estudo, não só a situação dos profissionais de saúde, mas também do próprio paciente e de eventual representante legal do mesmo que também manifeste a recusa (eis o enfermo pode encontrar-se em situações em que não esteja gozando de suas faculdades plenas, como aquele em estágio de terminal de doença grave, o comatoso, o incapaz etc).
Arrematando, destaca-se a relevância e profundidade do tema, bem como a análise pontual efetuado acerca do mesmo no texto, esperando-se que se apresente como uma leitura proveitosa e útil.
2 DOS ASPECTOS GERAIS DA RESPONSABILIDADE CIVIL
O artigo 186 do Código Civil de 2002 (CC) representa cláusula geral de responsabilização ao estatuir que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Essa regra tem seus efeitos ampliados pela análise sistemática do Código, especialmente o artigo seguinte, cuja redação estabelece que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa fé ou pelos bons costumes”.
Já o artigo 927 do mesmo diploma legal estipula que “aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”, sendo que seu parágrafo único prevê a responsabilidade objetiva (obrigação de reparar o dano independente de culpa) em casos específicos na lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem.
E das espécies de responsabilidade civil, a extracontratual impõe o dever de reparação (indenização) de danos, desde que presentes os seguintes requisitos: a) existência de ação pessoal positiva (comissiva) ou negativa (omissiva); b) existência de dano (patrimonial ou moral); c) demonstração da culpa (exigível nesta espécie) e; d) nexo casual entre a ação (causa) e o dano (efeito).[1]
Quanto à modalidade contratual, os requisitos são os mesmos, com exceção da culpa, que resta presumida na maioria dos casos.
De maneira específica, cabe comentar que a relação que se estabelece entre profissional da saúde e paciente é, na maioria das vezes, contratual[2], e em caso de “não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado” (artigo 389, CC).
Mas mesmo sendo contratual, ainda impende considerar que a culpa destes profissionais liberais não se presume, devendo ser provada, em evidente eco do artigo 14, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor (CDC)[3], sendo a doutrina e a jurisprudência pátria unânimes nesse sentido:
“Médico – responsabilidade civil – Quando ocorre – Ação improcedente. A responsabilidade civil dos médicos somente decorre de culpa provada, constituindo espécie particular de culpa. Não resultando provadas a imperícia, a imprudência e a negligência, nem o erro grosseiro, fica afastada a possibilidade de culpa dos doutores em Medicina, em virtude mesmo da presunção de capacidade constituída pelo diploma obtido após as provas regulamentares.” (Tribunal de Justiça. Rio de Janeiro. Ementa. Ap. Cív. nº 17.613. Rel. Des. Felisberto Ribeiro. 20 ago.1981. In RT. São Paulo, v. 558, p. 178-80, abr.1982) – grifou-se.
E ainda:
“Em 1940, o Decreto-Lei nº2.381, de 9 de julho de 1940, aprovou o Quadro das Atividades e Profissões para registro das associações profissionais e o enquadramento sindical e dispôs sobre a constituição dos sindicatos e das associações sindicais de grau superior. O enfermeiro, como as parteiras (obstetrizes) estavam classificados como profissionais liberais, incluídos neste quadro” (grifou-se).[4]
E os profissionais liberais, nos dizeres de Oscar Ivan Prux[5], pertencem a uma categoria “[…] tradicionalmente ligada à teoria subjetiva fundada na culpa”.
Por outro lado, o artigo 188 do mesmo diploma legal já citado, prevê que não se constituem em atos ilícitos:
“I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; II – a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, afim de remover perigo iminente. Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para remoção do perigo.”
Desta forma, o profissional de saúde não poderá ser responsabilizado por dano ocorrido em seu paciente se, no curso de sua atuação profissional, ocorrer em uma das excludentes da responsabilidade civil, que conseqüente e obviamente, também se aplicam à responsabilidade médica, a saber: caso fortuito e força maior, culpa exclusiva da vítima (paciente), fato de terceiros e fato das coisas[6].
Isso implica dizer que a responsabilidade dos profissionais de saúde rege-se pelos mesmos princípios da responsabilidade civil em geral, além de serem obrigados a respeitar os preceitos de seus respectivos códigos de ética e atividade.
No entanto, importante destacar que não é somente o profissional da área de saúde que pode sofrer conseqüências jurídicas quando se perfectibiliza uma relação com um paciente: o representante ou assistente legal e até o próprio paciente podem trazer para si responsabilidades no caso de recusa a tratamento vital, como adiante se verá.
3 DA GENÉRICA RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PROFISSIONAIS E ESTABELECIMENTOS DE SAÚDE
Como já mencionado, por regra geral, todo e qualquer dano causado pelo exercício de uma atividade profissional consiste em uma relação contratual e apenas em regime de exceção podem ocorrer situações em que se deve invocar a idéia de responsabilidade civil extracontratual ou delitual[7] (por exemplo, se o médico faz uma cirurgia perigosa e não consentida, sem observar as normas regulamentares de sua profissão ou alguém que cometa danos a outrem em exercício ilegal da medicina, enfermagem, farmácia etc).
Sabe-se que cabe ao profissional de saúde empenhar-se ao máximo de acordo com as técnicas disponíveis e aceitas pela sua profissão, para o bom resultado das suas atividades no sentido de tentar curar o paciente ou de minimizar o seu sofrimento. Se ocorrer resultados lesivos a este por parte da ação ou omissão daquele, cabe ao mesmo indenizar a vítima pelos danos sofridos.
Mesmo havendo concordância prévia do paciente não se exime o profissional de suas responsabilidades. Nem a recusa do paciente à submissão ao tratamento urgente envolvendo perigo de vida afasta de forma absoluta o dever de diligência que cabe ao mesmo observar.
Em assim sendo, deve profissional de saúde alertar o paciente claramente das consequências que poderão resultar de seus atos. Isto para que imediatamente inicie os procedimentos (tratamento, intervenção, administração de medicamentos e terapias) no sentido de tentar curar ou salvar vida do paciente.[8]
Com relação ao perigo de morte e a ação do profissional médico, veja-se a jurisprudência abaixo:
“Se há perigo para a vida do paciente, não comete ilícito algum o médico que, mesmo contrariando vontade expressa dos responsáveis, realizar o procedimento da transfusão de sangue em Testemunha de Jeová.” (HC nº 184.642/5, julgado em 30/08/1.989, 9ª Câmara, Relator: – Marrey Neto, RJDTACRIM 7/175).
Da leitura do artigo 1° do Código de Ética Médica (CEM), constata-se que o médico tem o dever de prestar socorro. Do contrário pode o profissional ser responsabilizado civilmente pelos danos ocorridos. Se tais diligências não atingirem o resultado esperado (autorização ou colaboração do paciente), ao menos servirão como prova da impossibilidade para futura exclusão da sua responsabilidade (como também se ocorrer força maior etc) se decorrer ação judicial.
Ainda cumpre observar que o eventual exercício gratuito da medicina não diminuiu a responsabilidade do médico, pois este responde pelos seus subordinados e auxiliares, com ou sem vinculo de emprego, citando como exemplo os enfermeiros, funcionários, estudantes de medicina se estes causarem danos ao paciente. Tal responsabilidade decorre da culpa in eligendo (na escolha) ou da culpa in vigilando (ausência de fiscalização).[9]
O artigo 58 do CEM determina que é vedado ao médico “deixar de atender paciente que procure seus cuidados profissionais em caso de urgência, quando não haja outro médico ou serviço médico em condições de fazê-lo”.
No caso de, simultaneamente, existir apenas um médico e dois pacientes que necessitam ser atendidos com urgência na hipótese do artigo supramencionado, é mister analisar como ficaria a responsabilidade do médico. Nessas situações especiais conclui-se que o médico deverá atender em primeiro lugar o caso mais grave e de maior urgência.
Verificando-se algum dano para o paciente que teve que esperar em razão da escolha médica, a responsabilidade médica ficaria excluída devido à ocorrência de um estado de necessidade, dentro do exercício regular de um direito. O estado de necessidade e a exclusão da responsabilidade médica apenas ocorrem nessas situações especiais. De resto, a situação do médico insere-se no exercício regular de um direito ou no estrito cumprimento de um dever legal (no caso do médico militar).[10]
Na análise da responsabilidade médica faz-se necessário verificar se o dano ocorrido no paciente foi causado pelo ato do profissional ou se foi consequência da evolução natural de uma patologia.[11]
Nos últimos tempos, cada vez mais novas situações ligadas à atividade médica têm surgido. O avanço científico na área da medicina vem gerando problemas nunca antes cogitados, surgindo grandes conflitos: destacam-se a fecundação artificial, a problemática dos transplantes de órgãos e tecidos, os experimentos científicos no homem, a medicina criativa, os vastos domínios da genética, a clonagem, a eutanásia e a ortotanásia, os limites da intervenção médica para fazer cessar o padecimento de quem sofre doença irreversível e dores atrozes, o sigilo médico (que vem sofrendo temperanças decorrentes da indispensabilidade de se alertar as pessoas quanto à transmissão de doenças como a AIDS), questões ligadas à natalidade (o aborto eugênico, a esterilização), o vasto campo da medicina fetal, a publicidade médica (que deve ser sóbria e correta, submetendo-se às exigências do CDC) e outras. Permeando essas variegadas frentes de evolução cientifica, encontra-se a responsabilidade civil.[12]
A responsabilidade individual do médico não é maior nem menor do que a dos demais profissionais, mas pode-se afirmar que o profissional médico está mais exposto. E para o médico se defender, basta que registre com clareza toda a sua conduta médica. Deve haver um bom relacionamento entre o médico e o paciente, havendo competência, atenção, dedicação, franqueza, empenho com sensibilidade para a dimensão do paciente.
Instrumentos de defesa do médico podem ser o Prontuário Médico (artigo 69 do CEM), o Laudo Médico (artigo 71 do CEM) ou o relatório médico, todos preenchidos com clareza, por completo e corretamente, de modo que outro médico não terá qualquer dúvida de como proceder ou aproveitar o tratamento iniciado. Outras provas materiais, em não sendo caso de internação hospitalar, são a ficha de atendimento, o registro no consultório, assim como o receituário, todos também preenchidos com clareza, por completo e corretamente, sendo tais elementos suficientes à prova de conduta profissional irreprovável, provando o zelo profissional. Todos esses documentos são de obrigatório preenchimento pelo profissional, sendo que em alguns casos, ainda se faz necessário elaborar o competente Termo de Consentimento Livre e Esclarecido do paciente.
Também o médico poderá ser responsabilizado, de acordo com o artigo 102 do CEM, se “revelar fato de que tenha conhecimento de virtude do exercício de sua profissão, salvo por justa causa, dever legal ou autorização expressa do paciente”. É o chamado sigilo ou segredo médico. Também a CF, em seu artigo 5º, XIV, diz que “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”.
Miguel Kfouri Neto[13] diz que existem basicamente duas teorias em torno do segredo médico: “A absolutista, que considera o dever de sigilo questão de ordem pública, não se admitindo revelação; e a relativista, que aceita o sigilo médico relativo, que poderá ceder, diante de valores jurídicos, éticos, morais e sociais de relevo”. O mesmo autor diz também que não há na jurisprudência nenhum aresto de responsabilidade civil pela revelação de segredo médico.
Em atenção à corrente relativista, pode-se citar o exemplo de um médico consultar um colega especialista para obter maiores conhecimentos no sentido de se descobrir o melhor tratamento para seu paciente.
Sílvia Mota diz que:
“[…] se iminente o perigo de vida, é direito e dever do médico empregar todos os tratamentos, inclusive cirúrgicos, para salvar o paciente, mesmo contra a vontade deste, de seus familiares e de quem quer que seja, ainda que a oposição seja ditada por motivos religiosos. Importa ao médico e ao hospital é de demonstrar que utilizaram a ciência e a técnica apoiadas em seria literatura médica, mesmo que haja divergências quanto ao melhor tratamento.”[14]
O erro médico, além de ser uma das formas de inadimplemento contratual (lembre-se que a relação médico-paciente é um contrato), caracteriza uma infração contratual passível, pois, de indenização do paciente por parte do médico. Tal erro decorre de uma série de situações, como por exemplo, retardo ou erro no diagnóstico, erro cirúrgico, tratamento inadequado para o problema do paciente, esclarecimento incorreto do paciente (a ausência de consentimento informado), mal uso de implante ou equipamento etc.
Nesta seara, a responsabilidade do médico decorre do erro de conduta por ação ou omissão (por si ou por outrem a seu mando ou escolha), com assento nos artigos 186; 933 e 951, todos do CC, e parágrafo 4º do artigo 14 do CDC.[15]
O erro médico poderá gerar três consequências distintas (concomitantes ou isoladas), a saber:
a) Punição administrativa, que será aplicada pelo Conselho Regional de Medicina (referendada pelo Conselho Federal, nos casos de cassação). Essa punição poderá ser aplicada mesmo não ocorrendo dano (patrimonial ou moral) ao paciente, se o médico adotar conduta vedada pela medicina.[16]
O processo ético-profissional inicia-se no Conselho Regional de Medicina onde o médico tem o seu registro. Podem denunciar o médico a Comissão de Ética, a Delegacia Regional ou Representação que tome conhecimento de uma ocorrência e que caracterize infração ética, bem como terceiros ou mesmo de ofício, o Conselho Regional.
Antes da instauração desse processo é realizada uma sindicância para averiguação dos fatos denunciados (cujo relatório é apresentado ao Presidente do Conselho Regional), podendo ocorrer o seu arquivamento, se improcedente a denúncia.
O artigo 17 do Regulamento do Conselho Federal e Conselhos Regionais de Medicina, Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, prevê que:
“[…] as penas disciplinares aplicáveis aos infratores da ética profissional são as seguintes: a) advertência profissional, em aviso reservado; b) censura confidencial, em aviso reservado; c) censura pública, em publicação oficial; d) suspensão do exercício profissional, até 30 (trinta) dias; e, e) cassação do exercício profissional”.
Das decisões de última instância dos Conselhos de Medicina, caberá revisão pelo Poder Judiciário, de acordo com o disposto no artigo 5°, XXXV, da Constituição Federal (CF), que reza que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.[17]
Quanto ao fato de um médico se apresentar como especialista sem sê-lo é questão exclusivamente de ética profissional, conforme o disposto no artigo 135 do CEM: “É vedado ao médico: Anunciar títulos científicos que não possa comprovar ou especialidade para a qual não esteja qualificado.”[18]
b) Reparação civil, que é a reparação patrimonial de natureza particular (porque depende da vontade da vítima), podendo abranger tanto a indenização material como a moral.
c) Punição criminal, quando a conduta do médico é tipificada como crime ou contravenção penal, não sendo necessária anuência da vítima para o seu início e nem a prévia apuração pela entidade de classe, sendo ambas independentes entre si.
O autor Jurandir Sebastião comenta que:
“[…] ao contrário dos efeitos da condenação criminal pela justiça, a condenação do médico pelo órgão de classe, por infração prevista no Código de Ética Médica, não significa que estará obrigado, automaticamente, à reparação civil ou incurso em algum delito penal. Uma coisa nada a tem a haver com a a outra. Só decorrerá ação civil para reparação patrimonial se houver dano físico ou moral no paciente ou só terá início ação penal pública se o fato tipificar algum delito.”[19]
Segundo Fabio Ulhoa Coelho, no trabalho médico em equipe, cada profissional responde pelos seus próprios atos, inexistindo solidariedade pela imperícia alheia, não sendo o chefe da equipe médica responsável por culpa in eligendo dos demais profissionais, havendo assim, responsabilidade subjetiva individual.[20]
Todos da equipe são igualmente responsáveis pelo erro em relação ao paciente, mas cada um em sua área de atuação. Cabe ao chefe líder ou responsável fiscalizar a conduta de cada um dos membros da equipe médica. E se algum dos membros contrariar suas ordens, responderá individualmente pelas conseqüências de seu ato.
Com relação ao anestesiologista, esse poderá ter responsabilidade individual ou solidária: será individual em se tratando de procedimento médico (inicial e final) desenvolvido apenas por ele mesmo e de acordo com a sua competência. Será solidária nos procedimentos cirúrgicos em que todos os membros, inclusive o anestesiologista, estão vinculados a boa conservação do estado do paciente, aplicando-se a regra geral do artigo 36 do CEM, assim disposto: “Art. 36. Afastar-se de suas atividades profissionais, mesmo temporariamente, sem deixar outro médico encarregado do atendimento de seus pacientes em estado grave”.
As relações existentes entre o médico e outros profissionais (exemplo anestesiologista ou enfermeiros) são independentes. Veja-se os artigos do CEM nesta seara:
“Art. 18, CEM. As relações do médico com os demais profissionais em exercício na área de saúde devem basear-se no respeito mútuo, na liberdade e independência profissional de cada um, buscando sempre o interesse e o bem-estar do paciente. Art. 33, CEM. Assumir responsabilidade por ato médico que não praticou ou do qual não participou efetivamente.”
Assim, um dano advindo para o paciente por problema surgido durante a cirurgia deve ser suportado pelo médico cirurgião chefe. Já se o dano teve como causa a anestesia, a responsabilidade deve ser suportada pelo anestesiologista.
Ou seja, toda vez que dois profissionais de áreas diferentes e atuação independente, mas que visam objetivos comuns, trabalhando simultaneamente num paciente, deve, cada profissional, de maneira independente e individual, dentro da autonomia técnica e científica de cada um, arcar com o ônus ou com o sucesso de seu ato.[21]
O anestesiologista, assim como o médico, pode ser responsabilizado pela via ética (apurada junto aos Conselhos Regionais de Medicina, por intermédio de processos ético-disciplinares, instaurados na forma de autos judiciais, podendo ser iniciados por queixa ou denúncia de terceiros, devendo estar fundamentada e apresentando como característica uma infração a qualquer dos artigos do CEM), como pela via legal.
O anestesiologista tem sua responsabilidade disciplinada de maneira direta e pessoal pela Resolução do Conselho Federal de Medicina de n° 1.363/93. E com relação ao consentimento informado, o anestesiologista, assim como o médico, deve obtê-lo, podendo ocorrer o consentimento tácito por parte do paciente, pois se o paciente entrega-se a uma cirurgia, sabendo de antemão da obrigatoriedade de que a intervenção necessite de anestesia, presume-se então que tal paciente consentiu com o procedimento anestésico.[22]
O anestesiologista responde pelo dano causado ao paciente, em razão do procedimento anestésico, quando não obteve previamente anuência para realizar a anestesia geral (imprudência), não realizou exames pré-anestésicos (negligência) e não empregou todos os recursos técnicos existentes no bloco cirúrgico (imperícia).[23]
Logo, tanto o médico como o anestesiologista podem ser responsabilizados caso não colham o consentimento informado do paciente (mediante Termo específico para tanto), desde que presentes os pressupostos da responsabilidade civil.
Outro não tem sido o entendimento do STJ, conforme as decisões a seguir:
“RESPONSABILIDADE CIVIL. Médico. Consentimento informado. A despreocupação do facultativo em obter do paciente seu consentimento informado pode significar – nos casos mais graves – negligência no exercício profissional. As exigências do princípio do consentimento informado devem ser atendidas com maior zelo na medida em que aumenta o risco, ou o dano. Recurso conhecido.” (REsp 436827/SP. Julgado 01/10/2002 Relator: Ministro Ruy Rosado de Aguiar).
E ainda:
“RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. ANESTESIA. O anestesiologista responde pelo dano causado ao paciente, em razão do procedimento anestésico, quando não obteve previamente anuência para realizar a anestesia geral (imprudência), não realizou exames pré-anestésicos (negligência) e não empregou todos os recursos técnicos existentes no bloco cirúrgico (imperícia).” (Ap. Cível 597 009 992. 5ª CC. Rel. Des. Paulo Augusto Monte Lopes. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. D.J 20.03.97).
Em se tratando médico residente ou não, a responsabilidade é a geral (individual ou solidária), igual à existente em relação aos demais médicos, cabendo o dever de indenizar os casos de danos ao paciente (erro médico), pois não há distinção de médicos para efeitos de responsabilidade. [24]
O hospital também tem responsabilidade (geral) em alguns casos, como erro médico, dano por infecção hospitalar ou qualquer outra ocorrência danosa por negligência, imperícia ou imprudência do hospital, como a falta de oxigênio, medicamentos e alimentos perecidos, transfusão de sangue coletado de pessoa portadora de doença contagiosa etc. Nestes casos o hospital poderá ser responsabilizado individualmente ou solidariamente (entre hospital e médico) se ocorrer culpa de ambos. Mas se o dano sofrido pelo paciente deriva de culpa exclusiva do médico, ficará afetada a responsabilidade do hospital.
A responsabilidade por parte do médico se dá pela sua ação ou omissão e a do hospital pela negligência em não manter a estrutura hospitalar em adequado funcionamento, ou pela eleição e aceitação de práticas médicas não admitidas pela ciência, ou ainda, pela permanência em seu quadro clínico de profissional médico não inscrito junto ao correspondente órgão de classe, ou inscrito, mas que pratica atividade médica com imperícia, imprudência ou negligência.
O fato de um médico ter previamente denunciado as falhas hospitalares (artigo 22 do CEM) ou de ter causado o dano ao paciente por conduta médica incorreta resultante do cumprimento de ordem do diretor clínico, ou do chefe da equipe ou de norma do hospital (artigos 16 e 17 do CEM), não isenta de responsabilidade o médico perante o paciente, pois para tal isenção ocorrer, cumpre ao médico se afastar previamente do hospital.
Ainda, independente de conduta do médico, o hospital poderá ser condenado a indenizar em decorrência de sua culpa objetiva se funcionário ou terceiro (paciente ou não) sofrer danos. Exemplo: contágio pelo lixo hospitalar nas dependências do prédio hospitalar.[25]
Neri Tadeu Câmara Souza ensina que o estabelecimento hospitalar enquadra-se como fornecedor de serviços[26], seguindo as regras do CC (artigo 927, parágrafo único) e CDC (artigo 14). Ao mesmo tempo, o artigo 932 do CC, em seu inciso III, dispõe que são também responsáveis pela reparação civil o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele.
Tal disposição vai ao encontro do disposto na Súmula 341 do Supremo Tribunal Federal, que diz que “é presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto”. E ainda ao previsto no artigo 37, VI, da CF, que determina que as pessoas jurídicas do direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Assim, resta caracterizada a responsabilidade dos hospitais pelos atos daqueles que nele exercem as suas atividades profissionais.
E segundo o autor já citado[27], esta responsabilidade do hospital não exclui a responsabilidade solidária de outras entidades (participantes do atendimento hospitalar médico, hospital e entidade responsável pela cobertura dos gastos do pacientes) pelos atos médicos realizados em sua dependência, como por exemplo, empresas prestadoras de saúde, nas modalidades de seguro de saúde ou planos de saúde. De acordo com esse raciocínio o artigo 942 e seu parágrafo único do CC, estabelece:
“Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação. Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art. 932”.
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho afirmam, com relação à responsabilidade civil das empresas mantenedoras de planos e seguros privados de assistência à saúde que, como titulares de uma relação jurídica decorrente da exploração de uma atividade econômica, enquadrada como relação de consumo, essas empresas também devem responder solidariamente pelos danos causados pelos profissionais credenciados ou autorizados, no caso de erro médico. Assim, o plano assume a responsabilidade desses profissionais pelas regras de responsabilidade por ato de terceiro e culpa in eligendo e in vigilando. Trata-se de responsabilidade civil objetiva.[28]
Sobre a responsabilidade dos laboratórios e da farmácia, cabe antes distinguir dois tipos de laboratórios: um, de prestação de serviços especializados (análises clínicas através de reagentes químicos e/ou aparelhos próprios, assim como os exames especiais no paciente); outro, de natureza industrial, voltado para fabricação de produtos farmacêuticos, com prévia pesquisa científica e experimentação de resultados.
O CDC, em seu artigo 8° usque 14, prevê a responsabilidade civil dos prestadores de serviços de saúde, assim como dos fabricantes de produtos afins. Assim, ocorrendo o dano, ao paciente cumpre provar apenas o nexo causal e a regularidade de sua conduta pessoal. De acordo com o inciso VIII do artigo 6° do CDC, o julgador poderá atribuir ao réu (prestador de serviços e fabricante) o ônus da prova contrária para afastar o dever de indenizar (inversão do ônus da prova).[29]
Cabe lembrar que o médico poderá ser responsabilizado solidariamente junto com o laboratório, como, por exemplo, no caso do médico causar dano ao paciente, com base no resultado incorreto da análise clínica, mas cometendo erro grosseiro (deixar de pedir novo exame, por exemplo, quando o resultado do laboratório for incompatível com o quadro clínico do paciente).
O médico não pode ser responsabilizado pelas consequências do medicamento falsificado ou adulterado, salvo se a falsificação ou adulteração for grosseira (aparência, embalagem, preço, origem, etc.), respondendo, nesta hipótese, solidariamente com o fornecedor e com o fabricante falsificador. Esta adulteração ou falsificação é a que se tornou pública, pois o médico, após atender e receitar o remédio ao paciente, não tem como verificar se o medicamento é original ou não.[30]
Os diferentes tipos de prestação obrigacional dos profissionais da saúde e das entidades hospitalares podem ser encaixados dentro do seguinte esquema:
“a) Médico em geral – obrigação de meio: responsabilidade assente na culpa comprovada, não cabendo presunção de culpa.
b) Cirurgião plástico estético – mesmo quando inserido no conceito de obrigação de resultado: não há presunção de culpa, há apenas a inversão do ônus da prova.
c) Médico como chefe de equipe – presunção legal relativa (art. 1.521, inciso III do Código Civil): culpa presumida até prova em contrário (juris tantum).
d) Hospitais – responsabilidade objetiva. Teoria do risco. Ônus probandi por conta da entidade hospitalar. Não se inserindo, porém, em uma prestação juris et de jure, já que a ocorrência de caso fortuito, força maior e culpa exclusiva (ou concorrente) da vítima elidem a responsabilidade (ou parte dela). Inadequação, pois, do uso aqui da presunção juri et de jure, já que esta elimina taxativamente a prova em contrário. (destaques originais)”[31]
Hildegard Taggessel Giostri, autora do esquema acima citado, entende que ainda quando a prestação obrigacional do profissional médico estiver inserida, adequada ou inadequadamente, em obrigação de resultado, esta circunstância não pode ter o condão de transformar sua responsabilidade em objetiva, ou mesmo favorecer uma culpa presumida, mas tão somente propiciar a inversão do onus probandi, pois os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o dano, sempre que da imprudência, negligência, ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir, ou ferimento.[32]
Resumindo, para que ocorra a responsabilidade do profissional de saúde, é necessária a presença dos seguintes pressupostos: a) comportamento (ação ou omissão) antijurídico; b) culpa ou dolo (culpabilidade); c) resultado danoso (material ou moral); d) nexo causal entre o seu comportamento e o dano sofrido pelo paciente.
4 DA RESPONSABILIDADE CIVIL GERAL DO PACIENTE
A responsabilidade civil prevê uma indenização ao dano ocorrido, desde que haja nexo causal entre a conduta do agente causador do dano e esse dano.
Um paciente, devido a um dano ocorrido, pode pleitear uma ação de indenização contra o médico devido a um erro do médico. Mas essa ação pode ser julgada improcedente devido a, por exemplo, existência de culpa exclusiva da vítima (paciente), fato de terceiros, prescrição etc.
A despeito do direito constitucional de petição, prejudicial ou excludente tornam-se prova do dano sofrido pelo médico, pois a exposição do médico em um processo descabido repercute dentro da sociedade em que vivemos. Assim, nessas situações, o médico poderá pleitear uma ação de indenização contra o paciente.
Jecé F. Brandão entende que um processo que envolva a sua atividade profissional em muito lesa o profissional de saúde,
“[…] Isto porque ele tem o seu prestígio e reconhecimento junto a sua comunidade embasados na confiança. Predicados como saber tecnocientífico, talento clínico, disponibilidade existencial e cidadania, constituem-se ingredientes essenciais para a formação e desempenho no trabalho clínico. Mas o que dá o diferencial é o quantum de confiança e respeitabilidade conquistados na lida diária anos a fio, freqüentemente, luta de toda uma vida.”[33]
Os pacientes devem seguir corretamente a prescrição do médico. Eles devem ser alertados de suas obrigações e direitos no momento em que são submetidos ao tratamento previsto pelo médico.
Como o paciente deve auxiliar o seu médico no seu próprio tratamento para que se obtenha o resultado procurado, pois sua obrigação é de meio: o paciente, juntamente com seu médico e demais profissionais da saúde, irão utilizar-se de todos os meios necessários para obter a cura da doença.
Nesse sentido, Urrutia et al dizem que o paciente tem os deveres de informar, de colaborar e de abonar os honorários profissionais (responsabilização pelos honorários devidos ao médico. Exceção feita para os atendimentos em hospitais públicos ou mediante convênios e Planos de Saúde).[34]
Conforme visto, a culpa exclusiva da vítima libera o profissional da saúde de toda e qualquer responsabilidade, pois a causa do dano é inteiramente do paciente, mas pode ocorrer que a vítima (paciente) concorra para o evento danoso juntamente com o médico.
Assim, por exemplo, se o paciente agiu conjuntamente com o médico para a ocorrência da lesão, deve este ser também penalizado por sua ação, o que se faz com a diminuição da culpa do médico, nos casos de erro médico, pois assim diz o CC, em seu artigo 945: “Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.”
Conclui-se que a responsabilidade civil do paciente pode ocorrer conjunta ou separadamente da responsabilidade civil do médico, sendo a responsabilidade do paciente julgada em separado da do médico, considerada excludente da sua responsabilidade.[35]
O paciente também poderá receber sanções caso recuse em submeter-se a prática de interesse público da saúde (vacinação obrigatória, entre outras imposições legais).[36]
Quanto a tratamentos, não há punição ou responsabilização pela recusa do paciente a tratamento vital, mesmo que ele leve a morte ou debilidade do doente, mas esta recusa, coletada de forma adequada, isenta o profissional de eventual responsabilidade por danos ocorridos ao paciente por não ter havido o procedimento aconselhado.
Mesmo que lesiva a si próprio, essa conduta do paciente em negar-se a submissão a tratamento vital é albergada pelo artigo 15 do CC, que assim dispõe: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.
5 DA RESPONSABILIDADE CIVIL DOS REPRESENTANTES LEGAIS, NOS CASOS DE PACIENTES INCAPAZES
Os representantes legais (pais, tutores e curadores) têm inúmeras incumbências na ordem civil, mormente quanto a terceiros, no que diz respeito a conduta de seus representados. Isso, por obra dos artigos 932, I a III, 933 e 934 do CC[37].
Mas, além da responsabilidade perante terceiros, podem também ser responsabilizados caso ajam ou se omitam, causando danos ao seu próprio representado.
Quanto aos pais, podem estes, inclusive, perder o poder familiar, por obra da interpretação dos artigos 1637, 1638, II do CC[38].
Já quanto aos tutores e curadores, há previsão expressa de responsabilização perante os seus tutelados e curatelados nos artigos 1752 e 1774 do CC[39].
No caso de paciente menor ou incapaz, os pais, tutores ou curadores devem manifestar-se quando lhes é dada ciência de dado tratamento e, caso vital, deverão ponderar se eventuais justificativas para a sua negativa são plausíveis.
Isso se dá porque, em havendo morte ou lesão ao incapaz por ter o representante impedido ou proibido o referido tratamento, este é que responderá criminal e civilmente por sua decisão.
É de se salientar que, na maioria das vezes em que os profissionais da saúde enfrentam situações como a acima mencionada, estes tomam providências no sentido de obter uma autorização judicial para proceder o tratamento ou cirurgia, ou então comunicam o Ministério Público acerca de tal fato, por louvarem mais veementemente a vida que qualquer outra convicção dos representantes legais dos pacientes.
6 DA (IR)RESPONSABILIDADE CIVIL EM CASO DE RECUSA A TRATAMENTO VITAL
Do ponto de vista ético-profissional, o artigo 46 do CEM estabelece que “é vedado ao médico efetuar qualquer procedimento sem o esclarecimento e o consentimento prévio do paciente ou de seu representante legal”.
E conforme o artigo 48 do mesmo diploma, também “é vedado ao médico exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a sua pessoa ou seu bem-estar”. Tudo isso para que o paciente possa manifestar o seu direito de recusa, em assim entendendo pertinente.
Assim, o paciente que não aceita o tratamento proposto baseia-se no direito de livre arbítrio e nos princípios da dignidade e liberdade de consciência religiosa, pois de acordo com os artigos 15 do CC e 5° da CF, tem este o direito de recusar determinado tratamento médico que lhe sane enfermidade ou até lhe salve a vida.
É que a CF protege não só o direito a vida (simplesmente viver), mas também o direito a uma vida digna (viver com dignidade), e são esses desdobramentos sentimentais, pessoais, culturais, morais e emocionais que são atingidos caso seja procedido o tratamento sem seu consentimento.
Logo, não haveria como falar em dignidade quando os valores morais e religiosos de uma pessoa são desrespeitados e assim não há dignidade se uma pessoa não tiver a liberdade de cultivar os valores que julgar importantes, como a dignidade e a liberdade religiosa.[40]
Pelo princípio bioético da autonomia, reconhece-se o direito da pessoa de decidir sobre a utilização de determinado procedimento médico (tratamento médico ou intervenção cirúrgica), livre de pressões externas e levando em consideração seus valores mais particulares.[41]
Segundo Ronald Dworkin, nos contextos médicos, “a autonomia da vontade está frequentemente em jogo, sendo que um paciente pode se recusar a receber tratamento, cirurgia ou transfusão sanguínea necessária para salvar a sua vida, se estes procedimentos ofenderem suas convicções religiosas”[42] ou até sob outro fundamento plausível.
Os opositores a esta tese dizem que ao fazer um tratamento forçado, o médico está protegendo um valor jurídico maior, que é a vida. Mas esse argumento encobre abusos e discriminação religiosa contra algumas religiões, sendo que numa Democracia, a liberdade religiosa, de crença e as opções da vida alheia devem ser respeitadas.[43]
Assim esses doutrinadores concluem que é legítima e legal, por exemplo, a postura das Testemunhas de Jeová em recusar a receber transfusões sanguíneas, sendo ético para o médico respeitar a vontade de recusa do paciente, pois caso contrário, a dignidade desse paciente estaria ferida.[44]
Ao que parece, o direito de recusa à intervenção médica fundado na liberdade e integridade da pessoa humana, em suas convicções religiosas ou filosóficas ou sob outro fundamento ponderoso há de prevalecer, não havendo, portanto, conflito entre o direito à vida, privacidade e liberdade, pois todos esses direitos devem ser compreendidos em conjunto. O direito à vida é dirigido contra a sociedade e contra o Estado, ou seja, inviolável contra terceiros, sendo este seu correto alcance. No mais, vige a ampla liberdade e o direito à integridade da pessoa humana.[45]
Nesse mesmo raciocínio, os pais ou os responsáveis legais têm legitimidade para recusar determinado tratamento médico para seus filhos e demais pessoas atingidas pela incapacidade jurídica de decidirem por si mesmos sob os mesmos fundamentos que aqueles usariam se estivessem gozando naturalmente de todas as suas faculdades.
Helio Antonio Magno[46] entende que em todo e qualquer caso o médico deverá respeitar a autonomia do paciente, tendo este o direito de recusar ou aceitar qualquer tratamento médico.
Por outro prisma, Carlos Alberto Bittar, salienta que se o ato médico não necessita de urgência, nenhum profissional poderá coagir o paciente a receber qualquer tipo de intervenção, sob pena de responsabilidade civil.[47]
Mas, em sentido contrário às argumentações acima, há autores que sustentam ser perfeitamente possível uma intervenção médica ou cirúrgica forçada. Isto em alguns casos. Estes autores afirmam que quando há iminente perigo de vida, o médico estaria autorizado a intervir com o procedimento médico, desde que este procedimento seja preciso e perfeitamente indicado e tal atitude jamais poderá ser passível de punição. O ato médico estaria legitimado não pelo consentimento livre e consciente do paciente e de seus familiares, mas sim pela indiscutível, inadiável e imperiosa necessidade.[48]
Lembre-se, novamente, que o artigo 46, CEM veda ao médico a efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida.
O consentimento informado é manifestação expressa (via de regra, escrita e firmada, traduzida em um termo) da autonomia da vontade do paciente, pois, ele é dono de sua própria vontade no sentido de decidir se prefere ou não em submeter-se a um tratamento médico ou intervenção cirúrgica, após ser devidamente esclarecido pelo profissional médico. Compete ao médico instruir e orientar sem coerção o paciente. A omissão do médico, no caso, caracteriza um ato omissivo culposo.[49]
O artigo 57 do mesmo diploma reza que é vedado ao médico deixar de utilizar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento a seu alcance em favor do paciente.
Dessa forma, aparentemente estaria excluída a antijuricidade do ato médico praticado sem o consentimento do paciente, desde que este ato seja praticado em situação de existência de iminente perigo de vida, sendo esta intervenção urgente, necessária e inadiável, a fim de evitar a morte do paciente (no entanto, é bom lembrar que o CEM não é lei. É apenas um código de ética, que não possui coercibilidade, portanto. Assim, ao menos de responsabilidade ética, o médico estaria isento).
Além do mais, voltando ao tema das liberdades, estas não podem ser toleradas de forma irresponsável e contra o interesse comum, ou seja, quando a liberdade entra em conflito com a liberdade de outras pessoas com as exigências de uma ordem pública e de um bem social.
A liberdade existe para fazer do indivíduo um ser harmônico. Assim, sacrifica-se um bem (liberdade) para salvar um outro (a vida), de maior interesse e significação, do qual ninguém pode dispor incondicionalmente, pois o reclama outro titular de direito – a sociedade – para a qual o indivíduo não é apenas uma unidade demográfica, mas, sobretudo, um imensurável valor social e político.[50]
Sílvia Mota diz que o direito à vida antecede o direito à liberdade, sendo que há princípios gerais de ética e de direito que precisam sobrepor-se às especificidades culturais e religiosas e entre esses princípios estão os direitos fundamentais da vida e da dignidade humana.[51]
Quanto a essa eventual ponderação de direitos, Caio Mário de Silva Pereira, diz que “[…] o direito ao próprio corpo é um complemento do poder sobre si mesmo, mas só pode ser exercido ao limite da manutenção de sua integridade. Todo ato que implique atentado contra esta integridade é repelido por injurídico”.[52]
Pela leitura do artigo 15 do CC combinado com o artigo 5°, inciso VI, da CF, usando-se de uma interpretação puramente literal, poder-se-ia concluir que o direito de recusa do paciente é absoluto (não se permitindo qualquer tipo de intervenção no corpo do paciente sem o seu consentimento), o que ofenderia diretamente os direitos primordiais da vida e da saúde e, consequentemente, a dignidade humana.
Todavia, a interpretação dos textos legais deve ser sistêmica e não isolada, e desse modo, o direito de recusa do paciente não é absoluto, pois o mesmo poderá usufruir desse direito se estiver no pleno gozo de suas faculdades mentais e sem a existência de iminente perigo de vida.
Do contrário, o médico tem a obrigação de realizar o procedimento, agindo de acordo com o exercício regular de um direito/dever seu (salvar vidas), sob pena de incorrer em responsabilidade civil (artigo 186 e 951 do CC e artigo 5°, inciso X, da CF) e penal (artigos 121, 129, 132 e 135, Código Penal (CP)), não caracterizando, o seu agir, crime de constrangimento ilegal (artigo 146, parágrafo 3°, inciso I, do CP).
Assim, com base nas técnicas da ponderação e proporção é que se tenta solucionar a aparente colisão dos direitos fundamentais em questão, com a máxima observância do direito à vida e com o mínimo de sacrifício do direito à liberdade e autonomia de escolha, lembrando que existem casos em que a livre recusa do paciente deve ser plenamente aceita, desde que não haja iminente perigo de vida.[53]
Quanto ao próprio paciente, a sua opção em não se submeter a um tratamento médico pode decorrer de várias razões além da convicção religiosa, o medo de efeitos colaterais, a depressão, a pura vaidade, a atitude de negação da doença etc, e não está na alçada dos outros julgar a validade ou não desta motivação, porque é da esfera exclusiva da autonomia da pessoa.
Essa é a concepção de autonomia defendida por Ronald Dworkin, centrada na integridade, segundo a qual:
“[…] não pressupõe que as pessoas competentes tenham valores coerentes, ou que sempre façam as melhores escolhas, ou que sempre levem vidas estruturadas e reflexivas. Reconhece que as pessoas frequentemente fazem escolhas que refletem fraqueza, indecisão, capricho ou simples irracionalidade.”[54]
Mesmo quando há iminente perigo de vida, não se pode alterar o quadro jurídico acerca dos direitos da pessoa, até porque o ordenamento jurídico pátrio não pune o suicídio (ou a sua tentativa).
Diante disto, pode-se dizer que se na esfera pública não há conseqüências jurídicas contra o paciente que se recusa a submissão a tratamento vital, maior ainda é a proteção da sua decisão no âmbito privado, não havendo, desta forma, responsabilidade de ordem civil para o paciente nesta espécie.
Já os representantes legais (pais, tutores e curadores) podem ser responsabilizados civilmente caso proíbam o tratamento médico a seus representados (filhos, tutelados e curatelados), vindo estes a sofrer um dano em virtude desta proibição ou recusa. PODEM SER porque também estariam exercendo o constitucional direito de exercício da liberdade religiosa, cultural ou até valorizando a dignidade de seu representado.
Assim, dependerá da análise da casuística para se aferir qual direito tutelado se sobreporá aos demais, gerando, ou não, responsabilidade para os representantes legais que negaram a sua realização.
Enfim, é legítima a tomada de decisões pelos representantes legais, mas, quando o paciente representado estiver em eminente risco de vida essa tomada de decisões quanto a autorização ou não de tratamento vital, deve ser limitada pelos argumentos expostos anteriormente.
Segundo Maria Helena Diniz, o dano causado ao nascituro ante a recusa a transfusão de sangue por motivo de crença religiosa de seus pais dá ensejo a responsabilidade civil dos genitores pelo dano sofrido pelo nascituro em razão dessa recusa, pois os direitos à vida e à saúde pesam mais do que o direito à liberdade de crença.[55]
Nesse sentido, sobre a recusa por parte dos pais em permitirem que seus filhos sejam transfundidos, Jurandir Sebastião nos diz:
“Invariavelmente os pais discordam da transfusão, mas suas vontades não têm amparo legal. A criança não é propriedade dos pais. Ao contrário, o menor é pessoa de direito, integrante da humanidade e com interesses distintos, cuja vida, na sua inteireza e com saúde, deve ser preservada pelo Estado. Os pais (biológicos ou adotivos, dentro ou fora da instituição social da família, com ou sem religião) apenas exercem o pátrio poder que o Estado de Direito lhes outorga, para os efeitos de bem educar, formar e transformar a criança em cidadão prestante (útil à sociedade como um todo). Por essa razão, se os pais não cumprirem esses deveres, deles poderá ser retirado o Pátrio Poder, pela iniciativa de qualquer interessado e sob fiscalização do Ministério Público, com assento no art. 229 da CF/88[56], art. 1365, V do Código Civil[57], e dispositivos aplicáveis do Estatuto da Criança e do Adolescente.”[58]
Como já visto, é legítimo o poder dos representantes legais de consentir no sentido de submeter seus representados aos procedimentos médicos.
Na falta desses representantes, por razões de urgência devido a um iminente perigo de vida, pode o próprio médico proceder aos procedimentos médicos, sempre atendendo ao Código de Deontologia Médica e ao Código de Ética Médica, independentemente da autorização desses representantes legais.
O médico também pode agir nos casos de negligência ou mesmo contrariedade dos representantes legais, podendo decidir pelo tratamento que entender adequado ao caso por ser este o seu dever, e não ocorrer em omissão de socorro com a perda da vida do paciente, restando, nesse caso, a possibilidade de responsabilização desses representantes legais.[59]
7 CONCLUSAO
Chega-se, desta forma, ao fim do presente estudo, concluindo-se que, diante dos avanços da medicina, da engenharia genética, bem como dos avanços culturais pelos quais passa a sociedade atual, os paradigmas vigentes já não mais conseguem resolver todos os problemas sociais.
Diante dos dilemas exsurgentes, vem o Biodireito, ramo jurídico autônomo e recente, tentar estabelecer um elo entre Direito e Bioética para a preservação da vida e o respeito do homem como pessoa.
A recusa do paciente de submeter-se a qualquer tipo de procedimento médico, independentemente da iminência de risco de vida, encontra guarida nos princípios da liberdade religiosa, da autonomia da vontade e autodeterminação, na dignidade humana e até mesmo no princípio da legalidade. Esta recusa deve ser respeitada de forma absoluta, se ausente a iminência de perigo de vida para o paciente.
Do contrário, haverá conflito entre tais direitos e o direito à vida, considerado este como um direito supremo, do qual derivam todos os demais direitos fundamentais, devendo, pois, ser respeitado. É o que se tira não apenas do seu caráter de supremacia, mas também da leitura de disposições dos mais variados diplomas legais nacionais.
Para os casos de conflito, independente da existência de iminente perigo de vida para o paciente ou da possibilidade ou não de cura, a doutrina é divergente: há quem considera que deve prevalecer o direito à vida. Outros, que deve prevalecer o direito à liberdade religiosa, à autonomia da vontade, direitos esses, que em última análise, têm estreita ligação com a dignidade humana e com a recusa ao tratamento.
Em respeito a esses raciocínios, o médico que atende a vontade do paciente em não se submeter a procedimento médico (tratamento médico ou intervenção cirúrgica), exceto nos casos de iminente risco de vida, não pode ser responsabilizado civil e criminalmente, mesmo que da conduta sobrevenha a morte do paciente.
Já nos casos de iminente risco de vida para o paciente, o médico tem o dever legal e ético de intervir no sentido de preservar a vida do mesmo. Nesse sentido, por óbvio que se agir com erro médico também responderá, desde que presentes os pressupostos da responsabilidade civil, pois responsabilidade médica rege-se pelos mesmos princípios da responsabilidade civil em geral.
O médico também poderá ser responsabilizado no caso de não haver o consentimento informado do paciente, salvo nos casos de exceções ao consentimento informado.
Quanto aos estabelecimentos de saúde e demais profissionais a ela ligados, a responsabilização civil segue na mesma seara: não havendo risco de morte, o respeito deve ser absoluto a vontade do paciente.
Havendo riscos a vida do paciente, primeiro deve haver a ampla ciência do mesmo quanto as conseqüências de sua recusa, para, posteriormente, coletar-se o seu consentimento ou recusa (de preferência por termo escrito). Se a recusa persistir, importante (caso entendam os profissionais e estabelecimento que devam lutar pela vida do mesmo), o auxílio e a manifestação do Poder Judiciário autorizando a intervenção forçada no paciente para evitar eventual ação indenitária posterior.
O julgador, nestes casos, para proferir a autorização ou não da realização do procedimento no paciente deverá ponderar todas as razões que o levaram a recusa e, posteriormente, manifestar-se, isentando responsabilidades dos envolvidos na questão.
O paciente, por seu turno, não pode ser responsabilizado pela sua recusa, visto que o ordenamento jurídico pátrio não pune nem o suicídio, quiçá a submissão a tratamento. Pelo contrário, há proteção expressa de sua vontade (desde que autônoma) no artigo 15 do CC.
Os representantes legais dos pacientes incapazes respondem perante estes e perante o Estado se agirem de maneira negligente ou desidiosa. No entanto, caso manifestem a recusa a submissão a tratamento vital, deverão fazê-lo de forma fundamentada, pena de ingresso perante o Poder Judiciário em busca de autorização para a realização do procedimento, eventual reparação e ainda a perda do poder familiar ou dos mandos tutelares/curatelares. Quem procederia a providência? O Ministério Público.
Finalmente destaque-se que esse estudo sobre estas questões não tem problemática de solução fácil, quiçá mansa e pacífica, e ainda encontra-se em fase de discussão e amadurecimento, posto que atinente a variada gama de aspectos jurídicos como o exercício dos direitos fundamentais, a ética no exercício de atividade ligada a saúde e vida humana, bem como a eventuais conseqüências jurídicas destes advindas.
Art. 1.638, CC. “Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a me que: I – castigar imoderadamente o filho; II – deixar o filho em abandono; III – praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV – incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente”. Art. 1.637, CC. “Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha”.
Informações Sobre o Autor
Zilda Mara Consalter
Advogada. Professora de Direito Civil e Metodologia da Pesquisa Jurídica dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Estadual de Ponta Grossa-UEPG. Líder do Grupo de Pesquisa em Direito Obrigacional (http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhepesq.jsp?pesq=5471268018863867). Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina – PR.