Resumo: O presente artigo tem por escopo, sob os auspícios da Lei 12.403/2011, delinear os limites da atuação jurisdicional na decretação de oficio das medidas cautelares. Com o novel arranjo legislativo trazido pelo referido dispositivo, alterou-se o paradigma das medidas cautelares no processo penal brasileiro, visto que não é mais dado ao magistrado a determinação ex officio das medidas cautelares em fase pré-processual da persecução penal. No entanto, parte da legislação especial, não tendo acompanhado o avanço legislativo, persiste prevendo possibilidades de se aplicarem, de ofício, pelo juiz, medidas cautelares ainda em fase de investigação. Assim, cumpre reconhecer a derrogação tácita de tais dispositivos, os quais não estão em consonância com a lógica do sistema processual penal atualmente válida.
Abstract: The scope of this article is the approach to the boundaries of jurisdictional ex officio action to the enactment of precautionary measures under the auspices of the Law Number 12.403/2011. With this new legal arrangement, the paradigm of precautionary measures in the criminal process has changed, since it is no more allowed to the magistrate to determine precautionary measures ex officio at the pre-trial phase of criminal prosecution. However, part of special legislation is not following this legal progress and is still predicting possibilities of applying the precautionary measures ex officio by the judge, in cases under investigation. Thus, we must recognize the implicit waiver of such devices, which are not in line with the logic of the criminal justice system currently valid.
Sumário: 1. Introdução. 2. As espécies de sistema processual penal: o sistema acusatório e o sistema inquisitório. 3. Classificação das medidas cautelares no sistema processual penal brasileiro. 4. Limites da atuação jurisdicional na decretação ex officio das medidas cautelares – (im)possibilidade do poder geral de cautela no processo penal. 4.1. Princípios norteadores das medidas cautelares 4.1.1. Princípio da presunção da inocência 4.1.2. Princípio da liberdade. 4.1.3. Princípio da proporcionalidade 4.2. Pressupostos ou requisitos das medidas cautelares. 5. A decretação ex officio das medidas cautelares à luz do artigo 282, §2º, do Código de Processo Penal. 6. Derrogação parcial, pela Lei 12.403/2011, da legislação especial concernente à atuação ex officio do magistrado em fase pré-processual. 7. Considerações conclusivas.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por escopo, sob os auspícios da Lei 12.403/2011, delinear os limites da atuação jurisdicional na decretação de oficio das medidas cautelares.
A análise do tema transita necessariamente pela diferenciação entre os sistemas processuais penais cujos elementos muitas vezes surgem em conflitos doutrinários e jurisprudenciais: o sistema acusatório e o sistema inquisitorial. Sendo o processo penal brasileiro notadamente acusatório, caracterizado pela equidistância do Juiz em relação à Acusação e à Defesa, cumpre investigar se o novel arranjo legislativo não se inclina perigosamente ao sistema inquisitorial, em que a figura do Juiz adquire contornos de acusador.
No bojo do nosso sistema processual penal acusatório, dividem-se as medidas cautelares de acordo com o momento de sua aplicação, bem como pelo objeto sobre o que recaem. Tais aspectos serão tratados em tópico oportuno.
Caracterizadas as medidas cautelares trazidas pela Lei 12.403/2011 e contextualizadas estas no sistema processual penal brasileiro, passa-se ao exame propriamente dito da forma de sua decretação, se de ofício ou mediante representação da autoridade policial ou do Ministério Público.
Outro ponto relevante para apreciação é a nova redação do artigo 310 do Código de Processo Penal, que versa sobre a possibilidade de conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, apenas com a apresentação do auto de prisão em flagrante ao juiz. Resta investigar o espírito da nova lei e estabelecer os limites da atuação ex officio do magistrado.
Ademais, mostra-se salutar o cotejamento das mudanças promovidas pela Lei 12.403/2011 com alguns outros dispositivos legais já existentes, como o artigo 20 da Lei Maria da Penha (11.340/2006) e o artigo 294, caput, do Código de Trânsito Brasileiro, os quais versam sobre a atuação ex officio do magistrado ainda fase pré-processual.
2. AS ESPÉCIES DE SISTEMA PROCESSUAL PENAL: O SISTEMA ACUSATÓRIO E O SISTEMA INQUISITÓRIO
Por tratar o presente artigo da atuação ex officio do magistrado no curso da persecução penal, a abordagem acerca das espécies de sistema processual penal faz-se salutar. Isso porque em cada sistema, acusatório ou inquisitório, o juiz ocupa um papel distinto no cenário processual.
A principal distinção entre o sistema acusatório e o inquisitório diz respeito ao distanciamento do magistrado do ente acusador, titular da ação penal, o Ministério Público. No sistema inquisitório, há, em alguns aspectos, a coincidência do sujeito julgador com o sujeito investigador/acusador. O juiz atuaria na etapa investigatória: inicia-se o processo com a notícia-crime, para só então dar-se a investigação, seguida da acusação e do julgamento.
Já no sistema acusatório, dotado da equidistância formal do magistrado em relação a acusado e acusador, a investigação, a acusação e o julgamento são delegados cada um a um órgão diferente, cumprindo cada qual sua função estrita, sem coincidência de atribuições (OLIVEIRA, 2011, p. 9).
O sistema processual penal brasileiro é notadamente acusatório, excetuando-se certas inclinações decorrentes do teor inquisitivo do nosso Código de Processo Penal. É o que se buscará demonstrar ao longo deste artigo. No entanto, avanços legislativos e jurisprudenciais alçaram o processo penal brasileiro a um modelo com contornos eminentemente acusatórios, a exemplo da posição do Supremo Tribunal Federal pela vedação, ao magistrado, de requisitar a produção de novas provas quando o Ministério Público tiver pugnado pelo arquivamento do feito[1].
Cumpre asseverar que a análise do sistema processual, como o próprio nome sugere, limita-se ao âmbito do processo, da ação penal, não se aplicando à fase de investigação policial (OLIVEIRA, 2011, p. 13). Contudo, não há que se olvidar da eventual atuação jurisdicional em sede de inquérito, a qual, como será tratada adiante, poderá constituir ofensa às diretrizes do sistema acusatório.
3. CLASSSIFICAÇÃO DAS MEDIDAS CAUTELARES NO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO
Diferentemente do processo civil, a cautela no processo penal brasileiro não encontra previsão legal detalhada, com diretrizes claras, de modo a possibilitar um processo penal cautelar propriamente dito. A cautela no processo penal dá-se por meio das diversas medidas previstas esparsamente na legislação processual penal (SANTOS, 2011, p. 13).
Nesse ponto, para tornar a abordagem mais didática, convém apresentar breve classificação das medidas cautelares penais. De acordo com Marcos Paulo Dutra Santos (2011, p. 16), as medidas cautelares dividem-se em a) aflitivas, b) probatórias e c) assecuratórias.
As medidas cautelares aflitivas também são denominadas, por parte da doutrina, de pessoais, pois recaem diretamente sobre a pessoa do investigado ou acusado. Contudo, esta última denominação não retrata com a melhor clareza o objeto das medidas cautelares ora em apreço, tendo em vista que outras medidas, que também recaem sobre a pessoa do investigado ou acusado, possuem finalidade diversa. É o caso das medidas cautelares probatórias, que serão abordadas com mais vagar posteriormente.
Sobre as medidas cautelares aflitivas, convém mencionar que possuem caráter primordialmente repressivo, com o condão de tolher sobremaneira a liberdade do indivíduo em prol do bom andamento da persecução penal, seja antes ou durante a sua fase processual.
São medidas cautelares aflitivas, por exemplo, a tradicional prisão preventiva e as novas medidas trazidas pelo artigo 319 da Lei 12.403/2011, como o comparecimento periódico em juízo (inciso I), o recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos (inciso V), a suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais (inciso VI), a monitoração eletrônica (inciso IX) etc.
As medidas cautelares assecuratórias dizem respeito à efetividade da sentença penal condenatória, como leciona Marcos Paulo Dutra Santos:
“Por uma questão de coerência científica e, por conseguinte, terminológica, como claro, objetivo e até, didático, seqüestro, arresto e hipoteca legal são medidas cautelares destacadamente assecuratórias, conforme denominou o próprio legislador no capítulo VI do título VI do livro I do CPP, cujo escopo é exatamente assegurar a efetividade também cível da sentença penal condenatória, garantindo a perda em favor da União do produto do crime ou de qualquer outro bem que seja proveito do crime, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé (art, 91, II, b do Código de Processo Penal), bem como a solvabilidade do condenado, evitando que o quantum indenizatório mínimo fixado na condenação (art. 387, IV, do CPP), e a futura ação de execução, precedida da liquidação por artigos, caiam no vazio, em detrimento do art. 91, I, do Código Penal c/c art. 63, caput e parágrafo único do CPP.”
Por fim, as medidas cautelares probatórias dizem respeito à produção de provas. Ainda que eventualmente recaiam sobre bens, como é o caso da busca e apreensão, ou sobre a pessoa do indiciado ou acusado, como ocorre nas interceptações telefônicas. O que se destaca nessa classificação é a finalidade da medida de produzir provas, e não necessariamente o que é atingido com a sua realização.
São medidas cautelares probatórias: a) a produção antecipada de provas, prevista no artigo 156, I, do Código de Processo Penal; b) a busca domiciliar, nos termos do artigo 242 do Código de Processo Penal; e c) a interceptação telefônica, prevista no artigo 3º da Lei 9.296/1996.
Quanto ao momento da aplicação das medidas, estas podem ser preparatórias, quando realizadas durante a investigação, em sede de inquérito policial, visando à formação da opinio delicti pelo Ministério Público. Por outro lado, em tendo como lugar o processo penal, estando em curso a ação penal, as cautelares são chamadas incidentais.
Caracterizadas as modalidades de medidas cautelares, passe-se à abordagem de sua aplicação com enfoque nos limites dos poderes do magistrado para a sua concessão.
4. LIMITES DA ATUAÇÃO JURISDICIONAL NA DECRETAÇÃO EX OFFICIO DAS MEDIDAS CAUTELARES – (IM)POSSIBILIDADE DO PODER GERAL DE CAUTELA NO PROCESSO PENAL
No processo civil, é notória e indiscutível a presença do poder geral de cautela exercido pelo magistrado, previsto no artigo 798 do CPC, pelo qual, além dos procedimentos cautelares específicos, previstos no Código, o juiz poderá determinar medidas provisórias que entender adequadas, desde que haja “fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação”.
Já no processo penal a questão não é tão simples, havendo considerável divergência doutrinária. A corrente a favor da existência do poder geral de cautela argumenta que a legislação não prevê todas as situações concretas possíveis, o que, eventualmente, poderá suscitar a atuação além da lei pelo magistrado. Assim opina Andrey Borges de Mendonça (2011, p. 81):
“Foi justamente neste sentido que a jurisprudência criou e passou a admitir com frequência a medida cautelar de retenção de passaporte como forma de evitar a prisão do acusado. Como assevera Marcellus Polastri Lima, “ao fazer uso do poder geral de cautela, o juiz poderá ter uma alternativa não prevista em lei para se evitar uma desproporcional decretação de prisão cautelar que, assim, passa, inclusive, a ser uma opção de aplicação de hipótese cautelas mais benéfica ao acusado”.
A corrente avessa à ideia do poder geral de cautela no processo penal aduz que todas as medidas cautelares e as formas de sua aplicação devem ser expressas na lei, não podendo o juiz inventar medida ou aplicar ex officio no momento inopinado que lhe aprouver. Noutros termos, no processo penal, por lidar de forma incisiva com os direitos fundamentais do indivíduo, deve-se considerar que forma é garantia (GOMES, 2011, p. 46).
Nesse sentido, leciona Luiz Flavio Gomes (2011, p. 46):
“Todo poder do juiz, no âmbito penal ou processual penal, tem limites estabelecidos pela lei ou pela constituição ou pelos tratados internacionais. O processo penal está regido pela instrumentalidade que tem como escopo a limitaão do poder estatal (não o exercício abusivo ou arbitrário do ius puniendi). O exercício da jurisdição, no âmbito criminal, deve seguir rigorosamente o devido processo lega, ou seja, as forma cunhadas pela lei, pela constituição e pelos tratados internacionais. A legalidade é pressuposto da proporcionalidade e o princípio fundante do due process of law.”
Inobstante a celeuma doutrinária existente, deve prevalecer o melhor entendimento da corrente contrária à existência do poder geral de cautela no processo penal, tendo em vista a necessidade de estarem expressas legalmente as possibilidades de limitação da liberdade individual, direito fundamental consagrado. Não se pode deixar a invenção de medidas cautelares ao alvedrio do magistrado, embora se considere este dotado da mais legítima boa vontade jurisdicional, assim como deve ser claro o momento de sua atuação ex officio.
4.1 Princípios norteadores das medidas cautelares
São os princípios que orientam a aplicação das medidas cautelares, consoante lição de Audrey Borges de Mendonça (2011): 1) da presunção da inocência (ou da não culpabilidade), 2) da liberdade e 3) da proporcionalidade.
4.1.1 Princípio da presunção da inocência
Pelo princípio da presunção da inocência (ou da não culpabilidade), regra de tratamento para o decorrer do processo criminal, o réu não pode ser tratado como condenado até que seja prolatada a sentença condenatória, se for o caso. Tal princípio orienta a condução do processo, de modo que o indivíduo potencialmente alvo de medidas cautelares não seja tratado como culpado, sujeito a um alvedrio condenatório extemporâneo.
Tal princípio encontra previsão constitucional no inciso LVII do artigo 5º, pelo qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Contudo, não podendo ser considerada de maneira absoluta, a presunção de inocência pode ser mitigada para que se garanta o resultado útil do processo, evitando-se que a ação do investigado/acusado comprometa o andamento da persecução penal.
4.1.2 Princípio da liberdade
A regra da liberdade até que seja prolatada a sentença condenatória advém, constitucionalmente, dos incisos LXI e LXV do artigo 5º. Pelo inciso LXI, “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”, o que já aponta para a necessidade de fundamentação da decretação das medidas cautelares.
Ademais, pelo inciso LXV, “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”, o que corrobora a supremacia da liberdade ao longo da persecução penal.
Assim, as restrições cautelares têm caráter excepcional e subsidiário, indicadas apenas como última ratio para a garantia do resultado processual pretendido.
4.1.3 Princípio da proporcionalidade
A proporcionalidade em sentido lato, embora não esteja literalmente prevista no ordenamento jurídico brasileiro, é decorrência do Estado Democrático de Direito e representa, substancialmente, o princípio do devido processo legal, conhecido também como substantive due processo of law (artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal).
Luiz Flávio Gomes (2011, p. 44) aduz que o princípio da proporcionalidade tem como requisitos extrínsecos a judicialidade, traduzida na forma de autorização por meio de decisão judicial e a motivação, consistente na necessidade de fundamentação das decisões judiciais, as razões factuais e jurídicas expressas que conduziram o magistrado à adoção de determinada medida cautelar.
Por requisitos intrínsecos, o autor aponta a 1) idoneidade (ou adequação), pela qual a medida deve ser apta para o atingimento do fim a que se propõe, tendo três aspectos básicos a serem observados, quais sejam, o qualitativo, o quantitativo e o subjetivo; a 2) necessidade, traduz-se na intervenção mínima, menor ingerência possível, vedação ao excesso, subsidiariedade, isto é, a preferência pelas medidas menos gravosas possíveis (LIMA, 2011, p. 31); e, por fim, 3) a proporcionalidade em sentido estrito, com a ponderação entre os valores envolvidos e o ônus imposto em cotejamento com o benefício a ser obtido (LIMA, 2011, p. 33).
No Código de Processo Penal, a proporcionalidade pode ser percebida no artigo 282, pelo qual as medidas cautelares deverão ser aplicadas observando-se a:
“I – necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais;
II – adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.”
4.2 Pressupostos ou requisitos das medidas cautelares
Cumpre tratar, para a melhor compreensão das possibilidades de decretação das medidas cautelares, os seus pressupostos ou requisitos.
Os procedimentos e as medidas cautelares existem para garantir um resultado útil do processo de conhecimento e de execução, impedimento que os bens jurídicos relevantes ao deslinde do feito sejam comprometidos pelo decurso do tempo ou pela ação do réu ou investigado (MENDONÇA, 2011, p. 24).
Para tanto, a decretação dessas medidas deve observar requisitos ou pressupostos essenciais, os quais, no processo cível, são mais propriamente denominados fumus bonis iuris (plausibilidade ou verossimilhança do direito alegado) e periculum in mora (perigo na demora da prestação jurisdicional, com o risco de perecimento do direito invocado) (LIMA, 2011, p. 39).
Para a realidade do processo penal, no que concerne às medidas cautelares aflitivas, o fumus bonis iuris é melhor denominado de fumus comissi delicti, isto é, a plausibilidade da imputação a determinado investigado ou réu. O pressuposto do periculum in mora, quanto às medidas cautelares de natureza real, como o sequestro, é perfeitamente aplicável, visto que o atraso da atuação jurisdicional pode ensejar o desbaratamento patrimonial por parte do acusado (LIMA, 2011, p. 39).
Ademais, do ponto de vista da celeridade da jurisdição, aplica-se uma variável do periculum in mora, qual seja, o periculum libertatis, traduzido no prejuízo que representa a liberdade do indivíduo para a persecução penal. Diz respeito à necessidade da medida para que se assegure o resultado útil do processo (MENDONÇA, 2011, p. 30).
5. A DECRETAÇÃO EX OFFICIO DAS MEDIDAS CAUTELARES À LUZ DO ARTIGO 282, §2º, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Delineados os elementos basilares à compreensão do tema das medidas cautelares, convém analisar a atuação jurisdicional de ofício propriamente dita, à luz da novel legislação e, especificamente, do artigo 282, §2º, do Código de Processo Penal.
É certo que vários dispositivos legais preveem a decretação de ofício das medidas cautelares, muito embora haja diferenciação das possibilidades entre os diversos momentos legislativos. Contudo, para além do que está previsto em lei, vale apontar as correntes doutrinárias existentes a respeito do agir oficioso do juiz (SANTOS, 2011, p. 25).
Como primeira corrente, aponte-se aquela inteiramente avessa à atuação ex officio do juiz, quanto à decretação de medidas cautelares, ao longo da persecução penal, considerando-a ofensa ao modelo processual acusatório pretendido no Brasil.
Noutros termos, a equidistância do juiz em relação ao réu/investigado e ao Ministério Público/autoridade policial restaria seriamente abalada caso se tolerasse a ingerência jurisdicional mesmo quando o órgão acusador/investigador por excelência entendesse ser descabida a aplicação de medidas cautelares.
De outra banda, a segunda corrente, favorável à decretação ex officio das cautelares, aduz que a imparcialidade do magistrado não estaria comprometida, tendo em vista que até a prolação da sentença, “a cognição desempenhada pelo magistrado é sumária, conduzindo a uma valoração precária, rebuc sic stantibus” (SANTOS, 2011, p. 26).
Por fim, ressalte-se a terceira via, esta alinhada ao que há de mais atual em legislação processual penal e apresentada especificamente no §2º do artigo 282 do Código de Processo Penal.
Em suma, determina tal dispositivo que a atuação de ofício do magistrado está limitada ao âmbito processual, isto é, quando em curso ação penal, sendo, pois, circunscritas às medidas cautelares incidentais.
Vale a demonstração do referido dispositivo:
“§2º As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público.”
Um exercício hermenêutico pouco complexo já é capaz de concluir que existe a divisão da persecução penal em dois momentos: a investigação criminal e a ação penal.
Ao longo investigação criminal, é nítido que a decretação das medidas cautelares dá-se por representação da autoridade policial ou requerimento do Ministério Público.
Doutra banda, em curso a ação penal, e somente neste caso, poderá o magistrado decretar de ofício as medidas cautelares.
Nesse sentido, reforçando a intenção do legislador de limitar a atuação oficiosa do magistrado ao âmbito da ação penal, em especial a respeito da prisão preventiva, o artigo 311 do CPP dispõe que o juiz poderá decretá-la em qualquer fase da investigação ou do processo penal, podendo ser de ofício apenas durante a ação penal[2].
Mencione-se, ainda, o §4º[3] do artigo 282, que pode parecer destoar da ideia de se permitir ao magistrado a atuação ex officio apenas por ocasião da ação penal. O referido dispositivo pode sugerir que, no caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas, o juiz, de ofício, poderá “substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva”.
No entanto, seguindo a lógica trazida pelo novel arranjo legislativo, a antinomia é apenas aparente, devendo, para o referido dispositivo, ser aplicada a mesma limitação observada em outros: a decretação de medidas cautelares ex officio só deve existir em sede de ação penal.
Caso contrário, se o juiz, ainda durante a investigação policial, decreta ex officio uma medida cautelar, estará incorrendo em inconstitucionalidade, sendo nula tal decisão, com o consequente relaxamento da prisão preventiva ou a insubsistência de outras medidas cautelares aflitivas (SANTOS, 2011, p. 31).
Assim, a despeito de certas vozes doutrinárias avessas à decretação de medidas cautelares ex officio independentemente do momento da persecução penal, a vontade da lei está clara ao permitir essa atuação de ofício durante o processo.
Contudo, há que se atentar para o cultivo perene de um sistema processual penal verdadeiramente acusatório, sem que laivos inquisitivos maculem a imparcialidade do magistrado com atuações ex officio indevidas.
6. DERROGAÇÃO PARCIAL, PELA LEI 12.403/2011, DA LEGISLAÇÃO ESPECIAL CONCERNENTE À ATUAÇÃO EX OFFICIO DO MAGISTRADO EM FASE PRÉ-PROCESSUAL
Com as alterações realizadas no bojo do Código de Processo Penal, como a do artigo 311, passou a ser permitida a decretação ex officio da prisão preventiva apenas no curso da ação penal. Anteriormente à Lei 12.403/11, era dado ao juiz determinar a prisão preventiva inclusive durante a investigação policial.
Além das novas redações aplicadas ao CPP, há que se atentar para os novos entendimentos em torno da legislação especial decorrentes da Lei 12.403/2011. Existem outros dispositivos que, não tendo passado por alterações, permaneceram prevendo a decretação de ofício de medidas cautelares em sede de inquérito policial.
São exemplos da atuação de ofício do magistrado ainda em fase pré-processual: a) a produção antecipada de provas (artigo 156, I, do CPP), b) a busca domiciliar (artigo 242 do CPP), c) a interceptação telefônica (artigo 3º da Lei 9.296/96), d) o sequestro de bens (artigo 127 do CPP), e) a prisão preventiva por ocasião de violência doméstica (artigo 20 da Lei 11.340/07) e f) a suspensão da habilitação para dirigir veículo automotor (artigo 294 da Lei 9.503/97).
Exsurge, então, a indagação: permanecem válidos tais dispositivos diante do entendimento trazido pela Lei 12.403/11, pelo qual o magistrado não pode aplicar as medidas cautelares de ofício, no âmbito do inquérito policial?
Existem três trilhas doutrinárias.
A primeira corrente defende a validade dos dispositivos, alegando que a lei especial derroga a geral. Sendo os dispositivos do Código de Processo Penal regras gerais, não há que se descartar a validade do que dispõe a legislação especial, o que permite a decretação ex officio de medidas cautelares ainda durante a investigação policial.
A segunda corrente manifesta-se pela derrogação tácita de tudo o que prevê a atuação ex officio em sede de inquérito policial. Isso porque o arranjo legislativo promovido pela Lei 12.403/11 estabeleceu um novo paradigma de limitação da atuação jurisdicional, com o refinamento do sistema acusatório. Em suma, buscou-se restringir a decretação de ofício das cautelares à etapa processual da persecução penal.
A terceira via revela um entendimento misto, que distingue as medidas cautelares aflitivas das medidas cautelares preparatórias. Para estas, essa corrente defende que a legislação especial continua válida, tendo em vista que a Lei 12.403/11 tratou somente de medidas cautelares aflitivas (SANTOS, 2011, p. 34).
De todo modo, deve ser reconhecida a derrogação tácita do artigo 20 da Lei 11.340/07 [4], de modo que, mesmo para casos de violência doméstica, a decretação da prisão preventiva do agressor necessita de representação policial ou requerimento ministerial.
Outro dispositivo de validade discutível é o artigo 294 do Código de Trânsito Brasileiro[5]. Sob o prisma da novel legislação, a suspensão da permissão ou da habilitação para dirigir veículo automotor, ou a proibição de sua obtenção, constitui medida cautelar aflitiva, igualmente passível de depuração pela Lei 12.403/11, isto é, só pode ser decretada, em sede de investigação, mediante representação da autoridade policial ou requerimento do Ministério Público.
Nesses casos, em suma, não há motivo para se continuar aceitando a determinação ex officio das medidas cautelares aflitivas, por não restar dúvidas de que tais situações encontram-se abrangidas pelo novo paradigma lançado pela Lei 12.403/2011.
Contudo, há que se perceber que o novo entendimento promovido pela Lei 12.403/11 não distinguiu as medidas cautelares, embora, do ponto de vista da classificação doutrinária, tenha tratado do que se convencionou chamar de medidas cautelares aflitivas ou pessoais.
O que não se pode perder de vista é o novo paradigma alçado, o qual, em respeito às diretrizes do sistema processual penal acusatório, limitou a atuação não provocada do magistrado, isto é, sem que o órgão investigador/acusador requeira ou represente.
7. CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
O cerne do presente artigo consiste na análise da atuação jurisdicional no bojo do sistema processual penal brasileiro, tido como acusatório, especificamente a respeito da decretação de ofício das medidas cautelares à luz da Lei 12.403/2011.
A grande inovação da referida lei foi a restrição da atuação ex officio do magistrado apenas à etapa processual da persecução penal. As alterações promovidas serviram indubitavelmente para refinar o modelo processual brasileiro como acusatório, em que a figura do juiz deve estar equidistante em relação ao réu/investigado e ao Ministério Público e autoridade policial.
Muito embora se possa alegar que, mesmo em sede de ação penal, a atuação de ofício do juiz representa reminiscências inquisitivas ou quebra da imparcialidade judicial, não há como deixar de reconhecer o avanço legislativo. De todo modo, mais um passo em direção aos direitos fundamentais do investigado/acusado foi dado.
Ademais, mencione-se que a legislação especial concernente às medidas cautelares foi afetada com o advento da Lei 12.403/11, como o artigo 20 da Lei 11.340/07, que prevê a decretação ex officio da prisão preventiva do agressor, mesmo em sede de inquérito; e o artigo 294 do Código de Trânsito Brasileiro, que dispõe acerca da suspensão, de ofício, da permissão ou da habilitação para dirigir veículo automotor, ou a proibição de sua obtenção.
Pelo novo paradigma estabelecido pela Lei 12.403/11, consubstanciado nos artigos 282, §2º, e 311, ambos do Código de Processo Penal Brasileiro, é vedada a determinação de ofício de qualquer medida cautelar em fase pré-processual.
Informações Sobre os Autores
Leandro Duarte Vasques
Advogado Criminal Sócio de Leandro Vasques Advogados Associados, Mestre em Direito pela UFPE, Professor de Direito Penal e Prática Jurídica da UNIFOR, Presidente da Caixa de Assistência dos Advogados do Ceará e Membro do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará
Afonso Roberto Mendes Belarmino
Advogado de Leandro Vasques Advogados Associados. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará