Introdução
Dizem os estudiosos sobre o tema que o desenvolvimento da instituição do Ministério Público no Brasil na área cível não se compara à encontrada em nenhum outro local do mundo, com a possível exceção do exemplo português. Inegavelmente, as perspectivas alcançadas pelo seu exercício, na prática quase exclusivo, da titularidade na ação civil pública é em grande parte responsável por essa posição. Assim, completam os entusiastas desta configuração, se une um exemplo de Ministério Público conforme o modelo italiano, de garantias e prerrogativas semelhantes às da Magistratura[1], com um amplo espectro de atribuições, possibilitando uma vasta proteção da sociedade.
Este trabalho visa mostrar que, não obstante os inegáveis méritos que tal normatização alcançou em nossa pátria desde a Constituição de 1988, há alguns potenciais emancipatórios que a criação de uma instituição própria de “Defensoria do Povo” que o modelo brasileiro relega a segundo plano e que foram e são alcançáveis, como a experiência histórica e contemporânea do “Tribuno da Plebe” e do “Defensor Civitatis” no Império Romano e do “Defensor del Pueblo” no Peru atual nos ensinam.
1. Em que consiste o “Defensor do Povo” ?
Diz um dos maiores especialistas mundiais sobre o tema “ombudsman” (cuja significado original é “agir em nome de outrem”), o professor Per-Erik Nilsson, durante muito tempo detentor deste cargo no país de origem do instituto, a Suécia, que este é o único termo não referente à comida ou à bebida que este país escandinavo ofereceu ao vocabulário internacional.
O sentido original do instituto poderia ser entendido hoje como o de uma “instituição a que os particulares podem dirigir-se para obter uma reparação quando se sentirem indevidamente tratados pela impessoalidade de uma burocracia anônima”[2]. Ou, como se expressa a Internacional Bar Association, “ombudsman is an Office provided by the constitution or by action of the Legislature or Parliament and headed by an independent, highlevel public official who is responsible to the legislature or Parliament, who receives complaints from aggrieved persons against government agencies, and who has power to investigate, recommend corrective action, and issue reports.”[3].
Em ambas as definições salta aos olhos o enfoque na natureza de instrumento de deságüe das insatisfações sociais, seja individual ou coletivamente, com a ação estatal e também como meio de garantir que a “res publica” mantenha-se a serviço do povo, e não apenas um mero controlador da Administração.
2. O quadro legislativo brasileiro e a rejeição da introdução do instituto na Constituição Federal de 88.
Em palestra proferida em 1967, o professor Caio Tácito apresentou o instituto jurídico do Defensor do Povo definindo-o como um “comissário parlamentar, escolhido pelo Poder Legislativo, com atribuições especiais de acompanhar e fiscalizar a regularidade da administração civil ou militar, apreciando queixas que lhe são encaminhadas ou realizando inspeções espontâneas nos serviços públicos”, acrescentando ainda que “seus poderes são limitados, não exercendo competência anulatória, nem disciplinar ou criminal, mas, segundo o depoimento dos autores, a sua advertência ou a iniciativa de processos penais contribui, expressivamente, para a contenção dos abusos do poder administrativo”[4]. Desde então ocorreram diversas tentativas de introduzir tal elemento jurídico exógeno em nosso ordenamento jurídico.
Padeceram, uma após outra, pela ausência de ressonância no Congresso, as propostas de emenda constitucional do deputado Mendonça Neto em 1981 de criar o cargo de Procurador Geral do Povo, com atribuição de investigar as violações à lei e aos direitos fundamentais do cidadão; do deputado José Costa, no mesmo ano, de fundar a “Procuradoria Geral do Poder Legislativo”; do senador Luiz Cavalcanti, em 1983, se referindo expressamente ao Ombudsman como “heróica tentativa para extirpar da vida pública nacional o câncer da corrupção”; o projeto de lei do Deputado Jonatas Nunes, em 1984, que visava estabelecer uma “Procuradoria Popular”, que receberia e apuraria queixas ou denúncias escritas de qualquer cidadão que se sentisse prejudicado por ato da administração; e também do então senador Marco Maciel, com o mesmo objetivo da “Procuradoria Popular”, mas o nome de “Ouvidor Geral”[5]. Tais sucessivos infortúnios na tramitação da importação do instituto em nível federal posicionam, na literatura latino-americana de direito estrangeiro, as experiências nacionais de Porto Rico (1977), Guatemala (1985), México (1990), El Salvador (1991), Colômbia (1991), Costa Rica (1992), Paraguai (1992), Honduras (1992), Peru (1993), Argentina (1993), Bolívia (1994), Nicarágua (1995), Venezuela (1997) e Equador (1998)[6] com a vanguardista Ouvidoria Municipal de Curitiba (Dec. 215, de 21.03.1986), seguida de cópia em algumas outras capitais.
E nem se diga que isto não fora aventado no Anteprojeto da Constituição que a comissão presidida pelo professor Afonso Arinos apresentou em 1986. Encontra-se lá, no artigo 56 : “É criado o Defensor do Povo, incumbido, na forma de lei complementar, de zelar pelo efetivo respeito dos poderes do Estado aos direitos assegurados nesta Constituição, apurando abusos e omissões de qualquer autoridade e indicando aos órgãos competentes as medidas necessárias à sua correção ou punição.”[7]
A proposta, porém, teve igualmente vida curta. Já no segundo substitutivo do relator Bernardo Cabral, foi abandonada a Defensoria do Povo, sendo agregada às funções institucionais do Ministério Público, a de “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços sociais de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, apurando abusos e omissões de qualquer autoridade e promovendo as medidas necessárias à sua correção e punição dos responsáveis”, bem como a de “promover o inquérito civil e ação civil para a proteção do patrimônio público e social, dos interesses difusos e coletivos, notadamente relacionados com o meio ambiente, inclusive o do trabalho, e os direitos do consumidor, dos direitos indisponíveis e das situações jurídicas de interesse geral ou para coibir abuso da autoridade ou do poder econômico.”(art. 151, II e III, com redação final e mudanças importantes juridicamente, mas pontuais aos fins deste trabalho nos incisos II e III do artigo 129 da Carta Magna de 1.988).
Nessa absorção da função pelo Ministério Público em detrimento da Defensoria do Povo, é inegável a importância da figura do então Procurador Geral da República e atual ministro do STF, José Paulo Sepúlveda Pertence, que, integrante da Comissão de Estudos Constitucionais, empenhou-se em definir o texto referente ao Ministério Público. A “Proposta Pertence”, referendada na chamada “Carta de Curitiba” que surgiu do 1º. Encontro Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça e Presidentes das Associações de Ministério Público, foi tão influente que, propulsionada pelo eficiente e coeso lobby dos promotores, serviu quase “in totum” para a feitura do texto final, embora tivesse sofrido várias mudanças na supracitada comissão.[8]
Sob um olhar sociológico, podemos analisar que os dois fatores principais que influenciaram a extirpação do “Defensor do Povo” do texto final foram, ao lado da já citada influência dos juristas com interesse sobre o tema, as condições socio políticas brasileiras.
Ao comentar a introdução de um Código Civil de inspiração alemã na Grécia do século XIX, em alternativa à inspiração do Código Napoleônico, o jurista Papachristos, na sua obra sob recepções de direitos estrangeiros como fenômeno da sociologia jurídica, assim se pronunciou : “C’est sous l’influence des juristes venus d’Allegmane que le droit romain – tel qu’il avait cours en Allemagne – constitua le droit civil hellénique. La cause du Code Napoleón fut ainsi abandonnée. ». E ainda : « Dans la résurrection du droit romano-byzantin il faut surtout voir un moyen de défense contre l’infiltration du droit civil français, jugé trop liberal et trop radical par les éléments conservateurs. Opposer à celui-ci le droit romano-byzantin – et non les coutumes locales, par trop incertaines – c’était proposer un droit codifié que la bourgeoisie naissante pouvait accepter pendant un certain temps. “[9].
Transmutando tal exemplo ao caso brasileiro, podemos observar que, evidentemente, a existência de um grupo de pressão influente e bem organizado, capitaneado por uma alta autoridade da República, produziu um grande efeito sob os trabalhos constituintes. Não obstante, devemos atribuir crédito também à postura histórica das elites brasileiras de “ efetuar a revolução antes que o povo a faça “[10] na configuração do texto final. Aliado ao caráter naturalmente paternalista do Estado Brasileiro, era muito mais cômodo se adaptar para as aberturas naturais no controle da Administração Pública numa democracia através de um órgão que comumente tinha estado sob influência da vontade do chefe do Poder Executivo do que através de uma nova estrutura que tinha como pressuposto da sua constituição a participação popular diretamente na sua atuação.
Todavia uma análise mais ampla revela que a figura do Defensor do Povo tem outras características que lhe conferem um perfil diverso daquele do Ministério Público. Assim, a figura histórica do Tribuno da Plebe romano, a experiência normativa peruana contemporânea quanto ao instituto do “Defensor do Povo” e a própria realidade brasileira parecem mostrar sinais que tal concentração de poderes talvez não tenha sido a ideal para os fins alcançáveis através dessa notável figura.
3. O “Tribunado da Plebe” da Roma Clássica e o “defensor civitatis” do Império Bizantino
Os tribunos da plebe aparecem, segundo a tradição, em 494 a.C.. Inicialmente tinham como principal função proteger os plebeus contra as arbitrariedades dos cônsules. Tal atuação se revelava através de uma dupla faceta, um poder negativo, a “intercessio”, que era um poder de veto aos atos dos demais magistrados, inclusive tribunos e uma “coercitio” que lhes permitia, por exemplo, ordenar a prisão de um cidadão ou impor-lhe multas, sendo certo que o próprio tribuno da plebe era inviolável, e uma prerrogativa principal, a de convocar a plebe e falar-lhe (“jus agendi cum plebe”) [11].
Embora, na origem, meramente antipatrício, o exercício do Tribunado da Plebe, principalmente pelos irmãos Graco, toma como foco central a defesa dos excluídos de todo o tipo. Caracterizava-se assim como “un verdadero ‘antipoder’, ejerciendo una firme defensa de los intereses de los que no tenian acceso al poder o no lo detentaban”[12]
Este magistrado se transmuta na figura do “defensor civitatis”, quando do império tardio. Com caráter menos grandioso e mais ordinário, tinha atribuições mais próximas ao dia-a-dia da “polis”, funcionando como um patrono para pessoas desprovidas de recursos e como controle da Administração Pública, pugnando pelo bom andamento do serviço. O Código Justiniano trata do tema, ao determinar ao defensor Teodoro que se porte como um “pai da plebe” (aqui a palavra “plebe” utilizada não como designativa de classe social, mas sim do grupo da população que se contrapunha aos “potentes”) e oponha-se à “insolência dos funcionários públicos e à morosidade dos juízes”[13].
Ressalte-se que na configuração do Império Romano do Oriente, o instituto já se encontra despido da “intercessio”, do “coercitio” e do “ius agendi cum plebe”. Embora tais poderes e prerrogativas afetem, evidentemente, o poder de inclusão que o “defensor do povo” possa ter sobre a sociedade que o admita, os exemplos históricos romanos nos evidenciam a importância do órgão como meio nivelador das ainda hoje profundas desigualdades sociais. Para tal, no entanto, é notável em todo o desenvolvimento histórico, a situação de intensa proximidade com o clamor dos excluídos.
4. A experiência peruana contemporânea
A Constituição peruana de 1979 é fruto direto das experiência ibéricas então recém findas[14]. Não poderia, portanto, ficar imune às figuras do “provedor da justiça” e do “defensor del pueblo” das constituições portuguesa e espanhola respectivamente. Assim o artigo 250, inciso 4 da Lei Maior de 79 outorgam algumas dessas funções ao Ministério Público, ao determinar que este deveria “atuar como defensor do povo frente à Administração Pública”.
Não obstante, a aplicação da norma foi um verdadeiro fracasso, levando a Constituinte de 1993 a criar a “Defensoria do Povo” como órgão autônomo. Tratadista peruano assim se pronunciou :
“En su conjunto, la labor del Ministério Publico en el de funciones de defensoría del pueblo, salvo puntuales y destacadas excepciones y pese al entusiasmo de quienes trabajaron en la Fiscalía Especial, fue insuficiente y quedo rebasada ante las frecuentes violaciones a los derechos humanos cometidas en el país. Es más, resultada incongruente que el órgano estatal titular de la acción penal – y en consecuencia de acusar a las personas – sea a la vez encargado de defenderlas.
De ahi que la Constitución de 1993 haya optado razonablemente por modificar la anterior situación al incorporar a la Defensoria del Pueblo como órgano autônomo (artículos 161 y 162), disponiendo que lê corresponde ‘defender los derechos constitucionales y fundamentales de la persona y de la comunidad; y supervisar el cumplimento de los deberes de la administración estatal y la prestación de los serviços públicos a la ciudadanía’, De esta manera, al Ministério Público ya no lê compete esta función”.[15]
Desta forma destacam-se como as três funções básicas da Defensoria do Povo peruana a defesa dos direitos fundamentais individuais e coletivos, o controle da administração pública no tocante aos seus deveres, e a supervisão da prestação de serviços públicos em geral. Esta atuação não se dá como um “superpoder”, visto que ele é submetido à possibilidade de cassação pelo voto de 2/3 do Congresso (mesmo quórum de eleição para um mandato de 5 anos deste “comissário parlamentar”, escolhido dentre bacharéis em direito com mais de 35 anos). Impõe-se-lhe, também, a prestação de contas anuais ou quando a situação assim o exigir, às Casas Legislativas, ficando impedido de agir nas áreas de defesa nacional e relações internacionais nos assuntos assim decididos motivadamente pelo Conselho de Ministros. Não tem, tampouco, imperatividade para ditar sentenças ou atos de coerção (é a chamada “magistratura de persuasão”, seu poder de convencimento se baseia na ínsita qualidade moral de quem exerce o cargo).
Por outro lado, o Defensor do Povo, dotado de imunidade e inviolabilidade pessoal, e os defensores adjuntos (escolhidos por meio de concurso público para um mandato de três anos) possuem inúmeros poderes-deveres : iniciam e dão impulso, de ofício ou a pedido da parte a investigações sobre os excessos dos agentes públicos, sejam da Administração Direta, Indireta, por meio de delegação ou concessão, transitórios ou não; podem propor ação de inconstitucionalidade e impetrar quaisquer ações constitucionais (habeas corpus, mandado de segurança, ação popular e ação de cumprimento de defesa de direito fundamental); iniciam ou participam, a pedido ou de ofício, em qualquer processo administrativo visando garantir o direito individual; e funcionam como mediadores de conflitos de interesses e difusor dos direitos humanos. Ademais têm função de sumular as decisões reiteradas como forma de recomendações aos órgãos públicos. É essencial nessa atuação a celeridade que torna a “Defensoria do Povo” apta a enfrentar as questões que se lhe apresentam de forma mais ágil do que o Poder Judiciário.
Este modelo está colocado por meio das funções básicas definidas nos artigos 161 e 162 da Constituição Peruana de 1.993, mas principalmente através da “Lei Orgánica de la Defensoria del Pueblo” (Ley 26520 de 8 de agosto de 1.995) que permitiu o real desenvolvimento de “una institución tutelar de los derechos humanos en el Perú”[16].
5. À guisa de conclusão : a realidade institucional brasileira
A Constituição Brasileira tem 16 anos de vida. A Peruana de 1979, quando do novo aparecimento do Poder Constituinte Originário que ensejou a autonomia da Defensoria do Povo, 14 anos. Além da idade em comum, apresenta-se também em ambas as sociedades a condição de “estados de terror” em razão de verdadeiras “guerras civis” em seu território. O Peru se viu assombrado na década de 80 pela ação do “Sendero Luminoso”, solapando a confiança na efetividade das instituições democráticas e dando azo às propostas das “águias” que só encontram solução na eliminação dos “excessivos” direitos humanos. Este cenário corresponde ao hoje corrente nos principais centros urbanos brasileiros, onde o confronto entre as forças policiais e as da criminalidade organizada tornam igualmente tentadores tais decisionismos de caráter fascista. Torna-se utópico aqui acreditar no remanejamento de recursos já insuficientes para este combate para a defesa das populações carentes, vistas como um todo como fonte destes elementos marginais. Portanto não é mera coincidência que as insuficiências da colocação dessa função dentro do Ministério Público e, em certa parte, na Defensoria Pública, sejam semelhantes.
O Ministério Público, notadamente o estadual, não possui, conforme se observa na realidade atual brasileira, a cultura de acesso dos desvalidos que permita pôr essa instituição em prol dos excluídos. Ademais a constante coincidência do necessitado do “defensor do povo” com o freqüente réu no processo penal criam um natural distanciamento ao exercício de ambas as funções, com predomínio, por certo, da repressiva. Evidência disto são os costumeiros abusos policiais e nas prisões, sempre seguidos de condenações nos relatórios nas comissões de direitos humanos da ONU.
Por outro lado, a Defensoria Pública no Brasil é insuficientemente organizada, faticamente autônoma e dotada de prerrogativas funcionais para conseguir garantir ao oprimido pelo gigantesco aparelho estatal, a proteção mínima indispensável.
Por isso, só a recepção de uma instituição autônoma, nos moldes peruanos, permitiria desenvolver o escopo institucional e verdadeiramente alcançar os fins esperados por essa normatização popularizada em nível global desde o fim da 2ª. Guerra. Isto não significa, por certo, a retirada de funções do Ministério Público, quanto menos da Defensoria Pública, posto que o “Princípio Republicano” demanda por multiplicidade de instrumentos de controle para a melhor utilização da “res publica”. Como vimos, tal posição, aliás, vai ao encontro do “anteprojeto dos notáveis”, que uniam tal atribuição do “Parquet” no artigo 312 à criação do “Defensor do Povo” no artigo 56.
O ideal republicanista de “poder de editoração” da sociedade civil sobre o Público no Brasil ainda encontra-se à espera de mais essa emenda constitucional que rompa o “status quo” e a lentidão do labor legislativo, certamente a corresponder aos anseios da nossa sociedade em mutação.
Informações Sobre o Autor
Carlos Bruno Ferreira da Silva
Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro e mestrando em “Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado” na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ