Resumo: Em uma primeira plana, cuida salientar que o direito de vizinhança alberga um sucedâneo de limitações, provenientes da norma vigente, que cerceiam a extensão das faculdades de usar e gozar por parte de proprietários e possuidores de prédios vizinhos, afixando um encargo a ser tolerado, a fim de resguardar a possibilidade de convivência social e para que haja o mútuo respeito à propriedade. No mais, se não subsistisse tais limitações, cada proprietário poderia invocar seu direito absoluto, na colisão de direitos todos restariam tolhidos de exercerem suas faculdades, eis que as propriedades aniquilar-se-iam. Ademais, há que se sublinhar que o direito de vizinhança objetiva a satisfação de interesses de proprietários opostos, o que se efetiva por meio das limitações ao uso e gozo dos proprietários e possuidores. Nesta esteira, saliente-se que há restrições decorrentes da necessidade de conciliar o uso e gozo por parte de proprietários confinantes, vez que a vizinhança, por si, é uma fonte permanente de conflito. Quadra gizar que o conflito de vizinhança tem sua gênese sempre que um ato do proprietário ou possuidor de um prédio passa a produzir repercussões no prédio vizinho, causando prejuízos ao próprio imóvel ou ainda transtornos a seu morador. Ao lado do exposto, prima realçar que o direito de vizinhança abarca um sucedâneo de direitos e deveres estabelecidos em relação aos vizinhos, em razão de sua condição.
Palavras-chaves: Direito de Vizinhança. Uso Anormal. Propriedade.
Sumário: 1 Direito de Vizinhança: Anotações Introdutórias; 2 Natureza Jurídica do Direito de Vizinhança; 3 Uso Anormal da Propriedade: Ponderações Gerais; 4 Uso Normal causando incômodos normais; 5 Uso Normal causando incômodos anormais; 6 Uso Anormal causando incômodos anormais.
1 Direito de Vizinhança: Anotações Introdutórias
Em uma primeira plana, cuida salientar que o direito de vizinhança alberga um sucedâneo de limitações, provenientes da norma vigente, que cerceiam a extensão das faculdades de usar e gozar por parte de proprietários e possuidores de prédios vizinhos, afixando um encargo a ser tolerado, a fim de resguardar a possibilidade de convivência social e para que haja o mútuo respeito à propriedade. “Cada proprietário compensa seu sacrifício com a vantagem que lhe advém do correspondente sacrifício do vizinho”[1]. No mais, se não subsistisse tais limitações, cada proprietário poderia invocar seu direito absoluto, na colisão de direitos todos restariam tolhidos de exercerem suas faculdades, eis que as propriedades aniquilar-se-iam. Ademais, há que se sublinhar que o direito de vizinhança objetiva a satisfação de interesses de proprietários opostos, o que se efetiva por meio das limitações ao uso e gozo dos proprietários e possuidores.
Nesta esteira, saliente-se que há restrições decorrentes da necessidade de conciliar o uso e gozo por parte de proprietários confinantes, vez que a vizinhança, por si, é uma fonte permanente de conflito. Como bem aponta Monteiro Filho, ao lecionar acerca da essência do tema em comento, “trata-se de normas que tendem a compor, a satisfazer os conflitos entre propriedade opostas, com o objetivo de tentar definir regras básicas de situação de vizinhança”[2]. Quadra gizar que o conflito de vizinhança tem sua gênese sempre que um ato do proprietário ou possuidor de um prédio passa a produzir repercussões no prédio vizinho, causando prejuízos ao próprio imóvel ou ainda transtornos a seu morador. Ao lado do exposto, prima realçar que o direito de vizinhança abarca um sucedâneo de direitos e deveres estabelecidos em relação aos vizinhos, em razão de sua condição.
Pode-se, ainda, aduzir que o “objeto da tutela imediata do legislador com os direitos de vizinhança são os interesses privados dos vizinhos”[3]. Já o escopo mediato da norma é a essencial mantença do corolário da função social da propriedade, porquanto a preservação de relações harmoniosas entre vizinhos se apresenta como carecido instrumento a assegurar que cada propriedade alcance o mais amplo uso e fruição, obtendo, desta sorte, os fitos econômicos ao tempo em que salvaguarda os interesses individuais. “O direito de vizinhança é o ramo do direito civil que se ocupa dos conflitos de interesses causados pelas recíprocas interferências entre propriedades imóveis próximas”[4].
Impõe colocar em evidência que a locução “prédio vizinho” não deve ser interpretada de maneira restritiva, alcançando tão somente os prédios confinantes, mas sim de modo elástico, eis que contempla todos os prédios que puderem sofrer repercussão de atos oriundos de prédios próximos. Ao lado entalhado, há que se citar o entendimento de Leite, no qual “Imóveis vizinhos não são apenas os confinantes, mas também os que se localizam nas proximidades desde que o ato praticado por alguém em determinado prédio vá repercutir diretamente sobre o outro, causando incômodo ou prejuízo ao seu ocupante”[5]. Neste sentido, salta aos olhos que a possibilidade de sofrer interferências provenientes de atos perpetrados em outros prédios apresenta-se como suficiente a traçar os pontos delimitadores do território do conflito da vizinhança.
Denota-se, destarte, que a acepção de vizinhança se revela dotado de amplitude e se estende até onde o ato praticado em um prédio possa produzir consequências em outro, como, por exemplo, é o caso do barulho provocado por bar, boate ou ainda qualquer atividade desse gênero, o perigo de uma explosão, fumaça advinda da queima de detritos, badalar de um sino, gases expelidos por postos de gasolina, dentre tantas outras hipóteses, em que se apresenta uma interferência de prédio a prédio, não importando a distância, acabam por ensejar conflito de vizinhança. Neste sentido, a fim de robustecer as ponderações já lançadas, insta trazer à colação o seguinte aresto:
“Ementa: Direito de Vizinhança. Obrigação de Fazer. Chaminé. Fumaça. Uso Anormal de Propriedade. Chaminé do imóvel vizinho em altura inferior ao telhado da casa lindeira. Terreno em declive. Fumaça exalada em direção à residência da autora que inviabiliza a abertura de janela. Uso anormal da propriedade. Art. 1.277, CCB. Prova documental e testemunhal que comprova os fatos alegados. Princípio da imediação da prova aplicado no caso concreto. Sentença de procedência mantida. Negaram provimento.” (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Décima Nona Câmara Cível/ Apelação Cível Nº. 70035708205/ Relator: Desembargador Carlos Rafael dos Santos Júnior/ Julgado em 25.05.2010).
Ao lado disso, mister se faz destacar que o vocábulo “prédio” não traz qualquer distinção entre o imóvel urbano ou rural. De igual modo, aludido termo não apresenta qualquer questionamento acerca da finalidade, alcançando tanto o residencial, comercial e industrial. “Evoca apenas uma edificação de uma casa ou apartamentos em condomínio, independente da finalidade. Mesmo o terreno não-edificado é considerável imóvel lato sensu”[6]. Destarte, para que reste amoldado ao termo “prédio”, basta que o imóvel apresente interferência que tenha o condão de repercutir, de maneira prejudicial, em prédio vizinho.
2 Natureza Jurídica do Direito de Vizinhança
Em uma primeira plana, há que se assinalar que subsistiu acalorada discussão acerca da natureza jurídica do direito de vizinhança, havendo defensores da natureza obrigacional dos direitos de vizinhança, enquanto outros sustentavam o caráter real dos aludidos direitos. Todavia, tal debate não prosperou por longo período, sendo, ao final, pela doutrina majoritária, adotada acepção do direito de vizinhança enquanto detentor de essência de obrigação propter rem, pois se vinculam ao prédio, assumindo-os quem quer que se encontre em sua posse. Nesta senda de exposição, há que se citar o entendimento estruturado por Waquin, no qual “a natureza jurídica destes direitos [direitos de vizinhança], na opinião majoritária da doutrina, é que tratam-se (sic) de obrigações propter rem, ‘da própria coisa’, advindo os direitos e obrigações do simples fato de serem os indivíduos vizinhos”[7].
A característica mais proeminente tange ao fato dos sujeitos serem indeterminados, já que o dever não incide imediatamente sobre específica pessoa, mas a qualquer um que se vincule a uma situação jurídica de titularidade de direito real ou parcelas dominiais, como se infere no caso do usufrutuário, ou mesmo a quem exerça o poder fático sobre a coisa, como se verifica na hipótese do possuidor. A restrição, com efeito, acompanha a propriedade, mesmo que ocorra a alteração da titularidade, sendo suficiente que o imóvel continue violando o dever jurídico contido no arcabouço normativo.
Afora isso, anotar se faz carecido que o sucessor terá os mesmos direitos e obrigações do sucedido perante os vizinhos. Leciona Silvio Rodrigues que “o devedor, por ser titular de um direito sobre uma coisa, fica sujeito a uma determinada prestação que, por conseguinte, não derivou da manifestação expressa ou tácita de sua vontade”[8]. Nesta situação, o que torna o proprietário ou possuidor do imóvel devedor é a circunstância de ser titular do direito real. São excluídas, por oportuno, dos conflitos de vizinhança, as situações nas quais se verifica a chamada interferência direta ou imediata. Ao lado do expendido, há que se elucidar que a aludida modalidade de interferência tem assento quando seus efeitos já tem início no prédio vizinho, como ocorre quando há canalização para que a fumaça seja lançada diretamente no prédio vizinho. Doutro modo, a interferência é mediata quando tem início no prédio de quem a causa e, posteriormente, é transmitida ao prédio alheio. Por oportuno, quando se trata de interferência imediata, o que se tem, na realidade, é ato ilícito, robusta violação da propriedade alheia, que como tal deve repelida, alocando-se fora da área da vizinhança.
Urge verificar que as limitações oriundas do direito de vizinhança afetam, de modo abstrato, a todos os vizinhos, contudo só alcança a concretização em face de alguns. Isto é, os direitos de vizinhança são potencialmente indeterminados, porém só se manifestam em face daquele que se encontre diante da situação compreendida pelo arcabouço normativo. “Ademais, os direitos de vizinhança são criados por lei, inerentes ao próprio direito de propriedade, sem a finalidade de incrementar a utilidade de um prédio”[9], entrementes com o escopo de assegurar a convivência harmoniosa entre vizinhos. Nessa toada, os direitos de vizinhança podem ser gratuitos ou onerosos, sendo verificada a primeira espécie quando não gera indenização, sendo compensados em idêntica limitação ao vizinho, já a segunda espécie tem descanso quando a supremacia do interesse público estabelece uma invasão na órbita dominial do vizinho para a sobrevivência do outro, afixando-se a devida verba indenizatória, eis que inexiste a reciprocidade.
Calha gizar que os direitos de vizinhança onerosos se aproximam das servidões, não em decorrência de darem azo a novas espécies de direitos reais, mas pela imposição do arcabouço jurídico de deveres cooperativos de um vizinho, no que concerne ao atendimento da necessidade de outro morador. Desta feita, a propriedade de uma pessoa passa a atender aos interesses de outrem, que poderá extrair dela as necessidades, como ocorre com a passagem de cabos e tubulações ou ainda com a passagem forçada. Conquanto a norma jurídica ambicione limitar a amplitude das faculdades de proprietários e possuidores vizinhos com o intento de alcançar a harmonia social, não pertine ao Direito regular e estabelecer os marcos limitantes de todas as atividades exercitadas a partir de um prédio. Saliente-se que ao Direito interessa regular as interferências, tão somente à medida que estas se revelam prejudiciais aos seus vizinhos, ameaçando sua incolumidade e o seu próprio direito de propriedade.
3 Uso Anormal da Propriedade: Ponderações Gerais
Ab initio, ao se abordar o direito de vizinhança, pode-se salientar que o corolário maciço hasteia como flâmula que o proprietário, ou o possuidor, não podem exercer seu direito de modo que acarrete prejuízos à segurança, ao sossego e à saúde daqueles que habitam o prédio vizinho. “Limita-se o direito de propriedade quanto à intensidade de seu exercício em razão do princípio geral que proíbe ao indivíduo um comportamento que venha a exceder o uso normal de um direito”[10], ocasionando, via de consequência, prejuízo a alguém. Nesta esteira, insta salientar que devem os vizinhos manter respeito mútuo, atentando-se para o conjunto de regras morais e sociais de convívio, substancializando os seus direitos de maneira saudável e tranquila, com o escopo de restar preservada a harmonia social.
Entrementes, se o vizinho não gozar de atenção no que toca às regras de boa convivência, lançando mão de sua propriedade em condições anormais à sua época, meio ou ainda grupo em que se encontra convivendo, não atenderá, de maneira efetiva, a finalidade da vizinhança. Ao lado do expendido, não se pode olvida que a conduta anormal de um vizinho, fatalmente, atingirá a regularidade da conduta do outro vizinho, acarretando modificações não queridas de seus hábitos, perturbando-lhe a tranquilidade, segurança ou saúde. Farias e Rosenvald pontuam que “certamente não é apenas o proprietário que se encontra em posição de sofrer consequências do uso anormal do imóvel vizinho. A disciplina jurídica dos direitos de vizinhança se refere à titularidade e também ao possuidor – direto e indireto”[11]. Quadra sobrelevar que todos são detentores de direitos de índole subjetiva no que tange a um comportamento de abstenção de vizinhos, apto a obstar o uso anormal da posse e da propriedade.
Em altos alaridos, há que se diccionar que a legitimidade ativa para o aforamento das ações cabíveis abarca os proprietários aparentes, compreendendo os titulares dos direitos reais, a exemplo do usufrutuário ou superficiário, e obrigacionais, como é o caso do locatário ou comodatário, que exercitem ingerências de ordem socioeconômicas sobre o bem imóvel na qualidade de possuidores, sem qualquer relação com o proprietário. O direito de vizinhança encontra-se cingido ao mau uso da propriedade pela aquilatação das condutas perpetradas pelos proprietários e possuidores que extrapolam o razoável e atentam contra a segurança, sossego e saúde de vizinhos. O tema em debate deita-se em normas de Direito Público e Privado, assim como institutos afetos ao direito real e obrigacional. Com efeito, uma construção capaz de causar incômodos à vizinhança suportará limitações oriundas do direito privado e de normas urbanísticas e edilícias.
A Codificação Civil em vigor, repetindo o que estava consagrado no Codex de 1916, consagrou a Teoria do Uso Normal da Propriedade, desenvolvida por Rudolf von Ihering, que apregoa a proibição de qualquer emprego do bem que extrapole o uso normal e dê ensejo a uma imissão nociva na posse ou propriedade alheia a ponto de acarretar lesão a saúde, sossego ou segurança dos prédios vizinhos. Rememorar se faz imprescindível que o uso normal da propriedade é aquele que almeja a preservação da segurança, do sossego e da saúde dos moradores da região onde o imóvel se encontra localizado. O Estatuto Civil de 2002[12], em seu artigo 1.277, estabelece conceitos jurídicos indeterminados, com o escopo primevo de preservar o morador e o prédio, para tanto são erigidos os seguintes valores como axiomas a orientarem o direito de vizinhança: segurança, sossego e saúde.
No que cocerne à segurança, rechaçados hão de serem os atos que possam comprometer a solidez e a estabilidade material do prédio e a incolumidade pessoal de seus moradores, logo, deve ser afastado qualquer perigo pessoal ou patrimonial, como instalação de indústria de produtos inflamáveis e explosivos. “São ofensas à segurança pessoal ou dos bens todos os atos que comprometerem a estabilidade de um prédio e a incolumidade de seus moradores”[13]. Dentre os integrantes do rol de condutas que atentem contra a segurança, pode-se citar o funcionamento de indústria que produzem trepidações danosas, acarretando fendas em prédios; edifício vizinho que ameaça ruína, cujos destroços acarretam a destruição de plantações, animais ou imóveis; existência de árvores que ameaçam tombar no prédio contíguo; existência de poço em terreno aberto que pode dar lugar a queda de transeunte; construção de açude ou congênero junto ao limite com o prédio vizinho, sujeitando-o a infiltrações. Ao lado disso, cuida colacionar o seguinte entendimento jurisprudencial, a fim de fortalecer o acimado:
“Ementa: Apelação Cível. Ação Demolitória. Direito de Vizinhança. Uso Nocivo da Propriedade. Demonstrado pela prova colhida o uso nocivo da propriedade por parte da demandada, diante da edificação de muro que resultou em prejuízos à segurança, prejudicando a comunidade e o desenvolvimento da atividade comercial do autor, ante a insegurança gerada, impõe-se a procedência da ação para demolir parte do muro edificado pela ré no local. Apelação improvida”. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Décima Sétima Câmara Cível/ Apelação Cível Nº. 70010014421/ Relator: Desembargador Alexandre Mussoi Moreira/ Julgado em 22.02.2005).
Em relação ao sossego, “no estágio atual da sociedade pós-moderna é bem jurídico inestimável, componente dos direitos da personalidade, intrinsecamente conectado ao direito à privacidade[14]”. Insta salientar que a acepção de sossego não se encontra atrelado com a completa ausência de ruídos, mas a possibilidade de afastar ruídos excessivos que comprometam a incolumidade da pessoa. Trata-se, com destaque, de direito dos moradores de um estado de relativa tranquilidade, na qual boates, algazarras, animais e vibrações intensas provenientes acarretam enormes desgastes à paz do ser humano. Ao lado disso, o sossego deve ser encarado como tranquilidade e, maiormente, paz de espírito, valores de cunho essencialmente subjetivo, logo, a sua violação atenta contra o equipamento psíquico do indivíduo e, a partir de tal viés, merece ser encarado como um dos direitos à integridade moral do homem, tangendo, por vezes, os direitos à intimidade, à imagem e à incolumidade da mente. “São ofensas ao sossego os ruídos excessivos que tiram a tranquilidade dos habitantes do prédio confinante, como festas noturnas espalhafatosas em residências, boates […], clubes”[15].
Igualmente, gritarias, barulho ensurdecedor de indústria, oficina mecânica, pedreira, escola de samba, emprego de alto-falante de grande potência para transmitir programas radiofônicos ou ainda provocar aglomeração de clientes na rua, funcionamento de bar em quiosque ao ar livre, com uso de som mecânico ou ao vivo, todos esses são exemplos de situações que atentam contra o sossego. Ao lado disso, cuida trazer à colação os entendimentos jurisprudenciais que robustecem, de maneira rotunda, as ponderações expendidas acima, conforme se infere:
“Ementa: Apelação Cível. Ação de indenização por dano moral. Direitos de vizinhança. Uso nocivo do direito de propriedade. Poluição sonora. Situação que se manteve por aproximadamente três anos. Perturbação do sossego. Dever de indenizar. Quantum mantido. Negaram provimento ao apelo”. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Décima Sétima Câmara Cível/ Apelação Cível Nº. 70033119892/ Relatora: Desembargadora Elaine Harzheim Macedo/ Julgado em 25.02.2010).
“Ementa: Apelação Cível. Ação Cominatória. Direito de Vizinhança. Perturbação ao Sossego Alheio. Funcionamento de bar em quiosque ao ar livre, com utilização de som mecânico e ao vivo. Ruídos excessivos. Limitações ao direito de propriedade, face ao incômodo causado aos vizinhos. A Constituição Federal, em seu artigo 182, assegura a todos o direito ao meio ambiente saudável e seguro, podendo daí se concluir que o exercício do direito de propriedade não é absoluto, encontrando suas limitações no interesse público e também no interesse privado, ex vi do disposto no artigo 1.277 do CC/02. Abusa do direito de propriedade de imóvel quem o utiliza nocivamente, pondo em risco ou afetando a segurança, o sossego e a saúde dos moradores dos prédios vizinhos. Existindo prova satisfatória do uso nocivo da propriedade, a perturbar o sossego da vizinhança, é de se manter o juízo de procedência da demanda.” Recurso improvido. Unânime. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Décima Oitava Câmara Cível/ Apelação Cível Nº. 70018092973/ Relator: Desembargador Cláudio Augusto Rosa Lopes Nunes/ Julgado em 12.03.2009).
No que pertine à saúde, cuida evidenciar que essa compreende o estado da pessoa cujas funções biológicas estão normais. Nesta toada, Rosenvald e Farias lecionam que “a salubridade física ou psíquica pode ser afetada por moléstia à integridade de vizinhos, mediante agentes físicos, químicos e biológicos, como na emissão de gases tóxicos, poluição de águas e matadouros”[16]. Ao lado do exposto, pode-se destacar que as reiteradas ofensas ao sossego acarretam consequências à saúde física e psíquica da pessoa. “São exemplos de ofensas à saúde: a poluição de águas pelo lançamento de resíduos […]; o funcionamento de estábulos ou matadouros; a emissão de gases tóxicos e de fumaça ou fuligem”[17]. Igualmente, a criação de animais que exalem mau cheiro e o escoamento de suas fezes no prédio inferior, os gases tóxicos, a queima de detritos com penetração de fumaça ou odores, a presença de substâncias putrescíveis ou de águas estagnadas, a descarga de esgoto sobre outros prédios ou ainda o recebimento de pessoas com moléstias contagiosas ou repugnantes são exemplos de condutas que atentam contra a segurança. Colaciona-se, por oportuno, o aresto que fortalece as ponderações lançadas acima:
“Ementa: Apelação Cível. Direitos de Vizinhança. Ação de Indenização por Danos Materiais e Morais. Danos provocados por obra. Prova pericial conclusiva. 1. A prova constante nos autos é farta a demonstrar que a obra promovida pela apelante causou um recalque diferencial no terreno dos autores, danificando-os. 2. Evidente a angústia e sofrimento dos autores, diante do medo de que as fissuras se agravassem, além do risco de prejuízos à saúde em razão das infiltrações. Logicamente, tal situação não se enquadra em ‘meros dissabores do dia-a-dia’, restando caracterizado o dano moral. 3. Valor da indenização fixado abaixo do parâmetro adotado por esta Câmara, descabendo a redução pretendida pela recorrente. Apelo Desprovido”. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Décima Nona Câmara Cível/ Apelação Cível Nº 70048089882/ Relator: Desembargador Eugênio Facchini Neto/ Julgado em 22.05.2012)
Não pode olvidar que, em muitos casos, as perturbações sonoras podem molestar, de maneira simultânea, o sossego, a saúde e a própria segurança dos vizinhos. Além disso, importante realçar que os inúmeros danos ocasionados se inter-relacionam, causando danos que extrapolam a esfera da saúde, desembocando e colocando em xeque, por vezes, a saúde e o sossego. Ao lado disso, “o art. 1.277 do Código Civil é numerus clausus e não comporta interpretação extensiva. Via de consequência, se as interferências prejudiciais causadas a um morador não repercutirem sob o trinômio: saúde, segurança e sossego, a questão extrapolará do conflito de vizinhança”[18]. No mais, a segurança, o sossego e a saúde são direitos que integram a extensa rubrica dos direitos da personalidade inerentes a qualquer ser humano e não apenas a vizinhos. Desta feita, salta aos olhos que a percepção de que é frequente a situação em que as interferências prejudiciais se estendam a todo um quarteirão, bairro ou mesmo região de uma cidade.
Ademais, não basta a verificação da interferência de um prédio em outro para que a colisão de interesses daí resultante seja automaticamente reconhecida como um conflito de vizinhança. Afigura-se, ainda, como uso anormal, nos dizeres de Leite, “o não-uso ou a subtilização da propriedade de forma a causar conflitos de vizinhança. É o caso de imóvel usado com desídia ou legado ao abandono. Onde os vizinhos podem sofrer, dentre outras cosias, ameaças de ruína do prédio”[19]. Destarte, são proibidos somente os atos que acarretem ao vizinho dano ou incômodo anormal, de intensidade grave, de acordo com o senso médio do local em que é verificado. “Não é bastante a verificação da interferência de um prédio em outro para que a colisão de interesses daí resultante seja automaticamente reconhecida como um conflito de vizinhança”[20]. Assim, são proibidos somente os atos que acarretem ao vizinho dano ou incômodo anormal, de grave intensidade, de acordo com o senso médio do local em que é denotável.
O mau uso da propriedade substancializa-se pela prática de atos ilegais, abusivos ou excessivos. Cuida assinalar que os atos ilegais consistem na conduta voluntária lesiva aos interesses dos vizinhos. Trata-se de situação em que há violação do dever legal de cuidado, quer seja intencionalmente, quer seja por inobservância da cautela devida. Com efeito, são atos de cunho subjetivo que encontram tutela no artigo 186 do Código Civil[21]. A grande diferença entre os ilícitos é que o de natureza subjetiva é apriorístico, pois já se sabe, de antemão, quais são os ilícitos subjetivos, pois provindo da norma sua violação culposa ou dolosa, todo ilícito subjetivo é apriorístico, tendo resultado previamente definido. Já o ilícito objetivo não é apriorístico, mas casuístico, pois apenas no caso concreto é possível observar se o ato implicou em abuso, ou não, do exercício de um direito. Uma mesma conduta pode ensejar ato ilícito objetivo em um caso, e não caracterizar em outro, pois o ato ilícito objetivo é dotado de certa plasticidade. Daí já se vê que o ato ilícito objetivo está desatrelado da culpa, mas atrelado ao comportamento do agente.
Em se tratando de dano causado a terceiros pelo uso da propriedade imóvel, com reflexos em direitos de vizinhança, verifica-se outra peculiaridade, concernente à consequência jurídica do ato, a qual depende da natureza da utilização do imóvel e dos incômodos causados. E isso porque as próprias relações de vizinhança trazem ínsitas à sua essência um limite de tolerância, uma margem de incômodo imposta a quem vive em sociedade. Segundo o magistério de Rosenvald e Farias, “o mau uso da propriedade é aferido objetivamente, sem que se perscrute o erro, a falha do causador do dano. O exame do fato, isoladamente, é suficiente para que o vizinho que sofreu as emissões possa fazer uso de suas pretensões”[22]. Nesta esteira, cuida trazer a lume o seguinte aresto:
“Ementa: Agravo de Instrumento. Direitos de Vizinhança. Nunciação de Obra Nova. Pedido de embargo liminar de obra. Ausência de verossimilhança quanto aos riscos alegados. O construtor é responsável pelos danos causados em imóveis lindeiros em decorrência de obra realizada em sua propriedade. Responsabilidade civil objetiva decorrente do abuso do direito de propriedade, violando o direito de vizinhança consistente no uso normal da propriedade (realização de obra) ocasionando prejuízo anormal aos imóveis lindeiros, cuja consequência jurídica é a reparação do dano por intermédio de indenização pecuniária. Inteligência dos artigos 1.277 e 1.278 do Código Civil de 2002. Contudo, o embargo liminar da obra depende de prova de risco eminente que justifique a tutela preventiva. Uma vez não demonstrado o risco de dano irreparável ao imóvel lindeiro, descabe o pedido de decisão liminar de embargo de obra. Agravo de Instrumento não provido”. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Décima Sétima Câmara Cível/ Agravo de Instrumento Nº 70036892115/ Relatora: Desembargadora Liege Puricelli Pires/ Julgado em 19.08.2010).
Os atos abusivos fazem menção ao exercício de um direito reconhecido ao proprietário, contudo exercido com o desvio da finalidade. Trata-se de abuso de direito encerrado em uma órbita subjetiva, o qual é perpetrado em desacordo com o escopo social da norma. Conquanto o ato não viole, de maneira formal, os limites da lei, afasta-se dos pilares materiais agasalhados pelo ordenamento pátrio, uma vez que é substancializado sem função social ou contrariamente os ideários de boa-fé objetiva, estando em descompasso com o artigo 187 do Estatuto Civilista[23]. O aludido dispositivo legal, ao tratar da definição de ato ilícito, reconhece que a violação da boa-fé objetiva pode corresponder ao exercício inadmissível ou abusivo de posições jurídicas. Isto é, a figura do abuso de direito é associada à violação do princípio da boa-fé objetiva e, nessa função, ao invés de criar deveres laterais, a boa-fé restringe o exercício de direitos, para que não se configure a abusividade. “O requerido, pelo uso anormal da propriedade (art. 1.277 CC), exerceu seu direito de modo abusivo (art. 187 CC) e, assim, praticando ato ilícito, atraiu para si o dever de reparar (art. 927 CC)”[24]. Com efeito, não se pode esquecer que o abuso do direito, a partir das premissas inauguradas pelo Código Civil de 2002, amolda-se a acepção de ato ilícito em sentido objetivo.
Os atos excessivos, por sua vez, são aqueles praticados com o fito legítimo, porém ainda assim ocasionando danos anormais e injustos, passíveis de indenização em sede de responsabilidade objetiva. Como bem salientam Farias e Rosenvald, “a parêmia ‘é vedado exercer nossos direitos com sacrifícios dos direitos alheios’ é suficiente para explicar a atenção e os cuidados que o morador deverá desempenhar no exercício de sua atividade para não causar danos a vizinhos”[25], ainda que não seja materializado com abuso do direito. Calha, ainda, colocar em destaque que a distinção entre o ilícito, abusivo e excessivo é meramente doutrinária, já que em sede de direito de vizinhança, porquanto até o uso normal será equiparado ao mau uso, caso haja interferência em imóveis vizinhos. No mais, cuida colacionar o seguinte aresto:
“Ementa: Civil e Processual Civil. Direito das Coisas. Ação de Nunciação de Obra Nova. Muro construído além da altura permitida pelas normas edilícias. Proprietário ou possuidor. Legitimidade Ativa. Inteligência do artigo 934, III, do CPC. Desnecessária a demonstração de dano. Prejuízos comprovados. I – Possui legitimidade o proprietário ou possuidor de bem imóvel para o ajuizamento de ação de nunciação de obra nova, visando à demolição de muro lateral que faz divisa com os fundos de sua propriedade, por violação às normas municipais de edificação, independente da demonstração de dano à integridade física sua, ou de qualquer pessoa que com ele viva, ou à propriedade. II – Restando incontroverso nos autos o fato de que a altura do muro foi aumentada somente na faixa de divisão das propriedades dos litigantes, e não na sua totalidade, não procede a alegação de que a obra visava a aumentar a segurança e a salubridade do imóvel vizinho, patente o ocorrência de dano. Recurso especial improvido.” (Superior Tribunal de Justiça – Terceira Turma/ REsp 745.397/SP, Relator: Ministro Sidnei Beneti/ Julgado em 10.03.2009/ Publicado no DJe em 24.03.2009)
4 Uso Normal causando incômodos normais
À luz das ponderações lançadas a campo, pode-se anotar que o uso nocivo de uma interferência qualquer produz sobre vizinhos oscila, em razão das circunstâncias que concorrem à sua materialização. Por oportuno, existe indubitável dever de adotar-se como medida de nocividade não a suscetibilidade específica do vizinho, mas sim um padrão de receptividade abstrata. Como bem propugna San Tiago Dantas, “os prejuízos sobre o vizinho por causa do uso ilegítimo da propriedade não podem ir além daquele limite; em outras palavras: as interferências prejudiciais do vizinho devem cessar lá onde elas ultrapassam a receptividade ordinária dos prédios incomodados”[26]. Para tanto, mister se revela a adoção de três requisitos, de modo conjugado, para se encontrar a medida de prejuízos.
O primeiro requisito é o limite tolerável que se encontra alocado na média das pessoas, e não na suscetibilidade do reclamante como pessoa concreta, já que em alguns casos o indivíduo é portador de extrema agressividade, ao passo que em outros apresenta enorme sensibilidade. “O grau de tolerabilidade, pois se o incômodo for tolerável, o juiz despreza a reclamação da vítima, pois a convivência social por si só cria a necessidade de cada um sofrer pouco”[27]. Com efeito, as interferências lesivas são defesas considerando-se os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança. Outro requisito encontra-se jungido à zona de conflito, porquanto os costumes variam, de maneira maciça, conforme a localização, usos e costumes das diversas regiões. Ora, não se pode apurar com o mesmo rigorismo a normalidade de determinada conduta em zonas industriais e residenciais, tal como em núcleos urbanos do interior e estações de veraneio.
O terceiro é a pré-ocupação, eis que parte da doutrina estrutura entendimento que o morador que se afixa primeiramente na região estabelece certos padrões sociais de habitação, sendo estes investigados com o escopo de aferir a normalidade da atuação do vizinho que se estabelece posteriormente. Como acinzelam Farias e Rosenvald, “em princípio, a posição é razoável, pois o indivíduo que venha estabelecer domicílio nas proximidades da rodoviária não poderá ter êxito na demanda em que postula a paralisação das atividades nocivas”[28]. No mais, a teoria da pré-ocupação deve ser perquirida com rigor, a fim de não se conceder aos primeiros moradores uma espécie de autorização de produção de danos apenas pelo uso preexistente, obstando qualquer atuação de novos moradores.
Como bem obtempera Maria Helena Diniz, ao estruturar seu magistério acerca da teoria supramencionada, “não se pode aceitar, integral e absolutamente, a teoria da pré-ocupação, pois que a anterioridade da ocupação não tem o condão de paralisar toda propriedade nova”[29]. Em saliência, calha anotar que a pré-ocupação do local não permite ao vizinho o direito de perturbar o sossego, a saúde ou a segurança da vizinhança. Em razão de tais premissas, a anterioridade não poderia justificar a manutenção do uso que a incomoda não é a individual ou acidental. Ao reverso, tão somente aquela que encontra previsão no modo coletivo, nas normas municipais no que concerne ao zoneamento do bairro em questão.
5 Uso Normal causando incômodos anormais
Dada a sua relevância social, tolera-se que determinadas atividades perpetradas a partir de uma propriedade possam não ser paralisadas. Farias e Rosenvald destacam que “apesar de o titular da atividade não praticar ato ilícito ou abuso do direito, o eventual excesso nos incômodos pode resultar de uma atividade que seja conciliada à função social da propriedade”[30]. Com destaque, o conflito da vizinhança exaspera a esfera individual dos vizinhos, tanto que age com excesso ou abuso, como daquele que sofre interferências. Subsiste, em tal situação, uma interdependência entre interesses de cunho privado e coletivos, sendo estes considerados como metaindividuais. O Diploma de 2002, fincado nos valores da socialidade, rompeu as amarras restritivas do pensamento pautado no individualismo da tutela dos indivíduos, valorando, de modo significativo, o interesse social, daquilo que, de fato, interessa a todos e justifica a preservação de certas atividades.
Nesta esteira, como bem estampa o artigo 1.278 do Código Civil[31], em sendo as interferências plausíveis de justificativas, em razão do interesse público, a atividade não poderá ser paralisada, porém é justo que o causador do dano venha a ressarcir o vizinho com indenização cabal. Trata-se de onerosidade própria do direito de vizinhança, vez que o particular deverá suportar excepcionais encargos, os quais se aproximam de uma “quase-desapropriação”. “Porém, eventualmente os distúrbios poderão ser reduzidos aos limites da normalidade, por meio de obras […], restrição de horários de funcionamento – principalmente no período noturno”[32], sem olvidar a tomada de outras medidas aptas a amenizar os conflitos.
Quadra evidenciar que a solução estampada acima encontrou pleno descanso no dispositivo legal 1.279 do Código Civil[33], assinalando ser possível o vizinho exigir a redução ou eliminação, quando estas forem possíveis, das interferências. “Ao postular pela cessação da atividade, poderá o vizinho efetuar pedido alternativo, a fim de que, apurada a necessidade de se tolerar a atividade seja possível pelo menos reduzir o seu impacto”[34]. Por oportuno, o escopo da norma que tutela a redução da repercussão prejudicial a níveis toleráveis, caminha por uma trilha que salvaguarda a dignidade da pessoa humana e seus direitos da personalidade, os quais não podem ser suplantados ou mesmo objetos de restrição tão somente pelos apêndices das questões patrimoniais. A interpretação civil constitucional das disposições contidas no artigo 1.277 do Código Civil[35] reclama, por imperioso, uma transposição do indivíduo abstrato para o ser humano concreto, portador de necessidades que devem ser atendidas.
Diante do acimado, infere-se que o direito do particular ao sossego não se apresenta como absoluto, podendo colidir com outros de igual proeminência. Arrimado no princípio da proporcionalidade, o julgador deverá sopesar os corolários em choque, subsistindo aquele que possuir maior peso ou dimensão, afastando, diante do caso concreto, o bem colidente de menor importância. “Se tais expedientes não forem viáveis, o condutor da atividade deverá indenizar os vizinhos pelos inevitáveis incômodos à saúde, segurança e sossego”[36]. Por carecido, os danos materiais terão que ser de modo cabal demonstrados, materializando-se por alegada depreciação do bem imóvel, somando-se aos danos emergentes e lucros cessantes. Igualmente, devem-se somar os danos morais decorrentes pela perturbação do sossego e da tranquilidade do morador, em decorrência da violação da personalidade, intrínsecos ao descanso e recesso do lar.
Não se podem cerrar os olhos para o ideário de que o direito ao sossego integra a tutela da integridade físicopsiquica do indivíduo, mantendo umbilical relação com a órbita moral, direito à intimidade e à vida privada, inviolabilidade de domicílio e direito à liberdade. Trata-se de direito de não ser perturbado nem a sua paz de espírito, o qual recebe tutela do direito de vizinhança, eis que ninguém é obrigado a tolerar a perturbação do vizinho naquilo que extrapola a medida do suportável ou mesmo da normalidade.
6 Uso Anormal causando incômodos anormais
Urge obtemperar que o uso anormal da propriedade resta manifestado quando o proprietário incomoda a coletividade próxima, sem que haja qualquer atenuante social. Logo, se não existe qualquer interesse social na manutenção da atividade perturbadora, a sua cessação é medida que se impõe, eis que se revela adequada ao caso, em razão da impossibilidade de extinção dos distúrbios. Desta feita, se, por exemplo, o proprietário do bar ou da boate não eliminar a poluição sonora decorrente de sua atividade, caberá a cassação do alvará. Por oportuno, a autorização administrativa para o funcionamento de estabelecimento é conseguida por meio de reserva implícita de não serem atentados direitos de terceiros.
Incumbe ao vizinho que sofre as repercussões do mau uso da vizinhança lançar mão de alguns remédios jurídicos. Pode-se citar, como exemplo, a ação indenizatória alicerçada no artigo 186 do Código Civil e busca a obtenção de título executivo judicial, sendo empregada pelo morador quando os incômodos já cessaram, a fim de alcançar o restabelecimento da situação fática anterior ao ilícito. No mais, o ressarcimento pelos danos provocados em prédios urbanos ou rústicos desenvolverá sua marcha processual pelo rito sumário, podendo, eventualmente, optar pelo juizado especial, atentando-se tão somente para o teto legal. Todavia, em decorrência da complexidade da matéria, que exige a confecção de trabalhos técnicos de especialistas, poderá o caderno processual seguir o rito ordinário.
Igualmente, poderá utilizar da ação cominatória, insculpida no artigo 287 do Código de Processo Civil, com o fito de cessar o uso nocivo, afixando-se, inclusive, multa diária, em caso de subsistir a recusa do devedor em cumprir as determinações judiciais. Pode-se, ainda, utilizar a tutela inibitória das obrigações de fazer e não fazer, com a possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela, desde que restem patentemente demonstrados os requisitos autorizadores, consistentes na verossimilhança das alegações articuladas na prefacial. É facultado ao requerente cumular à pretensão inibitória, pedido de danos materiais e morais verificados até a efetivação da medida coercitiva. Nesta toada, transcreve-se, por oportuno, o seguinte entendimento jurisprudencial:
“Ementa: Direito de Vizinhança. Dano Infecto. Cominatória. Sentença Exequível. Laudo Pericial. Laudo pericial que aponta, com precisão, o despejo de esgoto cloacal na propriedade dos autores. Necessidade de regularização. Responsabilidade de todos os demandados que não possuem instalações de fossa céptica no local. Loteamento clandestino. Sentença exequível. Reconhecimento da existência de condomínio. Responsabilidade solidária. Sentença reformada em parte. Negaram provimento ao apelo e deram-no ao recurso adesivo”. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Grande do Sul – Décima Nona Câmara Cível/ Apelação Cível Nº. 70005205059/ Relator: Desembargador Carlos Rafael dos Santos Júnior/ Julgado em 24.06.2003).
Ao lado disso, não se pode afastar a possibilidade do deferimento da liminar, quando se tratar de medida cautelar, nas hipóteses que versam a respeito de garantia da incolumidade psicofísica do indivíduo. Por derradeiro, poderá o autor utilizar da ação de dano infecto, quando houver justo receio de vir a ser prejudicado pela ruína do prédio vizinho, como espanca o artigo 1.280 do Código Civil[37]. Trata-se de remédio jurídico que detém nítido aspecto preventivo e apresenta como pressuposto um dano iminente e provável ao morador, em razão do uso perigoso e nocivo da propriedade vizinha. Segundo o estado de ruína que o prédio apresente, a medida variará entre a ordem de demolição, quando se tratar de ruína imediata, ou reparatória, a fim de determinar a realização de obras que evitem a ruína.
Neste sentido, é possível, ainda, a prestação da caução, como instrumento garantidor de possível indenização, em situações de eventuais danos. “Se a finalidade é impedir o prosseguimento de obras prejudiciais aos vizinhos, em caráter preventivo surge o procedimento especial de ação de nunciação de obra nova”[38], cabendo o manejo da ação ao proprietário ou ao possuidor, a fim de obstar que a edificação cause prejuízos ao prédio. Figurarão no polo passivo tanto o proprietário do prédio como o construtor, eis que ambos devem fornecer segurança ao morador pela higidez do prédio. Além disso, os danos provenientes do uso irregular da propriedade podem ser tão intensos a ponto de afetar toda a comunidade, ensejando o aforamento de ação civil pública por entidade legitimada e devidamente constituída para defender os moradores prejudicados.
Informações Sobre o Autor
Tauã Lima Verdan Rangel
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES