1.Introdução. [1]
As presentes linhas têm implícito um questionamento mais profundo. Como profissionais do Direito do Trabalho, no âmbito mais íntimo, freqüentemente, nos indagamos se devemos nos conformar em deixar a roda da história manter o seu ritmo, esperando as evoluções sociais no ritmo do desenvolvimento econômico ou se devemos contribuir de modo diverso e mais ativo, intervindo para impor um ritmo mais acelerado às evoluções sociais. Há alguns anos, utilizava-se a idéia de que as transformações sociais ocorreriam primeiro pelas alterações na base econômica e, somente após, na superestrutura[2] . Tal postura pode ter levado a uma certa passividade, tendo como conseqüência a pouca valoração do papel do indivíduo no processo social.
Não se trata apenas de apressar as mudanças, mas acreditar no fato de que nossa contribuição pode mudar o próprio rumo do desenvolvimento social, corrigindo as distorções da economia.
Em Encontro na cidade de Belém do Pará, o Juiz Saulo Fontes, do Maranhão, lembrou John Rawls sobre os “custos sociais marginais” da economia, a serem “corrigidos pela lei”.[3] Provavelmente, referia-se a certa passagem no sentido de que o “mercado deixa de registrar” certos danos como a “poluição e a erosão do meio ambiente natural” e que tais custos são “externalizados” e terão de ser suportados por toda a sociedade. É através da lei, expressando a vontade geral, que se pode estabelecer um mais justo equilíbrio, pela melhor distribuição dos custos e dos benefícios do progresso social. Sendo assim, desde logo, ousamos dizer que podemos, sim, exigir e impor estas “correções” ou mesmo contribuir e intervir para o aceleramento das transformações sociais.
Se, em certo momento no passado, o expressivo progresso social representado pelo Estado de Bem Estar Social prometia um processo harmonioso, de contínua e indefinida ampliação das conquistas sociais para todos, poder-se-ia até mesmo justificar certo conformismo ante o “curso normal da História”. Hoje, ante a realidade do desmonte do Estado de Bem Estar Social, nossa timidez já não se justifica e importa em conivência com o atraso social.
Em outro texto, tratou-se dos programas de renda mínima. Na abordagem, lembrou-se que a idéia de pleno-emprego “parece um objetivo quase abandonado e cada vez mais inalcançável” havendo visível “ineficácia dos mercados para solucionar o problema” que já ameaça a coesão social, nos termos dos estudos da própria OIT. [4] Diante dessa realidade, não é mais possível acreditar, como antes, que o trabalho possa ser a fonte única de subsistência para toda a população. Ou, dizendo de outra forma, as medidas meramente econômicas para assegurar o bom funcionamento do “mercado” de trabalho são absolutamente insuficientes nesse momento histórico.
Na presente exposição, ao invés do aprofundamento daquelas considerações sobre a economia e seus desdobramentos jurídicos, o objetivo é apontar que certos dados não são meras distorções passageiras. Os programas de renda mínima não são mais somente manifestações de caridade social. Constituem, na atualidade, preocupações permanentes com a sobrevivência e a segurança de milhões de indivíduos. A ampliação de programas deste tipo torna-se uma exigência de um compromisso humanista de que não há nenhuma razão para que, hoje, quando a produção de alimentos é suficiente para alimentar toda a população terrestre, mantenha-se boa parte desta em condição de subnutrição e de fome crônica. Neste século XXI, exige-se que não só o Estado, mas toda a sociedade, assumam a postura de responsabilidade pelo bem de todos.
É preciso relembrar as ponderações de István Mészáros, quando aponta os atuais mecanismos da economia e da sociedade. Diz o autor húngaro que “não somente os riscos estão aumentando e as confrontações se agudizando, mas também as possibilidades para um resultado positivo estão postas numa nova perspectiva histórica. Precisamente porque os riscos estão crescendo e tornando-se potencialmente mais explosivos, o repositório de compromissos, que formalmente tem servido tão bem às forças do “consenso político”, está cada vez mais vazio, bloqueando certos caminhos e abrindo outros, enquanto demanda a adoção de novas estratégias”. [5]
Com base nessas premissas, a presente exposição abordará alguns dos temas mais importantes relacionados com o futuro das relações trabalhistas. Na primeira e segunda parte, serão analisadas as questões relativas às exclusões contemporâneas, sejam locais ou globalizadas. A partir disso, serão analisados os conceitos de precarização das relações de trabalho e as discriminações existentes. Por último, serão apontadas algumas perspectivas para o futuro e novas possibilidades de reflexão e ação.
2. Exclusões contemporâneas.
A exclusão social é cada vez mais visível para todo observador atento, de várias áreas, inclusive fora dos estudos econômicos. Também nos processos judiciais, muitas vezes se revela a atual característica flagrantemente excludente de nossa sociedade. De um modo geral, o Direito do Trabalho contribui para o acréscimo de civilidade. Aqui, nestas linhas, se busca apontar algumas decisões que se conhecem e mais diretamente combatem a exclusão social, re-alimentada cotidianamente pelas tendências econômicas predominantes. Certamente, existem muitas outras decisões judiciais e providências legislativas. As que são apontadas neste trabalho são consideradas mais representativas e decorrem do conhecimento pessoal dos signatários, na própria atividade jurisdicional. [6] Evidentemente que não estão excluídas outras manifestações de igual qualidade.
O trabalho escravo ou prestado em condições análogas, e outras relações de trabalho sob formas “arcaicas” não são, exatamente, resquícios de tempo pretérito. É preocupante perceber que sobrevivem formas de exploração do trabalho que se julgavam extintas em nosso país. Torna-se mais preocupante, ainda, ver que esses modelos arcaicos convivem com setores produtivos considerados modernos, que se omitem quanto ao problema. Mesmo analisado sob o ponto de vista do sistema econômico, o trabalho escravo ou precário, não só atenta contra a dignidade da pessoa humana, mas também contra o próprio sistema capitalista, pois deforma um dos pilares de sua justificação, que é a livre concorrência. Assim, sob qualquer prisma, o trabalho escravo é um mal que deve ser combatido por toda a sociedade, e não apenas pelo Estado.
Duas ações civis públicas, apresentadas à Justiça do Trabalho, ao final de 2007, sobre o trabalho junto à indústria fumageira, revelam dados preocupantes. O Ministério Público do Trabalho aponta a condição de “hipersuficiente” das indústrias fumageiras perante os pequenos proprietários rurais. Questionando, entre outros, a seleção e classificação das folhas de fumo na sede destas – e não na lavoura. Sustenta que certas exigências terminam por incentivar o trabalho infantil, o qual representaria dois terços do existente no meio rural no Estado do Paraná, por exemplo. Tais ações judiciais se encontram em fase inicial, não se conhecendo nem mesmo o teor das defesas.
No momento, interessa mais para as atuais observações, acima de tudo, um registro. Não se tratam de relações antigas e modos de produção herdados do passado. Representam, novas formas de organização da produção, construídas na atualidade. Dito de outro modo, no caso específico desta atividade, o capital não adentrou no campo exclusivamente sob o sistema “capitalista de produção”, mas associou-se a outra forma de relação social, bem mais rudimentar, ou, no mínimo, não-moderna, no anúncio inicial dos Procuradores do Trabalho. [7]
Este não é um exemplo isolado de formas graves de exclusão social que nos exigem uma postura ativa, que nos desperte da cega confiança no mercado e que supere uma concepção meramente formal-jurídica da igualdade. No passado, nunca houve trabalho escravo junto à indústria têxtil, no Estado de São Paulo. O desenvolvimento econômico deste ramo ocorreu com a contribuição do trabalhador imigrante europeu. Ao contrário, em tempo mais recente, já se investigou a eventual utilização de mão de obra de países vizinhos em condições análogas à escravidão, no centro da cidade de São Paulo, pólo mais desenvolvido da economia sul-americana. [8]
3. A exclusão globalizada
Na história do Brasil, não se tem noticia de nacionais “trabalhando” na condição de mercenários de guerra. Nos dias atuais, diversamente, observa-se a tentativa de recrutamento de supostos vigilantes para alegadas empresas de segurança do Irã. [9]
Os registros anteriores confirmam a informação de que, além de resquícios do passado, existem novas formas de trabalho não modernas e tampouco “razoavelmente civilizadas” estimuladas ou mesmo construídas na atualidade, às vezes, até mesmo, com ineditismo histórico.
Neste quadro, os profissionais mais atentos do Direito do Trabalho não podem contentar-se com o simples reconhecimento das melhores práticas sociais, acreditando que as injustas sejam superadas com o simples passar do tempo e “previsível” ação das instituições de fiscalização e judiciária, entre outras tantas.
O Direito do Trabalho, desde o seu nascimento, teve como objetivo mudar os usos e costumes. Alessandro da Silva e Marcos Neves Fava comentam que “o direito do trabalho insere regras não aplicadas espontaneamente pela sociedade”. Em análise mais ampla, comparam com o desenvolvimento do Direito Civil, e afirmam que “o Direito do Trabalho objetiva a transformação da realidade, compensando desigualdades econômicas com desigualdades jurídicas”. [10]
Nessa batalha verdadeiramente civilizatória, em um mundo globalizado, cada vez se evidencia uma dimensão internacional, a fazer-nos refletir que todos os avanços institucionais nos marcos do Estado nacional podem insuficientes para dar conta de um processo de mundialização da precarização do trabalho. Duas decisões relativas a trabalhadores estrangeiros merecem registro. Uma delas é do Tribunal Superior do Trabalho, reconhecendo o direito de ação a trabalhador vindo do Paraguai.
Em outra decisão, a Juíza singular reconheceu o contrato de médico do Uruguai, trabalhando em município da fronteira, superando inclusive o obstáculo da súmula 363 do TST. Ali, percebeu e assinalou que “…a existência de médicos de nacionalidade uruguaia atuando no município de Barra do Quaraí não é fato inusitado, vez que foi objeto de Processo Administrativo do Ministério Público Federal… Também a necessidade que possuía o reclamado de contratação de médicos no período é fato conhecido, tanto que a Lei Municipal n. 709/2005 autorizava o Poder Público local a contratar 3 profissionais para laborarem no posto de saúde do município… clara a intenção da administração municipal de utilização de serviços médicos da cidade uruguaia fronteiriça de Bella Unión. Em derradeiro, o documento… emitido pela Câmara de Vereadores para o Prefeito, indica que o autor efetivamente trabalhava no posto de saúde…”. [11]
4.Precarizados.
No tema da terceirização da mão de obra, todavia, podemos encontrar um exemplo de forma de precarização verdadeiramente estendida por todos os países, numa onda avassaladora sustentada ideologicamente por uma suposta necessidade de “modernização produtiva”. Tal “onda modernizante” foi tão forte que diluiu todas as normas laborais, objeções doutrinárias ou precedentes jurisprudenciais que a ela se opunham. Por exemplo, a aceitação da terceirização, no Rio Grande do Sul, talvez, tenha ocorrido bem antes de esta ser uma prática empresarial, quando era apenas uma proposta de alguns juristas como alegada solução para diminuição de custos. [12]
Tornada a terceirização uma realidade já em grande parte implementada, cabe, tão-somente procurar paliar seus efeitos mais maléficos sobre o mundo do trabalho. Em debate na AMATRA-RS, já surgiu a observação de que aos trabalhadores “terceirizados” devem ser garantidos os mesmos benefícios dos demais, “inclusive quanto aos direitos sindicais”. Um desdobramento desta proposição é a organização de departamentos de “terceirizados” nos sindicatos das categorias. Tal prática em nada se contradiz com a existente, em muitas Normas Coletivas, de limitação do número de “terceirizados”. A resistência ao maior uso desta forma de contratação não significa que estes trabalhadores devam ser discriminados mais ainda pelos seus próprios colegas, muito mais quando admitidos excepcionalmente. [13]
Além de se evitar retrocesso, por vezes, são necessárias e possíveis certas evoluções. Em determinada Ação Civil Pública vedou-se a utilização de “terceirizados”, falsos cooperativados e outros trabalhadores precarizados em Hospital Pronto Socorro de Município da Grande Porto Alegre. Na mesma decisão judicial, determinou-se que fosse providenciado concurso público para admissão de servidores, que viabilizassem o funcionamento do novo estabelecimento, com observância do “princípio da legalidade”.
Neste caso, estava configurando-se grave retrocesso institucional, não se tratando de “quaisquer irregularidades”. O Hospital, previsto há mais de cinco anos, era inaugurado sem adequação das receitas municipais, não se podendo, então, dar relevância à tese defensiva de que a contratação precarizada era para evitar as dificuldades da Lei de Responsabilidade Fiscal. O novo Hospital iniciava suas atividades com 50 (cinqüenta) profissionais servidores públicos e mais de 400 (quatrocentos) “cooperativados”, por óbvio, não concursados. [14]
5.Discriminações.
Insiste-se que a história não tem “momentos neutros”. Ou se está avançando ou retrocedendo, em um ou outro tema. Já foi objeto de exame judicial a formação, com fraude, de cooperativa de portadores de deficiência física. O peculiar do caso foi que a juíza que atuava julgou “modificando entendimento manifestado em diversos processos anteriormente julgados”. Passou a perceber que uma autêntica cooperativa caracteriza-se por oferecer “um produto” ou “serviços”, exatamente em decorrência da “detenção dos meios materiais necessários” ou da “detenção de técnica profissional ou conhecimento específicos”.
Notou que, no caso, havia verdadeira “apropriação da mais valia pelo grupo encarregado da direção da prestação de serviços em detrimento do grupo encarregado da efetiva prestação do trabalho”. A fraude configurava-se também porque estes trabalhadores cooperativados realizavam “tarefas idênticas” aos demais empregados “com salários muito inferiores”. O retrocesso de civilidade não foi aceito pela lúcida julgadora. Registrou que “choca a argumentação da defesa no sentido de que a percepção de salários inferiores aos dos empregados de seu quadro efetivo se justifica pela própria deficiência física”.
As dificuldades de se atingir maior grau de civilidade não são poucas e tampouco estão limitadas a este ou aquele núcleo da sociedade. Na situação em análise, a empresa, não-privada, conseguia “a uma só vez, discriminar”, “obter mão-de-obra de baixo custo e alto comprometimento”, bem como “obter maior espaço na mídia para propaganda institucional”, quando ao invés de solucionar os problemas sociais, “acabava por agravá-los”. [15]
Mais do que “respeitar” as peculiariedades de desenvolvimento pessoal de alguns, impõe-se afirmar que a sociedade necessita, ela toda, aprimorar-se. Não é o indivíduo, com certas dificuldades, que tem limitações. É a sociedade, insuficientemente desenvolvida, que não consegue incluir aqueles que, minimamente, afastem-se de certos padrões. Estas idéias já estiveram em debate, também, em certo julgamento, no qual prevaleceu a garantia de vaga em concurso público para pessoa com visão monocular. [16]
6.Novas Possibilidades.
A competência ampliada da Justiça do Trabalho, com a Emenda Constitucional 45, de 2004, abriu novas possibilidades para o estudo e análise mais aprofundada do amplo espectro das relações de trabalho na atualidade.[17]
Renova-se que o presente texto foi elaborado a partir de palestra preparatória ao Congresso Nacional dos Magistrados do Trabalho – CONAMAT de 2008. No evento nacional, a Convenção 158 da OIT, sobre os limites do poder patronal de despedir, mereceu centralidade nos debates. [18]
Nos temas tratados ou apontados nas presentes linhas, visivelmente, nota-se que a Justiça do Trabalho, na tentativa de limitar o poder do empregador, busca diminuir as aflições dos trabalhadores, muito mais do que simplesmente contribuir para a organização da economia. [19]
Pode-se mesmo imaginar que o Direito do Trabalho terá sido o primeiro/único a difundir o “bem”, quase automaticamente. Não se impõe o mal, para estimular o “bem”. Busca-se o bem, desde logo, direta e urgentemente. Não se impõe o “mal”, para, num outro momento e lugar, estimular o bom comportamento.
No Direito do Trabalho, age-se, de forma direta em favor de melhores condições de trabalho e de vida. Assim, se explica a dificuldade de alguns setores da sociedade em compreender a sua finalidade. Muitos não percebem os acertos e possibilidades de novos avanços do Direito do Trabalho, inclusive aqueles que não se afinam com a ideologia neoliberal. Por estes motivos e limitações da própria sociedade atual, estes setores não compreendem, não aceitam e muito menos incorporam os aprendizados do Direito do Trabalho.
Pode-se acrescentar que os “acertos” igualmente são perigosos, acaso sirvam de estímulo à construção de uma sociedade com regras superiores, na qual a inclusão seja mais do que simples tolerância e, sim, a completa modificação da realidade que exclui.
O “bem” é perigoso, segundo alguns. É motivo de intranqüilidade, exatamente, porque não está previsto para ser habitual, nos dias atuais. Denis Salas, Juiz de Menores na França, manifesta-se sobre os rumos da própria Justiça Criminal. Diz que “a democracia hesita em olhar de frente os seus crimes”. [20]
Informações Sobre os Autores
Francisco Rossal de Araújo
Juiz do Trabalho na 3ª Turma do TRT-RS
Luiz Alberto de Vargas
Desembargador do Trabalho do TRT 4ª. Região
Maria Helena Mallmann
Juíza do Trabalho na 3ª Turma do TRT-RS
Ricardo Carvalho Fraga
Juiz do Trabalho no TRT RS
Coordenador do Fórum Mundial de Juízes