Discriminação: um panorama legislativo e jurisprudencial da miopia social

Resumo: A discriminação consiste das questões mais tormentosas do Direito, em especial na seara trabalhista, tendo em vista a dificuldade de colocar-se em prática a chamada igualdade substancial. Propomos, assim, um panorama sobre tal quadro, mediante a análise de alguns conceitos, legislação e jurisprudência pertinentes, a fim de disponibilizar ao leitor uma visão global sobre o tema.


Palavras-chave: Discriminação, ações afirmativas, preconceito, direito do trabalho, contrato de trabalho, dados sensíveis.


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Sumário: Introdução; I – Conceito; II – Panorama Legislativo; III – Discriminação x Isonomia; IV- Tipos de Práticas Discriminatórias; IV.1 – Fase Pré-Contratual; IV.2 – Fase Contratual; IV.3- Fase Pós-contratual; V– Peculiaridades; V.1 – Do Dano Moral por Ato Discriminatório; V.2 – A Problemática da Prova; Conclusão. 


INTRODUÇÃO


A discriminação traduz uma miopia social, cujos efeitos perniciosos se fazem sentir, sobretudo, na seara laboral, tendo em vista a inevitável constatação de que sua prática pode acarretar no cerceio do próprio sustento do trabalhador, fazendo cair por terra o primado máximo constitucional que tutela e dignidade da pessoa humana.


Destarte, diante de tal quadro, compete à comunidade jurídica engendrar esforços para exterminar esta chaga social ou ao menos mantê-la sob controle, permitindo que medidas sejam tomadas, quando constatadas tais práticas discriminatórias nocivas.


E não poderia ser diferente, já que eventual omissão do judiciário neste campo implicaria num estado de periclitância da própria ordem constitucional, a qual se esteia, além do já citado primado da dignidade da pessoa humana, em princípios de igualdade, de não discriminação, de bem-estar social, dentre outros.


Ademais, se é verdade que “quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o Direito”, conforme vaticina a célebre frase  do jurista Frances Georges Riperté, tem-se por certo que fechar os olhos às práticas discriminatórias implicaria em verdadeiro retrocesso social, risco que, ao que parece, não passou por despercebido ao poder legislativo, o qual bem municiou o judiciário, mediante a edição de leis e dispositivos legais pertinentes.


I – CONCEITO


Etimologicamente, a discriminação pode ser associada à ideia de diferenciar, discernir, distinguir. Não obstante, também apresenta a acepção que aponta para o tratamento desigual ou injusto, com base em preconceitos de alguma ordem, notadamente o relacionado à opção sexual, religião, gênero, étnico, etc[1], conforme se abordará no presente estudo.


Assim, em seu sentido belicoso, a discriminação pode ser definida como uma forma de manifestação, de concretização de um conceito pré-estabelecido de cunho pejorativo, estabelecido em face de determinada pessoa ou grupo de pessoas, colocando-a em desvantagem em relação às demais.


Os critérios utilizados para fins de discriminação são chamados “dados sensíveis”, e correspondem a parâmetros diversos, tais como: raça, origem, gênero, opção sexual, perfil familiar, etc.  


Observe-se, que, não obstante o conceito mais divulgado, o uso de tais “dados sensíveis” nem sempre se prestam a distinções que geram desvantagens ao grupo ou pessoa a quem é dirigido.


Em outras palavras: Nem toda discriminação é negativa, havendo hipóteses de discriminações legítimas, nas quais os mesmos critérios são utilizados para distinções justificáveis, tais como situações em que o exercício de determinada atividade apresenta notoriamente restrições a pessoas com características específicas, situações estas entretanto, excepcionais.  Ex: Contratação de mulheres para laborar em penitenciária feminina, organizações de tendência, etc.


Estabelecidas tais premissas, passemos a uma breve análise sobre o panorama legislativo voltado para o combate à discriminação negativa. E considerando as distinções já estabelecidas das quais se inferem que a discriminação pode apresentar faces distintas, pedimos a venia do leitor para que, doravante, reportemo-nos à discriminação de efeitos negativos, tão somente como “discriminação”.


II – PANORAMA LEGISLATIVO


A preocupação com o tema da discriminação apresenta relevância não somente no âmbito interno. Destaca-se também na seara internacional, conforme se pode inferir do texto da Declaração Universal de Direitos Humanos[2] do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais[3], do Pacto de São José de Costa Rica [4], além das Convenções de n. 100 e 111 (ratificadas pelo Brasil), as quais tratam especificamente do tema.


No âmbito interno a legislação é profícua:


Na seara Constitucional, os operadores do Direito contam com uma vasta tutela em prol da igualdade de direitos, visto que a Constituição Federal/88 elenca como princípios fundamentais, dentre outros, aqueles constantes em seu art. 5º e incisos I, XLI, XLII, no rol dos direitos sociais constantes do art. 7º e incisos XXXI, XX, XXXIV e ainda no art. 170, inciso VII.[5]


Note-se que a preocupação da ordem constitucional em coibir condutas discriminatórias encontra-se em consonância o ideal consagrado pelo Estado Democrático de Direito, pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o valor social do trabalho, pilares máximos do ordenamento jurídico pátrio.


E repisando então os dogmas constitucionais, vem a legislação infraconstitucional dizer o que, apesar da aparente obviedade do ponto de vista jurídico (tendo em vista a supremacia constitucional), acaba sendo de redundância salutar a fim de tornar ainda mais nítida a aplicação prática das diretrizes máximas e fortalecê-las frente aos casos concretos.


Assim, aqueles princípios constitucionais especialmente direcionados à isonomia são reproduzidos e direcionados a casos específicos, valendo-se destacar a previsão contida na norma celetista, em seus arts. 373, A[6] e 461 caput[7] e seus parágrafos, além de outras leis específicas, tais como a lei 9.029/95, a qual se debruçara sobre situações discriminatórias ainda mais salientes, como se tem, por exemplo, na questão das pessoas com deficiência[8] e nas questões de gênero, disciplinando diversas hipóteses.


Podemos citar ainda a previsão legal de  reservas de cotas no setor público (art. 37, VII da Constituição Federal/88) e no setor privado (art. 93 da lei 8.213/91); a legislação eleitoral (lei 9.504/97), que seu art. 10 parágrafo 3º,  que assegura cotas para mulheres nos partidos políticos e  a previsão de cota mínima para negros em propagandas veiculadas no Estado da Bahia (art. 289 da Constituição Estadual da Bahia), dentre outros.


III. DISCRIMINAÇÃO X ISONOMIA


A não-discriminação traduz a ideia de isonomia. Não obstante é imprescindível a noção de que a igualdade deve apresentar-se tanto no aspecto formal, quanto substancial.


Para tal ilação, imperiosa se faz a remissão à máxima Aristotélica, já de trivial sabença entre os operadores do direito, segundo a qual o tratamento isonômico corresponde à necessidade de “tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais”[9] conforme a intensidade em que tais diferenciais se apresentem. 


Em termos simples: A mesma conduta perante João, pode ser discriminatória em relação a José. Basta que estes se situem em condições distintas, condições estas que desafiem ou justifiquem medidas que os coloquem em patamar de igualdade.  Ou ainda, sob outra ótica, basta observar que o estado de origem de ambos apresenta distorções que coloca um em desvantagem (desvantagem decorrente de fator alheio à sua responsabilidade, já que ninguém pode valer-se de sua própria torpeza) em relação ao outro. É imprescindível então que se “igualem os desiguais”, para que possam usufruir de um tratamento isonômico.


Note-se que, paradoxalmente à ideia do combate à discriminação, temos que, em algumas situações onde se constam a presença de indivíduos em condições desiguais típicas de fatores de discriminação, a expressão “igualar dos desiguais” acaba gerando uma aparência de discriminação: Num primeiro enfoque, tem-se uma situação original que parecia isonômica, passando à aparência de desigualdade, após o acerto que se faz necessário.


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É o que ocorre, por exemplo, com a situação de reservas de cotas para negros em universidades públicas – hipótese que será melhor abordada à frente.  A questão apresenta-se polêmica exatamente em razão da visão limitada apresentada por alguns, que ignoram que a isonomia formal não é suficiente para sanar as desigualdades sociais vivenciadas em determinados casos, fechando os olhos à igualdade substancial que somente se configura após o reequilíbrio que demanda a tomada de medidas compatíveis.


Em suma, como diz a sabedoria popular, “as aparências enganam”, daí a necessidade de se ter em vista que a igualdade deve se dar de forma substancial e não meramente formal, como pode parecer numa análise perfunctória.


Não custa relembrar que a palavra “discriminação” – em que pese ser difundida pelo seu sentido negativo e ora combatido, transmite também, por definição, a idéia de “estabelecer diferenças, destrinçar, diferençar, discernir, distinguir”[10].  


Assim, sabendo-se que nem toda discriminação é negativa, os chamados fatores de discrímen (dados sensíveis) poderão ser utilizados para fins de assegurar a necessária igualdade substancial, o que significa – conforme já se pode intuir – ultrapassar a superficial aparência de igualdade, observando a presença de circunstâncias específicas.


Surgem assim as chamadas “ações afirmativas”, as quais consistem em medidas provisórias ou não, que nada mais fazem do que uma distinção com fins de  compensar desigualdades, já que buscam proporcionar a grupos historicamente discriminados, melhores condições de integração social, econômica e cultural.  Buscam portanto, conforme a melhor expressão já citada, igualar àqueles historicamente tidos por “desiguais”.


A exemplo, podemos citar as reservas de cotas para pessoas com deficiência no setor público e no setor privados (art. 37, VII da Constituição Federal/88  e art. 93 da lei 8213/91, respectivamente). 


Outro exemplo seria a já citada legislação eleitoral[11], que assegura cotas mínimas para mulheres nos partidos políticos, muito embora no momento atual o gênero feminino esteja ocupando uma posição de destaque na política do país, fato que – eventualmente – poderá até dar ensejo a uma revisão da necessidade de manutenção da ação afirmativa pertinente, o que – por óbvio – requer todo um estudo e providências legislativas futuras, conforme o entendimento.


Tem-se ainda, em decorrência do exercício do Poder Constituinte Derivado Decorrente, a previsão de cota mínima para negros em propagandas veiculadas no Estado da Bahia[12], dentre outros.


A despeito do objetivo visado pelas ações afirmativas e  apesar de toda coerência jurídica, é fato que na prática a questão gera polêmicas e muitas vezes, lamentavelmente, fomenta outras condutas discriminatórias, ganhando destaque a situação de cotas para negros nas Universidades Públicas.


Por pertinente, trazemos à baila interessante decisão[13] versando sobre o tema, cujo conteúdo aborda a temática das ações afirmativas, conceitos e base normativa respectiva e sua legitimidade. Veja-se:


“0000070426 – “DIREITO CONSTITUCIONAL – AÇÕES AFIRMATIVAS – “COTAS” NAS UNIVERSIDADES – CRITÉRIO RACIAL – DISCRIMINAÇÃO – ISONOMIA – AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA – MÉRITO UNIVERSITÁRIO –  1.POLÍTICAS AFIRMATIVAS. Conjunto de políticas públicas e privadas, tanto compulsórias, quanto facultativas ou voluntárias, com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e outras intolerâncias correlatas. Técnicas que não se subsumem ao sistema de cotas, ainda que com elas sempre relacionadas. 2.INEXISTÊNCIA DE BASE LEGAL. Previsão expressa no Plano Nacional de Direitos Humanos, no Plano Nacional de Educação e nas Leis nº 10.558/2002, que criou o programa “Diversidade na Universidade” e Lei nº 10.678/2003, que criou Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Autorização, por via legal, para implementação, pelo Poder Executivo, de políticas afirmativas. Previsão em tratados internacionais. 3 – CONSTITUIÇÃO. Previsão expressa no tocante à mulher ( art. 7º, XX) e a portadores de necessidades especiais ( art. 37, VIII), a sinalizar baliza fundamental para aplicação do princípio da igualdade jurídica. Legislação infraconstitucional que estabeleceu cotas para candidaturas de mulheres, para portadores de necessidades especiais em concursos públicos e dispensa de licitação. 4 – TRATADOS INTERNACIONAIS. Reconhecimento pelo Brasil da competência do Comitê Internacional para eliminação da discriminação racial. Internalização da Convenção sobre eliminação de todas as formas de discriminação racial. Recepção dos tratados internacionais anteriores à EC 45/2002, com status supralegal ou de materialmente constitucionais, jurisprudência ainda não definida no STF, mas a indicar a possibilidade de constituírem “bloco de constitucionalidade”, a ampliar núcleo mínimo de direitos e o próprio parâmetro de controle de constitucionalidade. 5 – PRINCÍPIO DA ISONOMIA. Revisão dos parâmetros clássicos, de forma a reconhecer sua dupla faceta: a) proibição de diferenciação, em que “tratamento como igual significa direito a um tratamento igual”; b) obrigação de diferenciação, em que tratamento como igual significa “direito a um tratamento especial”. Rompimento com a visão clássica, de forma que a igualação jurídica se faça, constitucionalmente, como conceito positivo de condutas promotoras desta igualação. 6 – DISCRIMINAÇÃO – Conceito internalizado pelo Decreto nº 65.810/69, reconhecendo diferenciações legítimas e afastando propósitos e efeitos de anular reconhecimento de direitos em pé de igualdade em razão de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica. Quadro cultural brasileiro complexo no que diz respeito ao reconhecimento da existência do próprio racismo, com a ideologia do “branqueamento” e o “mito da democracia racial”. Informes internacionais questionando a dificuldade do aparelho estatal em reconhecer e promover atitudes antidiscriminatórias. Reconhecimento, por outro lado, de que a regra aparentemente neutra pode produzir discriminação, que a Constituição proíbe. 7 – AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA –  Art. 207, V, CF. Previsão constitucional regulamentada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, tendo como norte “as normas gerais da União” e do “respectivo sistema de ensino”, podendo ser ampliadas ou reduzidas as vagas ofertadas. 8 – SISTEMA MERITÓRIO. A previsão constante no art. 208, V da Constituição não estabeleceu o “mérito” como critério único e decisivo para acesso ao ensino superior, nem constitucionalizou o sistema do Vestibular. Existência de “nota de corte”, a demonstrar que o mérito é conjugado com outros critérios de índole social e racial. Inexistência de “mérito” em abstrato. 9 – AUTODECLARAÇÃO. Critério que não é ofensivo nem discriminatório em relação aos “negros”, porque: a) já é adotado para fins de censo populacional, sem objeções; b) utilizado amplamente no direito internacional; c) guarda consonância com os diplomas legais existentes; d) constitui reivindicação dos próprios movimentos sociais antidiscriminação. 10 – DISCRÍMEN RAÇA – Possibilidade admitida quando agir “não para humilhar ou insultar um grupo racial, mas para compensar desvantagens impostas contra minorias”. Congruência com os ditames constitucionais de vedação ao racismo, na ordem interna e externa, de modo a indicar: a) no aspecto negativo, a necessidade de impedir qualquer conduta, prática ou atitude que incentive, prolifere ou constitua racismo; b) no aspecto positivo, um mandamento de otimização de medidas cabíveis e possíveis para erradicação de tal prática. Inexistência de “raças” a indicar, contudo, a necessidade de censura ao “racismo”. Inteligência da decisão do STF no HC 82.424/RS. Preconceito, no Brasil, de fundo distinto daquele praticado nos EUA e África do Sul (“preconceito de marca” ao invés de “preconceito de origem”), a indicar a inaplicabilidade, aqui, das discussões sobre percentuais de genes africanos, europeus ou indígenas. 11 – PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE – Aplicação aos atos de todos os poderes públicos, vinculando legislador, julgador e administrador, mas com extensão e intensidade distintas conforme se trate de atos legislativos, da administração ou da jurisdição. Limites de “conformação” do administrador e do legislador a reduzir a análise de todas as possibilidades de escolhas postas à disposição. Verificação de: a) adequação, que não constitui o dever de escolher o meio mais intenso, melhor e mais seguro, mas sim a anular o ato somente quando a inadequação for evidente e não for, de qualquer modo, justificável; b) necessidade, em relação ao meio eficaz e menos desvantajoso para os cidadãos; c) proporcionalidade em sentido estrito, comparando a importância da realização do fim e a intensidade da restrição de direitos fundamentais. Metas fixadas para educação nacional pelo Legislativo com duração de dez anos, passíveis de revisão. Não-comprovação de que as premissas para instituição de critérios de “inclusão social”- ampliação do acesso para estudos de ensino público e autodeclarados negros, promoção da diversidade étnico-racial no ambiente universitário, educação de relações étnico-raciais – não são critérios adequados, necessários e proporcionais para os fins constitucionais de repúdio ao racismo, redução das desigualdades sociais, pluralismo de idéias, garantia de padrão de qualidade do ensino, defesa e valorização da memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, valorização da diversidade étnica e cultural e promoção do bem de todos, “sem preconceitos de raça e cor e quaisquer outras formas de discriminação”. Percentuais de cotas que não constituem patamar elevado, seja porque 87% da oferta de vagas vem do ensino público médio e fundamental, seja porque a população negra brasileira é superior ao percentual estabelecido nas cotas. Reconhecimento de que os programas deixam sempre à disputa livre da maioria “a maior parcela de vagas”, como forma de “garantia democrática do exercício de liberdade pessoal e realização do princípio da não-discriminação”. (TRF 4ª R. – AC/RN  2008.71.00.002237-0  – 3ª T. – Rel. Desª. Fed. Maria Lúcia Luz Leiria – DJe 11.02.2009) (grifos nossos)


Diversos questionamentos de índole social[14] surgem quanto ao tema, e talvez, até que haja uma acomodação da sociedade ao novo contexto – seja percebendo os reflexos positivos de tal medida, seja constatando e implantando outras medidas que se revelem mais adequadas – ainda iremos nos deparar eventualmente com matérias jornalísticas e sensacionalistas sobre o assunto.


Os argumentos favoráveis e contrários coexistem.  Incontroversos restam, entretanto, além da obrigação do respeito à legislação ora vigente, a constatação evidente de que décadas de uma cultura discriminatória não se apagarão da noite para o dia.


A implementação das medidas legais e o amadurecimento gradual da sociedade certamente demandará tempo.  E nem mesmo o acerto de tais providencias legislativas é garantido, só o tempo dirá acerca da necessidade de eventuais ajustes, alterações e, quiçá, até mesmo a erradicação destas medidas, por não se fazerem mais necessárias.


IV – TIPOS DE PRÁTICAS DISCRIMINATÓRIAS


A prática discriminatória vedada pelo ordenamento jurídico pode ser classificada como direta, a qual – como o termo já sugere – consiste naquela evidente, clara, de fácil visualização; e indireta, a qual se dá de forma mais insidiosa e que, inclusive, dispensa a intenção da prática do discrímen


Decorrência da amplitude de tal classificação consiste em constatar que, na prática, a manifestação da conduta discriminatória na esfera trabalhista pode assumir diversas roupagens, cujos exemplos passaremos a analisar agrupando-os – para fins didáticos – conforme a fase da relação contratual.


Não obstante, observe-se desde já que, conforme o caso concreto, a legislação referida e os mesmos exemplos narrados para ilustrar a discriminação em determinada fase da relação contratual, poderão ser constatados também em outros momentos desta relação, não sendo adequado pressupor tratar-se de hipóteses estanques.


Feita tal observação, passemos, à análise:


IV. 1 – FASE PRÉ-CONTRATUAL


Exigência de “boa-aparência”, de apresentação de certidões negativas de restrições de crédito e/ou de antecedentes criminais, exigência de comprovação de experiência superior a seis meses na função[15], discriminação em razão do empregado figurar como autor de ações judiciais,  etc.


Destaque-se que em relação a exigências de certidões negativas de antecedentes criminais, a lei admite ressalvas em relação ao vigilante[16], ao doméstico[17] e nos casos de ingresso no serviço público mediante concurso. Tratam-se, entretanto, de casos excepcionais cujas peculiaridades da profissão e/ou do ambiente justificam a medida.


Não obstante, via de regra tal exigência é repudiada com base no caráter ressocializador da pena. Afinal de contas, como efetivar a reinclusão de ex-detentos na sociedade se lhes for recusado o direito ao trabalho, cujo valor social é constitucionalmente consagrado? Há ainda que se ter em vista a não perpetuação da pena, não sendo legalmente aceitável que o ex-detento suporte por toda a vida as conseqüências advindas de um fato cuja pena já foi cumprida.


No que tange à apresentação de certidões negativas de restrições de crédito, resta evidente que o Poder Diretivo do empregador não lhe dá o direito de imiscuir-se na vida pessoal deste, sendo descabida qualquer exigência de informações neste sentido, seja para ingresso no emprego, seja para manutenção deste e mesmo para fins de rescisão contratual[18]


Abordando a questão das exigências vedadas para fins de admissão de pessoal, trazemos a lume a decisão abaixo transcrita, oriunda do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, a qual bem delinea o tema[19]:


“20000000554 “LISTA NEGRA – INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – POSSIBILIDADE – O princípio da não-discriminação está ligado ao princípio da igualdade, pressupondo a vedação de discriminações injustificadas. A lista discriminatória, também conhecida por lista negra, consiste na conduta discriminatória de empregadores em face de trabalhadores, decorrentes de fatos como: o ingresso com reclamações trabalhistas, restrição de crédito ou figurarem como réu em demais processos de natureza civil e criminal, etc. Tal procedimento ofende os arts. 3º, IV, 5º, caput, e 7º, XXX, da Constituição Federal e ao art. 1º da Lei nº 9.029/1995, eis que evidente a discriminação e o abuso de direito, visto que tais fatos não estão ligados diretamente à qualificação do trabalhador. (…) é vedado pelo nosso ordenamento jurídico a discriminação contra candidatos a emprego por terem exercido o direito de ação, que é assegurado constitucionalmente, conforme preceituado no art. 5º, inciso XXXV. (…)”. (TRT 15ª R. – RO 00157-2006-092-15-00-5 – 6ª T. – Rel. Juiz Flávio Nunes Campos – DJSDP 13.07.2007)RJ15-2007-C2 (grifos nossos)


A citada lei 9.029/95, proíbe a exigência de atestado de gravidez e esterilização e outras práticas discriminatórias para efeitos admissionais ou de permanência na relação de trabalho.


Traz em seu art. 2º algumas práticas discriminatórias, entretanto, em razão do disposto na convenção 111, seu artigo 1º, alínea “b”, tal rol apresenta-se apenas exemplificativo, tendo em vista a cláusula de abertura que a citada convenção fixa.


Observa-se ainda que além de coibir as condutas discriminatórias, a lei 9.029/95 prevê também a possibilidade de readmissão (art. 4º da referida lei). Note-se que, não se trata de hipótese de garantia de emprego, mas de simples decorrência da nulidade do rompimento daquela relação de trabalho por ato discriminatório.


Caso entretanto a readmissão não se apresente interessante ao trabalhador, tendo em vista as reminiscências psíquicas decorrente da situação de discrímen, é facultado ao empregado dispensado, optar pela percepção em dobro da remuneração, a luz do inciso II do mesmo art. 4º da lei. 


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Exemplo emblemático de discriminação nesta fase pré-contratual consiste no caso de Simone Diniz[20], candidata ao emprego de doméstica, que teve a oportunidade negada em decorrência da cor de sua pele.


Após recorrer à tutela jurisdicional interna sem obter êxito, Simone resolveu levar o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), o qual, com base no entendimento de que da inércia do Estado brasileiro teria violado artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos e da Convenção Racial, responsabilizou-o pelo crime de discriminação racial.


Tem-se assim o primeiro caso em que um país do continente foi responsabilizado pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos com base no crime de discriminação racial, o que denota a dimensão da problemática discriminatória sob exame.


Cumpre, por oportuno, relembrarmos mais uma vez a ideia de que nem toda discriminação é negativa, havendo hipóteses em que as distinções se apresentam justificáveis.


Assim, conforme a atividade laboral a ser desenvolvida, parece-nos que – se não houver mecanismos capazes de suprir eventual limitação decorrente de característica pessoal que implique em riscos à execução do serviço, a restrição se apresentaria justificável[21], pois estaria sendo tutelado um bem maior: não somente a idoneidade física do trabalhador e demais envolvidos naquela atividade, mas talvez até a própria vida. 


Inclusive o STF, ao tratar da questão da admissão via concurso público para ingresso nos quadros da Administração Pública[22], bem enfocou a questão, ao dispor que: “O limite de idade para a inscrição em concurso público só se legitima em face do art. 7º, XXX, da Constituição, quando passa ser justificado pela natureza das atribuições do cargo a ser preenchido”.


Outra questão também excepcional, tem relação como as chamadas “Organizações de Tendência”, as quais consistem em entidades empregadoras que, em razão de características peculiares, possuem certa linha de orientação ideológica, filosófica ou religiosa, tais como colégios religiosos, sindicados, partidos políticos. Seria razoável exigir que tais empregadores aceitassem em seus quadros funcionais, para o desempenho de atividades precipuamente ligadas a sua ideologia, empregado que partilhassem de ideal distinto?


É certo que o princípio da proporcionalidade há de ser aplicado também em matéria de aferição de condutas discriminatórias, sendo imperioso questionar sobre a presença da tríade: necessidade, adequação e proporcionalidade, de molde a justificar determinadas exclusões.


Portanto, na mesma linha de raciocínio, indaga-se ainda: e se a atividade a ser desenvolvida por um candidato a emprego em uma organização de tendência não apresentar qualquer relação com sua ideologia? Ex. O auxiliar de serviços, que partilha de crença distinta em relação ao colégio católico cujo quadro funcional pretende ocupar?


Por certo, considerando a necessidade da aplicação dos princípios referidos alhures, a pergunta apresenta-se meramente retórica. Evidente que o exercício desta atividade, não guardando qualquer relação com os dogmas propagados pelo possível empregador, não poderia justificar a necessária  proporcionalidade para fins de exclusão à vaga almejada.


Observa-se assim que os critérios de seleção (fase pré-contratual da relação de trabalho) apresenta uma série de nuances, nem sempre sendo de fácil percepção a distinção quanto ao que se afigura como discriminação e outras situações justificáveis.


IV.2. FASE CONTRATUAL


O momento em que o contrato de trabalho encontra-se em vigor consiste, por certo, no momento de maior vulnerabilidade em que se acha sujeito o trabalhador.


Não é por outra razão que o direito do trabalho, cujas bases se fixam no ideário de proteção ao trabalhador tido por hipossuficiente na relação, traz como corolário princípios que impedem a renúncia a direitos tidos por absolutamente indisponíveis.


A necessidade de subsistência – patente frente ao valor social do trabalho reconhecido a nível constitucional – faz pressupor a submissão do trabalhador a exigências que poderiam se dar de forma desmedida, se não fossem a limitação legislativa impostas.


Não obstante, os átrios das varas de trabalho – diariamente lotados – demonstram que na prática muitos trabalhadores continuam se vergando às imposições ilegais de alguns empregadores por receio de perder o emprego.


Não é à toa que , eventualmente, escuta-se a expressão de que a Justiça do Trabalho é a Justiça dos “sem trabalho”, já que para o empregado – via de regra – a ideia de recorrer à via judicial para fazer valer o respeito ao seu direito durante a relação contratual implica em colocar em risco a continuidade daquela relação. 


Assim, o fato é que acaba havendo, por parte do trabalhador, uma tolerância maior com situações discriminatórias, principalmente em relação à discriminação indireta.


Neste caso, além da dificuldade de protesto por parte do empregado face ao receio de perder o emprego, tem-se ainda o obstáculo probatório: Como comprovar que entre um empregado que integra um grupo historicamente discriminado e outro com características diversas, o primeiro deixou de ser promovido com base em conduta discriminatória e não porque simplesmente tendo por parâmetros perfil e competências profissionais, se na maioria das vezes tal aferição é precipuamente subjetiva?


Tal questão será oportunamente abordada no tópico próprio, mas desde já se chama a atenção do leitor para a grande incidência desta problemática, em especial, nesta fase da relação de trabalho, tendo em vista os exemplos já referidos.


Outra situação discriminatória que também chama atenção guarda pertinência com a reserva de cotas para pessoas com deficiência: não pode o empregador, no intuito simplista e superficial de cumprir o mandamento legal, segregar tais pessoas num setor qualquer, menosprezando suas capacidades individuais. Da mesma forma, não deve limitar-se a contratar tão somente pessoas com deficiências tidas por mínimas em detrimento de outras, a fim de possibilitar um pseudo “maior aproveitamento”. 


Por certo, questões ligadas ao descaso quanto à disponibilidade de recursos e facilidade de acesso ao ambiente de trabalho para tal grupo de pessoas também podem, a nosso ver, ser igualmente enquadrados a condutas discriminatórias, na medida em que cumpre ao trabalhador fornecer ao trabalhador as condições adequadas para o seu labor, de forma indiscriminada, valendo-se destacar a necessidade de observância do disposto na lei 7.853/89, regulamentada pelo decreto 3.298/99, a qual dispõe sobre a integração social e apoio às pessoas portadoras de deficiência.


Por evidente, também aplicável aqui a lei 9.029/95, além, por óbvio, das demais normas constitucionais, infralegais e internacionais já citadas, conforme o caso concreto.


IV.3 –  FASE PÓS-CONTRATUAL


Nesta fase situam-se as dispensas discriminatórias, sendo recorrentes os casos envolvendo portadores de doenças graves (Ex: HIV), pessoas com deficiências e homossexuais.


Entende-se que o simples uso do direito potestativo de dispensa nestes casos consistiria em abuso de direito, o qual encontra óbice no art. 187 do Código Civil, merecendo a reprimenda judicial.  Daí alguns julgados alegarem a necessidade da existência de um critério mínimo apto a justificar aquela dispensa, muito embora não haja na lei tal exigência para fins de demissão sem justa causa.


Neste tocante, a questão do portador de HIV vem ganhando destaque junto à jurisprudência, a qual tem estabelecido premissas, tais como a presunção de dispensa arbitrária se o empregador tiver conhecimento desta condição do empregado e a dispensa sem motivo fundado em justa causa, conforme é possível inferir dos arestos[23] abaixo colacionados:


999900205 – RESCISÃO DO CONTRATO DE TRABALHO – PORTADOR DO VÍRUS HIV – DESPEDIDA DISCRIMINATÓRIA – REINTEGRAÇÃO NO EMPREGO – CABIMENTO “AIDS – DISCRIMINAÇÃO SOFRIDA PELO PORTADOR DO VÍRUS HIV – REINTEGRAÇÃO DEVIDA – Apesar de o governo, bem como a iniciativa privada, contarem com programas de tratamento e prevenção, tais fatores não são suficientes para aplacar a discriminação sofrida pelo aidético, que, na maioria das vezes, é tratado de maneira preconceituosa, ficando em segundo plano sua condição de cidadão. A propósito, não é demais lembrar que o portador do vírus HIV não precisa apenas de medicamentos, como também, e principalmente, de suporte emocional e psicológico, para garantir sua qualidade de vida, bem como de seus familiares, amigos e colegas de trabalho. Por outro lado, setores da doutrina e da jurisprudência mais presentemente entendem que, se o empregador tinha conhecimento da condição de soropositivo do empregado, tal fato gera a presunção da arbitrariedade da demissão. Caso contrário, desde que não comprovado qualquer ato ilícito de sua parte, terá exercido de maneira regular seu direito potestativo de dispensar imotivadamente o trabalhador.”. (TRT 02ª R. – RO 00724200203402000 – 6ª T. – Rel. Juiz Valdir Florindo – DJSP 20.01.2004 – p. 10) (grifos nossos)


E ainda:


214745 – DISCRIMINAÇÃO NO TRABALHO – RESCISÃO CONTRATUAL – EMPREGADO PORTADOR DO VÍRUS HIV – CONSTATAÇÃO – REINTEGRAÇÃO NO EMPREGO – “Reintegração. Empregado portador do vírus HIV. Dispensa discriminatória. 1. Caracteriza atitude discriminatória ato de Empresa que, a pretexto de motivação de ordem técnica, dispensa empregado portador do vírus HIV sem a ocorrência de justa causa e já ciente, à época, do estado de saúde em que se encontrava o empregado. 2. O repúdio à atitude discriminatória, objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (art. 3º, inciso IV), e o próprio respeito à dignidade da pessoa humana, fundamento basilar do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inciso III), sobrepõem-se à própria inexistência de dispositivo legal que assegure ao trabalhador portador do vírus HIV estabilidade no emprego. 3. Afronta aos arts. 1º, inciso III, 5º, caput e inciso II, e 7º, inciso I, da Constituição Federal não reconhecida na decisão de Turma do TST que conclui pela reintegração do Reclamante no emprego. 4.(…)”. (TST – ERR 439.041/98.5 – SBDI-1 – Rel. Min. João Oreste Dalazen – DJU 23.05.2003 – p. 544) JCF.1 JCF.1.III JCF.5 JCF.5.II JCF.7 JCF.7.I (grifos nossos).


Com esteio, portanto na ordem constitucional, a jurisprudência tem admitido a reintegração do empregado portador do vírus HIV que fora despedido sem ocorrência de justa causa e desde que ciente o empregador deste peculiar estado. 


No tocante à demissão da pessoa com deficiência, igualmente, qualquer conduta discriminatória deverá dar azo às medidas legais já citadas para fins de coibir tal conduta, inclusive poderá dar ensejo ao pagamento de indenização por danos morais (como aliás, em qualquer hipótese em que a ofensa à direito da personalidade se configure, conforme abordaremos em tópico próprio).


Não obstante, impede chamar atenção para o fato de que a lei 8.213/91 não assegura estabilidade ou garantia no emprego ao trabalhador portador de deficiência ao condicionar sua dispensa à contratação de substituto de condição semelhante[24], tratando-se de simples garantia em prol da cota mínima para contratação assegurada a tal grupo. 


Vale dizer: nada impede a dispensa sem justa causa da pessoa com deficiência, desde que realizada dentro dos moldes legais e que a vaga seja preenchida por outra pessoa também com deficiência ou ainda, desde que sua dispensa não tenha implicado em prejuízo à cota mínima legalmente imposta à contratação de pessoas com deficiência pela empresa. Assim, o intuito do legislador ao traçar a condição para dispensa nestes casos, teve por fim a proteção à integração social daquele grupo e não ao indivíduo considerado de forma isolada.


V – PECULIARIDADES


A temática acerca da discriminação é vasta, e não obstante a ausência de qualquer pretensão do esgotamento do tema no presente estudo, algumas questões, ainda que an passant, merecem acolhida a fim de permitir uma visão o mais sistemática possível.


Cumpre, portanto, uma breve análise acerca da configuração do dano moral em razão da conduta discriminatória, bem como da problemática relacionada à produção de provas em processo judicial, conforme passamos à análise:


V.1 – DO DANO MORAL POR ATO DISCRIMINATÓRIO


Sabe-se que o autor de uma conduta que implique em lesão a direitos da personalidade encontra-se sujeito à reparação de tal dano, que poderá ser pleiteada  pela via judicial, ensejando o pagamento de indenização a título de danos morais. [25]


Neste caso o fundamento legal para tanto se concentra, sobretudo, no art. 5°, incisos V e X da Constituição Federal/88, o qual tem por inviolável a intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, assegurando a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.


A conduta discriminatória, em razão de sua própria feição, encontra-se apta não somente a gerar a exposição vexatória perante terceiros, mas também humilhação, sensação de angústia e dor íntima ao ofendido.  Trata-se, por certo, de ofensa à honra objetiva e/ou à honra subjetiva, face à latente violação aos direitos inerentes à personalidade, configurando-se assim o chamado dano moral. 


Na verdade, a reflexão sobre o tema faz emergir facilmente diversos exemplos de danos morais, sendo despicienda maiores elucubrações para chegarmos a conclusão da sua configuração. Assim, a recusa de oportunidades de emprego, de promoções, demissões e tantos outros casos já citados tendo como base fatores de discrímen, inevitavelmente terão também reflexos na esfera íntima do indivíduo, em verdadeira ofensa a chamada  “dignidade da pessoa humana”, que figura como um dos pilares da ordem jurídica pátria.


Vejamos, mais uma vez, o posicionamento jurisprudencial[26]:


40002684 – DANO MORAL – ATO DE HUMILHAÇÃO E DISCRIMINAÇÃO PRATICADO POR PREPOSTO DA EMPREGADORA NO MOMENTO DA RESCISÃO SEM JUSTA CAUSA DO CONTRATO DE TRABALHO – A hipótese dos autos revela lesão à esfera íntima do reclamante, dos seus valores, da sua individualidade como ser humano íntegro dotado de existência corpórea, sensibilidade, razão e paixão. A ofensa praticada pelo encarregado da reclamada, preposto da empregadora, que comunicou o ato de demissão do trabalhador, afirmando que na empresa não havia lugar para “aleijado”, traduziu uma violência aos direitos de personalidade. (..) Sentença que se confirma, no sentido de condenar a empregadora ao pagamento de indenização decorrente de dano moral. (TRT 06ª R. – RO 00969-2003-142-06-00-9 – 1ª T. – Relª p/o Ac. Juíza Eneida Melo Correia de Araújo – DOEPE 22.07.2004) (grifos nossos)


No mesmo sentido:


20000002769 (…) OFENSAS VERBAIS – DISCRIMINAÇÃO RACIAL – DANO MORAL CARACTERIZADO – As expressões ofensivas dirigidas a empregado, no ambiente da empresa e com o conhecimento do empregador, reveladoras de preconceito racial, constituem prática de ato ilícito, tipificado como crime hediondo pelo ordenamento legal pátrio, sendo inclusive inafiançável. Esses atos, por causarem lesão à honra, à imagem e à dignidade da pessoa, devem ser, de pronto, repudiados por esta Justiça. Essa hipótese impõe a condenação da empregadora ao pagamento de indenização por danos morais. (TRT 12ª R. – RO 02865-2006-004-12-00-4 – 1ª T. – Relª Juíza Viviane Colucci – DJSC 11.12.2007)RJ03-2008-C2 (grifos nossos)


V.2 – A PROBLEMÁTICA DA PROVA


Como se pode inferir do exposto colocar em prática a legislação anti-discriminatória consiste em verdadeiro desafio, não somente em relação ao próprio trabalhador – face a sua peculiar situação nesta relação contratual – mas também no que diz respeito ao operador do direito, visto que muitas vezes a conduta discriminatória não se apresenta de fácil constatação e, o que é pior, de difícil comprovação perante o judiciário.


Outrora questionamos e, agora, voltamos a indagar o leitor: como comprovar, por exemplo, que os critérios de escolha para fins de promoção se pautaram em premissas discriminatórias? Como comprovar que certa empresa não contrata pessoas pertencentes a determinada origem, raça ou gênero, opção sexual?


Se o empregador for individual e tiver poucos funcionários a questão fica ainda mais intrincada, afinal de contas, quem poderá adentrar no psíquico daquele empregador para saber qual critério utilizou para contratar uns em detrimento de outros?


Por certo, tratando-se de discriminação direta, aquela clara, notória, haverá uma maior facilidade para constatar-se e comprovar-se uma conduta repulsiva. Mas no caso da discriminação indireta, a solução demandará, no mínimo, um pouco mais de criatividade.


Diante de tal ótica, solução que vem se apresentando providencial, abrange situações em que a conduta discriminatória é voltada para uma quantidade maior de empregados (ex: empresas de médio/grande porte).  Nestes casos, a doutrina e jurisprudência sinalizam para a possibilidade do uso de dados estatísticos para fins de comprovação da existência de prática de discriminação indireta.


Explica-se: Se, por exemplo, em uma dada empresa com mais de 100 empregados, observa-se que apenas uma minoria cujas características pessoais são passíveis de discrímen obtém oportunidades de promoções ou ocupam cargos de destaque, seria razoável indagar acerca dos critérios utilizados para tais escolhas e aferições.


Assim, valendo-se de raciocínios jurídicos com esteios no art. 332 e 335 do Código de Processo Civil [27] é possível  concretizar as diretrizes constitucionais junto ao Judiciário, conforme as situações se apresentem.


Em atenção a esta problemática, colhe-se o aresto abaixo transcrito, cuja decisão da lavra do Des. Luiz Otávio Linhares Renault, do TRT da 3ª Região[28], aborda a dispensa discriminatória de empregado portador de HIV, comentando o tema da prova indiciária em edificante ensinamento sobre a matéria. Vejamos: 


20000014891 “(…)  AIDS – EMPREGADO PORTADOR DO VIRUS HIV – DISPENSA – DISCRIMINAÇÃO – CONSTITUIÇÃO FEDERAL E CONVENCÃO Nº 111 DA OIT – PROVA INDICIÁRIA – REINTEGRACÃO – O MAIS-ALÉM DO TEXTO DA LEI – O DIREITO E A JUSTIÇA – O contrato individual de trabalho caracteriza-se como importante instrumento de inclusão social apto a amalgamar princípios e direitos fundamentais, de que são exemplos os incisos II, III e IV do art. 1º, o caput e incisos X e XLI do art. 5º, o art. 6º, o caput do art. 170 e 193, da Constituição Federal. O nosso ordenamento jurídico, salvo raríssimas exceções expressamente previstas, refuta a estabilidade no emprego, apesar da trilha apontada, desde 1988, pelo art. 7º, inciso I, da Constituição. Dessa forma, a empregadora enfeixa em suas mãos o poder de resilição contratual, por intermédio do qual pode dispensar o empregado sem justa causa, pagando-lhe os direitos inerentes à rescisão sem justa causa. Não lhe é, contudo, outorgado o direito de abusar deste poder, desviando-o de sua finalidade. Uma coisa é despedir o empregado sem justa causa; outra é preencher este vazio – falta de justa causa – com um motivo subjacente lastreado em ato discriminatório. O princípio da igualdade, talhado ao longo dos séculos pelo homem e para o homem, é um autêntico direito fundamental delineador da personalidade humana e dirige-se tanto em face do Estado, quanto do particular, que não podem pautar-se por condutas discriminatórias, preconceituosas ou racistas. Não se desnatura o princípio da igualdade pela circunstância de a conduta ser proveniente de empregadora, empresa privada, ou de empregador, pessoa física, eis que, neste aspecto, adquire as características de um direito social, exercitável pela via da ação judicial, ainda que infiltrada no âmbito das relações privadas. (…). Muito embora a empregadora não tenha manifestado expressamente que a dispensa tivesse por fundamento o fato de o empregado ser portador do vírus HIV, a prova indiciária apontou para a prática de ato discriminatório, não podendo o julgador esperar que em casos desta natureza a prova seja exuberante. A prova indiciária, que a cada dia ganha maior importância, compreende todo e qualquer rastro, vestígio ou circunstância relacionada com um fato devidamente comprovado, suscetível de levar, por inferência, ao conhecimento de outro fato até então obscuro. A inferência indiciária é um raciocínio lógico-formal, apoiado em operação mental, que, em elos, nos permite encontrar vínculo, semelhança, diferença, causalidade, sucessão ou coexistência entre os fatos que circundam a lide. Se a dispensa sem justa causa está oxigenada pela discriminação, o empregado tem direito à reintegração, com base no princípio constitucional da igualdade. (…). Assim, existe base jurídica para coibir-se a dispensa do empregado portador do vírus HIV, quando a distinção injustificada provoca a exclusão, que tem por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria de preservação do emprego, a mais importante forma de subsistência do ser humano. O Direito possui um fim belíssimo em favor do qual devemos sempre lutar: a realização da Justiça. Drummond escreveu: “tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”. Os juízes igualmente. Têm eles o ordenamento jurídico e o sentimento do mundo. Esse o material bruto com o qual lidam no seu dia a dia, para o desempenho de sua árdua tarefa de julgar. Os seus julgamentos, as suas decisões, as suas sentenças são o reflexo do seu sentimento, da sua compreensão do Direito e do mundo em que vivem, trabalham, estudam, amam e desamam, se divertem, se alegram, se entristecem, riem e choram. Lapidar o Direito e os fatos são a sua tarefa maior e mais nobre. Se não puderem estar mais-além do seu tempo, que pelo menos estejam no seu tempo.” (TRT 03ª R. – RO  00864-2007-072-03-00-3  – 4ª T. – Rel. Des Luiz Otávio Linhares Renault – DJe 12.04.2008)  (grifos nossos)


Como se percebe, portanto, de todo o já exposto, nem sempre as condutas discriminatórias são evidentes.


Com efeito, como ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, apresenta-se  imperioso que os juízes façam uso de sua sensibilidade, associada ao conhecimento da lei para fazer valer o espírito desta. Impende colocar em prática a teleologia constitucional, seus dogmas fundamentais.


Não pode haver leniência frente à propagação deste mal social, principalmente quando este procura se revestir das mais diversas formas ou se vale de grandes empreendimentos a fim de passar despercebido e incólume. 


Assim, como bem salientou o mestre Rui Barbosa, “a força do direito deve superar o direito da força” , lição esta que certamente haverá de ser colocada em prática por aqueles magistrados consciente do seu dever jurisdicional e social, mas sempre nos limites da lei, como não poderia deixar de ser.


CONCLUSÃO


Desta sintética exposição, certamente limitada frente à dimensão do tema que não poderia ser esgotado em singelas laudas, tem-se uma noção acerca da gama de situações que bem podem ser enquadradas em condutas discriminatórias. Lamentavelmente, a pródiga criatividade humana nem sempre se direciona tão somente para o bem.


Assim, numa sociedade que ainda propaga uma cultura de estereótipos em meio a piadas onipresentes nos mais diversos segmentos sociais; onde o preconceito persiste em habitar, às vezes até sem ser percebido e; finalmente, onde a discriminação surge externando o patamar máximo deste degrau de intolerância social, mesmo a vasta legislação que busca erradicá-la se apresentará inócua se não for acompanhada da ação firme, perseverante e corajosa por parte de toda a coletividade.


A chamada “Constituição Cidadã” é bem clara e até mesmo redundante no que se refere a rechaçar condutas discriminatórias, buscando a isonomia substancial e sobretudo o respeito ao princípio motriz da Dignidade da Pessoa Humana, que certamente seria letra morta se admitido fosse que determinados grupos de pessoas ficassem à margem da sociedade com base em critérios de discrímen.  


A repetição de tais diretrizes pela legislação infraconstitucional, e mesmo pela internacional, traduz o coro, em verdadeiro brado pelo tratamento isonômico em nossa sociedade democrática, brado este que, por oportuno, bem relembra aquela célebre canção de exaltação à Pátria, servindo aqui também de inspiração à coletividade, pois se “o penhor desta igualdade conseguimos conquistar com braços fortes”, que saibamos então, atuar de forma firme, também na defesa deste direito!


 


Referências

___________      – Constituição da República Federativa do Brasil – 40ª ed., 2007 – Saraiva.

BARROS, Alice Monteiro;  Curso de Direito do Trabalho, 3ª Ed., São Paulo, 2007, LTr.

Barroso, Luís Roberto. Razoabilidade e isonomia no direito brasileiro. In: VIANA, Márcio Túlio; Discriminação. São Paulo: LTr, 2000

Chagas, Gustavo Luís Teixeira. Legislação de Direito Internacional do Trabalho e da Proteção Internacional dos Direitos Humanos. Bahia: Editora JusPodivm, 2009.

GUGEL, Maria Aparecida. Discriminação Positiva. Revista do Ministério Público do Trabalho. Procuradoria Regional do Trabalho. Ano X, n. 19. Brasília, 2000.

MELLO, Maurício Correio de. A prova da discriminação por meio da estatística. Revista do Ministério Público do Trabalho. N. 36, Brasília: LTr, 2008

SAAD, Gabriel Eduardo. CLT, 40ª ed., São Paulo, 2007,  LTr.

 

Notas:


[2] Vide arts. I, II, VII, XXIII, item 2 da referida Convenção.

[3] Vide arts. 7º, II, V, alínea c da norma citada.

[4] Vide art. 24 do Pacto de São José de Costa Rica.

[5]  Art. 5º CF/88: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:    I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; (…)   XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;   (…)    XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; (…).”

Art. 7º CF/88: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…)  XXXI – proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência; (…)  XXXII – proibição de distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos; (…)   XXXIII – proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos; (…).”

 Art. 170 CF/88: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (..)VII – redução das desigualdades regionais e sociais;(…).” 

[6] Art. 373-A da CLT: “Ressalvadas as disposições legais destinadas a corrigir as distorções que afetam o acesso da mulher ao mercado de trabalho e certas especificidades estabelecidas nos acordos trabalhistas, é vedado:    I – publicar ou fazer publicar anúncio de emprego no qual haja referência ao sexo, à idade, à cor ou situação familiar, salvo quando a natureza da atividade a ser exercida, pública e notoriamente, assim o exigir;    II – recusar emprego, promoção ou motivar a dispensa do trabalho em razão de sexo, idade, cor, situação familiar ou estado de gravidez, salvo quando a natureza da atividade seja notória e publicamente incompatível;         III – considerar o sexo, a idade, a cor ou situação familiar como variável determinante para fins de remuneração, formação profissional e oportunidades de ascensão profissional;    IV – exigir atestado ou exame, de qualquer natureza, para comprovação de esterilidade ou gravidez, na admissão ou permanência no emprego;     V – impedir o acesso ou adotar critérios subjetivos para deferimento de inscrição ou aprovação em concursos, em empresas privadas, em razão de sexo, idade, cor, situação familiar ou estado de gravidez;    VI – proceder o empregador ou preposto a revistas íntimas nas empregadas ou funcionárias.”

[7] Art. 461 da CLT:  “Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, na mesma localidade, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, nacionalidade ou idade.”

[8] Vide lei 7.853/89 e decreto 3.298/99.  

[9] Expressão atribuída ao  filósofo Aristóteles.


[11] Art. 10, parágrafo 3º da lei 9.504/97

[12] Art. 289 da Constituição da Bahia: “Sempre que for veiculada publicidade estadual com mais de duas pessoas, será assegurada a inclusão de uma da raça negra”.

[13] Fonte: Júris Síntese IOB Maio – Junho/2010


[15] Prática inclusive expressamente vedada pelo Art. 442-A da CLT: “Para fins de contratação, o empregador não exigirá do candidato a emprego comprovação de experiência prévia por tempo superior a 6 (seis) meses no mesmo tipo de atividade.”

[16] Lei 7.102/93, art. 16, inciso VI

[17] Lei 5.859/72, exegese do art. 2ª, inciso II

[18] Observe-se o cancelamento do art. 508 da CLT, que versava sobre a possibilidade de demissão por justa causa do bancário em razão de falta contumaz no pagamento de dívidas.

[19] Fonte: Júris Síntese IOB Maio – Junho/2010


[21] Desde que, obviamente, eventual restrição se dê sem ofensas aos direitos da personalidade.  

[22] Enunciado 683 do STF

[23] Fonte: Júris Síntese IOB Maio – Junho/2010

[24] Art. 93 e seu parágrafo 2ª da referida lei.

[25] Sem prejuízo de eventual cumulação de outros pedidos, conforme o caso concreto. (Ex: danos materiais, lucros cessantes, dano estéticos, etc)

[26]  Fonte: Júris Síntese IOB Maio – Junho/2010 

[27] Art. 332 do CPC:   “Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa.”

Art. 335 do CPC: “ Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial.”

[28] Fonte: Júris Síntese IOB Maio/junho 2010


Informações Sobre o Autor

Patricia Oliveira Lima Pessanha

Advogada concursada da Administração Pública Indireta; Pós Graduada em Direito Material e Processual de Trabalho


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