A Lei 8.666/93, ex vi de seu art. 48, inc. I estabelece que as propostas que não atendam as especificações contidas no ato convocatório da licitação, devem ser desclassificadas.
Com efeito, a teor deste preceito legal, na análise das propostas, cabe à Comissão de Licitação aferir se o conteúdo destas subsume-se às prescrições editalícias e, em caso negativo, rejeitá-las, a par dos princípios da vinculação ao instrumento convocatório e do julgamento objeto.
É exatamente em função desta assertiva que, na elaboração de seus editais, deve a Administração acautelar-se para não fazer constar exigências que, ainda que encontrem guarida na lei, sejam irrelevantes tendo em vista o objeto colimado, a fim de que não seja compelida, quando do julgamento das ofertas, a rejeitar uma proposta que não atenda tal exigência.
Não obstante, é certo que este rigorismo excessivo na apreciação das propostas na fase de julgamento das licitações, vêm sendo mitigado, com fulcro em outros princípios, quais sejam, da proporcionalidade e razoabilidade, que também devem esgueirar a prática de toda atividade administrativa.
Destarte, obviamente que a existência de vícios relevantes, que maculem a essência da oferta, devem ensejar, de plano, sua desclassificação. No entanto, quando o erro for incapaz de macular a essência da proposta, não prejudicando o interesse público ou a segurança do futuro contrato, não há razão para a rejeição da proposta.
Ademais, as normas que permeiam os certames licitatórios devem, sempre que possível, serem interpretadas em favor da disputa entre os interessados.
As exegeses aqui proferidas são corroboradas pelos entendimentos de nossa doutrina pátrea acerca do tema.
Nas lições, sempre atuais, do Mestre Hely Lopes Meirelles:
“A desconformidade ensejadora da desclassificação da proposta deve ser substancial e lesiva à Administração ou aos outros licitantes, pois um simples lapso de redação, ou uma falha inócua na interpretação do edital, não deve propiciar a rejeição sumária da oferta. Aplica-se, aqui, a regra universal do utile per inutile non vitiatur, que o Direito francês resumiu no pas de nullité sans grief. Melhor que se aprecie uma proposta sofrível na apresentação, mas vantajosa no conteúdo, do que desclassificá-la por um rigorismo formal e inconsentâneo com o caráter competitivo da licitação” (cf. Licitação e Contrato Administrativo, 11ª ed., Malheiros, 1997, p. 124).
Nesta mesma assertiva, pondera o Professor Diogenes Gasparini:
“Não obstante esse rigoroso procedimento, há que se compreender que só a inobservância do edital ou carta-convite no que for essencial ou a omissão da proposta no que for substancial ou no que trouxer prejuízos à entidade licitante, ou aos proponentes, enseja a desclassificação. De sorte que erros de soma, inversão de colunas, número de vias, imperfeição de linguagem, forma das cópias (xerox em lugar da certidão) e outros dessa natureza não devem servir de motivo para tanto” ( Direito Administrativo, 8ª ed., Saraiva, 2003, p. 502/503).
O próprio Tribunal de Contas da União assim já decidiu:
“(…) conhecer da presente representação para, no mérito, considerá-la parcialmente procedente, sem que a falha identificada, entretanto, de natureza formal, tenha invalidado o procedimento licitatório questionado neste processo” (Decisão n.º757/97).
Por sua vez, a 3ª Turma Cível do TJDF, no Processo n.º 50.433/98, por unanimidade de votos, proferiu a seguinte decisão:
“Direito Administrativo. Licitação. Tomada de preços. Erro material na proposta. Irrelevância. O erro material constante da proposta mais vantajosa para a Administração, facilmente constatável, não é óbice à classificação da mesma. Inexistência de ofensa ao disposto no art. 48 da Lei n.º 8.666/93. Apelação improvida”.
Aliás, não raro, pode ocorrer que a rejeição da proposta torne-se mais prejudicial ao interesse público, do que a sua manutenção, inobstante os erros apontados em seu conteúdo.
Confirma a inteligência de Marçal Justen Filho, lembrando um caso concreto:
“Vale referir, ainda outra vez, decisão prolatada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do MS n.º 5.418/DF.
O edital exigia que as propostas consignassem os valores em algarismos e por extenso. Um dos licitantes apresentou proposta onde o valor constava apenas em algarismo e grafada segundo padrão estrangeiro (com vírgulas e não pontos para indicar milhares). A proposta foi classificada como vencedora, em um primeiro momento.
Após e atendendo recurso, a Comissão desclassificou-a. O STJ concedeu o mandado para restabelecer a classificação original. Reputou que a redação da proposta, ainda que descoincidente com a exigência do edital, não acarretava dúvida acerca do montante ofertado.
Considerando que a diferença dessa proposta para a classificada logo após ultrapassava cem milhões de reais, seria contrário ao interesse público promover a desclassificação.
O precedente tem grande utilidade por balizar a atividade de julgamento das propostas pelo princípio da proporcionalidade. Não basta comprovar a existência de defeito. É imperioso verificar se a gravidade do vício é suficientemente séria, especialmente em face da dimensão do interesse público. Admite-se, afinal, a aplicação do princípio de que o rigor extremo na interpretação da lei e do edital pode conduzir à extrema injustiça ou ao comprometimento da satisfação do interesse público” (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 5ª ed., Dialética, 1998, p. 436).
Logo, à luz de melhor doutrina, parece-nos salutar a providência afeta à verificação do conteúdo e extensão do erro, antes de decidir-se pela desclassificação da proposta, uma vez que sua manutenção pode ser o melhor caminho para atendimento da finalidade pública perseguida.
Entendemos seja este o expediente que deve ser adotado, pela Administração, na condução de seus certames, uma vez que não há razão para sustentar-se a desclassificação de uma oferta vantajosa, por razões que, na situação fática, em nada prejudicam a essência do que se pretende contratar.
Obviamente que dita assertiva não pode ser invocada em qualquer situação de incompatibilidade entre a proposta e os reclames editalícios. Por certo, reitere-se, só justifica-se a aceitação da oferta, se o vício for, de fato, irrelevante. Caso contrário deverá a Administração optar pela desclassificação, a fim de que não reste qualquer prejuízo à consecução do objeto contratado e, tampouco, restem feridos os direitos dos demais licitantes.
Informações Sobre o Autor
Gisele Clozer Pinheiro Garcia
Advogada militante no campo do Direito Administrativo, tendo iniciado a carreira em renomada empresa de consultoria jurídica nesta área, posteriormente trabalhado em escritório, advogando para empresas participantes de licitações e, atualmente, assessora da diretoria jurídica da Cohab/Campinas.