Do constituinte ao contribuinte. O processo estruturante da capacidade contributiva

Resumo: A capilarização das competências tributárias, aliada à diversidade do poder econômico dos contribuintes individualmente considerados implica em grande margem de diferença dos limites da capacidade contributiva no caso concreto. A verificação destes limites dependerá, portanto, não só da disposição constitucional, mas de um processo de construção de sentido efetivado através da legislação e da apreciação das condições materiais de cada caso, a ser efetivada por meio da intepretação efetuada pelo aplicador do direito. Neste contexto, devem ser analisadas as diferentes fases do processo de estruturação do conceito de capacidade contributiva no caso concreto.

Palavras-chave: Capacidade Contributiva. Processo Estruturante. Legislação. Caso Concreto.

Abstract: The capillarity of the taxing power coupled with the diversity of economic power taxpayers individually implies wide margins limits the ability to pay in this case. The verification of these limits will therefore depend not only on the constitutional provision, but the meaning construction process performed through legislation and appreciation of the material conditions of each case, to be effected through the Interpretation of applying the law. In this context, the different stages of the structuring of the concept of ability to pay in this case the process must be analyzed.

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Keywords: Contributory capacity. Structuring process. Legislation. Case.

Sumário: Introdução. 1. O Processo Estruturante da Capacidade Contributiva. 2. Fase Abstrata. 3. Fase Concreta. Conclusão.

INTRODUÇÃO

O princípio do da capacidade contributiva é enunciado através da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), especificamente no seu artigo 145, §1º, nos termos do qual “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte” (BRASIL, 2014).

Inobstante o fato de a doutrina tributária brasileira reconhecer que os mandatários da potência constituinte[1], através deste princípio, direcionaram ao legislador de base uma orientação expressa ao seu poder de legislar, descartada a homenagem a valores metafísicos e a enunciação vazia, não seria desarrazoado afirmar que a legislação e ordinária e a jurisprudência não lhe tem dado o devido tratamento.

Com efeito, sob a proteção do argumento velado da inoperância prática de um princípio cujo núcleo é composto de um termo semanticamente aberto, a jurisprudência tem deixado de desenvolver judicialmente os meios de obtenção do conceito material de capacidade contributiva.

Reputamos que tal situação decorre, em parte, da ideia minimizada que se tem do papel do aplicador do direito, que deliberadamente se construiu a partir de uma interpretação viciada do Positivismo Jurídico, sendo certo que reduz a fruição adequada do direito fundamental que decorre do princípio da capacidade contributiva, desestimulando a produção legislativa tendente a graduar os tributos de forma individualizada e impedindo a correção de eventuais discrepâncias que decorrem da regulação insuficiente.

A título de exemplo da falta de consideração das condições materiais enquanto paradigmas, note-se que, atualmente, em praticamente todas as unidades da federação, a capacidade contributiva dos contribuintes do Imposto Sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços de Transporte Interestadual, Intermunicipal e de Comunicações (ICMS) tem sido verificada, quase que exclusivamente, a partir da compensação entre a receita de suas vendas e a despesa de parte de suas compras.

Presume-se que o contribuinte é capaz de recolher sobre a diferença e, ignorando-se todas as demais condições materiais do caso concreto, num típico exercício de verificação do encargo individual segundo as possibilidades da lei tributária, e não num exercício de verificação da possibilidade de aplicação da lei tributária segundo as condições individuais destes contribuintes.

Em igual sentido, vale ressaltar que, atualmente, a jurisprudência dos tribunais brasileiros tem adotado o posicionamento segundo o qual o limite entre a tributação legal e a tributação confiscatória – e, portanto, o limite extremo da capacidade contributiva – deve ser avaliado sem levar em consideração o encargo resultante da tributação simultânea por mais de um ente federativo. São ignoradas, nestes termos, as condições individuais de cada contribuinte, tomando-se por paradigma efetivo o limite das possibilidades enunciadas por cada ente federativo, de forma isolada.

Neste sentido, o STF:

“A identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da totalidade da carga tributária, mediante a verificação da capacidade de que dispõe o contribuinte – considerado o montante de sua riqueza (renda e capital) – para suportar e sofrer a incidência de todos os tributos que ele deverá pagar, dentro de um determinado período, à mesma pessoa que os houver instituído” (BRASIL, 2012)

Diante destes posicionamentos da legislação ordinária e da jurisprudência, é possível afirmar que o princípio da capacidade contributiva não tem sido realizado de forma plena, pois, se é certo que é ele veiculado a partir de uma norma cujo núcleo da hipótese é um critério cujos contornos conceituais variam conforme o caso concreto (capacidade contributiva), é, consequentemente, necessário concluir que a apreciação das condições materiais, sob uma perspectiva individual não poderia ser desconsiderada.

Sendo assim, pretende-se, através deste estudo, propor a análise desta clássica limitação ao poder de tributar a partir da verificação do papel exercido pelo aplicador do direito e pelas condições materiais do caso concreto, na realização do princípio da capacidade contributiva, identificando os reflexos de tal opção metodológica.

Para isso, será analisado o processo estruturante do conceito material de capacidade contributiva, a partir da verificação dos papéis exercidos pelo legislador ordinário, pelo aplicador do direito e pelo contribuinte, especialmente no que se refere à imposição de ônus regulatório e argumentativo ao legislador, à apreciação subjetiva do aplicador e ao dever de impugnação do contribuinte.

Vale ressaltar, em arremate, que não se pretende romper com a doutrina clássica que analisa a capacidade contributiva a partir de sua característica de limitação ao poder tributário, e sim propor uma nova perspectiva de estudo com o objetivo de enriquecer a compreensão da matéria, razão pela qual o presente estudo é, em essência, um trabalho heurístico

1. O PROCESSO ESTRUTURANTE DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA

Mais do que definir um estado de coisas a ser atingido, a CRFB, a partir do artigo 145, §1º, indica que a gradação pessoal dos tributos será efetivada a partir de um processo de individualização da capacidade econômica do contribuinte, sendo certo que este processo tem início na própria enunciação do princípio e culmina na identificação das condições materiais individualizadas pelo aplicador do direito, transcendendo, portanto, os limites da legislação.

Com efeito, a CRFB é, também, um instrumento veiculador de disciplina de poderes, estatais ou individuais, direcionados a realização de objetivos fundamentais e valores chancelados pelo poder constituinte que, enquanto “força real de eficácia sempre atual” “capaz de criar uma nova ordem jurídica, quando circunstâncias típicas provocarem oportunidades para o seu exercício” (Brito, 1993, p.121), define os objetivos a serem atingidos e valores a serem preservados, conferindo, neste intento, poderes ao Estado em face dos cidadãos, dos cidadãos em face do Estado e dos cidadãos em face deles mesmos (eficácia horizontal).

Assim, não seria absurdo afirmar que a CRFB é uma disciplina de competências e deveres públicos e privados, sendo igualmente razoável, entretanto, reconhecer que a delimitação destas competências e deveres, através do texto constitucional, nem sempre é óbvia, uma vez que nem todos tem os respectivos limites inteiramente traçados na mesma disposição textual que os veicula, fazendo-se necessário um processo de estruturação pós constitucional destes conceitos, no contexto do qual ser-lhe-ão atribuídos os contornos conceituais conforme as características de cada caso.

Neste sentido, dada a sua abertura semântica, a realização da capacidade contributiva dependerá da estruturação de um conceito, sendo certo que, dada a capilarização da capacidade ativa tributária, decorrente do próprio sistema federativo brasileiro, a integração de sentido do conceito de capacidade contributiva passará, necessariamente, pela produção legislativa.

Noutro giro, dada a amplitude da diferença de capacidade de cada contribuinte no caso concreto, as condições materiais de cada caso são fundamentais a esta estruturação, razão pela qual é preciso estudá-la a partir da análise de um processo composto de uma fase abstrata e uma fase concreta, na forma do que passa a ser exposto.

2. Fase Abstrata

No que diz respeito ao objetivo da tributação conforme à capacidade contributiva, a CRFB inicia este processo enunciando que “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte” (BRASIL, 2014), estabelecendo, dessa forma, uma diretriz racionalizante da competência legislativa tributária e, portanto, da expressão da soberania popular, assim como um dever de racionalizar a gradação dos tributos, exercida através do processo legislativo, à capacidade econômica de um indivíduo singularmente considerado – o contribuinte, sendo certo que, ao fazê-lo, afasta-se da acepção corrente segundo a qual caberia ao legislador graduar os tributos segundo seus critérios, dada a sua condição de mandatário da vontade popular.

Ocorre que, analisado o plano meramente linguístico, dada a inserção do termo “sempre que possível”, pode-se entender que caberá ao legislador identificar os casos em que a gradação segundo a capacidade econômica seja possível, ou, em outras palavras, poderá ele definir, abstratamente, o âmbito material de aplicação do princípio, o que findaria por transformá-lo em algo parecido com os chamados direitos fundamentais com âmbito de proteção estritamente normativo[2], nos quais a legislação infraconstitucional introduzirá no sistema positivo os elementos componentes da hipótese de incidência da norma de direito fundamental, efetivamente “criando” a referida hipótese de incidência[3].

Mais ainda, analisando a realidade brasileira, dada a pura e simples desconsideração do princípio pelo legislador, na maioria dos casos, pode-se entender que a CRFB facultou ao legislador escolher, numa típica decisão intra-sistêmica[4] e segundo sua apreciação subjetiva, os casos em que ocorrerá uma graduação de tributos conforme a capacidade contributiva, fazendo com que a esmagadora maioria dos tributos fossem graduados de forma não individualizada e, desta forma, impondo obrigações iguais a indivíduos cuja capacidade econômica seja, a mais não poder, distinta, ao arrepio da CRFB.

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É o caso, por exemplo, do ITBI, do ITCMD, do IPVA, do ITR, do ICMS e do ISS, nos quais a utilização de alíquotas iguais a contribuintes de capacidades econômicas diversas faz com que o impacto tributário seja impossível a alguns, e quase nulo a outros.

Não nos parece, contudo, que o princípio da capacidade contributiva tenha uma âmbito de proteção estritamente normativo, pois, nestes casos, limita-se o constituinte a conferir ou garantir institutos jurídicos cuja conceituação ou o alcance são, a priori, indeterminados, delegando, dessa forma, o exercício de determinação da hipótese de incidência (âmbito de proteção) da norma ao legislador ordinário, que acaba por definir – no universo da legislação – o alcance do instituto previsto no texto constitucional, sendo certo que inexiste, no princípio da capacidade contributiva, termo de tal espécie.

Tampouco nos parece que o termo “sempre que possível” faculte, ao legislador, discricionariedade na decisão acerca dos casos em que a gradação conforme a capacidade econômica será ou não realizada, pois,  antes de facultar a utilização ou de determinar a definição do alcance do princípio, ao utilizar a palavra “sempre”, cujo conteúdo semântico é extremamente fechado, a CRFB impõe ao legislador que, em regra, os tributos serão graduados de forma equânime, utilizando uma diretriz racionalizante do poder legislativo.

Com efeito, ainda que se reconheça o caráter nitidamente principiológico[5] da norma, ao tornar a tributação não graduada segundo a capacidade econômica uma exceção, a CRFB, por corolário lógico, impõe ao legislador um acentuado ônus argumentativo, devendo ele, segundo os cânones da racionalidade, sustentar a razão pela qual determinado tributo não foi graduado desta forma, provando que a gradação era impossível e que, portanto, as disposições mínimas[6] contidas no artigo 145, §1º, da CRFB não foram violadas.

Há que concluir, nestes termos, que o primeiro passo do processo estruturante de construção do conceito capacidade contributiva foi dado pelo constituinte, ao estabelecer o dever de realização do princípio, pelo legislador, através de gradação dos tributos conforme a capacidade contributiva, ou da justificativa coerente dos casos em que não seja possível fazê-lo, tarefas que, por sua vez, constituirão o segundo passo deste processo.

3. Fase Concreta

Entretanto, se, por um lado, a CRFB impõe ao legislador ordinário o dever de, no plano da criação das proposições prescritivas gerais e abstratas, estabelecer critérios objetivos de gradação do encargo decorrente do cumprimento de tributos segundo a capacidade contributiva, assim como o ônus argumentativo de justificar coerentemente porque não o fez, é certo que, por outro lado, impõe ao aplicador do direito o dever de identificar esta capacidade no caso concreto, adequando o devido grau de encargo, razão pela qual o processo estruturante de construção do conceito transcende os limites do da legislação.

Não é por outra razão que, imediatamente após estabelecer a obrigação do legislador de graduar os tributos "segundo a capacidade econômica do contribuinte", a CRFB faculta "à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte." (BRASIL, 2014).

Note-se, portanto, que além do dever de, diante da "situação de facto em bruto" (LARENZ, 1997, p.392), efetivar a conformação e a apreciação jurídica do caso concreto, através da declaração da ocorrência de eventos enquadráveis nas notas distintivas eleitas pelo legislador, quando da enunciação das hipóteses, o que, de resto, decorre da própria essência de sua função enquanto membro da administração tributária, a CRFB impõe à autoridade fiscal uma função – ou um dever – a mais, qual seja o de identificar "o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte".

 Diante disso, há que se questionar o objetivo com o qual foi conferida à autoridade tributária a prerrogativa de, respeitados os direitos individuais, tomar conhecimento de características pessoais de cada contribuinte, de modo a que se verifique se está a se tratar de um instrumento destinado a viabilizar o mero enquadramento do contribuinte às eventuais faixas enunciadas pelo legislador ou se, mais do que isso, está a se tratar de um instrumento de definição individualizada do limite da capacidade contributiva individual.

Esta verificação depende, por um lado, da análise do papel do aplicador do direito e, por outro, do próprio processo estruturante da hipótese de incidência do princípio da capacidade contributiva.

Para isto, parece razoável partir, dentre os inúmeros posicionamentos acerca da matéria, das lições trazidas por Karl Larenz, em sua obra Metodologia da Ciência do Direito (1991) e por Friedrich Muller, em sua obra Teoria Estruturante do Direito (2009), sobretudo no que se refere às formas através das quais é realizado o direito.

Vale apontar, neste intento, que, ainda que exista notável divergência entre os autores acerca do conceito de norma, pode-se afirmar que, salvo melhor juízo, ambos admitem que a realização do direito passa por um processo de cotejo entre as proposições prescritas pelo direito positivo e os elementos individuais do caso concreto, assim como que casos regulados, no plano abstrato, de forma idêntica, podem resultar em decisões diversas e igualmente válidas.

Neste sentido, é preciso mencionar que Larenz aceita a ideia de que, ao menos a princípio, a realização do direito ocorre a partir de um silogismo entre as proposições jurídicas e a situação de fato, e considera, consequentemente, que o conceito norma se esgota nas abstrações prévias, textualmente enunciadas por sujeitos legitimados, no contexto de um processo igualmente pré-estabelecido, conforme se vê dos seguintes trechos:

“A regra do Direito tem a forma linguística de uma proposição, a proposição jurídica. E dela que se vai tratar em seguida. A proposição jurídica deve distinguir-se, em virtude do sentido normativo que lhe e correspondente, de uma proposição enunciativa, que contem uma afirmação de factos ou uma constatação. De igual modo, deve-se distingui-la daquelas proposições que contem enunciados sobre Direito vigente, onde se fala de normas jurídicas. Esclareçamo-nos sobre o que tem em comum, assim como sobre as diferenças entre as proposições enunciativas e as proposições normativas, quer dizer, as proposições jurídicas. Toda a proposição e uma estrutura linguística, na qual algo esta conexionado com uma outra coisa. Uma proposição enunciativa contem, as mais das vezes, o enlace entre um objecto e uma propriedade ou modo de comportamento que se lhe atribui, que dele se afirma. Exemplos seriam, mais ou menos, proposições como: este carro e vermelho ou este carro circula neste momento a tal ou tal velocidade por hora. Enunciados mais complicados como, por exemplo, este carro esta precisamente em vias de ultrapassar um caminhão ou x adormeceu durante a viagem ao volante do seu automóvel, poder-se-iam reconduzir todos a forma fundamental atrás mencionada. A todas as proposições enunciativas desta espécie e comum que o contexto ou o fenômeno nelas descrito ocorrem ou tem lugar no plano dos factos ou, se o enunciado se reveste de uma forma pretérita, que ocorreram ou tiveram lugar.” (LARENZ, 1997, pp. 350/351)

“O dador da norma não diz: assim e de facto; mas diz: assim deve ser de Direito, assim deve valer. As suas palavras cairiam certamente no vazio se ele não estivesse legitimado, em virtude de normas precedentes, para propor ordenações de vigência desse tipo, que sejam vinculantes para outros e se não actuasse aqui no quadro da competência que lhe e conferida por uma norma precedente. Só que isto já não se prende com a questão da estrutura da proposição jurídica, mas com a questão da sua validade, coisa de que se não vai aqui tratar.” (LARENZ, 1997, p. 353)

Isto não significa, entretanto, que o autor negue ao aplicador um papel relevante no processo de realização do direito, na medida em que caberá a ele a apreciação da situação de fato, segundo juízos de índole essencialmente subjetiva, de forma a que sejam falseadas as proposições potencialmente eleitas, com base em sua pré-compreensão.

Esta apreciação, conforme entende o autor, não se limita a uma filtragem dos fatos apresentados, segundo moldes pré-estabelecidos, no contexto de um silogismo típico, mas em um processo racional cujos resultados dependerão, em grande monta, da apreciação do caso concreto feita pelo aplicador, sem prejuízo da validade de suas conclusões.

“Na apreciação de uma situação de facto, com vista a saber se recai sob a previsão de uma das proposições jurídicas que lhe são potencialmente aplicáveis, são exigidos ao julgador — facto que se toma demasiado pouco em conta — juízos de índole muito distinta. Mesmo quem teime em ver uma «subsunção», no sentido de um procedimento lógico silogístico, na subordinação de uma determinada situação de facto à previsão de uma norma, terá, no entanto, de conceder que tal subsunção pressupõe certos juízos elementares — quer dizer, não proporcionados por sua vez mediante silogismos — que afirmam que esta ou aquela nota distintiva, mencionada na previsão da norma, está aqui presente. Na verdade, o peso decisivo da aplicação da lei não reside na subsunção final, mas na apreciação, que a antecede, dos elementos particulares da situação de facto enquanto tal, que correspondem às notas distintivas mencionadas na previsão. É deste núcleo central da aplicação da lei, da apreciação requerida da situação de facto, que nos vamos agora ocupar e onde não teremos receio de repetir, neste contexto, coisas já parcialmente ditas.” (LARENZ, 1997, p. 399)

De modo exatamente inverso, Larenz confere fundamental importância ao processo interpretativo a ser realizado na aplicação do direito, reconhecendo a impossibilidade lógica de previsão abstrata, não só de todos os casos, mas, sobretudo, de todos os aspectos de cada caso, e reconhecendo, nestes termos a possibilidade da determinação do conteúdo normativo por parte do aplicador.

“As normas jurídicas são interpretadas para, por regra, serem «aplicadas» a casos concretos. Na interpretação das normas jurídicas, só aparentemente se trata de um processo em que a norma aplicável se coloca, à semelhança de um metro articulado, sobre a situação de facto a julgar e esta é por ele mensurada. Isto pressuporia, em primeiro lugar, que a norma aplicável estivesse já em si tão determinada que o seu verdadeiro conteúdo estivesse fora de questão. Se assim fosse, não careceria de interpretação.

Em segundo lugar, isto pressuporia ainda que a situação fáctica a julgar estivesse já determinada em todos os seus elementos e que fosse também susceptível de se ajustar precisamente ao modelo dado na norma. Tão-pouco é isto o que acontece. A maior parte das situações fácticas são por demais complexas. A norma, que tem de se simplificar, porque quer abarcar uma série de situações fácticas, apreende em cada situação fáctica particular apenas alguns aspectos ou elementos. E descura todos os outros. Mas isto conduz não raramente à questão de se alguns dos elementos descurados na norma são, no entanto, tão relevantes no caso concreto, que a sua consideração seja aqui ineludível, se não se quiser (a partir da noção de Direito) tratar o desigual como «igual» e assim resolver «injustamente». Se isto é assim, surge a pergunta de se a norma, «rectamente» entendida, não permitirá porventura uma restrição ou uma diferenciação que haja de possibilitar uma solução «justa» e de se não deva ser aqui convocada outra norma que só «à primeira vista» não parece aqui aplicável, se existe uma «lacuna» no edifício normativo que possa ser colmatada de acordo com as ideias básicas de uma regulação ou com um princípio jurídico geral. Estas considerações e outras semelhantes impõem-se constantemente ao jurista no decurso do processo de aplicação do Direito e dão azo a que a mera «aplicação» das normas se transforme nas suas mãos, em alguma medida, numa determinação do seu conteúdo e na sua complementação.” (LARENZ, 1997, pp. 293/294)

Muller, por sua vez, eleva a influência das particularidades do caso concreto a uma posição ainda mais proeminente, na medida em que considera que estas farão parte do próprio conceito de norma.

Sustenta o autor, neste sentido, que a integridade normativa será atingida pela conjunção entre as proposições do direito positivo, que, segundo ele, comporão o programa normativo, e as condições materiais do caso individualmente considerado, que formarão o âmbito normativo, razão pela qual será ela atingida a partir de um processo estruturante e complexo, individualizado à razão das características postas à análise.

“Sob a ótica da estrutura da ação jurídica prática, eles mostram, fundamentalmente, que direito e realidade não promovem cada um por si e de modo independente uma relação entre entidades existentes, que pode ser formulada de maneira geral, mas apresentam, numa mistura que vai se alternando, fatores atuantes na concretização do direito, dotados de uma autonomia apenas relativa. Aquilo que é normatividade jurídica mostra-se concretamente na convergência de perspectivas que normalmente são generalizadas como metáforas abstratas do tipo "norma" e "fato", "direito" e "realidade", bem como igualmente como a "relação" abstraía desses elementos. (MULLER, 2009, p. 148)

De acordo com a concepção apresentada, a estrutura da norma a ser teoricamente diferenciada de acordo com o âmbito e o programa normativo, bem como a normatividade são fundamentalmente aplicáveis a todas as normas jurídicas, ainda que na relação de mistura sejam muito diferentes. Ainda não se deve adentrar aqui aos casos-limite, nos quais os fatores se interpenetram. Dentro da Constituição não se pode, por exemplo, sob a ótica teórico-normativa, fazer distinção entre as normas de direitos fundamentais e outras disposições fundamentais, conforme o art. 21, inc. l, da CF, e outras regulamentações “técnicas", conforme as regras de competência; nem se pode, nesse contexto, negar de alguma forma a "unidade da Constituição", que pode ser discutida como objetivo metódico. Também isto é algo que repetidamente se torna claro na jurisprudência da Corte Constitucional Federal. Dessa forma, na definição de uma competência relativa a uma legislação futura deve-se geralmente presumir que a expressão em questão apresentaria no texto da norma de competência um conceito geral que cobre verbalmente um determinado âmbito da norma dotado de peculiaridade material.” (MULLER, 2009, p. 160)

Entende, portanto, que a realização do direito se dá a partir de um processo no qual as abstrações são apenas parte do caminho, funcionando como ponto de partida de um caminho estruturante da norma.

Diante disso, parece razoável concluir que, inobstante a diferença de posicionamento acerca dos conceitos de norma, há uma intersecção no trabalho destes autores, na medida em que ambos consideram as condições individuais do caso concreto, verificáveis pelo aplicador, não apenas são relevantes, como fundamentais ao processo de sua realização material, sendo certo que, independentemente de ser adotada posição no sentido de que elas viabilizam a aplicação do direito ou o compõem, delas dependerão o resultado substancial.

Nestes termos, pode-se afirmar que o processo estruturante de construção do princípio da capacidade contributiva, ultrapassada a fase das abstrações normativas, passa por uma fase concreta, por meio da qual o aplicador do direito apreciará as condições materiais do caso concreto para atribuir-lhe as consequências previstas pelo ordenamento jurídico, enunciadas pelo constituinte e pelo legislador na fase abstrata.

Este dever/função do aplicador, conforme já indicado, será exercido a partir da eleição de proposições jurídicas potencialmente aplicáveis ao caso, com base na pré-compreensão, e passará pelo falseamento destas hipóteses prévias diante do sistema e, além disso, diante das condições materiais específicas, que, por sua vez, serão apreendidas a partir de juízos multidisciplinares por parte do aplicador.

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Este processo, contudo, não é linear, na medida em que o aplicador, diante dos resultados do falseamento das hipóteses, poderá revisar hipóteses anteriores ou adotar novas propostas, no contexto típico da espiral hermenêutica.

Parece certo, noutro giro, que, ainda que seja assumido, na esteira de Bobbio (2008), que o ordenamento jurídico é completo, pois o aplicador é capaz de integrar as lacunas aparentes a partir de processos interpretativos e com base no próprio sistema, é necessário reconhecer que ao, erigir-se às condições materiais do caso à qualidade de elementos essenciais à realização do direito, impõe-se a conclusão de que este processo de realização é uma via de mão dupla e não se limita à definição abstrata de seções regulatórias, onde devem ser enquadrados os casos.

Com efeito, caberá ao aplicador, no processo interpretativo, a identificação dos limites casuísticos à incidência dos enunciados normativos no caso concreto, seja porque as proposições jurídicas são omissas, seja porque, em razão dos fatores mais diversos, foram superadas, colmatando as lacunas de regulação que decorreram de suas conclusões.

Este processo, no entanto, não deve transcender os limites o sistema normativo, mas tão somente colmatar as lacunas que decorreram da apreciação das condições materiais do caso concreto, através do uso dos princípios supostos e pressupostos[7] neste mesmo sistema, no contexto de um processo de construção linguística orientado pelos ditames da racionalidade argumentativa, no qual suas decisões serão sempre intra-sistêmicas.

No que diz respeito ao direito ao princípio sob análise, esta mudança de paradigma impõe a conclusão segundo a qual a capacidade contributiva não poderá ser definida a partir da inserção dos contribuintes em estamentos variáveis segundo amplas faixas de receita ou patrimônio, assim como não resultará na tributação segundo as condições de sua coletividade.

De forma bem diversa, a capacidade contributiva deverá ser definida a partir da apreciação de condições materiais individualizadas sob o ponto de vista subjetivo, espacial e temporal, e resultará na imposição de limites individualizados à incidência das regras de imposição de obrigações tributárias. A tributação deve não só variar de acordo com as diferentes prescrições normativas, mas também de acordo com as possibilidades do caso concreto, tendo em vista a universalidade dos fatores econômicos que compõem o poder financeiro do contribuinte, tais como seus rendimentos, suas despesas, seu patrimônio e sua capacidade produtiva.

Isto não significa, contudo, que a falta de suficiente graduação abstrata, por parte do legislador, do encargo a ser suportado pelo contribuinte, ou mesmo a impossibilidade de cumprimento de tributos em decorrência da insuficiência de bens por motivos razoáveis, qualificados no tempo e no espaço, implique na exoneração do cumprimento integral da obrigação tributária que, abstratamente, parece lhe ser imposta.

Tampouco significa que o contribuinte seja eximido de seu dever de irresignação diante da imposição tributária superior à sua capacidade contributiva, mas tão somente que lhe devem ser disponibilizados instrumentos razoáveis e acessíveis de impugnação do que reputa excessivo, sendo certo que caberá ao aplicador o dever de exonerá-lo da obrigação superior à sua capacidade, através da produção de norma de decisão[8], na qual se constate que as disposições mínimas[9] contidas no artigo 145, §1º, da CRFB foram violadas.

Tal fato se deve, salvo melhor juízo, ao fato de a CRFB ser um sistema fechado e completo de enunciados explícitos e implícitos, obrigando o legislador infraconstitucional e, de resto, o aplicador, a buscar o alcance e o sentido de suas disposições partindo do direito posto e no direito pressuposto constantes do próprio sistema constitucional, de forma a realizar seus objetivos.

CONCLUSÃO

Diante da argumentação tecida no contexto deste estudo, chega-se às seguintes conclusões:

A realização material do princípio da capacidade contributiva depende de um processo de estruturação de sentido, dada a sua característica semanticamente aberta.

O processo de estruturação de sentido composto de uma fase abstrata e uma fase concreta, nas quais são relevantes as diretrizes constitucionais, as complementações de sentido efetivadas através da legislação ordinária e as condições materiais do caso apreendidas e interpretadas pelo aplicador.

A interpretação e a aplicação efetivadas pelo aplicador não resultam em um silogismo automático.

O princípio da capacidade contributiva, em sua aplicação prática, pode ensejar a exoneração das obrigações que transcendam os limites desenhados pelas condições materiais do caso.

 

Referências
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 9ª ed. São Paulo, Malheiros, 2009.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em 01 set. 2013.
____________.Supremo Tribunal Federal.  RE 587.008, Rel. Min. Dias Toffoli. Disponível em <www.stf.jus.br>. Acesso em 01 set. 2013. 
BRITO, Edvaldo. Limites da Revisão Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993.
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. 2ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 2008.
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3.ed. Trad. de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
MULLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
ROBLES, Gregorio. O Direito Como Texto: Quatro Estudos de Teoria Comunicacional do Direito. São Paulo: Manole, 2005.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
[1] Rigorosamente, por ser potência o poder constituinte é o denominado fundacional ou originário porque ou inaugura uma ordem constitucional ou instaura uma ordem completamente nova ao acionar a sua eficácia atual (BRITO, 1993, p. 71)

[2] Como essa categoria de direito fundamental confia ao legislador, primordialmente, o mister de definir, em essência, o próprio conteúdo do direito regulado, fala-se, nesses casos de regulação ou de conformação (Regelung oder Ausgestaltung) em lugar de restrição (Beschänkung). (MENDES, 2007, p.17).

[3]  Não raro, o constituinte confere ao legislador ordinário um amplo poder de conformação, permitindo que a lei concretize ou densifique determinada faculdade fundamental. (MENDES, 2008, p.298).

[4] Utilizamos aqui um termo alcunhado por Gregorio Robles (2005) para definir as decisões (atos de fala capazes de gerar texto novo) produtoras de novo texto jurídico, diferentes da decisão extra-sistêmica ou constituinte que cria ou constitui o ordenamento, sem a qual não há Constituição.

[5] Acreditamos ser adequada a classificação das normas trazida por Humberto Ávila (2009), segundo o qual regras “são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte e nos princípios que lhe são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos”, princípios “são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação  demandam uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção”  e postulados “são normas imediatamente metódicas que estruturam a interpretação e aplicação de princípios e regras mediante a exigência, mais ou menos específica de relações entre elementos com base em critérios”.

[6] Essas definições legislativas são vinculantes para o intérprete, reduzindo aquilo que Kelsen chamou de “moldura da norma”, e denominamos “moldura dos fatos”. (GRAU, 2009, p.238).

[7] “princípios gerais de direito – princípios implícitos, existentes no direito pressuposto – não são resgatados fora do ordenamento jurídico, porém descobertos no seu interior” (GRAU, 2009. p. 47)

[8] Em suma, a norma de decisão é a norma jurídica aplicada a um caso concreto. (GRAU, 2009, p.103).

[9] Essas definições legislativas são vinculantes para o intérprete, reduzindo aquilo que Kelsen chamou de “moldura da norma”, e denominamos “moldura dos fatos”. (GRAU, 2009, p.238).


Informações Sobre o Autor

Marcos de Andrade Stallone

Bacharel em direito pela Universidade Católica do Salvador (Ucsal); especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet); pós graduando em Direitos Humanos, Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG); Sócio do Tawil, Ribeiro e Stallone Advocacia e Consultoria; Professor desde 2009, lecionando a disciplina Direito Tributário


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