Resumo: Este trabalho tem por finalidade o exame do instituto do foro privilegiado, enquanto garantia do bom desempenho da função pública e, concomitantemente, privilégio contraposto ao direito fundamental à igualdade. Visando ao estabelecimento de limites à aplicação de tal instituto, buscou-se contextualizar o foro privilegiado a partir de sua evolução histórico-constitucional e de algumas observações acerca do direito estrangeiro, culminando na exposição da situação atual a respeito do tema em nosso sistema jurídico. Executou-se ainda uma abordagem do conteúdo jurídico do foro privilegiado, analisando-se o conceito e a natureza jurídica deste, cujas conclusões foram fundamentais ao enfrentamento do problema acerca da delimitação do instituto face ao princípio da igualdade. Por fim, identificou-se no objetivo principal do foro privilegiado, qual seja: a satisfação do interesse público geral, vinculado ao desempenho da função pública, os limites para a aplicação do instituto ao caso concreto.
Palavras-chave: Foro privilegiado. Princípio da igualdade. Função pública.
Abstract: The object of the present paper is the analysis of the exercise of special venue privilege as both a guarantee of good performance in public service as well as a contradiction to the principle of equality. With the goal of setting limits to the exercise of said privilege, the author sought to examine it in a context based on its historic evolution from a constitutional point of view and on observation of the application of foreign law. The author concludes with a presentation of the issue as it is currently played out in our judicial system. The author also presents the judicial substrate of special venue privilege by examining its concept in judicial origins and its related conclusions, which becomes paramount in dealing with issue of the exercise of the privilege vis-à-vis the Equality Principle. Finally, the main goal of the special venue privilege was identified or that is the maintenance of the general public interest in the performance of public service with limits on the exercise of the referred privilege.
Keywords: Special venue privilege. Principle of the Equality. Public service.
Sumário: 1. Introdução. 2. Panorama sobre o foro privilegiado. 2.1. Evolução histórica. 2.2 Breves apontamentos acerca do direito estrangeiro. 2.3 A posição atual do problema no direito brasileiro. 3. O conteúdo jurídico do foro privilegiado. 3.1 Conceito. 3.2 Natureza jurídica. 4. Os limites do foro privilegiado. 4.1 O foro privilegiado e o princípio da igualdade. 4.2 Delimitação do foro privilegiado. 5. Conclusão. Referências bibliográficas.
1. Introdução
A existência de foros privilegiados sempre foi uma constante em nosso ordenamento jurídico, entretanto, em virtude da atual discussão referente à abrangência de sua aplicabilidade, tal instituto merece especial atenção. Com a promulgação da Lei n° 10.628, de 24.12.2002, houve uma grande ampliação no concernente à competência especial ratione personae, o que, além de deflagrar novas divergências doutrinárias e jurisprudenciais, demonstra um evidente abuso na sua utilização.
Diante dessa conjuntura, primeiramente, busca-se traçar um panorama do instituto, explicitando o desenvolvimento histórico no tocante à evolução constitucional deste, bem como fazendo alguns apontamentos acerca do foro privilegiado no direito estrangeiro e expondo a posição atual do problema em nosso ordenamento. Num segundo momento, procura-se estabelecer o conteúdo jurídico do foro privilegiado, definindo-se o seu conceito e sua natureza jurídica.
Por fim, visando à delimitação do foro privilegiado em nosso ordenamento, enfrenta-se a relação existente entre este e o princípio da igualdade, atentando-se à justificativa do instituto, assentada na ideia de interesse público.
2. Panorama sobre o foro privilegiado
2.1 Evolução histórica
Na história do direito processual penal, o embrião do foro privilegiado surge como uma manifestação do processo penal romano, sendo assinalada como uma das mais importantes modificações realizadas neste período a criação de “certos privilégios que suspenderam, em favor de determinadas classes de pessoas, as regras ordinárias da instrução criminal.” Conforme José Mendes de Almeida Júnior, não se está referindo à jurisdição especial para julgamento de crimes militares, a qual, para o jurista, não é um privilégio, mas sim “aos senadores, cujos crimes eram julgados por senadores, aos eclesiásticos que não eram julgados senão pelas jurisdições mais altas,” bem como às isenções, consubstanciadas nas quaestiones ou tormentos para os soldados e seus filhos, para os veteranos do exército, para os decuriões, para os clarissimi em geral; e ao livramento sob caução simplesmente juratória para os dignitários do Império, dentre outros. [1]
Mais tarde, nas jurisdições eclesiásticas, merece destaque o Alvará de 20 de janeiro de 1580, expedido pelo cardeal rei D. Henrique, que estabelecia foro privilegiado para os oficiais do Santo Ofício, familiares e criados de deputados do Conselho Geral, de inquisidores, de deputados e de secretários. [2]
Conforme José Mendes de Almeida Júnior, tais privilégios ainda foram ampliados por Filipe II, com fulcro no Alvará de 31 de dezembro de 1584, autorizando a expedição de alvarás de fiança pelo Conselho Geral aos seus privilegiados. O processo de ampliação, porém, não se deu apenas no tocante aos privilégios, a abrangência da jurisdição e das imunidades eclesiásticas também era destaque, explicitando a influência do clero nesse período. [3] Em face de tal conjuntura, iniciou-se o movimento dos reis no sentido de distinguir os crimes sujeitos às justiças seculares daqueles exclusivamente sujeitos às oficialidades eclesiásticas, resultando em grandes lutas. Durante o desenvolvimento desse processo, foram se ampliando os casos privilegiados, os quais estavam “fundados não sobre a natureza dos fatos, mas sobre a qualidade das pessoas acusadas, estabelecidos em favor dos nobres, dos juízes, dos oficiais judiciais, abades e priores, etc., fidalgos e pessoas poderosas”, culminando na classificação dos crimes, relativamente às jurisdições, em crimes privilegiados, crimes eclesiásticos e crimes comuns. [4]
Vislumbra-se, portanto, que o instituto do foro privilegiado desenvolveu-se sobremaneira durante a Idade Média, sendo corriqueiro entre os nobres e os eclesiásticos. [5] Como se verá adiante, as principais ordens constitucionais da Europa Ocidental trazem apenas resquícios desse instituto. No entanto, deve ser ressaltado que tal fenômeno não ocorre no ordenamento jurídico norte-americano.
No Brasil, com a influência da tradição jurídica da Europa Ocidental, a adoção do foro privilegiado em nossa ordem constitucional foi uma consequência histórica. Como manifestação bastante expressiva desse processo, destaca-se, entre 1808 e 1844, a existência
de “Magistrados Especiais” para os cidadãos ingleses, sendo aqueles escolhidos e nomeados por estes últimos para “obrarem em seu favor”. Esse verdadeiro privilégio foi determinada pelo Alvará de 4 de maio de 1808, em que se criou o cargo de juiz conservador da Nação Britânica, [6] ratificado posteriormente pelo artigo X do Tratado de Comércio e Navegação, de 19 de fevereiro de 1810. [7]
A Constituição Política do Império do Brasil de 1824 concedia foro privilegiado aos membros da Família Imperial, Ministros de Estado, Conselheiros de Estado, Senadores e Deputados – estes durante o mandato – [8] e aos Secretários e Conselheiros de Estado para os crimes de responsabilidade. [9]
Na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, havia foro privilegiado para o Presidente da República, nos crimes de responsabilidade perante o Senado, e, nos crimes comuns perante o Supremo Tribunal Federal, [10] cabendo à Câmara dos Deputados o juízo de procedência ou improcedência da acusação. [11] Também se estabelecia foro privilegiado para os Ministros de Estado, sendo que nos crimes comuns e de responsabilidade seriam processados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal, e, nos conexos com os do Presidente da República, pela autoridade competente para o julgamento deste. [12] Além desses casos, cabia ainda ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar originariamente e privativamente os Ministros Diplomáticos, nos crimes comuns e nos de responsabilidade. [13]
Com a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934, definiu-se que um Tribunal Especial, em vez de o Senado, seria competente para o julgamento do Presidente da República nos crimes de responsabilidade. [14] Além disso, a Corte Suprema – denominação atribuída ao Supremo Tribunal Federal – recebeu a incumbência de processar e julgar, no tocante aos crimes comuns, o Presidente da República, Ministros da Corte Suprema, e, nos crimes comuns e de responsabilidade, os Ministros de Estado, Procurador-Geral da República, Juízes dos Tribunais Federais e das Cortes de Apelação dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, Ministros do Tribunal de Contas, Embaixadores e Ministros Diplomáticos. [15]
No texto da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937, foi estabelecida a competência originária a um Conselho Federal – composto por representantes dos Estados e por dez membros nomeados pelo Presidente da República – [16] para o processamento e julgamento do Presidente da República nos crimes de responsabilidade, [17] bem como dos Ministros do Supremo Tribunal Federal nos delitos de mesma natureza. [18] Com relação aos Ministros de Estado, foi estabelecido o foro privilegiado, nos crimes comuns e de responsabilidade, perante o Supremo Tribunal Federal, e, nos conexos com os do Presidente da República, perante a autoridade competente para o julgamento deste. [19] Para o Supremo Tribunal Federal, foi ainda fixada a competência para processar e julgar originariamente os seus Ministros e os Ministros de Estado, ressalvada a competência do Conselho Federal, e o Procurador-Geral da República, os Juízes dos Tribunais de Apelação dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, os Ministros do Tribunal de Contas e os Embaixadores e Ministros diplomáticos, nos crimes comuns e nos de responsabilidade. [20]
Com o processo de democratização, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946 trouxe novas situações de foro privilegiado. Fixou a competência privativa do Senado Federal para julgar o Presidente da República, [21] nos crimes de responsabilidade, e os Ministros de Estado, em crimes de mesma natureza, quando conexos com o daquele; [22] bem como processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal e o Procurador-Geral da República, também nos crimes de responsabilidade. [23] Além disso, concedeu foro privilegiado aos Ministros de Estado que, nos crimes comuns e nos de responsabilidade, seriam processados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal, ressalvada a hipótese do artigo 62, I. [24] Para o Supremo Tribunal Federal determinou a competência de processar e julgar originariamente o Presidente da República nos crimes comuns; [25] os seus Ministros e o Procurador-Geral da República também nos crimes comuns; [26] os Ministros de Estado, os Juízes dos Tribunais Superiores Federais, os Desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, os Ministros do Tribunal de Contas e os Chefes de Missão Diplomática em caráter permanente, nos crimes comuns e nos de responsabilidade, ressalvando-se a hipótese da parte final do art. 92; [27] e os mandados de segurança contra ato do Presidente da República, da Mesa da Câmara ou do Senado e do Presidente do próprio Supremo Tribunal Federal. [28] Estabeleceu ainda para o novo Tribunal Federal de Recursos a competência para processar e julgar originariamente os mandados de segurança, quando a autoridade coatora for Ministro de Estado, o próprio Tribunal ou o seu Presidente. [29] Por fim, estabeleceu o foro privilegiado para os juízes de inferior instância nos crimes comuns e de responsabilidade perante os Tribunais de Justiça. [30]
Essa conjuntura bastante ampla de foros privilegiados manteve-se, com algumas variações, na Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, com a Emenda Constitucional de 1969. Ressalte-se a inovação do foro privilegiado para deputados e senadores perante o Supremo Tribunal Federal. [31]
À Câmara dos Deputados passou a competir não só o juízo de procedência da acusação contra o Presidente da República, mas também contra os Ministros de Estado. [32] A competência do Senado permaneceu a mesma, já a competência do Supremo Tribunal Federal foi ampliada, estabelecendo-se novas hipóteses de foro privilegiado além das já existentes. Assim, passou a competir ao Supremo Tribunal Federal também o processamento e o julgamento, nos crimes comuns, do Vice-Presidente da República e dos deputados e senadores como referido acima.[33] Também foi ampliada a competência originária do Tribunal Federal de Recursos, sendo ao referido órgão cabível processar e julgar os juízes federais, os juízes do trabalho e os membros dos tribunais regionais do trabalho, bem como dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, e os do Ministério Público, nos crimes comuns e nos de responsabilidade; [34] os mandados de segurança contra ato de Ministro de Estado, do Presidente do próprio Tribunal ou das suas câmaras, turmas, grupos ou secções; do diretor-geral da Polícia Federal ou de juiz federal; [35] os habeas corpus, quando a autoridade coatora for Ministro de Estado ou a responsável pela direção-geral da polícia federal ou juiz federal. [36] Com relação aos Tribunais de Justiça, manteve-se o foro privilegiado para os juízes de inferior instância nos crimes comuns e nos de responsabilidade, estendendo-o aos membros do Tribunal de alçada. [37]
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, seguindo a linha das Cartas anteriores, trouxe também um rol bastante extenso de foros privilegiados. Verifica-se, no texto constitucional, que o Supremo Tribunal Federal é competente para processar e julgar originariamente, nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República; [38] também é competente o Supremo Tribunal Federal para processar e julgar originariamente, nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica – ressalvado o disposto no art. 52, I – os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente. [39] Além disso, competirá ao Supremo Tribunal Federal o processamento e julgamento de habeas corpus em que for paciente qualquer das pessoas referidas acima; [40] de mandado de segurança e de habeas data contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal; [41] de habeas corpus, quando o coator for Tribunal Superior ou quando o coator ou o paciente for autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ou se trate de crime sujeito à mesma jurisdição em uma única instância; [42] de revisão criminal e de ação rescisória de seus julgados. [43]
Ao Superior Tribunal de Justiça, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 reservou a competência originária do processamento e julgamento, nos crimes comuns, de Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais; [44] de mandados de segurança e os habeas data contra ato de Ministro de Estado, dos Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica ou do próprio Tribunal; [45] de habeas corpus, quando o coator ou paciente for qualquer das pessoas mencionadas na alínea a – art. 105, I – ou quando o coator for tribunal sujeito à sua jurisdição, Ministro de Estado ou Comandante da Marinha, do Exército ou da Aeronáutica, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral. [46]
Cabe ainda foro privilegiado perante o Senado Federal para processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade e os Ministros de Estado nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles; [47] e para processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade. [48]
Por fim, prevê a Carta Constitucional foro privilegiado perante o Tribunal de Justiça para o julgamento de Prefeitos, [49] e, nos crimes comuns e de responsabilidade, para o julgamento de Juízes de direito e membros do Ministério Público, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral. [50]
Analisando a evolução do instituto do foro privilegiado nas Cartas Constitucionais brasileiras, verifica-se que este foi sendo ampliado sucessivamente ao longo do tempo. Importa referir que o movimento foi inverso nas demais ordens constitucionais, como veremos adiante no capítulo reservado às observações acerca do Direito Comparado.
Cumpre ainda explicitar que a vedação do foro privilegiado em nosso sistema jurídico,
mais precisamente no rol de Direitos e Garantias Fundamentais do texto constitucional, sempre foi uma constante. Na Constituição Política do Império do Brasil de 1824, já figurava a proibição, [51] o que se seguiu na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, [52] cuja redação foi praticamente mantida, e na Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937, [53] que incluiu a proibição também de tribunais de exceção. A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937 restou omissa acerca do tema, o qual retornou explicitamente na Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946, [54] mantendo-se na Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. [55] Porém, na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, [56] foi excluída a premissa acerca do foro privilegiado, estando expressamente vedado apenas o tribunal de exceção.
Apesar de haver entendimentos no sentido de que a proteção advinda do princípio do juiz natural abrange também a vedação a foros privilegiados, [57] o fato de a atual Constituição não ter consagrado explicitamente tal proibição merece atenção.
Talvez tal modificação tenha sido motivada face à constatação de que não poderia a Carta Magna vedar algo que ela própria prevê desde a Constituição Imperial, isto é, hipóteses de foros privilegiados. Por outro lado, também, deve-se levantar a hipótese de que talvez não fosse necessário vedar o foro privilegiado face à previsão expressa do princípio da igualdade como garantia fundamental, [58] bem como à definição de constituir-se a República Federativa do Brasil em Estado Democrático de Direito. [59]
2.2 Breves apontamentos acerca do direito estrangeiro
No Direito Comparado, a previsão de foro privilegiado é encontrada em diversas ordens constitucionais, no entanto, como bem referiu o Ministro Sepúlveda Pertence, no Inquérito n° 687 (Questão de Ordem), “poucos ordenamentos são tão pródigos quanto a vigente Constituição brasileira na outorga da prerrogativa de foro”, [60] destacando que o crescimento significativo das ações penais de competência originária do Supremo Tribunal Federal foi causado pela extensão do foro privilegiado aos membros do Congresso Nacional. Regra semelhante a essa, conforme o Ministro, só é encontrada na Constituição da Espanha (art. 71,4) e na Constituição da Venezuela (art. 215,1° e 2°). Pois bem, vejamos como algumas das principais constituições no direito estrangeiro tratam o tema.
Na Constituição de Portugal, encontra-se uma adequada aplicação do foro privilegiado para o Presidente da República, restringindo-se a competência especial aos crimes praticados no exercício de suas funções. [61] Além disso, com relação aos crimes estranhos ao exercício das suas funções, o Presidente da República irá responder por tais delitos perante os tribunais comuns após findo o mandato. [62] Dessa forma, coaduna-se, na prática, o instituto com seu genuíno fundamento, isto é, com o interesse público, vinculado à ocupação do cargo e ao exercício da função, pois o foro privilegiado do chefe do Poder Executivo desaparece com relação aos crimes comuns, vigorando apenas quanto aos delitos funcionais, evidenciando-se a intenção de proteger o cargo, e não a função.
A Constituição da Espanha, por sua vez, estabelece o foro privilegiado – prerrogativa de aforamiento – no tocante à responsabilidade criminal lato sensu para o Presidente da República, bem como para os membros do governo. [63] Além disso, como referido acima, estende a aplicação de tal instituto aos parlamentares. [64] No entanto, o Tribunal Constitucional, n Sentencia 22/1997, já se manifestou no sentido de que a garantia da prerrogativa de aforamiento se estende após deixar o cargo apenas no tocante aos fatos que estiverem em relação ou conexão com o exercício da função inerente ao mandato representativo. [65]
No tocante à Constituição da Itália, verifica-se que o foro privilegiado lá existente restringe-se ao cargo de Presidente da República, quando esse praticar ato de alta traição ou atentado à Constituição, [66] cabendo à Corte Constitucional o julgamento de tal caso. [67] Já o Presidente do Conselho de Ministros e os Ministros estão sujeitos, pelos crimes cometidos no exercício de suas funções, ainda que cessado o cargo, à jurisdição ordinária, mediante prévia autorização do Senado da República ou da Câmara dos Deputados. [68]
Na Constituição da França, também há previsão de foro privilegiado para o Presidente da República, cuja competência especial ratione personae cabe à Suprema Corte de Justiça, destacando-se que a sua responsabilização dá-se apenas no caso de alta traição condicionando-se a acusação à deliberação da maioria absoluta dos membros das duas assembléias. [69] Aos membros do governo é concedido o foro privilegiado perante a Corte de Justiça da República, sendo, por sua vez, penalmente responsáveis pelos atos realizados no exercício de suas funções, diferentemente, portanto, do Presidente da República. [70]
A conjuntura, na Europa Ocidental, acerca da existência de foros privilegiados, como foi ressaltado acima, guarda íntima relação com sua evolução histórica. A influência das culturas romana e medieval, impregnadas do ideário do privilégio, é perceptível, ainda que sutilmente, nas principais constituições européias. Tal fenômeno torna-se mais nítido ao se contrapor a análise da ordem constitucional norte-americana, em que não se detecta a ocorrência do instituto do foro privilegiado. [71]
Na Constituição dos Estados Unidos, há previsão de competência originária da Suprema Corte para os casos envolvendo embaixadores e membros das representações estrangeiras. [72] No entanto, como bem referido pelo Ministro Carlos Mário Velloso, no Inquérito n° 687 (Questão de Ordem), tendo em vista o caráter especial dos exercentes de tais funções, isso não implica o reconhecimento de foro privilegiado pela ordem jurídica norte-americana. [73] Ademais, de acordo com Willoughby, tem-se que não é permitido ao Congresso conceder competência originária à Suprema Corte em outros casos os quais não estejam especificamente enumerados. [74] Nesse sentido, merece destaque o posicionamento adotado pela Suprema Corte no caso Clinton v. Jones, em que não aceitou o argumento de imunidade presidencial, levantado pelo então Presidente dos Estados Unidos, asseverando que tal imunidade não é garantida nos litígios civis, ressalvada circunstâncias incomuns. [75] No entanto, conforme o julgamento Nixon v. Fitzgerald, no caso de o ato estar vinculado ao exercício funcional, a imunidade presidencial foi acolhida. [76]
A par disso, merece destaque a existência de foro especial para os casos de impeachment e condenação de juízes federais norte-americanos. Efetivamente, a retirada – removal – de juízes, em virtude de “traição, suborno, ou outros crimes e contravenções”, [77] somente pode ser concretizada por meio de condenação aprovada pela votação de dois terços dos membros do Senado. [78]
2.3 A posição atual do problema no direito brasileiro
Na seara jurisprudencial, é imprescindível, ao se tratar de foro privilegiado, fazer referência à vigência da orientação jurisprudencial consagrada na Súmula n° 394, do Supremo Tribunal Federal, que assim estabelecia:
“Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício.”
Tal enunciado fora motivado pela interpretação dos artigos 59, I, 62, 88, 92, 100, 101, I, a, b e c, 104, II, 108, 119, VII, 124, IX e XII, da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946, bem como das Leis n° 1.079, de 10.04.1950, e n° 3.528, de 03.01.1959. [79] Da análise dos dispositivos constitucionais referidos e do conteúdo de ambas as leis, verifica-se que não havia previsão de foro privilegiado para os Deputados Federais e Senadores, por crimes comuns, praticados durante o exercício do mandato. Em virtude disso, orientou-se a jurisprudência no sentido dos acórdãos que julgaram os recursos de Habeas Corpus n° 32.097 (julgado em 20.08.1952), n° 33.440 (julgado em 26.01.1955), n° 35.301 (julgado em 21.10.1957), n° 38.409 (julgado em 31.05.1961), n° 40.382 (julgado em 11.12.1963), n° 40.398 (julgado em 18.03.1964), n° 40.400 (julgado em 18.03.1964), o Recurso Extraordinário n° 39.682 (julgado em 15.07.1958), a Reclamação n° 473 (julgada em 31.01.1962) e o Recurso Criminal n° 491 (julgado em 15.12.1923). [80] Desse entendimento, resultou o enunciado constante da referida súmula.
A aplicação da orientação jurisprudencial contida na Súmula n° 394, porém, foi afastada, em 12 de agosto de 1992, no Inquérito n° 427 (Questão de Ordem), [81] em que se reconheceu a incompetência do Supremo Tribunal Federal para julgar ex-Ministro de Estado, então Governador de Estado-Membro, cujo foro especial a Constituição Federal determinava ser perante o Superior Tribunal de Justiça.
No entanto, o divisor de águas deu-se efetivamente em 25 de agosto de 1999, quando o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Inquérito n° 687 (Questão de Ordem), [82] decidiu, por unanimidade, cancelar a Súmula n° 394, sendo tal posicionamento adotado nos julgamentos de casos similares[83] que se seguiram à decisão histórica que modificou o entendimento da Corte Suprema.
Não obstante a referida decisão da Corte Constitucional, o legislador ordinário ampliou consideravelmente a competência por prerrogativa de função, por meio da Lei n° 10.628, de 24.12.2002, que alterou o artigo 84 do Decreto-Lei n° 3.689, de 3.10.1941 – Código de Processo Penal. Com a promulgação de tal lei, foi estendido o foro privilegiado do
Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal – relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade, no tocante a atos administrativos do agente – a inquéritos ou ações judiciais que sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública. [84] Além disso, a alteração legislativa alcançou[85] as ações previstas na Lei n° 8.429, de 02.06.1992, aplicando a estas também a nova regra de competência especial por prerrogativa de função, [86] trazendo uma inovação, consubstanciada na instituição de foro privilegiado para as ações de improbidade.
Esta é a conjuntura atual do foro privilegiado em nosso ordenamento jurídico. Ressalta-se que a referida alteração legislativa provocou imenso debate na doutrina e jurisprudência nacionais, tendo o Supremo Tribunal Federal, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade n° 2797, proposta pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP, e n° 2860, proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, declarado a inconstitucionalidade de tal lei, em 15.09.2005, D.J.U. 26/09/2005. [87] No entanto, merece atenção o Projeto de Emenda Constitucional n° 358/2005, que tramita na Câmara dos Deputados, em cujo texto se pretende restabelecer o foro privilegiado em termos semelhantes aos que a Lei n° 10.628, de 24.12.2002, havia previsto. [88]
3. O conteúdo jurídico do foro privilegiado
3.1 Conceito
Dentre as funções do Estado, [89] há de se destacar o exercício da jurisdição, pela qual o Poder Judiciário cumpre com o dever de administrar justiça aos que a solicitam. [90] A estruturação e concretização dessa função jurisdicional dão-se precisamente por meio das regras do instituto da competência. [91] Assim, de acordo com Arruda Alvim, competência constitui-se nas atribuições de um determinado órgão do Poder Judiciário afetas a esse em virtude de sua atividade jurisdicional específica. [92] Daí utilizar-se a expressão “medida de jurisdição” para definir competência. [93]
Para atribuir a quantidade de jurisdição específica de cada órgão do Poder Judiciário, o Código de Processo Civil adotou a divisão tripartida de Chiovenda, que estabelece a competência como funcional, material ou territorial. No entanto, como bem salientou Vicente Greco Filho, tal critério não é suficiente, pois há regras de competência na própria Constituição Federal. Logo, conforme o referido jurista, no processo lógico de eliminação
gradual de hipóteses para definição do juiz competente, a primeira análise deve-se ater às possibilidades de justiças especiais previstas na Carta Magna, cujas competências prevalecem sobre a competência geral da justiça comum. Para Vicente Greco Filho, as justiças especiais seriam as justiças especializadas, como a militar, eleitoral e do trabalho. [94] No entanto, cumpre ressaltar que a nossa Constituição prevê duas espécies de foro especial, as quais foram muito bem distinguidas por Romão Côrtes Lacerda, quais sejam: a competência ratione materiae, em que, como o próprio nome indica, a matéria é o dado determinante da competência, consubstanciada nas justiças especializadas, como a militar, a federal, a eleitoral; e a competência ratione personae, em que a função a que está vinculada a pessoa confere-lhe um foro especial. [95] Essa competência especial, com sede constitucional, cuja definição se dá a partir de um atributo ou uma característica pessoal do litigante, constitui o foro privilegiado.
A par disso, é importante fazer algumas considerações acerca da relação existente entre o instituto do foro privilegiado e o princípio do juiz natural. Essa garantia constitucional, [96] decorrência da cláusula do devido processo legal, [97] traz em si a ideia de que juiz natural é aquele previamente instituído por lei, [98] ou seja, a ideia de que o ordenamento não tolera a ocorrência de tribunais de exceção.
Nesse diapasão, há de se atentar à distinção existente entre tribunal de exceção e foro privilegiado. Nesse sentido, a lição de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda é esclarecedora. Conforme o jurista, foro privilegiado seria aquele cabível “a alguém, como direito seu (elemento subjetivo, pessoal, assaz expressivo)” [99], enquanto que tribunal de exceção se estabeleceria para “determinado caso ou casos”. [100]
Além disso, conforme José Frederico Marques, a ideia de juiz natural, juiz legal ou juiz competente contrapõe-se, não ao juízo especial, mas a juízos de exceção ou instituídos por contingências particulares. [101] Tal foi o posicionamento adotado no Pedido de Extradição n° 347, entendendo-se ainda que o princípio do juiz natural não rejeita a existência de juízos especiais, pois estes últimos também são órgãos do Estado, investidos de jurisdição. [102]
Apesar de distintos, há um ponto em que o instituto do foro privilegiado e o princípio do juiz natural se tocam, qual seja, na necessidade, imposta por esta garantia, de que aquele instituto seja previsto constitucionalmente. Assim, merecem destaque as palavras de José Frederico Marques:
“Em nosso sistema normativo o que existe, de maneira concludente e clara, é o princípio de que ninguém pode ser subtraído de seu ‘juiz constitucional’. Somente se considera juiz natural ou autoridade competente, no Direito brasileiro, o órgão judiciário, cujo poder de julgar derive de fontes constitucionais. Vigora, aqui, a lição de CLARIÁ OLMEDO de que a lei ordinária, por si só, não legitima a jurisdição conferida a juízes e tribunais. Autoridade competente é aquela cujo poder de julgar a Constituição prevê e cujas atribuições jurisdicionais ela própria delineou”. [103]
Esse também é o entendimento de Nelson Nery Júnior, que visualiza a proteção constitucional advinda da garantia do juiz natural como uma forma de coibir “a criação de órgãos judicantes para o julgamento de questões (civis ou criminais) ex post facto ou ad personam, salvo as exceções estatuídas na própria Constituição”. [104] Assim, a proibição de tribunais de exceção está vinculada ao instituto do foro privilegiado no sentido de que somente mediante previsão constitucional hipóteses de foro privilegiado podem ingressar no ordenamento jurídico.
O entendimento de que as hipóteses de foro privilegiado devem estar previamente estabelecidas na Constituição da República é encontrado em precedentes do Supremo Tribunal Federal. Assim, a Corte Constitucional adota o posicionamento de que a competência originária dos tribunais superiores é de direito estrito, não admitindo a possibilidade de ser estendida a situações que ultrapassem os limites fixados, em numerus clausus, pelo rol exaustivo inscrito no art. 102, I, da Constituição da República. [105] Nesse sentido, merece destaque a decisão do Supremo Tribunal Federal na Petição n° 3434, cuja ementa foi assim escrita:
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AJUIZAMENTO CONTRA O PRESIDENTE DA REPÚBLICA. HIPÓTESE NÃO PREVISTA NO ROL TAXATIVO INSCRITO NO ART. 102, I, DA CONSTITUIÇÃO. INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PRECEDENTES.
– O Supremo Tribunal Federal não dispõe de competência para processar e julgar, originariamente, ação civil pública ajuizada, com fundamento na Lei nº 7.347/85, contra o Presidente da República.
– É que a definição da competência institucional da Suprema Corte está sujeita a um regime de direito estrito, que exclui, do âmbito de suas atribuições jurisdicionais originárias, por efeito da taxatividade do rol inscrito no art. 102, inciso I, da Constituição, o processo e o julgamento de causas – como a ação civil pública fundada na Lei nº 7.347/85 – que não se acham previstas no próprio texto constitucional. Precedentes. “[106]
Na doutrina, também se verifica o posicionamento no sentido de que a competência especial ratione personae, fixada na Constituição, é exaustiva e taxativa. De acordo com José Afonso da Silva, salvo os casos previstos expressamente por norma constitucional, qualquer outra previsão de foro privilegiado será inconstitucional. [107] E ainda, conforme Athos Gusmão Carneiro, “dispositivo algum de lei, ordinária ou complementar (salvante, evidentemente, emenda à própria Constituição), poderá reduzir ou ampliar tal competência“. [108]
Diante disso, torna-se evidente a inconstitucionalidade da Lei n° 10.628, de 24.12.2002, ao ampliar o foro privilegiado de agentes públicos sem amparo constitucional. [109] No tocante, principalmente, ao § 2° acrescentado ao art. 84 do Código de Processo Penal, o qual concedeu competência especial ratione personae às ações por improbidade administrativas previstas na Lei n° 8.429, de 02.06.1992, a incompatibilidade com a ordem constitucional é inequívoca. Como bem explicita a ementa do julgamento da Petição n° 1.738 (Agravo Regimental), [110] não se pode ampliar a competência originária ratione personae dos tribunais superiores, em virtude justamente da taxatividade do rol previsto na Constituição, bem como do caráter notadamente penal do instituto do foro privilegiado. Ora, a hipótese de foro privilegiado para as ações de improbidade não foi estabelecida expressamente no texto da Carta Magna. Além disso, muito embora haja posicionamentos que concedam aos atos de improbidade administrativa uma natureza penal – e que, em razão disso, devam as ações correspondentes obedecer às mesmas regras de competência – [111] tem-se que, diante da clareza do texto constitucional, não pode ser outra a interpretação senão a de que a conduta caracterizadora de improbidade administrativa, bem como as sanções correspondentes são independentes daquelas vinculadas à esfera penal. É elucidativo, nesse aspecto, o artigo 37, §4° da Constituição da República, in verbis:
“A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também ao seguinte: (…)
Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.”
No momento em que a Carta Magna define as sanções aos atos de improbidade administrativa “sem prejuízo da ação penal cabível”, resta claro o intuito do constituinte no sentido de definir a autonomia dessas sanções em relação às penas oriundas da esfera penal, sendo, conforme Fábio Konder Comparato, indiscutível que a ação prevista na Lei n° 8.429, de 02.06.1992, não tem natureza penal. [112] De acordo com Marcelo Figueiredo, o intuito da lei reside na tentativa de restituir os danos causados pelo agente público de forma bastante gravosa, no entanto, em virtude de não afetar a liberdade desse agente, não se pode configurar como uma sanção criminal. Ademais, o diploma legal não apresenta tipos penais na forma tradicional – descrição de delitos, seguida de uma determinada cominação – com a ressalva da suspensão dos direitos políticos, única sanção que não se enquadra na esfera cível. [113] Dessa forma, com respaldo na afirmação definitiva de Alexandre de Moraes, não há foro privilegiado para as ações por ato de improbidade administrativa. [114]
Não obstante tal entendimento – isto é, que as ações de improbidade administrativa são efetivamente independentes e distintas do sistema penal e, portanto, não concedam aos seus responsáveis foro privilegiado – tem-se que resta indiscutível, face ao princípio do juiz natural e à própria essência do instituto, a necessidade de previsão constitucional para o estabelecimento de nova hipótese de competência ratione personae. Logo, trata-se de disposição legal claramente inconstitucional.
Ante tais considerações, pode-se afirmar que foro privilegiado é o juízo especial, destinado especialmente aos procedimentos de caráter penal, cuja competência é determinada, necessariamente em sede constitucional, a partir de um dado característico da pessoa. Há vários exemplos de foro privilegiado: nacionalidade, foros de nobreza ou classe, a situação como religioso ou leigo, o cargo ou a função pública ocupada pelo litigante ou a circunstância de ser o litigante pessoa jurídica de direito público ou vinculada ao poder público. [115] O objeto, entretanto, do presente trabalho será basicamente o foro privilegiado em razão do cargo ou função pública ocupada.
3.2 Natureza jurídica
No estudo do foro privilegiado, é imprescindível o enfrentamento da questão acerca
da natureza jurídica do instituto. A definição da referida competência especial como privilégio ou como prerrogativa ainda é controversa na doutrina e na jurisprudência. Ambas as concepções são bastante próximas, [116] tanto que José Antônio Pimenta Bueno chega a conceituar “privilégio em geral” como espécie de prerrogativa. [117] Ademais, no concernente ao significado de tais palavras, privilégio e prerrogativa são considerados sinônimos. [118]
Para José Frederico Marques, entretanto, a competência ratione personae estaria distante da noção de privilégio. Conforme o referido jurista, tal competência não se estabelece em favor dos indivíduos, mas em razão de cargos ou funções que esses exercem, implicando, portanto, não um privilégio, mas uma garantia [119] assegurada à independência e à imparcialidade da justiça, destinada a proteger o interesse geral. [120]
Esta proteção do interesse público, concretizada na competência ratione personae, passa pela ideia de que estariam os agentes políticos mais seguros com o fato de que serão julgados por um órgão colegiado (e não por um juiz singular) de magistrados mais experientes. [121] Tal intuito, qual seja, o de atribuir segurança àqueles submetidos a julgamento coaduna-se com o princípio da razoabilidade, sendo este inspirador do aperfeiçoamento das estruturas de um regime democrático. [122]
Em virtude justamente de representar uma garantia, tem-se entendido que a competência ratione personae não viola o princípio da igualdade. Conforme Fernando da Costa Tourinho Filho, o instituto protege, simultaneamente, o responsável e a Justiça, evitando a subversão hierárquica, [123] resguardando o processo e seu julgamento de pressões que os eventuais responsáveis pudessem exercer sobre os órgãos jurisdicionais inferiores. [124]
Ademais, defende também Júlio Fabbrini Mirabete que, em não podendo a lei estabelecer preferências, não há privilégio, mas a necessidade de levar em consideração a dignidade dos cargos e funções públicas. Assim, em atenção a tais cargos e funções, as pessoas que os exercem devem ser processadas por órgãos superiores, fundamentando-se, portanto, o instituto do foro privilegiado na utilidade pública, no princípio da ordem e da subordinação e na maior independência dos tribunais superiores. [125]
Não obstante tais posicionamentos, de indiscutível respeitabilidade, tem-se que a competência especial ratione personae configura-se em verdade como foro privilegiado, no sentido literal da expressão. Nesse sentido é fundamental a lição de José Antônio Pimenta Bueno, que classifica os privilégios em pessoais e reais, sendo os primeiros concedidos à pessoa “em razão de si mesma, por amor dela, ou seja, por graça, ou a título de remuneração de serviços”, e os últimos, “não às pessoas, embora redundem também em proveito delas, e sim às coisas que estão relacionadas com tais pessoas, como os cargos, empregos, dignidade, invenções, descobertas, etc.” Assim, culmina o referido autor na assertiva de que apenas os privilégios pessoais são efetivamente odiosos (para utilizar o mesmo adjetivo adotado pelo autor), condicionando a admissibilidade dos privilégios reais à existência de interesse público que os justifique, bem como à não-ocorrência de abuso. [126] Como exemplos de privilégios reais figuram os foros privilegiados estabelecidos no texto constitucional, fundamentando-se tais exceções ao princípio da igualdade justamente na ligação a cargo e a serviço público ou, nos dizeres do autor, a “alto interesse social”. [127]
Também no entendimento de José Afonso da Silva, o que se prevê constitucionalmente para o julgamento do Presidente e Vice-Presidente da República, de Ministros de Estado, membros do Congresso Nacional, de seus próprios Ministros e do Procurador-Geral da República (STF, art. 102, I, b), dos Governadores de Estado e do Distrito Federal, dos Desembargadores de Tribunal de Justiça, dos membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, do Ministério Público da União e dos membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios (STJ, art. 105, I, a) e dos Prefeitos (TJ, art. 29, X) é efetivamente foro privilegiado. [128]
Dessa forma, o argumento de que tal instituto seria uma prerrogativa – e não um privilégio – visto que o foro privilegiado se encontraria vedado constitucionalmente, [129] não merece prosperar. Trata-se deveras a competência especial ratione personae de um privilégio, justificada sua admissão no ordenamento diante da justificativa de interesse público, vinculado à ocupação de cargo público ou ao exercício de função pública, o que afastaria violação à Isonomia, garantia fundamental dos cidadãos no Estado Democrático de Direito. Tal conclusão confirma-se no ensinamento de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, que interpretava a cláusula de proibição do foro privilegiado[130] da seguinte forma: “Não haverá outros foros privilegiados que os instituídos pela própria Constituição.” [131]
Impõe-se ressaltar, portanto, que embora esteja a competência especial ratione personae prevista constitucionalmente para assegurar o livre exercício do cargo ou função pública, bem como para garantir a imparcialidade da aplicação da justiça, não se pode descaracterizar tal instituto como uma manifestação de privilégio. [132] Nesse sentido, faz-se referência ao voto do Ministro Carlos Velloso no histórico julgamento do Inquérito n° 687 (Questão de Ordem) em que afirma constituir-se foro privilegiado a denominação correta do instituto. [133]
4. Os limites do foro privilegiado
4.1 O foro privilegiado e o princípio da igualdade
Uma vez definida a natureza jurídica da competência especial ratione personae, [134] torna-se indispensável o exame do instituto em face do princípio da igualdade, pois, conforme José Antônio Pimenta Bueno, o privilégio constitui-se em uma exceção ou proteção especial de maior ou menor importância, que coloca determinados cidadãos em melhores condições que os demais, fazendo desaparecer a igualdade perante a lei. Assim, preceitua ainda o referido jurista, qualquer distinção sem fundamento específico em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça, podendo inclusive vir a ser um tirania. [135]
O princípio da igualdade, previsto no art. 5°, caput e inciso I, da Constituição da República Federativa de 1988 é, assim como o princípio do juiz natural, uma decorrência do Devido Processo Legal, e assegura que todos são iguais perante a lei. Tal isonomia pressupõe tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades. [136] Entretanto, como bem afirma Celso Antônio Bandeira de Mello, a referida premissa é insuficiente para a solução da problemática do conteúdo jurídico do princípio da igualdade. [137]
O referido jurista estabelece três critérios para a identificação de violação legal ao princípio da isonomia, quais sejam: 1) o elemento estabelecido como fator de desigualação, investigando-se aquilo que é adotado como critério discriminatório; 2) a correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado, verificando-se a existência de justificativa racional, isto é,
de fundamento lógico para, tendo em vista o fator de desigualação adotado, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada; e 3) a consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados, analisando-se, in concreto, estar ou não em harmonia com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional a correlação ou fundamento racional abstratamente existente. [138]
Examinando o instituto do foro privilegiado, sob o prisma dessa tese acerca do princípio da igualdade, verifica-se que, com relação ao primeiro critério, o elemento estabelecido como fator de desigualação, conforme a lição de José Antônio Pimenta Bueno, já explicitada, [139] seria a ocupação de cargo e exercício de serviço público, ou ainda, alto interesse social. [140]
Atinente ao segundo critério, examina-se a correlação lógica entre fator de discrímen e a desequiparação procedida, que, de acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, seria o ponto nodular para o exame da correção de uma regra em face do princípio isonômico. Conforme o mencionado autor, “a lei não pode conceder tratamento específico, vantajoso ou desvantajoso, em atenção a traços e circunstâncias peculiarizadoras de uma categoria de indivíduos se não houver adequação racional entre o elemento diferencial e o regime dispensado aos que se inserem na categoria diferençada”. [141] Nesse aspecto, conforme amplamente demonstrado no capítulo referente à natureza jurídica do foro privilegiado, [142]
verifica-se que a maioria da doutrina aceita a instituição de competência especial ratione
personae como tratamento desigualador adequado em virtude da ocupação de cargo público, havendo, portanto, uma correlação lógica entre a razão de discriminação e o tratamento diferenciado aplicado. Nesse sentido, merece destaque o ensinamento de José Antônio Pimenta Bueno conforme o qual, em havendo vinculação a alguma coisa – “privilégio real” que nesse aspecto é alçado à condição de fator diferenciador – que fundamente a desigualação, em virtude do Interesse Público, não ocorre desrespeito ao princípio da isonomia. [143]
Também, conforme Júlio Fabbrini Mirabete, não se estaria violando o princípio da igualdade, pois o instituto concede tratamento especial, não à pessoa, mas ao cargo que ocupa ou à função que exerce, os quais são de especial relevância para o Estado. [144]
Por fim, quanto ao terceiro critério, não há dificuldade em vislumbrar a consonância dessa correlação lógica com os interesses inerentes ao sistema constitucional, uma vez que a própria Carta Magna traz em seu texto inúmeras hipóteses de foro privilegiado como se evidenciou na evolução histórica traçada no capítulo respectivo.
Por outro lado, o mesmo não se pode afirmar quanto ao disposto no § 1° do artigo 84 do CPP, acrescentado pela Lei n° 10.628, de 24.12.2002. [145] Tal dispositivo estendeu o foro privilegiado aos ex-ocupantes de cargos públicos, relativamente a atos administrativos do agente, ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública. A alteração – que devolve ao ordenamento jurídico posicionamento já superado pelo Supremo Tribunal Federal com o cancelamento da Súmula n° 394 – trazida pela lei ordinária viola o princípio da igualdade, em virtude de que não observa os critérios acima referidos. Prima facie, a concessão de foro privilegiado a ex-ocupantes de cargos públicos resta despida de qualquer elemento justificador da aplicação de tratamento diferenciado, em virtude de não mais existir vínculo com cargo ou função pública. Diante da inexistência de tal elemento, evidencia-se a inconstitucionalidade do referido dispositivo por ofensa ao princípio da igualdade, uma vez que, de acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, “só a conjunção dos três aspectos é que permite a análise correta do problema. Isto é: a hostilidade ao preceito isonômico pode residir em quaisquer deles. Não basta, pois, reconhecer-se que uma regra de direito é ajustada ao princípio da igualdade no que se refere ao primeiro aspecto. Cumpre que o seja, também, com relação ao segundo e ao terceiro. É claro que a ofensa a requisito do primeiro é suficiente para desqualificá-la.” [146]
A inexistência de fator de discrímen para a concessão de tratamento diferenciado, consubstanciado no foro privilegiado, a ex-ocupantes de cargos públicos foi um dos argumentos de maior importância, levantado pelo Ministro Relator Sydney Sanches, no julgamento do Inquérito n° 687 (Questão de Ordem):
“Mas também não se pode, por outro lado, deixar de admitir que a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo”. [147]
Prosseguiu ainda o Ministro Relator, no referido julgamento, em sua tese de que a competência especial ratione personae não pode ser aplicada àqueles que não mais ocupem cargos ou desempenhem funções públicas, invocando expressamente o princípio constitucional da igualdade:
“Ademais, as prerrogativas de foro, pelo privilégio que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou mandatos”. [148]
Também o Ministro Carlos Velloso no mesmo julgamento orientou-se em seu voto
pelo princípio isonômico:
“O foro por prerrogativa de função constitui, na verdade, um privilégio que não se coaduna com os princípios republicanos e democráticos. O princípio da igualdade é inerente à República e ao regime democrático. Não é à toa, que o princípio isonômico é acentuado, mais de uma vez, na Constituição: assim, por exemplo, art. 5°, caput, art. 5°, I, art. 150, II, art. 151, II, art. 7°, XXX, XXXI, XXXII, XXXIV, art. 3°, III, art. 43, art. 170, VII.” [149]
Ademais, há precedentes mais antigos no Supremo Tribunal Federal, rechaçando a existência de juízo especial por competência ratione personae, após findo o exercício da função. Nesse sentido foram as ementas lavradas:
“Foro privilegiado em razão da função. A prerrogativa é concedida em obséquio à função, a que é inerente, e não ao cidadão que a exerce. Deixado definitivamente o cargo, por qualquer motivo, o seu ex-titular responderá no foro comum. [150]
1) O Supremo Tribunal Federal não é competente para processar e julgar, originariamente, deputado ou senador acusado de crime.
2) Acusação de crime, que teria sido cometido após a cessação do exercício funcional, não acarreta a competência especial por prerrogativa de função. [151]
1) O poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas dependências, compreende, consoante o regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização de inquérito.
2) Acusação de crime, que teria sido cometido após a cessação do exercício funcional, não acarreta a competência especial por prerrogativa de função.
3) Habeas corpus negado para não se antecipar o Supremo Tribunal, no exame dos fatos, à apreciação do juízo da ação penal.
4) Votos vencidos: concessão da ordem, por falta de justa causa.” [152]
A necessidade de vinculação do foro privilegiado ao exercício do cargo foi arguida pelo Supremo Tribunal Federal inclusive para afastar a competência especial para o caso de juízes aposentados. [153] Na decisão que negou seguimento ao RE n° 291.485, o Ministro Relator Néri da Silveira enfatizou que a garantia consubstanciada no foro privilegiado visa a garantir, não a pessoa do Juiz, mas os jurisdicionados, pois assegura àquele o livre desempenho das suas funções. [154]
No entanto, tal posicionamento não é unânime. Para Fernando da Costa Tourinho Filho, a competência especial ratione personae deve continuar mesmo que cessada a função. [155]
Entende-se, nesse sentido, que o foro privilegiado prevalece após a cessação do mandato ou do exercício da função pública em razão do critério objetivo para definir o órgão competente, qual seja, o fato, que seria o mesmo, antes ou depois da ocupação do cargo público. [156] Porém, esse argumento não procede, pois, conforme Romão Côrtes de Lacerda, o foro especial subsiste somente quando a competência especial for ratione materiae. [157] Efetivamente, se a competência especial ratione personae, como o próprio nome evidencia, é estabelecida em virtude da pessoa, como então se determinar a competência, tomando-se como critério o fato? Em se tratando de foro privilegiado, como se explicitou no capítulo reservado ao conceito do instituto, o dado importante está relacionado à pessoa, mais especificamente ao cargo que essa ocupa. Assim, não mais havendo vinculação a exercício de função pública, deixa de existir causa para a especialidade do foro.
Ressalte-se que não só na doutrina encontramos posicionamentos favoráveis à extensão do foro privilegiado para ex-ocupantes de cargos público. Constatam-se também precedentes jurisprudenciais que determinam a manutenção da competência especial ratione personae. Nesse sentido, figura a Reclamação n° 473, em que se determinou a competência do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar ex-Ministro de Estado, acusado de crime contra a administração pública, que teria cometido no exercício do cargo. [158] Nessa decisão, o Ministro Relator Victor Nunes, assim se manifestou:
“Essa correção, sinceridade e independência moral com que a lei quer que sejam exercidos os cargos públicos ficaria comprometida, se o titular pudesse recear que, cessada a função, seria julgado, não pelo Tribunal que a lei considerou o mais isento, a ponto de o investir de jurisdição especial para julgá-lo no exercício do cargo, e sim, por outros que, presumidamente, poderiam não ter o mesmo grau de isenção.” [159]
O argumento acima delineado, com a devida vênia, não merece prosperar. A real motivação do foro privilegiado está em garantir o bom e livre exercício da função, evitando subversões hierárquicas e influências que pudessem prejudicar, tanto o desempenho da administração pública, quanto a aplicação da justiça. Deixado o cargo, não mais se vislumbra tal conjuntura, inexistindo qualquer obstáculo à apreciação do caso pelo juízo de 1° grau, constituído de magistrados muito bem selecionados por concurso público de provas e títulos, os quais não podem ser considerados menos isentos que os integrantes de tribunais superiores, eventualmente nomeados pelos próprios administradores a quem se destina o foro privilegiado. [160] Ademais, o acusado é protegido pela garantia constitucional da ampla defesa, cuja amplitude será inclusive maior, tendo em vista os recursos de que disporá desde então. [161]
Em suma, deixado o cargo, torna a ser o ex-ocupante um cidadão comum como os demais, o que implica não mais dispor do foro privilegiado. O entendimento contrário culmina na ideia de que, aquele que uma vez tenha exercido função pública da qual advenha a competência especial ratione personae, incorpora tal privilégio, violando explicitamente o princípio isonômico, que visa a tratar os cidadãos igualmente, e o real significado do instituto do foro privilegiado, que se resume no objetivo de proteger o cargo ou função pública. Nesse sentido, merece destaque a posição de Hugo Nigro Mazzilli:
“Com efeito, a Lei n° 10.628/02 é apenas mais uma atitude própria da cultura de privilégios que infelizmente tem sido frequente em nosso país, pois os administradores e parlamentares não se conformam em ser processados, mesmo na área cível e ainda que depois de terem deixado os cargos, perante os mesmos juízes que julgam os demais brasileiros.” [162]
Dessa forma, a inconstitucionalidade da extensão de foro privilegiado aos ex-ocupantes de cargos públicos por ofensa ao princípio da igualdade é evidente. Nesse diapasão, cabe ressaltar a importância de tal garantia constitucional, a qual já com Miguel Seabra Fagundes, representava “um papel relevante na preservação dos direitos individuais e do interesse público contra atos arbitrários do órgão legiferante.” [163] No entanto, a significação desse, como dos demais princípios jurídicos, recebe hoje um alcance bem mais amplo. Na lição de Fábio Konder Comparato, verifica-se que, em primeiro lugar, não se trata o princípio jurídico de uma fonte secundária ou suplementar, mas de uma fonte primária, à qual se deve recorrer prioritariamente. Em segundo lugar, os princípios jurídicos situam-se no ápice do ordenamento jurídico, sobrepujando as demais normas:
“Portanto, assim como a norma contrária a um princípio não tem validade jurídica, da mesma forma a ausência de uma norma específica sobre um caso determinado não pode impedir que o princípio correspondente seja aplicado.” [164]
Assim, tendo em vista que, conforme José Antônio Pimenta Bueno, uma das consequências necessárias do justo e útil princípio da igualdade perante a lei é a abolição dos privilégios, ressalvada a única exceção daqueles essencial e inteiramente exigidos por utilidade ou serviços públicos, [165] a ausência de vedação constitucional ao foro privilegiado, referida no capítulo concernente à evolução histórica, não implica que, a partir da Carta Magna de 1988, tenha se estabelecido uma liberdade total para a criação de novas hipóteses de competência ratione personae. A previsão constitucional do princípio da igualdade por si só supre tal lacuna, abarcando em seu significado a proibição do foro privilegiado. [166] Logo, vale ainda o ensinamento de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, segundo o qual não existem outros foros privilegiados salvo os previstos constitucionalmente. [167]
Assim, cabe aqui reiterar o que acima [168] foi explicitado no tocante à instituição de foro privilegiado para as ações de improbidade, implementada também pela Lei n° 10.628, de 24.12.2002. A competência especial ratione personae tem sede constitucional, devendo ser ampliada somente por meio de Emendas à Constituição. [169] Portanto, não há qualquer exagero na afirmação de Paulo Rangel ao classificar como absurda a alteração da competência originária, estabelecida na Constituição, por meio de lei ordinária. [170]
Nesse sentido, merece destaque ainda a posição de Fábio Konder Comparato acerca da relação existente entre a ampliação de foros privilegiados e o princípio da igualdade:
“Os privilégios de foro, como se procurou mostrar no corpo deste parecer, representam uma exceção ao princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei. Em consequência, tais prerrogativas devem ser entendidas à justa, sem a mais mínima ampliação do sentido literal da norma. Se o constituinte não se achar autorizado a conceder a alguém mais do que a consideração da utilidade pública lhe pareceu justificar, na hipótese, seria intolerável usurpação do intérprete pretender ampliar esse benefício excepcional”. [171]
Em virtude, portanto, de se qualificar o foro privilegiado como uma concessão feita pelo ordenamento jurídico em face do princípio constitucional da igualdade, há que se atentar à necessidade de se estabelecer limites para a aplicação do instituto. Para tanto, é imprescindível a análise do conceito de interesse público, em cujo significado parece-nos estar inserida a limitação do foro privilegiado.
4.2 Delimitação do foro privilegiado
No entendimento de Paulo Fernando Silveira, acerca da garantia de julgamento pelo juiz natural, a instituição de foro privilegiado, qualquer que seja e ainda que previsto constitucionalmente, revela-se inconstitucional, seja por ferir o princípio da igualdade, seja por violar a cláusula do devido processo legal. [172] Embora efetivamente tal instituto confronte-se com a garantia constitucional de isonomia, como visto acima, a sua existência, porém, é necessária dentro de certos limites.
Como bem referiu André Medeiros do Paço, a complexidade dos delitos cometidos por pessoas que ocupam cargos de maior importância exige a permanência do foro privilegiado. De acordo com o referido autor, seria “ingênuo acreditar que o Promotor, o Juiz, o Delegado de Polícia, sempre adstritos à comprovação da responsabilidade subjetiva, sem a experiência exigida no trato com esse tipo de criminalidade, pudessem, por exemplo, com rapidez e eficiência, desbaratar uma quadrilha que fornece notas fiscais falsas a meia dúzia de Prefeitos na mesma região, visando à prática de peculatos, ou descobrir em tempo hábil que aditamento contratual de milhões de reais obedece à fórmula de cálculo totalmente desprovida de fundamento.” [173] Assim, a instituição de competência especial ratione personae é fundamental para o combate à corrupção política existente em nosso país.
Nesse sentido, merece destaque a providência tomada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que institui a especialização [174] da Quarta Câmara Criminal para o processo e julgamento dos Chefes dos Executivos Municipais. [175] Tal inovação, como salientou André Medeiros do Paço, permite o maior grau de eficiência na prestação jurisdicional, face ao conhecimento das rotinas administrativas, à familiaridade com os expedientes utilizados na movimentação das verbas públicas ou na contratação de servidores e com as matérias atinentes à gestão municipal que oferecem condições propícias à prática de infrações penais, como licitações, dano ambiental, loteamentos. [176]
Por outro lado, entretanto, verifica-se a falta de condições dos tribunais superiores em dar andamento aos processos criminais dessa natureza, em virtude da necessária produção de provas nesses procedimentos, combinada com a concorrência com as demais atribuições primordiais daqueles órgãos. [177] Assim, vai se caracterizando um quadro bastante sombrio, qual seja: a falta de efetividade da justiça, principalmente em virtude do advento da prescrição de vários feitos criminais, e a consequente impunidade dos delinquentes implicam a perda de credibilidade das instituições frente à sociedade, gerando verdadeiro “complexo de inferioridade” com relação a outras sociedades em que tais crimes não são tolerados impunemente. [178]
Nesse diapasão, remete-se à análise do conceito de interesse público. Embora, de acordo com José Eduardo Faria, numa sociedade dividida em subsistemas sociais como a nossa, a ideia de interesse público seja um conceito esvaziado, ao se tratar de corrupção nas esferas municipal, estadual ou federal, por exemplo, não há dificuldade em determinar o interesse público na defesa de valores morais. [179] Diante disso, portanto, tem-se que, ao se visar à proteção do cargo, e não de seu ocupante, o sentido do conceito de interesse público vinculado ao instituto do foro privilegiado seria o de garantir o bom desempenho da função pública, enquanto prestação de serviço eficiente à coletividade. Assim, esse interesse público, justificador do foro privilegiado, deve ser interpretado como uma garantia de que, para a preservação da dignidade do cargo público e da moralidade do exercício da função pública,
todos os meios ágeis e efetivos serão disponibilizados para a punição dos responsáveis pela prática de ilícitos nessa esfera. Nesse sentido, portanto, deve ser interpretado o conceito de interesse público, ou seja, como uma delimitação do alcance do foro privilegiado até onde o bom exercício da função pública o exija.
Todavia, essa concepção de interesse público no concernente à aplicação do foro especial ratione personae não tem sido adotada. A Lei n° 10.628, de 24.12.2002, é uma demonstração do que se afirma, pois seu conteúdo, além de inconstitucional pelas razões acima explicitadas, ultrapassa os limites do que se poderia incluir no conceito de interesse público. [180]
Dessa forma, o foro privilegiado, para sua correta aplicação no caso concreto, deve ficar adstrito aos limites impostos pela ideia de interesse público, enquanto finalidade comum da coletividade, [181] e não de algumas categorias da sociedade. Essa finalidade comum está centrada na realização da função pública isenta de qualquer imoralidade, improbidade e corrupção. Assim deve ser aplicado o instituto do foro privilegiado, ou seja, como um instrumento de garantia do bom desempenho da atividade pública, o que, dessa forma, não implicaria qualquer violação ao princípio constitucional da igualdade.
5. Conclusão
O foro privilegiado define-se como competência especial ratione personae – juízo determinado em razão de características pessoais – estabelecida necessariamente em sede constitucional por força do princípio do juiz natural, especialmente para procedimentos de caráter penal. Impõe-se, portanto, a inconstitucionalidade das disposições advindas da Lei n° 10.628, de 24.12.2002, consistentes na a extensão do foro especial aos ex-ocupantes de cargos públicos, bem como às ações de improbidade administrativa, previstas na Lei n° 8.429, de 02.06.1992. Tal tese restou acolhida, em fase final de elaboração do presente trabalho, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja decisão é de louvável conteúdo.
No entanto, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Emenda Constitucional n° 358/2005, pelo qual se busca a restituição do foro privilegiado ora julgado inconstitucional pela Suprema Corte brasileira. Assim, evidencia-se a necessária atenção que se deve dedicar ao tema no contexto nacional, mormente em virtude dos abusos implementados pelo Poder Legislativo no sentido de utilizar indevidamente o instituto do foro privilegiado.
Ademais, analisando a evolução histórica do instituto, em suas origens pode-se confirmar a concepção de privilégio intrínseca ao foro especial em razão da pessoa, sendo decorrência disso a inequívoca desigualdade em relação aos demais cidadãos brasileiros. Assim, da relação com o Princípio da Isonomia, garantido pela Constituição Federal, resulta o caráter de excepcionalidade da competência ratione personae no ordenamento jurídico brasileiro. Tal exceção ao princípio da igualdade, portanto, só poderá ser admitida quando o foro privilegiado se pautar pela necessidade decorrente do interesse público no sentido de garantir o bom exercício da função.
Informações Sobre o Autor
Cinara Bueno Santos Pricladnitzky
Bacharel em Direito pela UFRGS. Analista processual do MPU. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela UCAM – Universidade Cândido Mendes em convênio com Praetorium – Instituto de Ensino, Pesquisa e Atividades de Extensão em Direito.