A Constituição Federal de 1988 consagrou em seu texto o princípio da isonomia, ao afirmar no caput de seu art. 5º que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…”. A intenção do legislador ao fazer isso foi referendar o Estado Democrático de Direito, o qual apresenta entre os seus alicerces a dignidade da pessoa humana – conceito que agrega em si a unanimidade dos direitos e garantias fundamentais do homem. Ser tratado com equidade e respeito, tanto pelos seus pares quanto pelo governo, tornou-se então uma obrigação para cada indivíduo neste país. Este sobreprincípio é tão importante que a nossa Carta Magna o desdobrou em vários de seus artigos e incisos, a exemplo de quando se refere às igualdades racial (art. 4º), entre os sexos (art. 5º, I), de credo religioso (art. 5º, VIII), perante discriminação de idade (art. 7º, XXX), trabalhista (art. 7º, XXXII), política (art. 14) e tributária (art. 150, II).
Todavia, entre o direito e a realidade ás vezes viaja um abismo, o qual nem sempre pode ser atravessado por essa ou aquela lei. Embora persista o mito de que no Brasil o preconceito é muito raro, o fato é que todos os dias milhares de pessoas sentem esse mal. Negros, mulheres, crianças, homossexuais, enfim, as minorias de um modo geral são postas de lado nos mais diversos tipos de relação social. Nessa situação se enquadra o portador do HIV, pois, além de se preocupar com esse vírus que pouco a pouco consome as defesas imunológicas do organismo, ele tem de lidar com a chaga talvez igualmente terrível do preconceito. É impossível contar as pessoas que, ao se descobrirem contaminadas, assistiram aos seus familiares, amigos e até companheiros se ausentarem de suas vidas. Muitos pensam ainda que é possível se transmitir a AIDS por meio de um aperto de mão, de um afago, de um beijo de cumprimento ou da simples convivência em um ambiente fechado. Essa ignorância faz com que o portador da doença fique desamparado e marginalizado exatamente no instante em que mais necessitava do apoio e do auxílio dos seus.
A legislação com o intuito de proteger a individualidade do contaminado ainda é muito parca. Há, por exemplo, a Portaria Interministerial 869, de 11/08/92, que proíbe a “exigência do teste de detecção do vírus da AIDS tanto nos exames pré-admissionais quanto nos exames periódicos de saúde”. Pena que ela diga respeito somente aos servidores públicos federais. Por sua vez, a Resolução 1.359 do Conselho Federal de Medicina, de 1992, torna obrigatório o sigilo profissional com relação aos pacientes, inclusive após a morte deles. A razão disso é que não revelar a condição era a única maneira de se escapar do preconceito e do isolamento. Com esse procedimento só se fez aumentar o tabu em torno dessa doença, quando o certo seria incentivar os portadores a se prepararem emocionalmente para lidar com situações embaraçosas. Quando o senador cearense Lúcio Alcântara propôs um projeto garantindo a estabilidade de emprego para os portadores do vírus HIV, um dos motivos para este não ter sido devidamente encaminhado foi o fato de que não se sabia se com isso haveria o combate ou a disseminação do preconceito, pois desse modo os soropositivos ficariam expostos à sociedade.
No entanto, a cada dia que se passa as pessoas tem menos medo de assumir a condição de aidético. Uma das razões disso é o avanço da ciência, que fez com que o tratamento da doença evoluísse consideravelmente. Vale dizer que em 1986 havia apenas um remédio cujo objetivo fosse impedir a multiplicação do vírus HIV, enquanto hoje já existem mais de dezesseis drogas com essa finalidade. Tal variedade permite ao médico combinar as medicações de acordo com as especificidades do paciente. Por exemplo, se o doente for diabético, será receitado para ele um remédio que lhe trate sem agravar essa doença. Além do mais, a medicação atual apresenta bem menos efeitos colaterais, como o vômito, a anemia, a gastrite, a diarréia e as náuseas. Isso permite ao portador levar uma rotina praticamente normal, com exercícios físicos, trabalho, laser e tudo o mais. A outra razão é que a AIDS não é mais encarada como doença de grupo de risco. Viciados em drogas injetáveis e homossexuais podem ser vítimas do vírus como qualquer um. Para se ter uma idéia disso é importante dizer que em 1995 apenas 25% dos contaminados era de heterossexuais, ao passo que em 2000 esse índice já atingia 50%. De acordo com as pesquisas, para ser infectado pelo HIV basta apenas ser imprecavido ou ignorante.
Desse modo, como consagrou a própria ONU, em assembléia realizada em 20/10/87, “O mundo deve declarar guerra contra a AIDS e não contra as pessoas com AIDS. A AIDS é uma luta contra o medo, o preconceito e o irracional proveniente da ignorância”. Na prática o significado disso é que se alguém passar por alguma situação vexatória pelo fato de ser protador do vírus HIV, seja na repartição de trabalho, na academia de ginástica, no colégio ou na casa de um amigo (o que acontece freqüentemente), essa pessoa terá todo o direito de mover uma ação indenizatória, com base no já citado art. 5º da CF, contra quem o discriminou. Esse tipo de demanda já vem sendo bastante utilizado pelo negros e pelos homossexuais na luta contra o preconceito, pois é exatamente a exclusão social e moral que impedem o verdadeiro exercício da cidadania e a efetiva manifestação do princípio da dignidade da pessoa humana. O importante é poder enxergar o soropositivado como uma pessoa normal, tão capaz de lutar por uma sociedade melhor e de amar os outros quanto qualquer pessoa. Do contrário, caberá à Justiça devolver a honra e a respeitabilidade aos contaminados, condenando assim os que praticam o preconceito. Afinal de contas, conforme o art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.
Informações Sobre o Autor
Talden Queiroz Farias
Advogado militante, especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco e em Gestão e Controle Ambiental pela Universidade Estadual de Pernambuco e mestrando em Direito Econômico pela Universidade Federal da Paraíba