Resumo: O presente trabalho tem por objetivo apresentar um breve panorama sobre a disciplina do legado no ordenamento jurídico brasileiro. Para isso, atentar-se-á às questões gerais do instituto, de acordo com a história e a legislação. A pesquisa tem caráter bibliográfico, sendo realizada através da análise da doutrina pátria e de decisões judiciais.
Palavras-chave: legado. sucessão. Código Civil.
Abstract: The aim of this study is to present an short overview about the bequest's discipline in the brazilian legal order. For this, it will look at general issues of institute, as well as the history and legislation. The research is in literature based, being held through the analysis of brazilian doctrine and judicial decisions.
Sumário: Introdução. 1. Breve histórico. 2. Conceito e Características. 3. Objeto e sujeitos. 4. Modos de instituição. 5. Classificação quanto ao objeto. 6. Efeitos. 7. Caducidade. Referências.
Legatum est donatio testamento relicta[1] (Digesto, Livro 30, Título II, fr. 36)
INTRODUÇÃO
Como reflexo da reunificação territorial do antigo Império Romano e da consolidação da autonomia imperial, Justiniano levou a cabo a sistematização do direito romano, um esforço de reunir toda a legislação, outrora espalhada, num só corpo legislativo: surge, então, o Corpus Juris Civilis, abrangendo as Institutas, o Código e as Novelas[2].
1. BREVE HISTÓRICO
Anteriormente ao esforço sistematizador de Justiniano, a lei das XII Tábuas permitia de forma quase ilimitada a faculdade do testador de legar, de maneira que seu patrimônio poderia se esvair totalmente na forma de legados. Assim prescrevia a Duodecim Tabulae: seja lei tudo aquilo que for legado sobre os próprios bens.
Não por outra razão, era próprio do ordenamento jurídico romano a coexistência de quatro espécies do legatum – per praeceptionem, per damnationem, per vindicationem e sinendi modo, o que, de certa forma, contribuiu para a indefinição dos contornos desse instituto e a frequente confusão com outras formas de disposição testamentária.
O legado per vindicationem tinha por característica a transmissão direta da propriedade da coisa legada ao patrimonio do legatário, surgindo, ipso factu, verdadeiro direito real e, por consequência, estabelecendo-se a tutela desse direito por meio da reivindicatio. O legado per damnationem determinava a transmissão do domínio do objeto do legado ao herdeiro, que se vinculava ao cumprimento da obrigação em favor do legatário e em detrimento da sua herança, ainda que o bem não fizesse parte do patrimônio do testador. O legado per praeceptionem, forma derivada do legado per vindicationem, permitia o recebimento da coisa legada mesmo antes da partilha do patrimônio do legante. E o legado sinendi modo sujeitava “o herdeiro a se abster de impedir a escolha da coisa pelo próprio legatário, entre aquelas que viesse a receber por herança”[3].
Na esteira do propósito unificador das leis romanas, as quatro espécies de legados foram transformadas numa só, e, firmes no objetivo de limitar a liberdade desproporcional de legar, no interesse mesmo dos testadores, vieram as leis romanas Fúria e Vocônia e, finalmente, a lei Falcídia, que restringiu a quarta parte da herança aos herdeiros instituídos, fosse um só ou fossem muitos.
2. CONCEITOS E CARACTERÍSTICAS
Vem, pois, da Roma clássica, o entendimento que o legado era uma espécie de doação deixada pelo de cujus, disposição do testador apta a destinar a alguém, fosse “herdeiro ou não, um ou mais bens do seu patrimônio, mesmo nele não incluídos, constituindo um encargo legado ao herdeiro.”[4]
Vê-se, portanto, que existem nítidas diferenças entre o instituto da herança e do legatum. Com efeito, podemos observar que a herança se refere à sucessão legal ou testamentária, “in universum ius defuncti, isto é, na totalidade dos bens ou numa quota-parte deles”[5]. A instituição do herdeiro, por força de disposição legal (CC, art. 1.805), pode ser de modo tácito, quando executa ele atos condizentes com a sua posição hereditária. Ou, segundo arremate preciso de Venosa, dada a dificuldade de definir compreensivamente o instituto, “será legado tudo o que dentro do testamento não puder ser compreendido como herança”[6].
Já o legado é o instituto exclusivo da sucessão testamentária, aplicável a uma coisa certa e determinada, como, por exemplo: um quadro; o imóvel situado à rua tal; as ações de determinada sociedade anônima. E o legatário, por consequência, é aquele que, sendo herdeiro ou não, recebe do testador uma coisa ou até mesmo quantia, certa, determinada, individualizada[7] (singulatium), sob o título de legado. É, pois, disposição testamentária mortis causa a título singular. Contudo, ao contrário da instituição dos herdeiros, o legatário é sempre designado explicitamente, ainda que o testador denomine erroneamente a deixa como herança, ou seja inexistente a pessoa ao instante da elaboração do testamento, mas sobrevindo à abertura da sucessão.
Nesta quadra, de acordo com a precisa lição de Orlando Gomes, o legatum se apresenta, em essência, “como uma liberalidade mortis causa, estabelecida, numa disposição de última vontade, a título singular”[8], e que se assemelha a uma doação, exceto pelo fato de representar ato jurídico unilateral com eficácia após o falecimento do de cujus.
Segundo o magistério de Maria Helena Diniz, “o herdeiro representa o defunto, para efeitos patrimoniais; o legatário não, tanto que só responde pelas dívidas quando a herança for insolvável ou distribuída, por inteiro, em legados válidos”.
Embora haja respeitável divergência doutrinária acerca da liberalidade do testador como elemento essencial do legado, o fato é que, mesmo quando o legatário é investido num encargo oneroso pela deixa testamentária[9], no conceito do instituto deve ser inserida a ideia de liberalidade e acréscimo patrimonial para o sucessor[10].
3. OBJETO E SUJEITOS
A ampla liberdade testamentária, informada pelo princípio da autonomia da vontade, encontra limites no princípio da supremacia da ordem pública. Dessa forma, o objeto do legado pode ser “as coisas móveis e imóveis, as corpóreas e as incorpóreas, as fungíveis e infungíveis, as existentes e futuras, os direitos, as ações, os créditos, as prestações de fazer negativas ou positivas, os frutos”[11], desde que observe o comando definido no artigo 104 do nosso estatuto civil, ou seja, seja lícito, possível, valorável economicamente, determinado ou determinável e passível de alienação.
Entendido o legado como atribuição de coisa certa a outrem por meio de testamento e a título singular, mister se revela anotar que, além do testador ou legante – pessoa que institui o legado – e o legatário – aquele contemplado com o direito ao legado -, pode existir a pessoa do onerado, sujeito sobre quem recai o ônus do legado ou a quem cabe a prestação do legado. Quadra anotar que todas as pessoas podem ser designadas legatárias, sejam natural ou jurídica, civil ou comercial, parente ou não. Mesmo o herdeiro legítimo pode ocupar a posição jurídica de legatário, hipótese em que se tem o prelegado ou legado precípuo, compreendendo na mesma pessoa a condição de legatário e do herdeiro[12]. Verificada tal situação, “o prelegatário recebe o prelegado além dos bens que constituem sua herança, podendo até recebê-los antes da herança”[13], se o legante assim estabeleceu.
Outra hipótese reside na atribuição da prestação do legado a vários herdeiros, o que demandará a satisfação de cada um deles proporcionalmente às respectivas cotas da herança. E, por fim, se o ônus da prestação incidir de maneira excessiva sobre apenas um dos herdeiros ou se o testador houver legado coisa pertencente a um herdeiro, “o ônus pesará sobre todos, compensando-se o seu valor com dinheiro, proporcionalmente”[14].
4. MODOS DE INSTITUIÇÃO
Pelo princípio da saisine, a lei considera que, no momento da morte, o autor da herança transmite seu patrimônio, de forma íntegra[15], a seus herdeiros. Noutros termos: o herdeiro obtem a aquisição e a posse dos bens hereditários no momento da morte do testador, a saisine (CC, art. 1.784), mas o legatário deve pedir o seu legado aos herdeiros, direito que surge na abertura da sucessão, pois não tem, desde então, a posse da coisa legada. Dessa maneira entendem os tribunais pátrios:
“Despesas de condomínio – Ação de cobrança – Legatários -Ilegitimidade de parte passiva – Reconhecimento – Partilha não homologada – Legitimidade do espólio – Reconhecimento.
Inexistindo nos autos comprovação de que a entrega da posse do legado já tenha ocorrido e restando comprovado que a partilha de bens ainda não foi devidamente homologada, impõe-se o reconhecimento de que o espólio é parte legítima para figurar no polo passivo da ação de cobrança de despesas de condomínio. Recurso provido.”(TJ/SP, Agravo de Instrumento nº 0213327-48.2011.8.26.0000, rel. Des. Orlando Pistoresi, 30ª Câmara de Direito Privado, julg. 19/10/2011)
“TRIBUTÁRIO – ITCD – FATO GERADOR – PRINCÍPIO DA SAISINE – SÚMULA 112/STF.
1. Cinge-se a controvérsia em saber o fato gerador do ITCD – Imposto de Transmissão Causa Mortis.
2. Pelo princípio da saisine, a lei considera que no momento da morte o autor da herança transmite seu patrimônio, de forma íntegra, a seus herdeiros. Esse princípio confere à sentença de partilha no inventário caráter meramente declaratório, haja vista que a transmissão dos bens aos herdeiros e legatários ocorre no momento do óbito do autor da herança.
3. Forçoso concluir que as regras a serem observadas no cálculo do ITCD serão aquelas em vigor ao tempo do óbito do de cujus.
4. Incidência da Súmula 112/STF.
Recurso especial provido.” (STJ, RESP n. 1.142.872/SP, rel. Min. Humberto Martins, 2ª Turma, julg. 20/10/2009, publ. 29/10/2009)
Ademais, o legatário tem o direito de ação para reivindicar a coisa, no caso de recusa, por não ter a posse direta da coisa legada com a morte do legante, embora tenha adquirido o domínio e a posse indireta desde então. Esta é a razão pela qual o legatário pode “ingressar com medidas acautelatórias para preservação da coisa e de seus direitos, impedindo a deterioração ou desaparecimento de seus direitos”[16], contudo, não pode entrar na posse do legado sob pena de configurar esbulho contra o espólio e os herdeiros, amparados pelas ações possessórias.
Segundo o modo da sua instituição, o legado pode ser puro e simples, condicional, a termo, modal ou por certa causa (subcausa). Legado puro e simples é aquele que produz seus regulares efeitos independentemente de qualquer situação fática, embora o beneficiado, mesmo com o domínio da coisa certa e dos respectivos frutos, desde a abertura da sucessão (CC, arts. 1923 e 1924), não entre na posse direta do bem legado (CC, art. 1923, §1º), por autoridade própria, sendo necessário que solicite ao herdeiro, salvo se o legante, de forma expressa ou tácita, assim lhe autorizar[17].
Legado condicional é a disposição testamentária a título particular, cujo efeito está atrelado a um evento futuro e incerto, salvo se captatório[18], hipótese de nulidade do legado. Importa gizar que, no legado sob condição suspensiva, enquanto não se verifica o seu implemento, o legatário não terá o domínio da coisa, mas mero direito eventual (CC, art. 125).
No legado a termo o direito do legatário é um direito inexigível, enquanto o evento futuro e certo não se verifica. Todavia, decorrido o prazo estabelecido pelo testador, o legado se aperfeiçoa ou se extingue.
A aceitação do legado modal (CC, art. 1.938), gravado com encargo (CC, art. 533) ou obrigação ao legatário, “induz anuência ao ônus que o acompanha”[19]. Esse legado pode ser anulado por descumprimento do encargo decorrente de culpa do onerado (CC, art. 555), e a deixa correspondente retorna ao monte hereditário, salvo se houver substitituto indicado. A legitimidade para propor a demanda para cumprimento do encargo toca aos herdeiros, legatários interessados, testamenteiro[20] e ao Ministério Público, pois ao Parquet compete também guardar a devida satisfação da vontade testamentária.
Por fim, o legado de subcausa ou por certa causa é a disposição em que o de cujus expõe as razões da liberalidade, identificando o móvel da sua vontade, como, por exemplo, se o testador institui o legado em favor de Mévio por ser este um artista internacionalmente conhecido.
5. CLASSIFICAÇÃO QUANTO AO OBJETO
A conjugação do conceito do legado, como sendo a deixa testamentária de coisa precisa e determinada, contida no acervo transmitido pelo autor da herança, com a prescrição legal (CC, art. 1.857, caput) de que apenas pode ser objeto de disposição testamentária os bens integrantes do patrimônio da pessoa, resta imperioso perquirir de que forma o legado pode tocar o monte hereditário.
É princípio geral no direito sucessório que ninguém pode dispor de mais direitos do que tem, premissa expressa no estatuto civil brasileiro: “Art. 1.912. É ineficaz o legado de coisa certa que não pertença ao testador no momento da abertura da sucessão”.
Assim, caso o testador contemple o legatário com um bem alheio, isto é, que não é de sua propriedade, via de regra, tal disposição conduzirá à ineficácia do legado, sem produzir qualquer efeito jurídico. De igual modo, a disposição é ineficaz se o testador tinha apenas a posse da coisa, que não lhe pertencia, ou se a coisa já não está mais no acervo do falecido quando da morte[21]. Contudo, a aquisição posterior à deixa testamentária e anterior à abertura sucessória produz efeitos retroativos, com a convalidação do ato.
Anotam-se, por oportuno, exceções à regra contida no dispositivo legal indicado. Trata-se das hipóteses de disposição modal, sublegado (legado com encargo) e legado de coisa genérica. No legado modal, o legante ordena ao herdeiro a aquisição de coisa alheia para entrega ao legatário[22]. O sublegado contempla a situação em que o testador determina que o herdeiro ou legatário entregue coisa de sua propriedade a outrem; descumprido o encargo, tem-se que houve renúncia da parte disponível da herança ou do legado, respectivamente (CC, art. 1.913). Entretanto, cumprido o encargo, aquele que fez a entrega da coisa terá direito ao reembolso do valor correspondente, na proporção da quota de cada um dos coerdeiros, salvo se o contrário for estipulado expressamente pelo testador (CC, art. 1.935). Já no legado de coisa que se determine pelo gênero[23], seu cumprimento ocorrerá ainda que a coisa não integre o patrimônio do legante (CC, art. 1.915), pois, como genus non perit, caberá ao herdeiro ou ao testamenteiro escolher a coisa legada, adquirindo-a com as forças da herança (CC, arts. 244, e 1.929 a 1.931).
Caso o testador não seja dono de toda a coisa legada, mas, apenas, parte dela[24], valerá o legado quanto a essa parte (sob pena de se instituir legado sobre coisa alheia), ou, no caso de sublegado, quanto à parte do que for do herdeiro ou legatário, caracterizando o que a doutrina denomina de legado de coisa comum (CC, art. 1.914). Aplica-se, in casu, o princípio de conservação dos negócios jurídicos, logo, mesmo que de forma parcial, os efeitos desejados pelo testador devem ser produzidos.
O legado de coisa singularizada (CC, art. 1. 916) se verifica quando o legante separa, individualiza o bem legado dos outros, considerados gênero, espécie e quantidade. Contudo, ainda que exista a coisa legada entre os bens do testador, mas em quantidade inferior à do legado, tem-se este como eficaz apenas quanto à parte existente.
Se o testador, entretanto, lega um bem que deve ser encontrado em determinado local, de forma habitual ou permanente, o legado de coisa localizada (CC, art. 1.917) é eficaz se a coisa for ali achada, exceto se for removida a título precário ou se removida por terceiro, sem o consentimento do legante. Será ineficaz, todavia, se o próprio testador deslocou a coisa do local, com ânimo definitivo. Assim, se, por exemplo, “o testador legou os móveis da sala de jantar de sua casa, esse legado será eficaz ainda que, na data da abertura da sucessão, os móveis não estejam na mencionada sala, mas numa oficina, sendo restaurados”[25]. Esclareça-se, por oportuno, que se não se incluem no legado os objetos achados no local marcado pelo legante, postos ali acidentalmente por ele.
O legado de crédito (legatum nominis) e o legado de liberação de dívida (legatum liberationis) foram disciplinados no artigo 1.918, do Código Civil brasileiro, e gozam de eficácia somente até a importância da dívida ou do crédito ao tempo da abertura da sucessão, momento em que também o quantum do legado deve ser apurado, embora sua existência se verifique até a data da elaboração do testamento. Legatum nominis ocorre quando o testador transfere ao legatário os direitos sobre uma importância que lhe é devida, ficando o legatário, como na cessão de crédito (CC, art. 286), sub-rogado nos direitos do testador. Logo, recebendo o título, poderá o legatário efetuar a cobrança do crédito cedido.
No legatum liberationis acontece o perdão de dívida pelo testador (credor) ao legatário (devedor), como se o testador recebesse o devido pagamento, aperfeiçoado com a entrega do respectivo título executivo pelo herdeiro (CC, art. 1.918, §1º). Porém, se por ocasião da morte do testador, a dívida estava parcialmente paga, a quitação do legado incidirá no quantum remanescente. Ressalte-se que “a compensação de dívida do testador com dívida do legatário somente operará com menção expressa no testamento”[26], todavia, subsistirá o legado de crédito se o testador a solveu antes do falecimento, e se a dívida for posterior ao testamento (CC, art. 1.919).
Atenção especial merece o legado de alimentos (CC, art. 1.920), instituído em favor do legatário e que, consistindo no provimento de qualquer meio de subsistência e vivência do alimentando, “abrange o sustento, a cura, o vestuário e a casa, enquanto o legatário viver, além da educação, se menor ele for” (CC, art. 1.920). Contudo, ao contrário do direito de família, em que se potencializa as necessidades do alimentando, no legado de alimentos os alimentos são encarados conforme a vontade do testador[27] e as forças da herança. Não se afasta, entretanto, a fixação equitativa do quantum pelo juiz, mediante a aplicação dos princípios do direito de família, bem como, a possibilidade de concessão do legado em testilha in natura (por exemplo, o fornecimento de hospedagem ou entrega de produtos alimentícios). Impõe assinalar que os alimentos testamentários gozam de inalienabilidade e impenhorabilidade, salvo se o beneficiário já possuir condições plenas de subsistência indenpendentemente do legado, que passa a ostentar a condição de renda, e não de alimentos[28].
O legado de usufruto consiste na constituição de um direito real ao legatário à posse, uso e administração e para extrair, durante um certo período de tempo, de um certo bem, os frutos e utilidades produzidos por ele (CC, arts. 1.390 e 1.394), sem que ocorra alteração da sua substância, permanecento a propriedade no herdeiro indicado. Tal legado pode ser instituído de três modos: “sem referência ao titular da nua propriedade, com reserva de ususfruto no legado de propriedade e com indicação do usufrutuário e do nu proprietário”[29]. Caso o testador não fixe o tempo de duração do usufruto, tem-se por vitalício o legado, extinto com a morte do legatário (CC, arts. 1.410, I, e 1.921). Sendo o usufrutário pessoa jurídica, e não tendo o testador fixado o prazo do exercício do direito real, ele perdurará por trinta anos, se, até então, a pessoa jurídica estiver extinta (art. 1.410, III)”[30].
Consiste o legado de imóvel (CC, art. 1.922) na ideia de que um “imóvel será entregue tal qual se acha quando da morte do testador, salvo se essa não for sua vontade”[31]. Assim, as aquisições posteriores, contíguas ou não ao prédio legado, não se compreendem nele, por serem ampliações ou acréscimos que não se incorporam ao imóvel legado”[32], salvo expressa declaração em contrário do testador. Evidentemente, segundo a regra de que o acessório segue o principal, as benfeitorias realizadas no prédio legado até o momento da abertura da sucessão se incluem no legado e não ensejam obrigação de indenizar pelo legatário. Se posteriores, poderão os herdeiros ou o espólio reclamar o reeembolso do valor gasto na sua realização (CC, art. 1.255).
6. EFEITOS
No direito brasileiro, o legatário tem o direito, transmissível a seus sucessores, de pedir aos herdeiros a coisa legada, desde a morte do testador. Portanto, o direito ao legado é adquirido ipso jure independentemente da citação[33]. Contudo, embora o legatário adquira logo, recta via, a propriedade da coisa legada, senhoreando-se no domínio do que lhe é deixado, falta-lhe, “porém, a posse, que somente adquire quando lhe é feita a sua entrega efetiva pelo herdeiro. Em síntese: o legatário tem propriedade sem posse”[34]. E, em regra, “enquanto não se julgar a partilha, o legatário não se investe na posse, porque só depois de verificadas as forças da herança, mediante inventário, é que se deve fazer a entrega da coisa legada”[35], razão pela qual não pode o legatário entrar na posse da coisa legada por autoridade própria (art. 1.923, §1°), salvo se o testador permitir, de forma tácita ou expressa.
Vê-se, portanto, que tem o legatário, desde a abertura da sucessão, o direito de pedir o legado, exceto se houver litígio sobre a validade do testamento, na pendência da condição suspensiva e nos legados a prazo. Na pendência da ação anulatória do testamento, o legatário pode requerer medidas acautelatórias para proteger o legado, mas não pode requerer a entrega da deixa. Nos legados condicionais, o bem só é adquirido com implemento da condição conferida pelo legante, daí, enquanto não se verifica a condição, o legatário tem apenas expectativa de direito. E se o legado for a termo, o legatário recebê-lo-á desde a abertura da sucessão, mas o direito de pedir apenas será exercido no vencimento do termo.
Releva assinalar que o direito de pedir o legado é transmissível aos herdeiros do legatário, caso venha a óbito após a abertura da sucessão. Todavia, falecendo o legatário antes do testador, esse direito não será transmitido a seus sucessores. Nessa quadra, colhe-se julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. MORTE DE LEGATÁRIO NO CURSO DO INVENTÁRIO. O testamento deixado pela autora da herança favoreceu determinado legatário e, apenas na falta deste, é que favoreceu outro legatário. Nesse passo, falecendo o primeiro legatário após a abertura da sucessão da testadora, o bem legado transmite-se aos herdeiros do primeiro legatário, não ao segundo. Possível, contudo, a partilha o imóvel legado no mesmo inventário em que se dá cumprimento ao testamento, porquanto a primeira legatária deixou apenas um herdeiro, que também é legatário dos bens deixados pela testadora (art. 1044 do CPC). DERAM PARCIAL PROVIMENTO.” (TJ/RS, Agravo de Instrumento nº 70039737556, 8a. Câmara Cível, rel. Rui Portanova, julg: 07/04/2011)
O legado será requerido ao testamenteiro (CPC, art. 1.137, I e IV), caso ele esteja na posse e administração dos bens hereditários; a certo herdeiro ou legatário, designado pelo testador para pagamento do legado (CC, art. 1.934); ao herdeiro ou legatário que detem a coisa legada, resguardado o seu direito de regresso contra os coerdeiros, pela quota de cada um, salvo se o contrário expressamente dispôs o testador; a todos os herdeiros instituídos e, não os havendo, aos legatários se o testador não indicar a quem cabe executar o legado (CC, art. 1.934, caput). Nessa última hipótese, contudo, não há solidariedade entre os onerados, “isto é, entre os que devem pagar o legado, vigorando, ao contrário, o princípio da proporcionalidade: cada um onerado cumprirá a sua parte na medida do benefício que recebeu”[36]
O direito de pedir o legado será exercido no juízo que processa o inventário, que ouvirá o testamenteiro, os herdeiros e demais interessados, como a Fazenda Pública. Deferido o pedido, será lavrado termo de entrega ou pagamento; caso contrário, o legatário somente receberá a coisa legada na partilha. Até esse momento, a defesa do objeto do legado por meio dos interditos compete aos herdeiros ou ao inventariante, mas se o bem estiver na posse de terceiros, o legatário poderá ajuizar a demanda reivindicatória. Também por ocasião da homologação da partilha é que se torna exigível o imposto sobre transmissão causa mortis:
“PROCESSUAL. TRIBUTÁRIO. ITCMD. DECADÊNCIA. TERMO INICIAL. HOMOLOGAÇÃO DA PARTILHA. 1. Nada obstante a herança seja transmitida, desde logo, com a abertura da sucessão (art. 1.784 do Código Civil), a exigibilidade do imposto sucessório fica na dependência da precisa identificação do patrimônio transferido e dos herdeiros ou legatários, de forma que apenas com a prolação da sentença de homologação da partilha é possível identificar perfeitamente os aspectos material, pessoal e quantitativo da hipótese normativa, tornando possível a realização do lançamento do tributo. Precedentes. 2. Agravo em recurso especial não provido.” (STJ, 2a. Turma, AgREsp 277.977, rel. Min. Castro Meira, julg.: 04/02/2013; publ.: 18/02/2013)
O legatário, titular do domínio da coisa legada, tem o direito de receber os frutos e os juros da coisa certa existente na herança, desde a morte do testador. Neste sentido:
“TESTAMENTO. LEGADO. FRUTOS PRODUZIDOS PELO OBJETO DO LEGADO.Pretensão do legatário ao ressarcimento dos frutos produzidos pelo legado durante o período no qual não teve a posse dos bens.1. LEGITIMIDADE. ESPÓLIO. Qualquer herdeiro poderia ter tomado as providências necessárias no sentido de cumprir o legado estabelecido no testamento, o que, entretanto, não ocorreu (art. 1.934, do CC). O inventariante somente cumpriu o legado após pedido expresso do legatário nos autos do inventário. Além destes fatos, ao que tudo indica, não foi feita a partilha dos bens. Assim, com maior razão, tem o Espólio legitimidade para responder à pretensão do legatário ao recebimento dos frutos do objeto do legado.2. Desde a abertura da sucessão, o legatário tem o domínio do objeto do legado. Entretanto, por não ter sido concedida a posse efetiva do bem logo após o falecimento do testador, tem direito ao pagamento dos frutos percebidos pelo Espólio. Princípio da saisine.3. O disposto no art. 1.924, do Código Civil, deve ser interpretado de acordo com as circunstâncias dos autos e sua aplicação não impede, no caso em exame, o recebimento dos frutos. Como dito, o objeto de legado já foi entregue ao autor. Assim, não se justifica aguardar o fim da demanda relacionada à anulação do testamento, sob pena de impedir, sem justificativa, o direito de ressarcimento do autor, direito igualmente garantido pelo art. 1.923, § 2º, do Código Civil.Recurso do legatário provido para anular a sentença a fim de que sejam produzidas as provas a respeito dos frutos produzidos pelo legado durante o período de posse dos bens pelo Espólio. Recurso adesivo do réu não provido”. (TJ/SP, 10ª Câmara de Direito Privado, Apelação 0006184-32.2010.8.26.0483, rel.: Carlos lberto Grabi; julg.: 14/08/2012, publ.: 18/08/2012)
Ressalte-se, todavia, que se o legado depende de condição suspensiva, ou de termo inicial (CC, art. 1.923, §2°), os frutos pertencem aos herdeiros até que a condição se implemente ou até que o prazo se expire, exceto disposição em contrário do legante.
Impende gizar, ademais, que, nos legados em dinheiro, os juros moratórios correm a partir da constituição em mora da pessoa obrigada a prestá-lo (CC, art. 1.925).
Como o testamento apenas gera efeito após a morte do testador, antes da sua morte não existe herança nem legado, daí porque o legado de pensão ou renda vitalícia (CC, art. 1.926) somente se inicia a partir daquele evento, ressalvada a vontade expressa do legante em sentido diverso para que o herdeiro inicie o pagamento ao legatário.
Tratando-se de prestações periódicas de quantias certas, o legatário tem o direito de recebê-las desde a morte do testador, mas o efetivo pagamento somente poderá ser exigido no termo de cada período subsequente (CC, arts. 1.927 e 1.928). Embora em regra sejam exigíveis as prestações ao final de cada período, quando se referem a alimentos, entretanto, serão pagas no começo de cada período, caso não disponha de outra forma o testador (CC, art. 1.928, parágrafo único).
No que se refere à escolha do legado, o testador pode atribuir “ao herdeiro, ao próprio legatário ou a terceiro a escolha do bem, quando, determinado pelo gênero ou pela espécie, existirem muitos no acervo hereditário”[37]. Toca ao herdeiro a escolha nos casos de omissão do testamento, de legado de coisas fungíveis[38], assim como no caso de legado alternativo, em que lhe compete decidir entre duas ou mais coisas de espécies diferentes (CC, art. 1.932). A partir da escolha, o legatário suporta os riscos do bem legado, uma vez que res perit domino[39]. Se a escolha deixada a arbítrio de terceiro (CC, art. 1.930) restar impossibilitada, deverá fazê-la o juiz do inventário, que guardará o meio-termo entre as congêneres da pior e melhor qualidade: nec optimus nec pessimus. Deferida ao legatário a escolha (legatum options), pode optar entre o gênero ou espécie, a melhor coisa que houver na herança; e caso não haja coisa do referido gênero, o herdeiro deverá entregar outra congênere, observado o critério da mediae aestimationis, ou seja, o meio-termo[40] (CC, art. 1.931).
Como o direito de escolha do legado não é personalíssimo, pode ser transmitido mortis causa (CC, art. 1.933), “se o que tem o direito de fazer a opção – herdeiro ou legatário – falecer antes de exercê-la”[41], contudo, realizada a escolha, esta é irrevogável.
Fiel ao brocardo qui commodum sensit et incommodum sentire debet[42], prescreve o Código Civil, art. 1.936, que as despesas e os riscos da entrega do legado correm à conta do legatário, se não dispuser diversamente o testador. Entretanto, o legatário não responde pelos honorários advocatícios, pois constituem débitos dos herdeiros (CPC, art. 25). Os riscos suportados pelo legatário são aqueles decorrentes do caso fortuito ou força maior, enquanto que o onerado responde pelos riscos provenientes de sua culpa, indenizando aquele caso ocorra deterioração ou perda em razão de herdeiro ou terceiro.
Conquanto tenha o direito ao legado origem ipso iure (CC, art. 1.923), aquele beneficiado pela deixa não está obrigado a recebê-la, o que pode fazer simplesmente deixando de pedir o legado. E, uma vez notificado, se deixar o prazo findar in albis, presume-se que recusou. A recusa, inclusive, pode ocorrer depois da aceitação ou do pedido de entrega do legado, hipótese em que configura em cessão em favor daquele que será beneficiado com a coisa. A recusa, embora irrevogável, pode ser retratada nos casos de dolo ou erro, mas sempre será total, salvo se o legado for composto de coisas divisíveis[43].
7. CADUCIDADE
Segundo o lapidar magistário de Sílvio Rodrigues,
“caducidade é a perda, por circunstância superveniente, da razão de existir de um ato determinado, que foi feito de maneira válida. No caso de legado, trata-se de disposição testamentária que ordinariamente produziria todos os seus efeitos. Todavia, em virtude da superveniência de uma circunstância, ou melhor, de um evento, a cláusula testamentária deixa de operar”[44].
Releva salientar que a caducidade do legado não infirma totalmente o testamento. É que a causa superveniente, que vulnera o dispositivo que contem a liberalidade, não contagia o que sobeja do ato de disposição de última vontade, segundo o brocardo utile per inutile non viviatur = o útil não é invalidado pelo inútil.
Ademais, os eventos mencionados no artigo 1.939, como causas de caducidade do legado, operam presunção juris tantum que o testador desejaria a ineficácia da sua disposição caso fossem verificadas. Mas o dispositivo legal contem normas supletivas da vontade livre e soberana do legante, que pode dispor em sentido diverso, ainda que uma causa efetivamente ocorra ou seja previsível para ele.
A modificação (specificatio) na coisa apta a alterar a sua substância, levada a efeito pelo testador, depois do testamento, descortina seu ânimo de revogar a liberalidade em favor do legatário (CC, art. 1.939, I). Se, por exemplo, o testador legou um relógio de ouro e após o testamento determina que o objeto legado seja fundido, a coisa legada deixa de existir. Contudo, dois aspectos são importantes: “a alteração da coisa deve ser considerável, ao ponto de perder a forma exterior e não lhe caber, mais, a denominação que tinha”[45].
O art. 1.939, II, determina a caducidade do legado se o testador, por qualquer título, alienar no todo ou em parte a coisa legada, pois “o fato do testador alienar a coisa revela, da maneira mais veemente possível, sua intenção de revogar a liberalidade, visto que deu outro destino ao objeto legado”[46]. De outra forma, a nulidade da alienação não revigora a eficácia do legado, salvo se a sua causa contamine a vontade do testador, como no caso de enfermidade grave que afete seu discernimento.
Caso o objeto do legado perecer ou for evicta (CC, art. 447 et seq), sem culpa do herdeiro ou legatário encarregado do seu cumprimento, vivo ou morto o testador, deixa de existir o legado por falta de objeto (CC, art. 1.939, III). Se houver culpa, o responsável pode ser acionado para indenizar o legatário em perdas e danos. Porém, “se ela se evenceu ou pereceu pós a abertura da sucessão, já se transferira a propriedade ao legatário, que lhe sofre as consequências, pois res perit domino”[47].
O inciso IV do art. 1.939 trata da ineficácia do legado por causa da exclusão do legatário da sucessão, com arrimo nos arts. 1.814 e 1.815 do Código Civil, ensejando a nulidade da disposição testamentária. Presume-se perdoado o legatário e válida a instituição do legado, todavia, se a causa de exclusão da sucessão ocorreu antes desta e, mesmo assim, a liberalidade foi exercida pelo testador[48]. Outrossim, “qualquer herdeiro ou legtário que tenha interesse na herança pode mover a ação de exclusão por indignidade”[49].
Se o legatário morrer antes do testador (CC, art. 1.939, V) não há legado, pois evidentemente não haverá transmissão causa mortis. Aqui falta sujeito ao legado, e a coisa legada será restituída ao acervo, caso não subsistam substitutos ou direito de acrescer com outros colegatários.
Informações Sobre o Autor
Domingos Sávio de Sousa
Analista Tributário da Receita Federal. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Recife/UFPE. Pós-graduando em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp/MS