É direito do Equador discutir o contrato


A grande imprensa brasileira tem — ao que parece unanimemente —, encarado o conflito Equador x BNDES como uma ofensa descabelada do “esquentado” presidente equatoriano. Espero, porém, que um patriotismo fanático, incondicional — de qualquer dos lados —, desligado de qualquer preocupação com efetiva justiça, não prevaleça.


Patriotismo é um sentimento nobre, ainda necessário — “se eu não zelar pelos interesses do meu país, quem o fará?!” — enquanto o planeta for a atual arena de egoísmos, com prevalência da força. Moralmente, o mais ardente patriota, se forçado a escolher entre justiça e benefício (injusto) para seu país, deve optar pela justiça. Mesmo porque quase sempre a verdade acaba aparecendo e é pelo menos útil zelar pela própria reputação. Mesmo sob sete palmos de terra. Esqueletos, com falta de ar — mas não de remorsos —, teimam em despencar do armário, confessando-se, para vergonha de seus descendentes.


Não sei se o Presidente equatoriano está ou não de má-fé. Esta, se eventualmente existente, consistiria em saber perfeitamente que não tem razão nas suas alegadas suspeitas envolvendo um financiamento para construção de usina hidrelétrica no Equador, a de São Francisco. A eventual malícia do Presidente Rafael Correa consistiria em se livrar do encargo — previsto no contrato — de pagar as prestações a que se obrigou enquanto não surgisse a decisão corte de arbitragem. “Empurraria com a barriga”, na expressão popular, o ônus de depositar periodicamente as prestações.


Todavia, pelo que dizem os altos funcionários equatorianos, o Equador deixou expresso que enquanto aguarda a decisão da CCI — Câmara de Comércio Internacional de Paris — continuará depositando as prestações a que se obrigou. E que cumprirá o que for decidido pelo órgão internacional de arbitragem. É o diz a chanceler equatoriana, Maria Isabel Salvador, e também o ministro coordenador de Setores Estratégicos do Equador, Galo Borja. Ele disse que o governo de seu país continuará pagando os juros estabelecidos com o BNDES até que a comissão arbitral emita uma sentença sobre o processo.


Se assim é, como foi expressado por altos representantes do Equador, não tem sentido a grita brasileira generalizada contra a atitude do Equador pedindo um exame do contrato por uma Câmara de arbitragem, presumivelmente isenta — um dos árbitros será indicado pelo Brasil — que julgará o caso muito mais depressa que qualquer órgão judiciário estatal.


Obviamente, é irrelevante o Equador dizer que o dinheiro para a construção da hidrelétrica não chegou aos cofres do Estado do Equador.  O dinheiro brasileiro não chegou — nem precisaria chegar —, mas a hidrelétrica chegou ao Equador. Na construção desta estaria todo o proveito com o negócio.


Todavia, constatadas algumas falhas de construção, com paralização da hidrelétrica, funcionários equatorianos concluíram — certa ou erradamente; é preciso aguardar a decisão isenta da CCI — que o contrato teria cláusulas redigidas de má-fé. Se — à guisa de mero exemplo —, o valor da obra contratada foi de 100 mas o custo não passou de 40 e algum funcionário do BNDES foi conivente com a eventual “tapeação” do Equador, é direito do Equador pedir uma arbitragem internacional com a possibilidade de cancelar a “parte podre” do contrato, pagando apenas aquilo que a CCI entender como o preço razoável. Esse direito do Equador é especialmente respeitável porque não pretende, como alega sua chanceler, apenas “ganhar tempo”. Pelo que ela diz, repita-se, o Equador continuará pagando o que foi combinado até que sobrevenha a decisão da corte de arbitragem. E decisões de arbitragem são muito mais rápidas que aquelas oriundas de órgãos de justiça estatais.


Não se está aqui sugerindo que a Odebrecht agiu de má-fé, talvez em conluio com pessoas do BNDES. Pode ser que sim, pode ser que não. Nenhuma empreiteira, ou banco, goza da presunção de absoluta santidade. Não está livre de manobras astutas — cláusulas enganadoras, medições e cálculos deliberadamente errados — preparadas para lucrar abusivamente lidando com negociadores pouco preparados ou — também eles —, agindo em concerto de má-fé. Em tese — em tese, insista-se — se funcionários equatorianos fizeram parte de algum esquema lesivo ao Equador, este poderá tomar, contra eles, as medidas pertinentes, com base no que for apurado pela CCI.


Em suma, visto o “impasse” pela perspectiva mais correta — moral e jurídica — não há porque estimular, de modo forçado, um incidente diplomático com a mera submissão de uma questão a um órgão de justiça, especializado em contratos internacionais. Se a CCI concluir que o contrato foi celebrado de boa-fé, a Odebrecht e o BNDES sairão prestigiados. E o governo brasileiro — seja qual for a decisão da CCI — sairá engrandecido só pelo fato de não tentar barrar o exame da transação. Provará que o governo não teme a luz da verdade.


Se, na pior das hipóteses, a CCI comprovar alguma falcatrua no contrato, a decisão será útil não só ao Equador, mas também ao povo brasileiro. Servirá como alerta de perigo para todas as empreiteiras de obras públicas. Aquelas mal-acostumadas, incapazes de fazer uma medição correta, porão suas barbas de molho. O contribuinte brasileiro agradecerá.



Informações Sobre o Autor

Francisco César Pinheiro Rodrigues

Advogado, Desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo


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