A imbricação do totalitarismo pelos partidos políticos e movimentos na Europa continental

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Resumo: O sistema partidário continental é criticado, pois o Estado é posto acima dos partidos, permitindo que do multipartidarismo erigisse um partido vencedor, que veio a instituir um regime unipartidário, ditatorial e, posteriormente, totalitário, como o Regime Nazista. O homem de massa e os partidos continentais, para Arendt, contribuíram para o sucesso dos regimes totalitários, uma vez que permitiram que as alianças políticas inexistente no sistema insular, acelerassem a ascensão do Totalitarismo na Europa.

Palavras-Chave: Homem de Massa; Participação Política; Nazismo; Estado de Direito.

Resumen: El sistema de partidos continental es criticado porque el Estado se pone por encima de las partes, permitiendo que el partido ganador para erigir un sistema multipartidista, que vino a establecer un solo partido, el régimen dictatorial, y más tarde el totalitario, ya que el régimen nazi. El hombre y los partidos de masas continentales, para Arendt, contribuyeron al éxito de los regímenes totalitarios, ya que permitió la inexistente en el sistema insular, alianzas políticas acelerar el ascenso de los totalitarismos en Europa.

Palabras clave: Hombre de Masa; Participación Política; El Nazismo; Estado de Derecho.

Abstract: The continental party system is criticized because the State is put above the parties, allowing the winning party to erect a multi-party system, which came to establish a one-party, dictatorial regime, and later the totalitarian, as the Nazi regime. The man and the continental mass parties, for Arendt, contributed to the success of totalitarian regimes, since it allowed the non-existent in the insular system political alliances accelerate the rise of totalitarianism in Europe.

Keywords: Man; Political Participation; Nazism; Rule of Law.

Os movimentos de expansão territorial dentro do continente europeu foram tratados por Hannah Arendt (1906-1975) pela alcunha de Imperialismo Continental – o que em verdade representou os movimentos de unificação da Prússia e da Itália –. O Imperialismo Continental se torna um importante paradigma de comparação com o Imperialismo de Ultramar, dada a sua diferença de conceitos:

“O imperialismo continental é mais importante quando comparado com o imperialismo de ultramar, porque o seu conceito de expansão é amalgamador, eliminando qualquer distância geográfica entre os métodos e instituições do colonizador e do colonizado, de modo que não foi preciso haver efeito de bumerangue para que as suas consequências fossem sentidas em toda a Europa.”[1]

Ao contrário de França, Bélgica e Inglaterra, cuja expansão se deu em territórios de ultramar, o pan-eslavismo e o pangermanismo, respectivamente a expansão territorial da Rússia e dos países germânicos, ocorreu no continente europeu: “O nazismo e o bolchevismo devem mais ao pangermanismo e ao pan-eslavismo (respectivamente) do qual a qualquer outra ideologia ou movimento político”[2].

Ao contrário do imperialismo continental, o imperialismo ultramarino não tinha o condão de almejar a expansão territorial e sim a expansão do poder aliada à expansão econômica:

“O que os imperialistas [expansão ultramarina] realmente era a expansão do poder sem a criação de um corpo político. A expansão imperialista havia sido deflagrada por um tipo curioso de crise econômica: a superprodução de capital e o surgimento do dinheiro “supérfluo”, causado por um excesso de poupança, que já não podia ser produtivamente investido dentro das fronteiras nacionais”.[3]

Como se pode ser, num primeiro momento, o imperialismo de ultramar não requeria a organização em torno de um partido político ou movimento político. O expansionismo era meramente econômico e o que se exportava aos territórios de ultramar não era nada além dos instrumentos de força material do Estado, ponto sobre o qual Arendt foi clara:

“Logo que se tornou claro que a exportação de dinheiro teria de ser seguida pela exportação de força de governo, a posição dos financistas em geral […] enfraqueceu consideravelmente, e a liderança das transações e empreendimentos comerciais imperialistas passou gradualmente aos membros da burguesia autóctone. […] Só com a expansão dos instrumentos nacionais de violência poderia racionalizar o movimento de investimentos no estrangeiro e reintegrar na economia da nação as desenfreadas especulações com o capital supérfluo, desviado para um jogo que tornava arriscada as poupanças. O Estado expandiu o seu poder porque, dada a escolha entre as perdas (maiores do que poderia aguentar a estrutura econômica de qualquer país) e os lucros (maiores do que qualquer povo sonharia obter), só podia escolher estes últimos”.[4]

Seja o imperialismo de ultramar, seja o imperialismo continental, nosso foco, encontram em Hobbes uma breve justificativa da característica do homem que fez parte da realização de todo esse processo: “Os homens que têm em alta conta a sua sabedoria em questões de governo inclinam-se para a ambição”[5].

Nos movimentos de unificação territorial, essa ambição tratada por Hobbes teve um traço crucial: a organização dos indivíduos em partidos e movimentos políticos. Desde já pode-se concluir que independente das consequências posteriores ao imperialismo continental e à forma como o Regime Nazista (sem esquecer de fazer menção ao Stalinismo) se apoderou dele para instituir o Totalitarismo, as consequências do imperialismo continental foram muito mais nefastas ao continente europeu do que as do imperialismo de ultramar.

Os dois modelos de imperialismo diferenças fundamentais pois seus êxitos e seus fracassos foram diametralmente opostos:

“Enquanto o imperialismo continental, mesmo em seu começo, conseguiu realizar a sua hostilidade contra o Estado-nação, organizando vastas camadas do povo fora do sistema partidário, mas sem jamais obter resultados em termos de expansão perceptível, o imperialismo ultramarino, em sua louca e bem-sucedida carreira para anexação de um número crescente de territórios extensos, nunca teve muito sucesso em mudar a estrutura política de seu país de origem.”[6]

Como foi citado acima, o imperialismo ultramarino tinha um telos claramente distinto do imperialismo continental, pois se concretizou com a exportação de força e capital, sem o interesse na criação de um novo corpo político, tampouco no estabelecimento de uma mudança na estrutura política interna:

“A política interna e a política internacional nada mais são do que duas manifestações diferentes do mesmo fenômeno: a luta pelo poder. Suas manifestações diferem em dois aspectos distintos porque, em cada uma delas, prevalecem diferentes condições morais, políticas e sociais. As sociedades nacionais modernas demonstram no seu interior um grau de coesão social maior do que o existente entre elas. Elementos como uniformidade cultural, unificação tecnológica, pressões externas e, acima de tudo, organização política hierárquica combinam-se para fazer com que a sociedade nacional se torne uma entidade completamente integrada, distinta de outras sociedades nacionais”.[7]

Diante da agressão ao Estado-nação, perpetrada pelo imperialismo continental, os movimentos passaram a competir internamente com a organização político-partidária: “verificou-se também que eles só podiam debilitar países que tivessem um sistema multipartidário e que a mera tradição imperialista não era suficiente para lhes dar ‘apelo de massa’”[8].

Os dirigentes do Totalitarismo não tinha interesse algum em regular juridicamente as classes sociais, pois a Lei[9], apesar de existir, era simplesmente desconsiderada, tanto no Nazismo quanto no Stalinismo. As “massas”, conjunto heterogêneo de pessoas, assim, são fundamentais para estes Regimes.

O Conceito de “política”, em Arendt, é central em suas obras, pois possui papel principal na preocupação teórica dela, devido aos acontecimentos do Totalitarismo Nazista, que ela vivenciou.

Segundo ela, é preciso “compreender” (mas não necessariamente “perdoar”) para que haja a necessária reconciliação com o passado, com os erros e acertos nele contidos, e assim que a capacidade de agir não desapareça por medo dos resultados da ação, sendo substituída pelo comportamento.

Mesmo diante de uma situação como a do Totalitarismo, os seres humanos não podem deixar de agir, de iniciar, de inovar, de serem espontâneos e de responsabilizarem-se. Isso é, torna-se necessária uma atitude oposta àquela de uma “sociedade de massa”.

Quando o agir é substituído pelo comportar-se, o pensar pelo automatismo e pela aceitação da situação vigente, abre-se uma lacuna, uma possibilidade para que regimes como os Totalitário surjam em meio dessa sociedade composta por pessoas indiscerníveis, porém isoladas e temerosas, motivo pelo qual não apresentam motivação, nem interesse algum, em se organizar e agir politicamente.

Arendt[10], neste sentido, afirmou que “potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a partidos e raramente exercem o poder de voto”, apesar do ocorrido na Alemanha em 1933.

Arendt focou sua crítica à organização político-partidária continental (multipartidária), em contraste com a organização político-partidária insular (bipartidária). Comentou que a Grã-Bretanha, dado seu bipartidarismo, “não chegou a produzir um movimento de orientação fascista ou comunista de qualquer importância fora do seu sistema de partidos”[11].

A organização política ainda permitiu a manipulação da Sociedade de Massas via o sistema de propaganda. A mentira política passa a ser um meio fundamental de proliferação do poder do governo sobre a sociedade, cujos domínios público[12] e privado[13] foram deturpados por um fenômeno que Arendt denomina de surgimento da “esfera do social[14]:

“A mentira política ocorre quando a história é reescrita; os dados são eliminados ou filtrados; as imagens são construídas com fins definidos, ou seja, quando o cenário político é destruído por esses fatores unidos ou isolados. A mentira funciona, normalmente, quando o mentiroso está cônscio dos objetivos que o levam a alterar a realidade, pois ele constrói o cenário que deseja apresentar, assim como prevê o impacto que pretende obter nos receptores.”[15]

A esfera pública é o local da igualdade na pluralidade. O social para Arendt é uma distorção. O político visa um trabalho, uma espécie de profissão. O público passa a ter a preocupações privadas e o público acaba desaparecendo.

Arendt entende que há três forma principais de organização partidária: o unipartidarismo, o bipartidarismo e o multipartidarismo. Arendt apresenta sua preferência ao bipartidarismo, colocando uma clara distinção entre o sistema partidário continental (multipartidário) e o sistema insular (bipartidário). O problema reside em compreender qual a melhor forma de organização partidária para Arendt e da mesma forma qual organização partidária é mais frágil, o que pode ser uma das origens do totalitarismo.

Além da Grã-Bretanha, Arendt tinha em mente o sistema bipartidário estadunidense, onde não ocorreu a desintegração dos partidos em um sistema unipartidário, capaz de permitir um regime totalitário. Arendt entendia que o sistema bipartidário eram notoriamente melhor que o sistema multipartidário por impedir o esfarelamento do corpo político pelos movimentos de unificação insuflados pelo nacionalismo:

“A invenção decisiva dos movimentos de unificação, portanto, não foi o alegarem estar fora e acima do sistema partidário, mas sim o fato de se chamarem de “movimentos”, sua própria denominação refletindo a profunda desconfiança nos partidos […].”[16]

A insatisfação com o corpo político continental causou, portanto, o processo de desintegração dos partidos políticos pelos movimentos totalitários. O que não pode passar despercebido é que os movimentos totalitários não só suplantaram os partidos políticos, como imprimiram a ideia de que se colocavam acima dos partidos. Os movimentos geraram não a desconfiança no parlamento e nas instituições de Estado, pelo contrário, o que se passou foi uma completa descaracterização das instituições de Estado em razão da instabilidade que os movimentos trouxeram à Europa continental, algo que Arendt observou que não se passou na Europa insular: “Atualmente, a Grã-Bretanha é o único país da Europa em que o Parlamento não é desprezado e onde o sistema partidário não despreza a animosidade do povo”[17].

É justamente a estabilidade política bretã que fez Arendt se inclinar pela preferência ao bipartidarismo[18], pois enquanto o sistema continental esfarelava-se, as instituições políticas britânicas permaneciam intactas. Mesmo as mudanças implicadas pelo fim do Imperialismo e pela Segunda Guerra Mundial não foram partícipes de uma desconfiança institucional dos britânicos em suas instituições políticas:

“Os movimentos totalitários são possíveis onde quer que existam massas que, por um motivo ou outro, desenvolveram certo gosto pela organização política[19]. As massas não se unem pela consciência de um interesse comum e falta-lhes aquela específica articulação de classes que se expressa em objetivos determinados, limitados e atingíveis.”[20]

Mesmo que existissem movimentos suprapartidários tão fortes e incisivos como os que se passaram na Europa continental, a partir do pensamento de Arendt, é bem provável que podemos entender que o sistema partidário britânico permitiu que o seu corpo político se mantivesse estável, mesmo diante das crises políticas e jurídicas exteriores. Essa estabilidade adentra a uma diferenciação bastante relevante: como o partido atua dentro do corpo político e qual é o “status” do cidadão no Estado.

É aqui que jaz a diferença fundamental entre o bipartidarismo e o multipartidarismo:

“No sistema bipartidário, um partido sempre representa o governo e realmente governa o país, de sorte que, temporariamente, o partido no poder identifica-se com o Estado. O Estado, como garantia permanente da unidade do país, é representado apenas pela permanência da função do rei. Como ambos os partidos são planejados e organizados para governarem alternadamente, todos os setores da administração são planejados e organizados para essa alternação”.[21]

O corpo político já é notoriamente preparado para um exercício de freios e contrapesos, para uma harmonia entre o governo e os partidos. As diferenças entre o governo e o Estado ficam de lado. Ambos os partidos trabalham em prol do Estado, pois há uma forte tendência de que futuramente o partido que ora não ocupa o governo, venha a exercê-lo, passando a ter a sua agenda fiscalizada pelo partido de oposição.

O governo fica na dependência da confiança que lhe é conferida pelo parlamento: “A principal punição que o Congresso pode impor às autoridades do Poder Executivo é seu afastamento do cargo”[22]. O governo, fica, portanto, na dependência de sua boa prestação de contas para com o poder legislativo, pois o partido de oposição não precisa se preocupar em realizar alianças, ele tem como principal mister a fiscalização do governo, v.g., mediante comissões próprios, comitês, relatórios e órgãos de controle externo.

Sobre a organização partidária continental, Arendt comenta que:

“O sistema partidário do continente pressupõe que cada partido se defina conscientemente como parte do todo, e este “todo”, por sua vez, é representado por um Estado acima dos partidos, enquanto que o governo unipartidário só pode significar o domínio ditatorial de um partido sobre todos os outros. Já os governos formados por alianças entre líderes partidários são apenas governos partidários, claramente distintos do Estado, que permanece acima e além de todos eles.”[23]

A formação de governos partidários, nos quais estes estão mais interessados em realizar alianças do que efetivamente fiscalizar o governo, dão azo à instalação de um regime unipartidário. Arendt faz uso de um critério bastante interessante para problematizar o sistema multipartidário:

“Uma das desvantagens desse sistema é que os membros do gabinete não podem ser escolhidos segundo sua competência, pois, quando há muitos partidos representados, os ministros são necessariamente escolhidos segundo as alianças partidárias; o sistema britânico, por outro lado, permite a escolha dos homens mais capazes dentro os vastos escalões de um só partido.”[24]

A propensão a uma ditadura, a um regime unipartidário, logo, está presente no sistema multipartidário e não no sistema bipartidário. A busca pela possibilidade de governar, força que os interesses de Estado sejam deixados de lado, tornando os interesses de governo algo mais relevante do que a gestão da coisa pública. É forçoso ressaltar que Arendt não se preocupa com qual estrutura partidária é melhor para que tenhamos um melhor corpo político e sim qual estrutura partidária tem maior propensão a esvair-se e dar lugar ao Totalitarismo, pois Arendt nos apresenta o Totalitarismo como algo inteiramente novo e distinto do que se havia visto antes. Ocorre que uma certa combinação de elementos políticos permitiram que esse fenômeno ocorresse:

“Arendt nos dice el totalitarismo es un fenómeno radicalmente nuevo, que se caracteriza por tener una serie de elementos que están presentes en la política del siglo XIX y principios del XX, y que cristalizan en la forma política del régimen totalitario mediante el antisemitismo, la decadencia del Estado-Nación, el racismo, la expansión capitalista e imperialista y la alianza entre el capital y el pueblo”[25].

O sistema partidário é ainda uma fonte de identificação de interesses particulares e de interesses públicos, sendo estes suplantados por aqueles em corpos políticos voláteis. Os interesses particulares deveriam ter o seu lugar dentro dos próprios partidos, mas como bem disse Arendt, quando as alianças e a composição do governo, em vista da necessidade premente de governabilidade, toma o lugar que é caro ao interesse público, não há competência que justifique a distribuição de cargos públicos e sim os interesses partidários que passam a estar acima dos interesses de Estado.

O multipartidarismo apresenta outro entrave que dificulta a fixação dos interesses coletivos em lugar dos particulares. Há uma distância entre governar e acumular o poder necessário para tanto. Em um País com múltiplos partidos, os parlamentos são policromáticos e colocam-se à disposição de quem melhor lhes acolher.

A relação entre o Estado e o partido e a identificação do partido que está temporariamente governando é fundamental para a caracterização do problema que Arendt encontrou nas organizações partidárias insulares e continentais, pois num sistema bipartidário há uma ficção de que o partido que ora está no poder é claramente limitado, seu mandato não pode jamais lhe garantir um perpetuidade permanente, já que o controle exercido pelo partido de oposição é muito mais rígido do que em um sistema multipartidário. Neste, as alianças e coalizões dificultam essa fiscalização, já que quem exerce o controle da agenda da chefia de governo é, por excelência o legislativo, em respeito à ideia de freios e contrapesos.

Quando um partido político atua de forma incisiva na investigação da agenda do chefe de governo, da mesma forma que ele fiscaliza a atuação dos prepostos do mandatário do poder, ele tem a perspectiva diferenciada: “o partido de oposição exerce um controle cuja eficiência é fortalecida pela certeza de que governará amanhã”. (Arendt, 1989, p. 285)

O agente que apoiou, permitiu e vivenciou (mas parece nada ter aprendido com) a sociedade totalitária foi o “homem de massa”. Esse indivíduo renunciou não apenas à vida política e em conjunto com seus iguais e pares, mas também ao humano: ele consome, se diverte, “mata” seu tempo livre, mas não fica satisfeito, não se educa, não se sente mais seguro, mais humano. Assim, um conflito cada vez mais marcante entre ele e o mundo, enquanto criação humana, passa a ocorrer, abrindo espaços, em uma sociedade que parece expropriá-lo e pressioná-lo, aos Regimes Totalitários e à ocorrência do “mal banal”, um mal político que é realizado por pessoas “normais”, mas que não se colocam no lugar dos outros, não pensam, não se responsabilizam.

A inexistência de responsabilidade traz consigo o desinteresse pela gestão dos interesses da coisa pública. Esse desinteresse é característico do homem de massa, já que ele é preguiçoso, faz questão de manter-se isolado dos outros indivíduos e satisfaz-se com o entretenimento, já que ele não aprecia os elementos culturais oferecidos a ele. Há, portanto, um interesse em como essa responsabilidade de gestão é realizada: “Muito mais importante, contudo, é o fato que o sistema multipartidário nunca permite que um só homem ou um só partido assuma a inteira responsabilidade”. (Arendt, 1989, p. 285)

Em uma sociedade composta por homens e mulheres de massa não se pode ensejar que eles possam ser considerados sujeitos (na acepção arendtiana que segue o Iluminista Kant). Um sujeito almeja se tornar um cidadão quando adulto, e, portanto, apto à vida pública e política. Ou seja, ele anseia estar com sujeitos como ele (“inter pares esse”), tratando dos “assuntos humanos”, os quais tratam de temas de interesse ou preocupação de todos (lixo, água, fome, camada de ozônio, derretimento das calotas polares, guerras, para citar apenas alguns exemplos), independentes dos interesses individuais ou grupais. E o faz por meio da palavra, da escuta, da concordância ou não, mas sem o uso da violência, da coerção, da corrupção. A participação na esfera pública ocorre porque cada um se sente partícipe da sociedade em que habita e, por isso também responsável por ela. E, dessa forma, não há espaço para regimes como os Totalitários.

Há uma fragmentação entre quem é politicamente responsável e que é apenas juridicamente responsável. Por isto que em uma sociedade de massas, o governo é burocrático, uma simples administração da coisa pública que parece prescindir daqueles que ela deveria servir e proteger. Sua preocupação é social. É um governo representativo, eleito pelo voto popular, muitas vezes irrefletido porque obrigatório, mal informado, porque resultado de atitudes de burocratas com interesses escusos, isto é, diferentes daqueles do humano que deveriam representar e defender. Em suma, seus participantes apenas patrocinam os interesses de alguns pequenos grupos sociais ora privilegiados e realizados por profissionais “do poder”.

Uma eleição pelo voto popular mecânico e sem responsabilidade pelas consequências apenas pôde existir em uma sociedade de massas, pelo abandono da “coisa pública”, do “bem comum”, pois foi esse homem de massa, diante de suas características peculiares, que permitiu que o Totalitarismo germinasse, se instalasse e tivesse os resultados vivenciados no século XX, mas que se espraiam no XXI.

In fine, o sistema multipartidário é mais propício a gerar, no futuro, uma organização unipartidária, já que no sistema continente o Estado está acima dos partidos. Num sistema bipartidário há a expectativa de que o partido que não está no poder, mesmo assim, tenha a possibilidade de participar do controle da agenda do chefe de governo, sem necessitar formar alianças e coalizões, algo que se demonstra como típico do regime partidário continental.

 

Referências
Arendt, Hannah. Origens do Totalitarismo. Tradução: Roberto Raposo. Vol. 1o. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Figueiredo, Argelina. “Instituições e Política no Controle do Executivo.” Dados – Revista de Ciências Sociais (UERJ) 44, 4 (2001): 689-727.
Gómez, Álvaro Díaz, e Cristina Sánchez Muñoz. “Vigencia y pertenencia del pensamiento de Hannah Arendt: sus aportes sobre el totalitarismo.” Revista de Estudios Sociales (Universidad de Los Andes) 1, 31 (Setembro-Dezembro 2008): 164-171.
Hobbes, Thomas. Leviatã. 2a. Tradução: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Morgenthau, Hans. A Política entre as Nações. Tradução: Kenneth Thompson. Brasília: UnB, 2003.
Schio, Sônia Maria. Hannah Arendt: História e Liberdade – da Ação à Reflexão. 2. Porto Alegre: Clarinete, 2012.
 
Notas:
[1] Arendt, H. (1989). Origens do Totalitarismo (Vol. 1o). (R. Raposo, Trad.) São Paulo: Companhia das Letras. p. 254.

[2] Arendt. H. (1989). op. cit. p. 253.

[3] Idem. p. 164.

[4] Ibidem. pp. 165-166.

[5] Hobbes, T. (2008). Leviatã (2a ed.). (J. Monteiro, & M. Silva, Trads.) São Paulo: Martins Fontes. p. 88.

[6] Arendt. H. (1989). op. cit. p. 282.

[7] Morgenthau, H. (2003). A Política entre as Nações. (K. Thompson, Trad.) Brasília: UnB. p. 87.

[8] Arendt. H. (1989). op. cit. p. 282.

[9] Nesse sentido, a lei é um dos requisitos fundamentais para a garantia da vida em conjunto, e para que haja estabilidade, segurança, é preciso justiça. Apesar de Arendt não ter nenhum escrito que aborde, expressamente, a Filosofia do Direito, pode-se depreender de seus escritos que sem um regime legislativo completo, que para ela é obtido por meio da vivência política

[10] Idem. p. 361.

[11] Ibidem. p. 282.

[12] A esfera pública é o local da igualdade na pluralidade. O social para Arendt é uma distorção. O político visa um trabalho, uma espécie de profissão. O público passa a ter a preocupações privadas e o público acaba desaparecendo.

[13] No domínio privado (onde vige a singularidade) está-se protegido por uma esfera em que as necessidades básicas do ser humano são protegidas, é caracterizada pela individualidade, pelas atividades familiares, desportivas, de aconchego, onde o homem vive com o seu próprio grupo.

[14] O homem, na esfera do social, perde “seu valor de uso privado, antes determinado por sua localização, e adquiriu um valor exclusivamente social” (Id, p. 85).

[15] Schio, S. M. (2012). Hannah Arendt: História e Liberdade – da Ação à Reflexão. (2 ed.). Porto Alegre: Clarinete. p. 209.

[16] Arendt. H. (1989). op. cit. p. 283.

[17] Idem. p. 284.

[18] Na Grã-Bretanha o “bipartidarismo” teve a sua origem na forma de organização e divisão do País ao longo dos anos, separando-se conservadores e liberais (hoje institucionalizados pelos “trabalhistas).

[19] A “política” entendida como a escolha de representantes (voto) e de participação em desfiles militares, e não como o entende Arendt, em suas obras, como o gerenciamento dos “assuntos humanos”, isto é, aqueles de interesse público e político, pois referentes aos temas de interesses de tos, ao tratar da vida e da preservação do mundo.

[20] Ibidem. p. 361.

[21] Ibid. pp. 284-285.

[22] Figueiredo, A. (2001). Instituições e Política no Controle do Executivo. Dados – Revista de Ciências Sociais, 44, 4, 689-727. doi:http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52582001000400002. p. 714.

[23] Arendt. H. (1989). op. cit. p. 285.

[24] Idem. p. 285.

[25] Gómez, Á. D., & Muñoz, C. S. (Setembro-Dezembro de 2008). Vigencia y pertenencia del pensamiento de Hannah Arendt: sus aportes sobre el totalitarismo. Revista de Estudios Sociales, 1, 31, 164-171. p. 168.


Informações Sobre o Autor

Gustavo Jaccottet Freitas

Advogado; Especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional pela Universidade Católica do Uruguai; Mestrando em Filosofia pelo PPGFil da Universidade Federal de Pelotas; Membro do Grupo de Estudos Hannah Arendt – GEHAr


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