A investigação criminal à luz da investigação científica: breves considerações sobre uma interface metodológica

Resumo: O presente ensaio objetiva traçar as balizas de uma interface entre a investigação científica e a investigação criminal, a partir da análise filosófico-jurídica de ambas as atividades, que aparentemente coexistem em mundos tão distintos. Para tanto, partir-se-á do estudo filosófico da investigação científica, para em seguida se analisar a investigação criminal, traçando ao final a espinha dorsal para onde a metodologia de ambas converge enquanto investigação.

Palavras-chave: Metodologia da pesquisa; Investigação científica; Investigação criminal; Processo Penal; Polícia judiciária.

Abstract: This essay aims to draw the line of a methodological interface between scientific and criminal investigation, from the philosophical and juridical analysis of both activities, which apparently coexist in completely different worlds. Thus, the analysis starts with the philosophical study of the scientific investigation, and subsequently goes through the criminal investigation, at the end coming to the spine where the method of both converge as investigations.

Keywords: Research methodology; Scientific investigation; Criminal investigation; criminal procedure; Judiciary police.

Sumário: 1. Introdução; 2. A investigação científica; 3. A investigação criminal; 4. Conclusões.

1 INTRODUÇÃO

Objetiva este trabalho brevemente traçar as balizas de uma interface entre a investigação científica e a investigação criminal, a partir da análise filosófico-jurídica de ambas as atividades.

Se, por um lado, o tema se revela solo extremamente fértil, por outro, aparenta obscuridade, uma vez que muito ainda falta para a efetiva compreensão do verdadeiro papel desempenhado pela investigação criminal a partir de um enfoque conglobante, que extravase o direito processual penal para ganhar conotação transdisciplinar. Em verdade, a investigação criminal, enquanto objeto de estudo, na maior parte das vezes é sobejamente incompreendida por tanto por juristas como pela própria sociedade.

Nessa esteira, longe de esgotar tão importante tema, o que se propõe aqui é oferecer uma visão panorâmica, onde se parte do estudo filosófico da investigação científica, para em seguida se analisar a investigação criminal, traçando ao final a espinha dorsal para onde a metodologia de ambas converge enquanto investigação.

2. A INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA

Inicialmente, para uma breve compreensão da investigação científica sob o plano filosófico, faz-se necessário se fazer um sintético apanhado da obra de alguns dos pensadores de se debruçaram sobre o tema.

Um marco para o estudo do método da investigação científica, sem dúvida pode ser encontrado na obra de René Descartes e Francis Bacon, filósofos que se notablizaram por serem os pioneiros na busca das regras infalíveis da direção da investigação.

Descartes, na obra Regras para a direção do espírito, expõe as linhas gerais do seu sistema filosófico e científico, através de vinte e uma regras, dentre as quais, tendo em vista a finalidade desta obra, serão sinteticamente comentadas apenas as cinco primeiras[1]:

Primeiramente, “os estudos devem ter por finalidade a orientação do espírito, para que possamos formular juízos firmes e verdadeiros sobre todas as coisas que se lhe apresentam”. Descartes justifica a precedência desta regra em relação às outras, ao argumento de que nada nos afasta tanto do reto caminho da procura da verdade como orientar os nossos estudos para alguns fins particulares, e não para a orientação do espírito. Desta forma, para o referido filósofo, é primordial que o investigador paute as suas pesquisas pela isenção.

Por meio da segunda e terceira regras, quais sejam, “convém lidar exclusivamente com aqueles objetos cujo conhecimento certo e indubitável o nosso espírito é capaz de alcançar”; e “acerca dos objetos considerados, deve-se investigar não o que os outros pensaram ou o que nós próprios suspeitamos, mas aquilo do que podemos ter uma intuição clara e evidente, ou que podemos deduzir com certeza, pois de outro modo não se adquire ciência”; Descartes rejeita todos os conhecimentos baseados em juízos de probabilidade, defendendo que se deve confiar apenas nas coisas perfeitamente conhecidas e das quais não se pode duvidar. Portanto, de acordo com o referido filósofo, a investigação científica destinar-se-ia a busca da verdade real, e não a verdade formal.

Para tanto, Descartes distingue a intuição intelectual da dedução, sendo que, nesta última, se concebe um raciocínio de sucessão pela conclusão de outras coisas conhecidas com certeza, enquanto a intuição consiste em conceitos da mente tão facilmente e distinguíveis que nenhuma dúvida nos fica acerca do que compreendemos. Dessa forma, os primeiros princípios se conhecem somente por intuição, e, pelo contrário, as conclusões distantes só o podem ser por dedução. Estas seriam as duas vias mais seguras para chegar à ciência, devendo todas as outras ser rejeitadas como suspeitas e passíveis de erro.

Com relação sua quarta regra, que estatui que “o método é necessário para a procura da verdade”, convém salientar que, para Descartes, o método é constituído regras certas e fáceis, cuja observância permite nunca tomar por verdadeiro algo falso, atingindo-se o conhecimento verdadeiro de tudo mediante aumento gradual do saber, conforme intelecção descrita na sua quinta regra para a direção do espírito, a seguir reproduzida:

“todo o método consiste na ordem e disposição das coisas, para as quais é necessário dirigir a agudeza do espírito para descobrir a verdade, e isto será observado se reduzirmos gradualmente as proposições complicadas e obscuras a outras mais simples, e se depois, partindo da intuição mais simples, tentarmos nos elevar pelos mesmos graus ao conhecimento de todas as outras”.

Francis Bacon, por sua vez, na obra Novum Organum[2], também propõe a apresentação dos princípios de um novo método para conduzir à busca da verdade, essencialmente ligado à indução, assim entendida como a técnica por meio da qual, a partir de uma coleção limitada de fatos, considera-se que o que é válido para estes é estendido a todos os análogos, ainda que não tenham sido pesquisados um por um. Desta forma, ao admitir a indução como a base de um método para a investigação científica, Francis Bacon, diferentemente de René Descartes, admitiu um método investigativo onde a verdade buscada seria formal, e não necessariamente a real.

Para Bacon, a melhor demonstração consiste naquela rigorosamente derivada da experiência. Assim, também formulou de um engenhoso método de investigação da natureza composto por múltiplas regras, que permitiria um correto conhecimento dos fenômenos, qual seja, o método indutivo. Assim, partindo-se dos fatos concretos, tais como se dão na experiência, ascende-se às formas gerais, que constitui suas leis e causas (axiomas da experiência).

Já para Karl Popper, célebre crítico da concepção indutivista do método científico de Bacon, o método científico consiste em experimentar possíveis soluções para certos problemas com os quais iniciam-se uma investigação ou surgem durante seu curso. As soluções são propostas e criticadas, e sucessivamente refutadas até que uma resista à crítica, sendo aceita sem embargo de, acima de tudo, ser discutida e criticada mais além. Portanto, o método da ciência consiste em tentativas experimentais para resolver nossos problemas por conjecturas que são controladas por severa crítica, sendo um desenvolvimento crítico consciente do método de "ensaio e erro". A assim chamada objetividade da ciência repousa na objetividade do método crítico, fundado na lógica dedutiva[3].

Popper, entretanto, também assevera conceito de verdade é indispensável para a abordagem crítica que desenvolve. O que o referido filósofo critica é, todavia, precisamente a pretensão de que uma teoria é verdadeira. Popper denomina "verdadeira”: uma proposição, se ela corresponde aos fatos, ou se as coisas são como as descritas pela proposição, o que é chamado de, conceito absoluto ou objetivo da verdade. A verdade, por sua vez, seria aproximável a depender o poder explicativo ou conteúdo explicativo de uma dada teoria[4].

Assim como Popper, outro filósofo que trabalhou a solução de problemas como pauta da investigação científica foi John Dewey, mais especificamente em sua obra Lógica – Teoria da Investigação. Para o mesmo, as condições que antecedem a investigação consistem em uma situação objetivamente indeterminada quanto ao seu resultado, sendo que tal situação indeterminada torna-se uma situação problemática durante o processo em que é tornada objeto de investigação e em virtude do mesmo. O modo pelo o problema é concebido decide quais as questões específicas serão tomadas em consideração e quais serão rechaçados, que dados serão selecionados e que dados serão rejeitados, ali residindo o critério que decide sobre a relevância ou a falta dela nas hipóteses e estruturas conceituais.

Desta forma, segundo Dewey, nenhuma situação completamente indeterminada poderá se converter em um problema com partes constitutivas definidas, assim entendidas como dados que constituem os termos do problema que devem ser considerados em qualquer possível solução. Por meio de um discurso racional, os fatos observados e as soluções (ideias) sugeridas relacionam-se entre si, até chegar à clarificação do problema envolvido e a proposta de uma possível solução. Assim, fatos e ideias possuem uma força “operativa”, onde os primeiros possuem uma função de servir como evidência (“prueba”), cuja qualidade se julga com base na sua capacidade de formar um todo ordenado em resposta às operações prescritas pelas ideias a que ocasionam e servem de suporte[5]. As ideias por sua vez, são operativas porque inspiram e dirigem ulteriores operações de observação; são propostas e planos para atuar sobre as condições existentes com efeito de trazer novos fatos à luz e organizar os fatos selecionados em um todo coerente[6]. Desta forma, Dewey conceitua a investigação como “la tranformación dirigida o controlada de una situación indeterminada en otra unificada determinadamente[7].

Outro filósofo que se debruçou sobre a investigação científica e seu método foi o argentino Mário Bunge[8], para quem o método é um procedimento para tratar um conjunto de problemas. De acordo com o referido autor, a ciência é metodologicamente una apesar da pluralidade de seus objetos e das técnicas correspondentes, e natureza do objeto em estudo dita os possíveis métodos especiais do tema ou campo de investigação correspondente. Cada classe de problemas requer um conjunto de métodos ou técnicas especiais. Portanto, ada método especial da ciência érelevante para algum estado particular da investigação científica de problemas de certo tipo.

Ainda de acordo com Mário Bunge, a ciência não pretende ser absolutamente verdadeira, nem final incorrigível, como ao contrário faz a mitologia, por exemplo. O que a ciência afirma é: 1) que é mais verdadeira que qualquer modelo não científico do mundo; 2) que é capaz de provar, submetendo a contraste empírico, essa pretensão de verdade; 3) que é capaz de descobrir suas próprias deficiências; e 4) que é capaz de corrigir suas próprias deficiências, ou seja, de construir representações parciais cada vez mais adequadas das estruturas do mundo. Não existe nenhuma especulação extracientífica que seja tão modesta e que, apesar disto, seja tão confiável.

Todavia, para o filósofo argentino, a investigação científica não termina em um final único ou verdade completa, nem sequer busca una fórmula única capaz de abarcar o mundo inteiro. O resultado de investigação é um conjunto de enunciados (fórmulas) mais ou menos verdadeiros e parcialmente interconectados, que se referem a diferentes aspectos da realidade sendo, neste sentido, uma ciência pluralista. Por outro sentido, em contrapartida, a ciência é monista, pois se depara com todos os campos do conhecimento por meio de um só método e um só objetivo. A unidade da ciência não se baseia em uma teoria única abarque tudo, nem em uma linguagem unificada apta para todos os fins, mas na unidade de sua aproximação.

Desta forma, observa-se que Bunge adere ao conceito de investigação científica como busca de uma verdade formal e corrigível anteriormente defendido por Karl Popper. O que permite à ciência alcançar seu objetivo – a construção de reconstruções parciais e cada vez mais verdadeiras da realidade – é o seu método.

Por outro lado, o método geral da ciência para Bunge é um procedimento que se aplica ao ciclo inteiro da investigação no marco de cada problema do conhecimento. Desta forma, conforme o referido pensador, os estágios principais do caminho da investigação científica, isto é, os passos principais da aplicação do método científico, são os seguintes: 1) enunciar perguntas bem formuladas e verossimilmente fecundas; 2) estabelecer conjecturas, fundadas e contrastáveis com a experiência, para contestar às perguntas; 3) derivar conseqüências lógicas das conjecturas; 4) arbitrar técnicas para submeter a as conjecturas a contraste; 5) submeter estas técnicas a contraste para comprovar sua relevância e a fé que merecem; 6) levar a cabo o contraste e interpretar seus resultados; 7) estimar a pretensão de verdade das conjecturas e a fidelidade das técnicas; 8) determinar os domínios nos quais valem as conjecturas e as técnicas, e formular os novos problemas originados pela investigação.

O método científico, portanto, é uma parte característica da ciência, tanto da pura quanto da aplicada: onde não há método científico não há ciência. Porém, além de não ser infalível, pois pode se aperfeiçoar, ele também não é autossuficiente, pois não pode operar no vazio de conhecimento. Neste particular, verifica-se que o pensamento de Mário Bunge aproxima-se do de John Dewey, na medida em que ambos, cada um à sua maneira, salientam a importância da formulação do problema para o êxito da investigação, uma vez que a mesma não é autossuficiente, requerendo destreza na formulação das perguntas a ser respondidas.

Ainda segundo Bunge, há algumas regras que guiam a execução adequada dos estágios acima elencados, ainda que estas estejam longe de ser infalíveis e dispensar seu ulterior aperfeiçoamento, tampouco se tenha estabelecido uma lista que as esgote. Assim, a título de mera ilustração, Bunge enuncia anuncia algumas regras muito óbvias do método científico, apesar do mesmo entender que se deva resistir a lista-las, tendo em vista considerar fracassadas as tentativas os filósofos que, desde Bacon e Descartes, pretenderam conhecer as regras infalíveis da direção da investigação:

1) Formular o problema com precisão e, em princípio, especificamente;

2) Propor conjecturas bem definidas e fundadas de algum modo, e não proposições sem concretude, tampouco sem fundamento visível;

3) Submeter as hipóteses a rigoroso contraste;

4) Não considerar verdadeira uma hipótese satisfatoriamente confirmada; considera-la, no melhor dos casos, como parcialmente verdadeira;

5) Perguntar porque a resposta é de uma dada forma, e não de outra maneira, não se limitando a fazer generalizações que se adequem aos dados, sem tentar explica-las à luz de leis mais fortes.

Por fim, Bunge esclarece que as regras que compõem a metodologia da investigação científica, embora sejam claramente universais, têm apenas uma justificação pragmática, e não uma justificação teórica. De qualquer modo, deseja-se que as regras do método científico integrem um sistema de normas baseado ou, ao menos, compatível com as leis da lógica e as leis da ciência, não apenas com o desiderato da investigação.

Assim, diante do apanhado da obra de todos os referidos pensadores, pode-se chegar às seguintes constatações com relação à investigação científica:

1) Possui por finalidade a resolução de problemas propostos mediante busca da verdade, tendo esta, ao longo dos anos, partido da concepção de verdade real e absoluta para uma verdade formal aproximada e corrigível (aperfeiçoável);

2) Para o êxito da investigação, é essencial problemas sejam propostos de forma precisa e objetiva, uma vez que a metodologia da investigação científica não é autossuficiente, não podendo se desenvolver no vazio de conhecimento ou na completa indeterminação;

3) As regras que compõem a metodologia da investigação científica têm apenas uma justificação pragmática, e não uma justificação teórica, não podendo ser listadas exaustivamente tampouco ser previstas independentemente do caso concreto. De qualquer modo, deseja-se que as regras do método científico integrem um sistema de normas baseado ou, ao menos, compatível com as leis da lógica e as leis da ciência, não apenas com o desiderato da investigação.

Fixadas estas premissas, a seguir passar-se-á à investigação criminal e sua metodologia, com vistas a identificar seus pontos de conexão com a metodologia da investigação científica.

3 A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

A investigação criminal é o instrumento por meio do qual se perfaz a apuração de fatos supostamente delituosos e correspondente autoria a partir da sua ocorrência ou notícia, com vistas a elucidar se os mesmos se enquadram ou não alguma infração penal. Um conceito mais analítico desta atividade nos é trazido por Manoel Monteiro Guedes Valente[9], conforme excerto a seguir reproduzido:

“A investigação criminal, levada a cabo pela polícia, procura descobrir, recolher, conservar, examinar, e interpretar provas reais e também procura localizar, contactar e apresentar as provas pessoais que conduzam ao esclarecimento da verdade material judicialmente admissível dos factos que consubstanciam a prática de um crime, ou seja, a investigação criminal pode ser um motor de arranque e o alicerce do processo crime que irá decidir pela condenação ou pela absolvição (grifei)”.

Como se pode observar, a investigação criminal tem por objeto a isenta apuração da materialidade e autoria de um suposto crime ou contravenção penal mediante busca da sua verdade fática e jurídica[10] com base em um juízo de probabilidade indiciária[11].

Neste particular, cumpre salientar que a concepção de verdade colimada pela investigação criminal diz respeito à verdade processual (adequada à persecução penal como um todo), definida por Luigi Frerrajoli, que a dicotomiza entre verdade processual de fato e de direito, as quais não podem ser afirmadas por observações diretas. A verdade processual fática, para o referido jurista, consiste em um tipo particular de verdade histórica, relativa a proposições que falam de retratos passados, não diretamente acessíveis como tais a experiência; enquanto a verdade processual jurídica é uma verdade que pode se chamar de classificatória, ao referir-se à classificação ou qualificação dos fatos históricos comprovados conforme as categorias pelo léxico jurídico e elaboradas mediante a interpretação da linguagem legal[12].

Desta forma, a investigação criminal, assim como a investigação científica, colima a busca de uma verdade formal aproximada e corrigível (aperfeiçoável), com a peculiaridade de na primeira esta verdade ser ordinariamente retrospectiva, uma vez que esta em regra diz respeito a fatos passados não mais acessíveis à experiência[13].

Portanto, como veículo da busca pela verdade processual (formal), decorrem da investigação criminal três funções básicas: resguardar a imparcialidade, economicidade e eficiência da Justiça Criminal, exsurgindo, da soma destes três fatores, o principal bem jurídico tutelado pela mesma, qual seja, a defesa da ordem jurídica[14].

A imparcialidade da Justiça Criminal permanece resguardada pela investigação criminal na medida em que a esta municia o Juiz com uma instrução provisória procedida por um órgão não comprometido ou vinculado com a acusação ou a defesa, preservando-o de juízos açodados e/ ou parciais.

Tal observação restou bem ilustrada no item IV da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal vigente, ao discorrer sobre o inquérito policial:

“É ele uma garantia contra apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação moral causada pelo crime, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas. Por mais perspicaz e circunspeta, a autoridade que dirige a investigação inicial, quando ainda perdura o alarma provocado pelo crime, está sujeita a equívocos ou falsos juízos a priori, ou a sugestões tendenciosas.

Não raro, é preciso voltar atrás, refazer tudo, para que a investigação se oriente no rumo certo, até então desapercebido. Por que então, abolir-se o inquérito preliminar ou instrução provisória, expondo-se a justiça criminal aos azares do detetivismo, às marchase contramarchas de uma instrução imediata e única? Pode ser mais expedito o sistema de unidade de instrução, mas nosso sistema tradicional, como inquérito preparatório, assegura uma justiça menos aleatória, mais prudente e serena.” (grifei)

A economicidade da Justiça Criminal mantém-se igualmente preservada pela investigação criminal na medida em que esta evita que acusações infundadas ou temerárias sejam indevidamente judicializadas, evitando que sejam submetidos a Juízo um sem número de casos fatalmente destinados à absolvição, bem como salvaguardando direitos individuais ao evitar que inocentes sejam açodadamente submetidos ao desgaste de um processo penal.

Para Aury Lopes Jr., a função de evitar acusações infundadas é o principal fundamento da investigação criminal, pois, em realidade, evitar acusações infundadas é assegurar a sociedade de que não existirão abusos por parte do poder persecutório estatal, uma vez que a impunidade causa uma grave intranquilidade social, não menos grave é o mal causado por processar um inocente[15]. Essa atividade de “filtro processual”, para o referido autor, resta plenamente concretada se levarmos em consideração três fatores: o custo do processo judicial, o sofrimento que causa para o sujeito passivo (estado de ânsia prolongada) e a estigmatização social e jurídica que gera[16].

José Pedro Zaccariotto vai ainda mais além, ao esclarecer que parte considerável das notícias de crimes que cotidianamente chegam às Delegacias de Polícia dizem respeito a fatos por vezes até induvidosamente ilícitos, porém carentes de comprovação quanto à sua efetiva natureza, se civil ou criminal, como ocorre, com grande frequência, em face de casos permeados por hipotéticos descumprimentos de obrigações, normal e insistentemente interpretados como estelionatos e apropriações indébitas, mercê da tênue linha que demarca a fronteira das aludidas espécies. Nesses e em tantos outros casos semelhantes não deve a investigação criminal objetivar a descoberta do autor dos fatos que se lhe são apresentados de forma sintética e parcial, mas, sim, e antes de mais nada, desvendar se estes fatos subsumem-se ou não à alguma hipótese delituosa[17].

Desta forma, para o êxito da investigação criminal, assim como na investigação científica, é essencial que problemas, consubstanciados em fatos supostamente criminosos, sejam propostos de forma precisa e objetiva, uma vez que a metodologia da investigação criminal também não é autossuficiente, não podendo se desenvolver no vazio de conhecimento ou na completa indeterminação, situação da qual se aproximam as notícias de crime que não trazem indícios mínimos de prática delituosa.

Em contrapartida, o que passa pelo referido “filtro processual”, com a devida apuração de materialidade a autoria delituosas, resulta em uma maior eficiência da Justiça Criminal, ao permitir que a parte autora da ação penal ingresse em juízo com elementos mínimos que viabilizem que o mesmo possa legitimamente exercer o jus persequendi, com uma perspectiva concreta de possível condenação. E, neste particular, deve-se salientar que, apesar da instrução preliminar não ser indispensável ao ajuizamento da ação penal, esta, em regra, acompanha a inicial acusatória, dotando-a de maior credibilidade por ser instruída com elementos colhidos por um órgão alheio e neutro em relação ao destino da causa.

Entretanto, esta terceira função, apesar de não mais importante do que as outras duas anteriormente ilustradas, lastimavelmente, é a única correntemente referida pela doutrina processualista penal brasileira[18], o que acaba por reduzir a investigação criminal a um exercício unidirecional e monocular, voltado tão somente para viabilizar a pretensão da parte acusadora de subsequente processo penal, cuja condenação seria seu objetivo principal. Tal direcionamento, além de em franco descompasso com a paridade de armas requerida pelo devido processo legal. sob um prisma filosófico acaba por recair na concepção de verdade notabilizada por Michel Focault, onde esta é derivada de múltiplas coerções e produz no mundo efeitos regulamentados de poder, e é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de um ou mais aparatos hegemônicos[19].

Portanto, ao se analisar conjuntamente as três funções supra decompostas, observa-se que a investigação criminal, a par da concepção reducionista aparentemente pacificada na doutrina jurídica pátria, deve ser exercida objetivando a busca isenta pela busca da verdade formal e a priori.

Por sua vez, com relação à metodologia da investigação criminal, cumpre trazer à baila as lições de André Rovegno, que assevera não existir no inquérito policial uma sucessão de atos que implique em um encadeamento, onde o antecedente condicione o consequente, tampouco legislação a indicar, obrigatoriamente, a ordem de tal sucessão, como nos processos e procedimentos. Vale dizer, a lei confere ampla margem de discricionariedade para que a autoridade de polícia judiciária (em regra o Delegado de Polícia) aprecie os múltiplos caminhos a seguir[20]. Para tanto, deverá atentar ao sucesso da investigação (que significa a maior aproximação possível da verdade) e aos direitos fundamentais de indiciados e investigados, bem como ao disposto a legislação processual penal que, repita-se, não implica em ordenação de atos. Ainda segundo o referido autor, “Apenas o destino está fixado: a reconstrução, pautada pelo imperativo de busca inarredável pela verdade, de um fato que se apresentou preliminarmente como criminoso[21].

Ou seja, assim como na investigação científica, as regras que compõem a metodologia da investigação criminal têm apenas uma justificação pragmática, e não uma justificação teórica, não podendo ser listadas exaustivamente tampouco ser previstas independentemente do caso concreto. Todavia, é imperioso tais regras integrem um sistema de normas baseado num arcabouço jurídico, não apenas compatível com as leis da lógica e as leis da ciência (além do desiderato da investigação), mas também com os direitos fundamentais dos indiciados e investigados.

Neste particular, assevera Eliomar da Silva Pereira que os direitos fundamentais implicam em verdadeira interferência jurídica no método da investigação criminal, que embora não seja determinado por regras positivas necessárias de pesquisa, encontra-se limitado por regras negativas, que tiram do seu âmbito de possibilidade uma parcela de caminhos considerados inadmissíveis perante o direito, ou admitidos somente sob certas condições[22].

Todavia, não se pode olvidar que, ainda que em menor escala, as investigações científicas também estão sujeitas a limitações jurídicas decorrentes de direitos fundamentais, como em questões polêmicas relacionadas ao Biodireito[23], onde o método da investigação científica, a depender do objeto de estudo, pode implicar em violação a direitos fundamentais, notadamente aqueles relacionados à dignidade da pessoa humana.

4. CONCLUSÕES

Como já salientado, a ciência é metodologicamente una, apesar da pluralidade de seus objetos e das técnicas correspondentes. Por sua vez, a natureza do objeto em estudo dita os possíveis métodos especiais do tema ou campo de investigação correspondente, não sendo diferente com a investigação criminal, dadas as peculiaridades do fato delituoso, que é seu objeto. Desta forma, conclui-se ser plenamente possível se vislumbrar uma interface metodológica entre as investigações científica e criminal, a partir das seguintes assertivas:

1) A investigação criminal, assim como a investigação científica, colima a busca pela verdade, contemporaneamente concebida de maneira formal aproximada e corrigível (aperfeiçoável), com a peculiaridade de na investigação criminal esta verdade ser ordinariamente retrospectiva, uma vez que esta em regra diz respeito a fatos passados não mais acessíveis à experiência;

2) Para o êxito da investigação criminal, assim como na investigação científica, é essencial que problemas, consubstanciados em fatos supostamente criminosos, sejam propostos de forma precisa e objetiva, uma vez que ambas as metodologias não são autossuficientes, não podendo se desenvolver no vazio de conhecimento ou na completa indeterminação;

3) Assim como na investigação científica, as regras que compõem a metodologia da investigação criminal têm apenas uma justificação pragmática, e não uma justificação teórica, não podendo ser listadas exaustivamente tampouco ser previstas independentemente do caso concreto. Todavia, é imperioso tais regras integrem um sistema de normas baseado num arcabouço jurídico, não apenas compatível com as leis da lógica e as leis da ciência (além do desiderato da investigação), mas também com os direitos fundamentais dos indiciados e investigados.

4) Os direitos fundamentais implicam em verdadeira interferência jurídica no método da investigação criminal, e, em menor escala, também no método da investigação científica, uma vez que ambos, embora não sejam determinados por regras positivas necessárias de pesquisa, encontram-se limitados por regras negativas, que tiram do seu âmbitos de possibilidade uma parcela de caminhos considerados inadmissíveis perante o direito, ou admitidos somente sob certas condições.

 

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Notas:
[1] Resenha de: DESCARTES, René. Regras para a direcção do espírito. Lisboa: Edições 70, 1990, p.11-32.

[2] BACON, Francis. Novum Organum. Trad. José Aluysio Reis de Andrade. Pará de Minas: Virtualbooks, 2000-2003.

[3] POPPER, Karl. A Lógica das ciências sociais. 3ª ed., Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004, p. 16 e 26.

[4] Idem, ibidem, p. 27-28.

[5] DEWEY, John. Logica: Teoría de la investigación. México-Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 1950, p.132.

[6] Idem, Ibidem, p. 131.

[7] Idem, ibidem, p. 136.

[8] Cf. BUNGE, Mario. La investigacíon cientifica, Capítulo 1 – El enfoque científico. Disponível em <http://www.4shared.com/document/JICFcfgp/Mrio_Bunge_EL_ENFOQUE_CIENTF.html >. Acesso em: 21 mai. 2013.

[9] VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Teoria Geral do Direito Policial, 2ª Ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 102.

[10] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer et al. 3ª Ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 54.

[11] Neste particular, cumpre salientar que juízo de probabilidade na investigação criminal, por ser indiciário, a priori revela-se sumário e deve se ater à sua própria finalidade, qual seja, justificar o processo ou não processo criminal. Em contrapartida, o juízo de probabilidade no processo criminal, por ser exauriente, deve-se revelar mais aprofundado, de sorte a justificar a absolvição ou condenação. A respeito, cf. PEREIRA, Eliomar da Silva. Teoria da investigação criminal: Uma introdução jurídico-científica, Coimbra: Almedina, 2010, p. 135-138.

[12] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer et al. 3ª Ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 54.

[13] Ressalvam-se aí os inquéritos policiais iniciados mediante prisão em flagrante ou onde houver ação controlada (arts. 8º e 9º da lei no 12.850/2013), onde uma parte da investigação pode se dar em tempo real, em que os pese os fatos apurados não serem passíveis de ser reproduzidos por experimentos, mas apenas de forma simulada (art. 7º do CPP).

[14] Idem, Ibidem.

[15] LOPES JR., Aury Lopes. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 47.

[16] Idem, Ibidem.

[17] ZACARIOTTO, José Pedro. Op. Cit., 2005, p. 110.

[18] Neste sentido, OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 3ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 31; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, volume 1. 25ª ed. São Paulo: RT, 2003, p. 192; CAPEZ, Fernando, Curso de Processo Penal. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 64; MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 8ª Ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 1998, p. 73, NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 2ª Ed. – São Paulo: RT, 2006, p. 126; MENDRONI, Marcelo Batlouni. Curso de investigação criminal. 2ª ed. rev. e aum. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2008, p. 339.

[19] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Disponível: em <http://www.nodo50.org/insurgentes/biblioteca/A_Microfisica_do_Poder_-_Michel_Foulcault.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2013., p.10-11.

[20] ROVEGNO, André. O inquérito Policial e os Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa. Campinas: Bookseller, 2005, p. 178-179.

[21] Idem, ibidem, p. 179.

[22] PEREIRA, Eliomar da Silva. Op. Cit., 2010, p. 63.

[23] Como exemplo, cf. STF – ADI 3510/DF – Tribunal Pleno – Rel. Min. Carlos Britto- j. em 25/04/2006, DJe 28/05/2010.


Informações Sobre o Autor

Aldo Ribeiro Britto

Mestrando em Direito Público Pela Universidade Federal da Bahia Especialista em Direito do Estado Delegado de Polícia Federal


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