Resumo: A recente relativização e extensão da obrigação de alimentos até parentes de 3º e 4º grau, tem sido alvo de constantes embates doutrinários. Temática complexa e de extrema importância, o direito a essa garantia é condição ímpar a manutenção da dignidade do credor de alimentos. Reconhecendo a natureza sensível desse instituto, este trabalho busca iniciar um estudo sobre os princípios que norteiam essa nova hermenêutica civil brasileira. Desnudando sua natureza jurídica e origem, para que assim seja agregado conhecimento suficiente para a análise e discussão de alguns critérios objetivos, necessários a adaptação justa e legal dos princípios constitucionais e normas civis ao caso concreto[1].
Palavras-chave: Obrigação de Alimentos. Devido Processo Legal. Neoconstitucionalismo. Segurança Jurídica. Dignidade da pessoa humana.
Abstract: The recent relativization and extension of the food obligation to 3rd and 4th grade relatives has been the subject of constant doctrinal clashes. Complex matter and of extreme importance, the right to this guarantee is a unique condition to maintain the dignity of the creditor of food. Recognizing the sensitive nature of food obligation institute, this work, seeks to initiate a study on the guiding principles off this new Brazilian civil law hermeneutics. Denuding its legal nature and origin, so that sufficient knowledge is added for the analysis and discussion of some objective criteria, necessary to fair and legal adaptation of the constitutional principles and civil norms to the concrete case.
Keywords: Food Obligation. Due Process of Law. Neo-constitutionalism. Legal Security. Human Dignity.
Sumário: Introdução; 1 A Expansão da Segurança e sua influência na formação dos Princípios do Devido Processo Legal e da Segurança Jurídica; 1.1 O Devido Processo Legal; 1.2 A Segurança Jurídica; 2 O Princípio da Dignidade Humana; 3 Interpretação extensiva do Artigo 1697 do Código Civil; 4 Possíveis critérios Objetivos norteadores da aplicação e extensão da norma; Conclusão; Referências
INTRODUÇÃO
Afinal o que seria uma família? Apenas um ajuntamento de pessoas que se reúnem em datas específicas? Uma foto na parede? É certo que este conceito ultrapassa muito mais do que isso, abarcando significados em diversas matérias de cunho científico, social, jurídico e biológico. Além disso, a nova vertente de entendimento caracterizada pela desbiologização da paternidade nos obriga a rever o elemento basilar do vínculo jurídico entre parentes, que antes era baseado, principalmente, na ligação consanguínea entre os indivíduos, entendimento que se modificou, atribuindo agora, como maior fator motivacional, o laço afetivo característico entre os entes (o que se amolda perfeitamente a nova dinâmica social brasileira). Diante disso, é importante transcender essa visão simplória e resgatar o sentido fraternal e cooperativo do conceito de família, sentido este reconhecido e cobrado pelo Estado de inúmeras formas, sendo uma delas a prestação de alimentos, o alvo da discussão apresentada neste trabalho.
Alimentos são prestações que tem como objetivo a garantia de atendimento às necessidades vitais básicas a uma vida digna, sejam elas a alimentação saudável, habitação, saúde e educação, devendo ser direcionadas a quem não possuir a capacidade de provê-las por si só, seja por motivo de saúde, idade ou por miséria econômica em sentido estrito. Os alimentos podem ter como credores os parentes, cônjuges, companheiros ou entidades caracterizadas por uma relação afetiva (incidindo aqui também relacionamentos homoafetivos), desde que o alimentado comprove não possuir meios para prover seu próprio sustento, e o alimentante possua capacidade de fornecê-los sem isso incidir qualquer prejuízo necessário ao seu sustento.
Esse dever de sustento tem origem em diversos institutos e prerrogativas legais, cada qual direcionado a uma determinada relação, por exemplo: na relação parental entre pai e filho, enquanto menor, essa obrigação dá-se basicamente em razão do poder familiar, sendo positivado em inúmeros dispositivos como o art. 229 CRFB/88, art. 22 ECRIAD e arts. 1630, 1634 e 1635, inciso III do CC. Quando este dever alcança outros parentes, cônjuges, companheiros ou indivíduos relacionados afetivamente, a esfera de justificação se expande, alcançando não só normas do Direito Civil, como os artigos 1694, 1696, 1697, 1698, 1708, 1724 do CC, mas também princípios constitucionais como a solidariedade entre parentes e a dignidade da pessoa humana. Apesar de clara congruência e relação com inúmeros princípios constitucionais, ainda existe grande controvérsia doutrinária quando essa obrigação familiar atinge parentes de 3º e 4º grau. O maior desafio é a aplicação desse direito ao caso concreto, uma vez que possui caráter extremamente sensível e complexo, afetando diretamente a esfera individual patrimonial do indivíduo, sua intimidade e dignidade, podendo provocar grande insegurança jurídica à justiça brasileira caso algum vício ou abuso contamine alguma decisão ou entendimento jurisprudencial.
Defendendo a vertente que apoia o acionamento de parentes de 3º e 4º grau, e reconhecendo a falha legislativa em omitir essa possibilidade, Louzada (2005, p. 17) admoesta que a possibilidade de obrigação alimentar por parte dos tios, sobrinhos e primos, decanta apologia à própria vida, que por vezes, só se tornará viável ante a receptividade do julgador a trilhar novos caminhos, mesmo que em um primeiro momento o legislador tenha falhado em deixá-lo explicito no texto legal. Buscando iluminar esses novos caminhos citados por Louzada (2005), será iniciado um estudo sobre os princípios que norteiam essa nova prática civil brasileira, assim como suas naturezas jurídicas e origens, analisando e propondo ao final da discussão alguns critérios objetivos que visam fornecer segurança jurídica e operabilidade durante a aplicação dessa prática ao caso concreto através do devido processo legal.
1 A EXPANSÃO DA SEGURANÇA E SUA INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E DA SEGURANÇA JURÍDICA
A concepção de segurança tem como fonte a própria natureza jurídica estatal, afinal, como garantir a liberdade natural e individual do homem, concedendo e protegendo também a segurança e o bem-estar social? O filósofo francês Jean-Jacques Rousseau percebe essa problemática, e conclui:
“Suponhamos que o homem chegando a aquele ponto em que os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam pela sua resistência as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse estado. Então, nesse estado primitivo já não pode subsistir, e o gênero humano pereceria se não mudasse de modo de vida” (ROUSSEAU, 1964, p. 360).
Diante disso, Rousseau propõe o conceito de “Contrato Social”, caracterizado pela mitigação da liberdade natural em face da criação da liberdade civil e da instituição e legitimação da propriedade particular, sendo ambos, bens com proteção tutelada pelo Estado. Ora, uma vez garantidor de direitos, é consequente e indúbito o dever da União de garantir a segurança dos mesmos; residindo aqui o nascimento de inúmeros princípios constitucionais, inerentes a própria estruturação funcional do Estado, como o Devido Processo Legal, a Segurança Jurídica, a Dignidade da Pessoa Humana, a Liberdade de Expressão etc.
É importante ressaltar, neste contexto, a interpretação expansiva do conceito de segurança discutido e protegido durante a formação do Estado, que, em um primeiro plano, compreende desde a segurança aos bens materiais, como posses e propriedades, até os bens imateriais, como a dignidade e honra. Em segundo plano, o aludido princípio alcança o dever Estatal de garantir o respeito à coisa julgada, ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido, primando também, segundo Canotilho (1995, p. 374), pela “durabilidade e permanência da própria ordem jurídica, da paz jurídico-social e das situações jurídicas”, sendo uma espécie de garantia jurídico-subjetiva dos cidadãos, que legitima e fornece embasamento a confiança na permanência das situações jurídicas pacificadas pelo poder judiciário. É justamente da abstração funcional do segundo plano de interpretação do conceito de segurança, que se extrai a concepção do Princípio do Devido Processo Legal e seu consignatário, a Segurança Jurídica.
1.1 O Devido Processo Legal
O homem como ser social, vive em sociedade, o que logicamente aumenta a probabilidade de conflitos, ou seja, sempre que o exercício de determinado direito individual atinge negativamente a esfera coletiva ou a parcela da individualidade de outra pessoa, ai reside uma crise, um choque de direitos. O Estado, buscando a paz social, no exercício de seu poder jurisdicional, surge como o pacificador desses conflitos, exercendo essa atividade de “dizer” o direito (jurisdição) através de uma ordem jurídica justa, exprimida e instrumentalizada pelo processo.
Portanto, não é ousado dizer, que o respeito ao devido processo legal constitui o maior requisito à um processo justo, derivando deste todo o resto necessário. Neste sentido, pactuamos com a afirmação de Nelson Nery Jr (2003, p. 130): “due process of law é o gênero do qual derivam-se todos os outros princípios constitucionais”. Pacificando esse discurso, temos que todo tipo de violação relacionada a institutos como o direito de ação, direito de defesa, contradição, dignidade da pessoa humana, segurança jurídica, dentre outros, pode ser considerada também uma maculação ao devido processo legal. Princípio chave e precípuo ao Estado Democrático de Direito, o referido instituto, de modo geral, tem como objetivo interpretar os princípios de modo harmônico, delimitando a norma ao atendimento de seus autênticos fins sociais. Pode ter sua funcionalidade dividida em dois seguimentos: em sentido material, esse subsidia as ferramentas necessárias para que o Direito seja concretizado, garantindo a proteção do bem ou valor tutelado, e traduzindo o preceito positivado implicitamente pelo legislador na lei, a norma, para o caso concreto – residindo na garantia de aplicação e respeito legal, seu núcleo funcional.
É justamente esta característica convexa, que segundo Cândido Rangel Dinamarco (2005, p. 83), explica sua não localização no dispositivo legal de Direito Processual sendo mais adequada a localização constitucional ao revés de meramente processual: “Isso porque, na verdade, sua dimensão ultrapassa os limites dos fenômenos do processo, alcançando atos e atividades políticas em geral”. Seu outro âmbito funcional se associa intimamente com o Direito Processual, onde tal princípio, estrutura, formaliza e sedimenta o instrumento processual, garantindo que o rito, previamente estabelecido em dispositivo legal, seja respeitado, fornecendo base à o exercício da jurisdição estatal e tornando assim, todo o sistema jurídico operável.
Dessa forma a relativização necessária a adaptação dos institutos e princípios legais, deve ser intermediada pelo devido processo legal, para que, só assim, o equilíbrio na balança entre efetividade e segurança jurídica seja legitimado. Pode-se estabelecer relação entre o Devido Processo Legal e qualquer princípio constitucional existente. Suas nuances e características deram origem e fundamentaram a criação do próprio Estado Democrático de Direito. Considerando essa relação tão abrangente, Nelson Nery Jr. (2003, p.130) ousa o definir: “Trata-se do postulado fundamental do direito constitucional (gênero), do qual derivam todos os outros princípios (espécies)”. De forma ampla, tudo que fizer relação com o trinômio: vida, liberdade e propriedade, será atingido e tutelado pelo princípio do Devido Processo Legal, ensinando também o autor que, genericamente, a cláusula due processo of law se manifesta pela proteção à vida, liberdade e propriedade, em seu sentido amplo, sendo seu texto inspirado nas emendas 5ª e 14ª da CF Norte Americana.
A 5ª emenda, referida por Nery Jr (2003, p.130), fez parte do compêndio de emendas constitucionais criadas em 1783 por 55 delegados, definidos pelas 13 colônias americanas, denominado “Bill of Rights”, que marcou a independência Norte Americana e definiu inúmeros Direitos do rol da vida, liberdade e propriedade, definindo também o princípio do Devido Processo Legal em sua Constituição Federal. Previa a emenda:
“No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a presentment or indictment of a grand jury, except in cases arising in the land or naval forces, or in the militia, when in actual service in time of war or public danger; nor shall any person be subject for the same offense to be twice put in jeopardy of life or limb; nor shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself, nor be deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public use, without just compensation” (SCHROEDER and CLICK, 1989)[2] (grifo nosso).
Um século depois, em julho de 1896, após a Guerra Civil Americana, a 14ª emenda foi aprovada, tendo como objetivo a expansão dos direitos expressos no Bill of Rights a todos os cidadãos americanos. Buscando a proteção das minorias em face das Constituições Estaduais, ou contra qualquer arbitrariedade ou vício de atos estatais. In verbis:
“All persons born or naturalized in the United States, and subject to the jurisdiction thereof, are citizens of the United States and of the State wherein they reside. No State shall make or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any State deprive any person of life, liberty, or property, without due process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the” laws (SCHROEDER and CLICK, 1989)[3] (grifo nosso).
É observável, até mesmo quando considerado o texto constitucional americano, a grande abrangência desse princípio. Albergando e impulsionando ao longo da história outras construções principiológicas como o princípio do contraditório e ampla defesa, da segurança jurídica, da dignidade da pessoa humana, do nemo tenetur se detegere (não produzir prova contra si mesmo), ampliando e inovando também, o escopo de direitos protetivos da propriedade, liberdade e vida. Se consagrando como um instrumento de gênero, necessário e extremamente abrangente, capaz de efetivar as garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito. Inibindo qualquer forma de arbitrariedade, iluminando todas as funções e ações estatais, e irradiando sua proteção a todo o ordenamento jurídico.
1.2. A Segurança Jurídica
Trilhando o mesmo caminho de definição defendido por Canotilho em relação a segurança, Miguel Reale (1994, p. 86) afirma que deve se observar a existência de “algo de subjetivo, um sentimento, a atitude psicológica dos sujeitos perante o complexo de regras estabelecidas como expressão genérica e objetiva da segurança mesma”, asseverando sobre uma separação importante:
“Há, pois, que distinguir entre o “sentimento de segurança”, ou seja, entre o estado de espírito dos indivíduos e dos grupos na intenção de usufruir de um complexo de garantias, e este complexo como tal, como conjunto de providências instrumentais capazes de fazer gerar e proteger aquele estado de espírito de tranquilidade e concórdia” (REALE, 1994, p. 86).
Como pressuposto de existência do próprio Estado, a segurança jurídica surge, in loco, na própria transição entre Estado de Natureza e Estado Democrático de Direito, sobrepondo a insegurança advinda da supremacia da força, em prol do fortalecimento dos direitos e garantias tutelados pelo Estado, fundamentais ao desenvolvimento da sociedade e a manutenção da Justiça. Sobre seu conteúdo, o doutrinador Luís Roberto Barroso (2002, p. 49) explica que a segurança encerra valores e bens jurídicos que não atingem somente a preservação da integridade do Estado e das pessoas, alcançando em sua definição conceitos fundamentais para a vida civilizada: como a continuidade das normas jurídicas, a estabilidade das situações constituídas e a certeza jurídica que se estabelece sobre situações anteriormente pacificadas pela jurisdição estatal.
A questão relacionada à Segurança Jurídica está em consonância com o próprio significado do vocábulo “Justiça”, – etimologicamente derivado da palavra em latim “justitia”, podendo ser traduzida como o princípio básico que mantém a ordem social através da preservação dos direitos em sua forma legal – uma vez que o objetivo da Segurança Jurídica reside, basicamente, na proteção e preservação dos direitos, e na expectativa de aplicação destes perante a coletividade, sendo um instrumento que garante a previsibilidade da ação estatal, baseada no Direito Positivado e no entendimento Jurisdicional do Poder Judiciário.
Cabe ressaltar que tal previsibilidade não pode ser absoluta, impedindo a interpretação da lei à luz do fato concreto; pelo contrário, a norma deve ser interpretada e adaptada a eventuais situações em que o sentido estrito normativo não garanta a proteção necessária ao direito discutido, ou havendo lacuna normativa, na qual a analogia, os costumes e os Princípios Gerais do Direito e a doutrina passem a ser considerados. Tal teoria se harmoniza com a própria origem reflexiva do Direito, como bem conceituaram Ruggiero e Maroi (1955, p. 50), “como a norma das ações humanas na vida social, estabelecida por uma organização soberana e imposta coativamente à observância de todos”, podendo ser considerado (sob a ótica da Teoria dos Círculos Concêntricos) como o reflexo das normas de conduta sociais, influenciado pela Moral e pela Ética. O que também não significa que a interpretação e aplicação possam ser feitas de forma demasiada abstrata, comprometendo assim a confiança no judiciário, a eficácia e a aplicabilidade de todo ordenamento jurídico. Sobre esse equilíbrio entre hermenêutica e operabilidade, e aplicação literal positivista, Reale considera:
“[…] se é verdade que quanto mais o direito se torna certo, mais gera condições de segurança, também é necessário não esquecer que a certeza estática e definitiva acabaria por destruir a formulação de novas soluções mais adequadas à vida, e essa impossibilidade de inovar acabaria gerando a revolta e a insegurança. Chego mesmo a dizer que uma segurança absolutamente certa seria uma razão de insegurança, visto ser conatural ao homem – único ente dotado de liberdade e de poder de síntese – o impulso para a mudança e a perfectibilidade, o que Camus, sob outro ângulo, denomina “espírito de revolta” (REALE, 1994, p. 87)” (grifo nosso).
Diante do exposto, Osvaldo Ferreira de Melo (1998, p. 71-72) explica que a fim de saciar a necessidade de segurança jurídica, o Direito Positivado assumiu posição privilegiada em face dos costumes, transformando o processo legislativo em “um paradigma que teoricamente tínhamos um sistema sem lacunas, capaz de oferecer precisão ao atendimento do intérprete e do aplicador da lei”. Neste diapasão, nota-se que “a ordem escrita se sobrepõe a todos os padrões de legitimidade e justiça: o justo e o legítimo são valores que a lei transcreve e prescreve, e aquilo que a lei não alcança não é Direito”. Assim, “o Normativismo se configura como um instrumento de conservação e reprodução da ordem jurídica instituída” (MELO, 1998, p. 73), que embora considerado mais adequado à manutenção da paz social e da ordem pública, deve ter sua rigidez mitigada em determinados casos (concorda-se, aqui, com o posicionamento de Reale), com o escopo de garantir sua aplicabilidade e moldura ao caso concreto e a manutenção do status quo.
Corroborando com o raciocínio jurídico aqui discutido, Canotilho divide o conceito de Segurança Jurídica em dois preceitos: 1) estabilidade ou eficácia ex post da segurança jurídica: uma vez adoptadas, na forma e procedimento legalmente exigidos, as decisões estaduais não devem poder ser arbitrariamente modificadas, sendo apenas razoável alteração das mesmas quando ocorram pressupostos materiais particularmente relevantes; 2) previsibilidade ou eficácia ex ante do princípio da segurança jurídica que, fundamentalmente, se reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos atos normativos. Uma vez definido e comentado seu significado e extensão, respectivamente, pode-se relacionar a aplicação e respeito a Segurança Jurídica como condição sinequa non a estabilidade e previsibilidade normativas do Estado Democrático de Direito. Lembrando-se, contudo, que aquele não é estanque ou absoluto, uma vez que sua relativização é primordial a aplicabilidade do Direito à vida social.
2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A compreensão e vinculação do princípio da dignidade da pessoa humana como valor determinante, próprio e precípuo da condição de ser humano, tem origem na teologia cristã da idade clássica. Comentando sobre essa origem nos âmagos do cristianismo, Ingo Wofgang Sarlet (2002, p.24) elucida que o pensamento cristão, baseando-se na fraternidade, e em resposta a valoração material e sanguínea da época, – onde a posição social e o nível de riqueza determinavam a presença ou não de dignidade – provocou uma mudança de mentalidade social, incentivando a valorização do conceito de igualdade entre todos os cidadãos, exemplo disso, reside na primeira referência ao termo “dignitas humana”, realizada pelo então Padre São Tomás de Aquino.
É válido recordar o contexto histórico absolutista da época, onde o poder estatal era exercido sem qualquer tipo de controle, tampouco era garantido a parcela não-nobre da sociedade qualquer esfera de direito. O homem era definido, avaliado e alocado, tendo como parâmetro, apenas seu sobrenome, raça, sexo e naturalidade. É justamente esse escopo histórico de abusos e desigualdades que fomentou e impulsionou a Revolução Francesa durante o século XVIII. Movimento que pôs fim ao regime absolutista francês, estabelecendo também, através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a libertação do ser humano de qualquer tutela abusiva absolutista, e garantindo direitos fundamentais à dignidade humana. Tais Direitos eram considerados inalienáveis, irredutíveis e indeduzíveis, estabelecendo o Homem como o fim de todas as normas e o povo como o único soberano diante do Estado.
Após a inserção promovida pela religião, coube a Filosofia incitar o estudo e propagação do conceito. A partir disso surgiu a concepção Kantiana, que vinculou a compreensão de dignidade como uma qualidade característica da própria concepção humana, sendo de natureza insubstituível e inalienável, repudiando qualquer consideração que reduzisse o ser humano a mero objeto, instrumento ou coisa. Kant delineia e caracteriza a distinção entre bens e coisas, que podem ter seu valor delimitado em moeda, e as que, contrariamente, possuem dignidade, as quais são impossíveis de estabelecer valoração, seja esta de qualquer tipo. Portanto, tudo que possui natureza digna, não permite valoração, tampouco substituição. Sobre a natureza imutável e comum do núcleo da dignidade de cada ser humano, e à luz do Artigo 1º da Declaração dos Direitos Humanos, a atual presidente do STF, Carmen Lúcia Antunes Rocha, declara:
“Gente é tudo igual. Tudo igual. Mesmo tendo cada um a sua diferença. Gente não muda. Muda o invólucro. O miolo, igual. Gente quer ser feliz, tem medos, esperanças e esperas. Que cada qual vive a seu modo. Lida com as agonias de um jeito único, só seu. Mas o sofrimento é sofrido igual. A alegria, sente-se igual” (ROCHA, 2004, p. 13).
Desde então, inúmeros conceitos foram construídos na tentativa de definir esse instituto, mas devido a sua abrangência e natureza subjetiva, ainda podemos encontrar vertentes diferenciadas de conceituação. Sobre essa evolução conceitual Rizzatto Nunes (2009, p.49) assevera que: “dignidade é um conceito que foi sendo elaborado no decorrer da história e chega ao início do século XXI repleta de si mesma como um valor supremo, construído pela razão jurídica”. Enriquecedor também é o conceito dado por Ingo Wolfgang Sarlet que define dignidade como:
“Qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos” (SARLET 2002, p.62).
Uma vez definido e exposto pela filosofia, e abraçado pela sociedade, principalmente após as duas guerras mundiais do século XX, o Direito se adapta a esse novo preceito, o positivando na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 1º no ano de 1948, in verbis: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948).Após tal iniciativa, diversos estados acolheram e ampliaram esse novo princípio que serviu de fonte e guia de textos constitucionais de diversas Constituições, como a Norte Americana e a Alemã. Apesar de toda sua difusão normativa e adoção como princípio constitucional, a legislação isolada, não concede dignidade de fato, muito menos a constitui. Segundo o sentir da lição de Carmem Lúcia Antunes Rocha:
“O sistema normativo de direito não constitui, pois, por óbvio, a Dignidade da Pessoa Humana. O que ele pode é tão-somente reconhecê-la como dado essencial da construção jurídico-normativa, princípio do ordenamento e matriz de toda organização social, protegendo o homem e criando garantias institucionais postas à disposição das pessoas a fim de que elas possam garantir a sua eficácia e o respeito à sua estatuição. A Dignidade é mais um dado jurídico que uma construção acabada no direito, porque firma e se afirma no sentimento de justiça que domina o pensamento e a busca de cada povo em sua busca de realizar as suas vocações e necessidades” (ROCHA, 1999, p. 26) (grifo nosso).
Sua previsão em matéria constitucional apenas reconhece a dignidade como ente essencial ao universo jurídico, o que de certa forma limita seu significado. Logo, a dignidade não deve ser analisada apenas sob esse prisma, pois como bem define José Afonso da Silva (1998, p. 146) “ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa tal como a própria pessoa humana”. A sociedade e o Direito transformaram-na em um valor supremo de toda ordem jurídica democrática constitucional, fator observado quando a Constituição a declara como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.
Não se busca, aqui, alocar esse instituto como algum tipo de fundamento, princípio fundamental ou princípio geral do direito. Defini-lo nesse sentido restringiria sua amplitude de significado e reduziria seu real valor. Desde a promulgação da Constituição de 1988, doutrinadores tentam enquadrar a dignidade humana como um princípio fundamental, o que de certa forma é incoerente, por que acaba limitando seu conceito, uma vez que princípios fundamentais se referem a estruturação do ordenamento constitucional, sendo mais limitado até mesmo que os princípios constitucionais gerais que permeiam qualquer norma legal.
O ponto chave deste raciocínio é o posicionamento fundamental e basilar da dignidade humana em relação à fundação do Estado Democrático de Direito Brasileiro. Isso implica em dizer que esse valor esta inserido diretamente na fundação da República, da Democracia e do Direito, se expandindo além da esfera jurídica, e irradiando sua influência na esfera política, social, cultural e econômica. A supremacia aqui defendida é una a todas as esferas estatais e sociais, sendo a base de fundação do Estado Brasileiro e a mãe de todos os princípios fundamentais. Sobre sua característica suprema e consignatária, José Afonso da Silva explica:
“[…] o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer ideia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir 'teoria do núcleo da personalidade individual, ignorando-a quando se trate de direitos econômicos, sociais e culturais” (SILVA, 1998, p. 89-94).
Assim, de forma consequente, e objetivando a efetivação in concreto da dignidade da pessoa humana, a ordem econômica passa a ter como dever assegurar a todos os mínimos recursos necessários a subsistência e desenvolvimento, a educação, o aperfeiçoamento e preparo do cidadão, e a ordem pública, a segurança dos bens e a tranquilidade social, todos esses, instrumentos estatais de promoção e garantia à uma vida digna.
3 A POSSIBILIDADE DE RELATIVIZAÇÃO DO ARTIGO 1697 DO CÓDIGO CIVIL
Uma vez discutido os princípios aqui interessados, passamos a análise do caso concreto. Ocorre que em recente decisão prolatada pelo magistrado da Comarca de São Carlos (SP), um tio foi condenado a prestar alimentos a um sobrinho, valendo-se da interpretação extensiva do art. 1697 do Código Civil de regência, cujo dispositivo, in verbis, segue transcrito: “Na falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos irmãos, assim germanos como unilaterais” (BRASIL, 2002).
No caso aqui relatado, ambos os ascendentes não possuíam capacidade de arcar com a obrigação, tampouco o alimentando possuía irmãos. Fato agravado quando considerada a evidente omissão de cuidado por parte do genitor, que já fora sancionado por medida inibitória de afastamento. Além disso, o sobrinho foi acometido pela síndrome de Asperger, impossibilitando o provimento de seu próprio sustento e sensibilizando ainda mais seu estado de vulnerabilidade social. Eis aqui um confronto claro de princípios e normas, afinal seria justo o parente de 3º ou 4º grau ter sua intimidade e patrimônio violados em face de algo que claramente não deu causa? Não obstante a isso, qual o destino do jovem abandonado por seu pai e acometido por deficiência?
O legislador relativizou o princípio da solidariedade entre parentes, em relação ao direito de alimentos, mas determinou que a responsabilidade seja transmitida apenas aos ascendentes, descendentes e irmãos, não mencionando no dispositivo em epígrafe, os demais colaterais, mesmo que esses estejam incluídos no rol de legitimados a direito de sucessão patrimonial. Em um primeiro momento, principalmente se analisado sob o viés do devido processo legal e da segurança jurídica, não é ofertado ao magistrado a possibilidade de flexibilização da norma, sob incidência de grave vício processual que mina os demais entendimentos e decisões proferidas pela justiça brasileira e se afasta claramente do conteúdo normativo. Caso semelhante a esse já foi julgado em 2016, pela 3ª Turma do STJ que negou obrigação alimentar de sobrinho perante a tia, REsp 1510612/SP:
“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA. DÍVIDA. FALECIMENTO. PAGAMENTO. SOBRINHO. HERDEIROS. RESPONSABILIDADE. LIMITE. VALOR DA HERANÇA.
1. Trata-se de ação de cobrança movida por sobrinho contra seus tios, objetivando a condenação dos réus ao reembolso do quanto despendido no tratamento médico de sua tia, além das despesas com remédios, internação, sepultamento e produtos destinados aos animais de estimação da falecida.
2. Nos termos do art. 1.697 do Código Civil, ao autor, sendo parente de terceiro grau na linha colateral, não cabia obrigação alimentar.
3. Ao pagar as despesas em decorrência de obrigação moral e com intenção de fazer o bem, o recorrente tornou-se credor dos recorridos, nos termos do artigo 305 do Código Civil. 3. Não tendo natureza alimentar o crédito do autor, limita-se a responsabilidade dos réus ao valor da herança – art.1.997 do Código Civil.
4. Recurso especial não provido”.
É fato que respeitáveis doutrinadores acreditam que a obrigação alimentar, à luz da interpretação estrita do artigo 1697 CC, atinge somente os colaterais de segundo grau, sejam estes irmãos germanos ou unilaterais, eximindo os demais colaterais como tios e sobrinhos (3º grau) e, primos e tios-avôs (4º grau). Acredita-se que uma vez que o legislador se omitiu, não mencionando expressamente a obrigação para os demais colaterais, seu “silêncio eloquente” significa a não autorização. O que vai de encontro ao viés legalista doutrinário, atendendo a princípios como o do devido processo legal, uma vez que qualquer dever só pode ser imposto ao indivíduo se expressado em lei.
Todavia, diante da atual realidade jurídica e sob a nova hermenêutica constitucional que permeia nosso ordenamento, o “neoconstitucionalismo”, tal posicionamento se torna equivocado, já que a prestação e alimentos tem vínculo direto com a manutenção da vida e dignidade do alimentando. Sob esse novo viés de interpretação constitucional desenvolvido ao longo do final do século XX e início do XXI, Bobbio (1989) percebe que não é possível definir o direito sendo a norma jurídica considerada e analisada isoladamente, pois uma definição satisfatória do mesmo só é possível se o ordenamento jurídico for interpretado como um todo, um único dispositivo, dota de princípios gerais norteadores e normas específicas. Em feliz síntese, Coelho, Branco e Mendes (2008, p. 127) ensinam que esse novo constitucionalismo se caracteriza da seguinte forma: “a) mais Constituição do que leis; b) mais juízes do que legisladores; c) mais princípios do que regras; d) mais ponderação do que subsunção; e) mais concretização do que interpretação”. Em resumo, ressaltamos que, ao contrário da massificação e repetição de teorias e ideias, o jurista manipulador do Direito deve-se atentar ao núcleo principal desse novo viés constitucional: a busca e manutenção de uma Constituição viva e eficaz. Outro ponto interessante argumentado se encontra na falta de sintonia entre o Direito Sucessório e o Direito de Alimentos. Sob a égide daquele o legislador expande o direito hereditário até o 4º grau, vide arts. 1829 e 1839 do Código Civil:
“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
V – aos colaterais.
Art. 1.839. Se não houver cônjuge sobrevivente, nas condições estabelecidas no art. 1.830, serão chamados a suceder os colaterais até o quarto grau” (BRASIL, 2002)
O que destoa quando comparados com os artigos 1696 e 1697 do mesmo diploma, uma vez que os tios ou sobrinhos (parentes de 3º grau) não são mencionados, enquanto que, de forma contrária, em linha sucessória, até mesmo parentes de 4º grau podem ser considerados herdeiros legítimos. Diante dessa dicotomia Madaleno (2008, p. 674) critica aqueles que objetivam restringir os credores da obrigação de alimentos. Segundo o doutrinador “ambos os sistemas se interpenetram, de modo que, se houver direito de herança, ainda que de modo eventual, igualmente se deverá permitir que esse parente seja chamado à obrigação alimentar” (MADALENO, 2008, p. 674).
Outro ponto que fortalece o posicionamento de Madaleno é relembrado por Farias e Rosenvald (2008, p. 820): “a obrigação alimentar entre parentes, inclusive entre colaterais do quarto grau, baseia-se nas relações de solidariedade familiar – o que impõe o auxilio em momento de necessidade, sob pena de frustrar a própria fundamentação do parentesco”. Não obstante, é necessário lembrar o posicionamento diferenciado dos alimentos quando comparados as demais obrigações, uma vez que subsidiam a garantia de uma vida digna. Fator potencializado pela condição sensível do alimentando infantil e juvenil, que gozam de proteção especial constitucional.
Ressalta-se também a importância que o legislador concedeu a esse direito, sendo a única conduta civil punível com restrição de liberdade no ordenamento brasileiro, uma vez que a prisão do depositário infiel foi considerada ilícita (Súmula Vinculante 25 do STF). Medida que busca pura e simplesmente a preservação da garantia do atendimento das necessidades básicas do alimentando. Mesmo diante do posicionamento contrário da maioria doutrinária, acreditamos que a extensão da responsabilidade alimentar aos demais parentes colaterais, é uma consequência inegável do nosso ordenamento jurídico, desde que, como discutido anteriormente, a hermenêutica utilizada esteja sob a luz neoconstitucional. Logo estamos diante de um direito fundamental que deve ser priorizado e protegido pelo Estado, se tornando ainda mais latente e sensível quando envolve crianças, adolescentes ou deficientes físicos, todos estes protegidos de forma especial pela legislação pátria, aqueles pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECRIAD) e estes pela Convenção de Nova York (Dec. 6949/09), que em seu artigo 23.5 incita:
“5 – Os Estados Partes, no caso em que a família imediata de uma criança com deficiência não tenha condições de cuidar da criança, farão todo esforço para que cuidados alternativos sejam oferecidos por outros parentes e, se isso não for possível, dentro de ambiente familiar, na comunidade” (BRASIL, 2009).
Indubitavelmente, os cuidados alternativos mencionados no texto legal, se traduzem também em alimentos, mesmo que estes tenham que ser fornecidos pela “família mediata”, quando a família em 1º grau não possuir condições de arcar com a obrigação. O limiar entre o abuso de poder estatal e a garantia de uma vida digna, quando relacionado a esta problemática, é uma linha muito tênue. Por isso é necessária extrema cautela durante a análise do caso concreto, algo feito com maestria pelo magistrado sentenciante de São Carlos, que diante da total ausência de amparo familiar em 1º e 2º grau, estado de saúde do interessado e circunstâncias específicas do caso, ampliou o grau de incidência do artigo 1697 do Código Civil. A nosso ver, a decisão possui não só boa retórica e argumentação, mas também se encontra baseada em sólidos princípios constitucionais, que mesmo diante de uma possível restrição ao campo de liberdade patrimonial de particulares, fornecem fiel orientação para a sentença. Apesar disso, ressaltamos que se presentes pequenos deslizes quanto à interpretação e ponderação do caso concreto, a sentença proferida pode oferecer sérios riscos à segurança jurídica e ao patrimônio de terceiros, podendo até mesmo comprometer a dignidade desses indivíduos.
Valendo-se novamente do raciocínio de Reale (1994, p. 87), mesmo que a um primeiro momento essa afirmação soe equívoca concordamos com o posicionamento de que “uma segurança ideal, seria uma razão de insegurança, uma vez que é natural ao homem o impulso a mudança e a perfectibilidade, o que é chamado por Camus de ‘espírito de revolta’”. Assim, a afirmação de que a extensão da obrigação de alimentos em relação aos tios, prolatada pelo magistrado da comarca de são Carlos, mesmo que considerada por alguns autores como um atentado a segurança jurídica (completar mais), a nosso ver, representa um caso concreto da manifestação do espírito de revolta humano mencionado por Reale, que exige uma resposta estatal célere, afinal é justo privar o alimentando de condições mínimas existenciais como a alimentação e a saúde, em nome da segurança patrimonial de seus tios? Ora, uma vez comprovada a capacidade financeira de arcar com esse mínimo necessário, sem depreciar a qualidade de vida da família, que razão de fato poderia nega-la?
O ponto sensível dessa discussão se encontra no embate/choque principiológico entre a dignidade do credor, a segurança patrimonial do réu, e a segurança jurídica relacionada a legislação e jurisprudência envolvidas. Nesse diapasão relembramos o caráter fundamental do princípio da dignidade humana já mencionado neste trabalho. Princípio norteador de toda a legislação constitucional em vigência, o mesmo pode ser considerado superior a todos os outros princípios presentes no arcabouço jurídico brasileiro, condição explicada pela sua natureza, caráter basilar transcendente e até mesmo pelo seu posicionamento como princípio originário de inúmeros outros ideais jurídicos.
Dessa forma, considerar o simples prejuízo patrimonial, mesmo que ínfimo, como justificativa suficiente à negativa de prestação de alimentos denegriria o princípio da solidariedade entre parentes, maculando a Constituição Federal, e sua própria razão de ser, o que denota um sério retrocesso jurídico, guardando semelhança com práticas estatais que remontam ao regime absolutista da idade média.
4 POSSÍVEIS CRITÉRIOS OBJETIVOS NORTEADORES DA APLICAÇÃO E EXTENSÃO DA NORMA.
Matéria polêmica e de constante discussão, a extensão e relativização da prestação de alimentos ainda precisa ser analisada e discutida pela comunidade jurídica. Reconhecendo a necessidade e o caráter abstrato dessa disciplina, postulamos aqui a ideia de que o desenvolvimento de alguns critérios de avaliação (parâmetros objetivos) poderia criar uma linha norteadora da jurisprudência nacional acerca desta matéria. O que reduziria a assimilaridade entre decisões prolatadas, garantindo consequentemente maior segurança jurídica ao assunto, o que nada mais é do que o papel assertivo da doutrina. Discute-se, aqui, 4 (quatro) parâmetros objetivos capazes de fornecer a mínima compatibilidade entre a autonomia econômica privada e os princípios éticos presentes no Estado:
1. Completa incapacidade de cumprimento do dever alimentar dos sujeitos descritos diretamente na legislação. Requisito precípuo e fundamental a análise em questão, uma vez alegada impossibilidade do cumprimento total ou parcial do compromisso, deve-se verificar e comprovar a real situação econômica dos responsáveis diretos pela prestação alimentícia, utilizando para isso qualquer banco de dados público que possa fornecer esse tipo de informação, além de uma análise social realizada por assistente social da comarca.
2. Incapacidade do alimentando de prover o próprio sustento. O possível credor deve possuir característica que o impossibilite a busca de seu próprio sustento. Essa característica pode ser relacionada a diversos fatores: menoridade civil, deficiência física ou psíquica que comprometa qualquer tipo de atividade, estado de saúde comprometido, ou até mesmo não conclusão do mínimo acadêmico necessário a atividade profissional, este fator pode variar de acordo com a realidade econômica, social e cultural de cada região, devendo ser analisado e adequado pelo magistrado.
3. Atual ameaça a dignidade do alimentando. A situação de vulnerabilidade do alimentando deve ser presente e sua dignidade deve estar ameaçada. Situação esta que pode ser comprovada através de um estudo social e exames médicos. São fatores que caracterizam esse estado: o abandono escolar, a má alimentação, a má medicação, a falta de cuidados médicos essenciais, entre outros.
4. Moderação de valores e viabilidade patrimonial. Deve-se buscar a atribuição de um valor que forneça apenas o necessário existencial ao indivíduo, concedendo-o o mínimo a sua alimentação, higiene pessoal, habitação e estudo, mas atentando-se sempre a viabilidade patrimonial do alimentante. Isto é, o caráter excepcional da convocação de parentes não mencionados diretamente na norma, apesar subsidiada por nobres princípios constitucionais, exige redobrada proporcionalidade e atenção quando fixado o valor da pensão, objetivando o sustento do alimentando, mas evitando ao máximo a depreciação da qualidade de vida do devedor de alimentos. No processo mencionado da comarca de São Carlos o juiz atribuiu o valor em 10% do rendimento líquido do tio.
Convém considerar que muitas vezes o responsável imediato não poderá arcar com a prestação total, mas de certo que pode contribuir com alguma parcela, desde que esta não prejudique o mínimo necessário a seu sustento. Dessa forma, o alimentante ou o próprio alimentado poderá acionar os demais responsáveis, a fim de contribuírem com parte do valor, conforme positivado no artigo 1698 do CC:
“Art. 1.698. Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato: sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide” (BRASIL, 2002).
Importante destacar que a obrigação alimentar não é solidária em sentido estrito, ou seja, não deve alcançar todos os sujeitos passíveis de serem acionados ao mesmo tempo. O que existe é o Direito privativo do réu de que, caso não suporte arcar com a prestação integral, chame os corresponsáveis a fim de integrar o polo passivo da demanda, e a prerrogativa do autor de requerer a intervenção dos demais responsáveis, a fim de assegurar seu direito. O chamamento e a intervenção só devem ocorrer, caso a obrigação primária e principal seja frustrada, ou quando se demonstrar insuficiente, conforme decisões já proferidas pelo STJ em 2005 e 2011:
“ALIMENTOS. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. AVÓS. “A turma deu provimento ao recurso especial a fim de deferir o chamamento ao processo dos avós maternos no feito em que os autores pleiteiam o pagamento de pensão alimentícia. In casu, o tribunal a quo fixou a responsabilidade principal e recíproca dos pais, mas determinou que a diferença fosse suportada pelos avós paternos. Nesse contexto, consignou-se que o art. 1.698 do CC/2002 passou a prever que, proposta a ação em desfavor de uma das pessoas obrigadas a prestar alimentos, as demais poderão ser chamadas a integrar a lide. Dessa forma, a obrigação subsidiária deve ser repartida conjuntamente entre os avós paternos e maternos, cuja responsabilidade, nesses casos, é complementar e sucessiva”. Precedentes citados: REsp 366.837-RJ, DJ 22/9/2003, e REsp 658.139-RS, DJ 13/3/2006”. (STJ, REsp nº. 958.513/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 22/02/2011).
“CIVIL. ALIMENTOS. RESPONSABILIDADE DOS AVÓS. OBRIGAÇÃO COMPLEMENTAR E SUCESSIVA. LITISCONSÓRCIO. SOLIDARIEDADE. AUSÊNCIA. 1 – A obrigação alimentar não tem caráter de solidariedade, no sentido que "sendo várias pessoas obrigadas a prestar alimentos todos devem concorrer na proporção dos respectivos recursos." 2 – O demandado, no entanto, terá direito de chamar ao processo os corresponsáveis da obrigação alimentar, caso não consiga suportar sozinho o encargo, para que se defina quanto caberá a cada um contribuir de acordo com as suas possibilidades financeiras. 3 – Neste contexto, à luz do novo Código Civil, frustrada a obrigação alimentar principal, de responsabilidade dos pais, a obrigação subsidiária deve ser diluída entre os avós paternos e maternos na medida de seus recursos, diante de sua divisibilidade e possibilidade de fracionamento. A necessidade alimentar não deve ser pautada por quem paga, mas sim por quem recebe, representando para o alimentado maior provisionamento tantos quantos coobrigados houver no pólo passivo da demanda. 4 – Recurso especial conhecido e provido.” (STJ – REsp: 658139 RS 2004/0063876-0, Relator: Ministro FERNANDO GONÇALVES, Data de Julgamento: 11/10/2005, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJ 13/03/2006 p. 326RBDF vol. 37 p. 90RSTJ vol. 201 p. 474)
Assim o valor atribuído poderá ser fracionado entre cada responsável, reduzindo o impacto sobre o patrimônio individual e proporcionando maior segurança ao alimentado, principal interessado e protegido dessa relação. Diante da mitigação da possibilidade de abuso e lesão ao patrimônio pessoal e maior clareza quanto a aplicação concreta, o caminho rumo a pacificação dessa matéria se torna mais próximo. Tendência já presente no judiciário brasileiro, que vem reconhecendo como lícita e possível a relativização do alcance da obrigação de alimentos.
CONCLUSÃO
Matéria em constante evolução e modificação, escrever sobre Direito de Família é sempre um grande desafio. O que não reduz em nenhum momento sua importância perante a justiça, sociedade e Estado. Mais do que preceitos reguladores das relações familiares, essa linha jurídica tem o dever de proteger a menor e mais importante célula social: a família. Mesmo diante do atual cenário evolutivo social, onde antigos conceitos e concepções se alteram a cada dia, ainda podemos tentar fornecer um norteamento ao jurista em geral. Talvez seja justamente por reconhecer esse novo estado de volatilidade social, que uma nova metodologia de interpretação constitucional, neoconstitucionalismo, tenha sido desenvolvida e tem sido implementada. A proposta de uma adaptação consciente, justa e segura a essa nova realidade no âmbito do Direito Familiar, mais particularmente quanto a prestação de Alimentos, é o legado desse trabalho.
No caso em questão o Direito tornou-se obsoleto e rígido, conduzindo o jurista a uma interpretação mais fria, positiva e lógica, da realidade social familiar brasileira. Dessa forma o caso concreto tendeu a se distanciar da tipificação total da norma. O legislador originário em grande sabedoria já conhecia e projetou essa realidade. Onde? Nos princípios constitucionais. São os princípios as ferramentas capazes de iluminar o entendimento, quando a relação de moldura entre norma e realidade apresenta falhas. Sua natureza, abstrata e natural, é o segredo da enorme capacidade de adaptação, afinal, esses institutos nada mais são do que preceitos naturais e éticos inseridos no âmago da normatividade. Tendo muitos deles origens na própria natureza do homem, como é o caso da dignidade humana, e outros na própria natureza do Estado, como o Devido Processo Legal e a Segurança Jurídica.
A prestação de alimentos, mais do que um dever moral familiar e uma obrigação natural de sustento, caracteriza-se como o único meio de sobrevivência e garantia de uma vida digna de um indivíduo fragilizado. Em nada se assemelha à caridade ou ao altruísmo, mas antes à justiça, à fraternidade e acima de tudo à valorização da vida, pois como bem comenta Mary Shelley, “O mundo precisa de justiça, não de caridade”.
Informações Sobre os Autores
Renzo Magno Nogueira
Acadêmico de Direito MULTIVIX ES
Tauã Lima Verdan Rangel
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES