Resumo: O presente trabalho de conclusão de curso tem por objetivo analisar a ocorrência de trabalho escravo no Brasil contemporâneo. Em 13 de maio 1888, a Lei Áurea extinguiu, ainda que formalmente, a escravidão no Brasil. Contudo, completados 128 anos de seu sancionamento, a existência de trabalhadores submetidos a situações análogas à de escravo dentro de nosso território nacional ainda persiste. A escravidão dos dias atuais não é a mesma daquela praticada nos períodos colonial e imperial do Brasil, razão pela qual é necessário pontuar as diferenças relativas à propriedade legal, custo de compra, lucro, mão-de-obra, relacionamento com o proprietário, diferenças étnicas e manutenção da ordem. Infelizmente, este sistema arcaico alimenta um grande mercado de produção. Por isso, a identificação dos escravocratas contemporâneos é fundamental para a possível resolução do problema. Em 1995, o Brasil reconheceu publicamente a persistência deste tipo de trabalho. Como se trata de um problema ligado aos direitos humanos e ao princípio da dignidade da pessoa humana, organismos e instituições, tanto nacionais quanto internacionais, agem de forma conjunta na tentativa de erradicar o problema de forma multifocal. Por se tratar de uma situação tão grave, esta pesquisa revela sua importância ao analisar os fenômenos históricos, sociais, econômicos e políticos que circundam essa problemática e ao lançar um novo desafio, qual seja, a construção de um modelo trabalhista sustentável, que equilibre o desenvolvimento econômico e social com os direitos e a qualidade de vida dos trabalhadores.
Palavras-Chave: Escravidão. Trabalho Escravo. Trabalho Escravo Contemporâneo. Direito do Trabalho. Direitos Humanos.
Abstract: This thesis aims to analyze the occurrence of slave labor in contemporary Brazil. On May 13, 1888, the Brazilian Áurea Law extinguished, although formally, slavery in Brazil. However, after 128 years of their sanctioning, the existence of workers subjected to similar situations of slavery in our country still persists. The contemporary slavery is not the same as that practiced in colonial and imperial Brazil, indicating why it is necessary to define the differences in legal ownership, purchase cost, profit, labor, work, relationship with the owner, ethnic differences and maintaining order. Unfortunately, this archaic system feeds a large production market. Therefore, the identification of contemporary slaveholding is the key to a possible resolution to the problem. In 1995, Brazil publicly acknowledged the persistence of this kind of work. As this is a problem linked to human rights and the principle of human dignity, both national and international organizations and institutions act jointly in an attempt to eradicate the problem in a multifocal manner. Because it is such a serious situation, this research reveals its importance when analyzing the historical, social, economic, and political phenomena surrounding this issue and to launch a new challenge, namely the construction of a sustainable labor model that balances economic and social development with the rights and quality of life of workers in mind.
Key-Words: Slavery. Contemporary Slavery. Slave. Labor Law. Human Rights.
Sumário: 1. Introdução. 2. O direito do trabalho. 2.1 Considerações Preliminares. 2.2 Breve Histórico do Direito do Trabalho no Brasil. 2.2.1 Primeira Fase. 2.2.2 Segunda Fase. 2.2.3 Terceira Fase . 2.3 Princípios Constitucionais Trabalhistas Brasileiros. 2.3.1 Introdução. 2.3.2 Os Princípios Constitucionais Trabalhistas Brasileiros. 2.3.2.1 Princípio da Valorização do Trabalho. 2.3.2.2 Princípio da Função Social da Propriedade. 2.3.2.3 Princípio da Igualdade e da Não Discriminação. 2.3.2.4 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 2.4 A Repersonalização do Direito do Trabalho. 3. Abordagem histórica da escravidão. 3.1 Histórico da Escravidão no Mundo. 3.2 Histórico da Escravidão no Brasil. 4. O trabalho escravo contemporâneo no Brasil. 4.1 Considerações Iniciais. 4.2 Conceituação. 4.3 Análise da Escravidão Antiga em face da Escravidão Contemporânea. 4.4 Identificação dos trabalhadores e empregadores escravocratas. 5. Combate ao trabalho escravo contemporâneo. 5.1 Âmbito Internacional. 5.2 Âmbito Nacional. 5.2.1 Medidas Governamentais Brasileiras. 5.2.1.1 Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. 5.2.1.2 Grupos Móveis de Fiscalização. 5.2.1.3 Lista Suja do Ministério do Trabalho e Emprego. 5.2.1.4 Legislação. 5.2.2 Medidas da Sociedade Civil. 5.2.2.1 Organizações Não Governamentais (ONGs) . 6. Considerações finais. Anexo – o trabalho escravo no brasil. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Ao observar o decurso do século XXI, nota-se que o processo de globalização vem se desenvolvendo rapidamente, onde notícias são facilmente dissipadas e distâncias físicas são facilmente reduzidas. Conforme Fábio Schivartche (2004), a Organização Internacional do Trabalho (OIT) entende que esse processo de integração mundial vem contribuindo para o agravamento de um problema que muitos pensaram já não mais existir: o trabalho escravo.
Uma vez que as fronteiras foram extintas e os custos de produção foram reduzidos, os empregadores passaram a mitigar os direitos dos trabalhadores em busca do lucro máximo. É a partir desta constatação que se deu a escolha do referido tema.
O objetivo geral do presente estudo é propor uma reflexão crítica em relação aos trabalhos contemporâneos análogos ao de escravo que ocorrem no Brasil, de forma a investigar se a sua ocorrência, cada vez mais frequente, compromete, de alguma forma, a atuação do Estado ao garantir as tutelas constitucional e trabalhista.
Para a investigação deste tema, foram realizadas pesquisas históricas e sociais, estudos doutrinários, levantamentos de noticiários e análise de estatísticas.
Esta monografia compreende seis capítulos.
O primeiro capítulo é esta introdução.
O segundo capítulo irá realizar uma contextualização histórica do Direito do Trabalho no Brasil, bem como irá analisar os princípios basilares do direito individual e coletivo do trabalho. Em seu final, um novo instituto será lançado, qual seja, segundo Maria Cecília Máximo Teodoro (2016), a releitura dos institutos trabalhistas à luz dos direitos fundamentais, a fim de promover a repersonalização do Direito do Trabalho, não mais admitindo uma visão meramente patrimonialista.
O terceiro capítulo tratará especificamente da abordagem histórica da escravidão no mundo e no Brasil, a fim de preparar o estudo para o seu ponto central.
O quarto capítulo abordará o objeto do estudo propriamente dito, qual seja, a escravidão contemporânea no Brasil. Procurar-se-á comparar e diferenciar a escravidão antiga e a atual, bem como identificar os trabalhadores e os empregadores escravocratas.
O quinto capítulo irá retratar sobre as medidas combativas, tanto preventivas quanto repressivas, ao trabalho escravo contemporâneo em âmbito internacional e nacional.
No sexto e último capítulo, realizar-se-á um balanço geral sobre o tema pesquisado, destacando a importância desta temática para coibir as práticas degradantes de mão de obra, pois somente com a erradicação do trabalho escravo contemporâneo é que o Estado Democrático de Direito poderá garantir dignidade à pessoa humana e aprimorar suas relações justrabalhistas.
2. O DIREITO DO TRABALHO
O presente capítulo irá realizar uma contextualização histórica do Direito do Trabalho no Brasil, bem como irá analisar os princípios basilares do direito individual e coletivo do trabalho e, ao final, lançará um novo instituto, qual seja, a repersonalização do Direito do Trabalho.
2.1. Considerações Preliminares
O trabalho é inerente ao homem desde os primórdios da humanidade, uma vez que é através dele que o ser humano procura satisfazer as suas necessidades pessoais e sociais.
No século XIX, com o advento da Revolução Industrial, muitos conflitos eclodiram na ordem econômica, social, política e ideológica.
Teodoro esclarece que:
“Os fatores econômicos foram o surgimento do capitalismo, das grandes indústrias com grande número de trabalhadores e da concentração e centralização do capital e de trabalhadores.
Os fatores sociais foram a urbanização, levando as cidades a tornarem-se o centro das atividades, bem como a formação de verdadeiros redutos proletários, gerando maior união e organização de seus membros.
Os fatores político-ideológicos, antes da metade do Século XIX, foram, inicialmente, o ludismo, passando-se, depois, para o terrorismo e, por fim, veio o socialismo utópico”. (TEODORO, 2007, p. 19).
Como um produto da reação capitalista, iniciou-se uma desenfreada mitigação de direitos com a consequente exploração do trabalho humano. Os empregados, até então desamparados por uma legislação que tutelasse os seus direitos, submetiam-se a excessivas e exaustivas jornadas de trabalho a fim de preservar o vínculo laboral. É a partir desta situação caótica que nasceram as uniões clandestinas dos trabalhadores, reivindicando tanto melhorias nas condições de trabalho quanto uma postura estatal mais ativa e menos omissa.
Ainda conforme Teodoro (2007, p. 21), “percebe-se, assim, que o Direito do Trabalho é contemporâneo da Revolução Industrial, pela qual restaram abolidas as formas de prestações servis de trabalho, conferindo valor ao trabalho livre e subordinado”.
De acordo com este contexto, o Estado finalmente adota uma postura intervencionista ao criar uma legislação protetiva ao trabalhador hipossuficiente, a fim de estabelecer diretrizes para as relações trabalhistas e para solucionar os conflitos laborais. Assim, nasce uma nova fonte jurídica autônoma e especializada: o Direito do Trabalho.
2.2. Breve Histórico do Direito do Trabalho no Brasil
Na concepção do jurista e doutrinador brasileiro, Maurício Godinho Delgado (2011), o Direito do Trabalho no Brasil é dividido em fases, quais sejam: manifestações incipientes, institucionalização e transição. Contudo, há quem defenda que o direito trabalhista brasileiro encontra-se em uma crise, razão pela qual este ainda continua em processo de formação.
2.2.1 Primeira Fase
Maurício Godinho Delgado denomina essa fase como manifestações incipientes ou esparsas. Esse período é narrado da seguinte forma pelo autor:
“É característica desse período a presença de um movimento operário ainda sem profunda e constante capacidade de organização e pressão, quer pela incipiência de seu surgimento e dimensão no quadro econômico-social da época, quer pela forte influência anarquista hegemônica no segmento mais mobilizado de suas lideranças próprias. Nesse contexto, as manifestações autonomistas e de negociação privada vivenciadas no novo plano industrial não têm ainda a suficiente consistência para firmarem um conjunto diversificado e duradouro de práticas e resultados normativos, oscilando em ciclos esparsos de avanços e refluxos”. (DELGADO, 2011, p. 107).
Neste contexto, encontrava-se instaurado o Estado Liberal ou Legalista. O Estado, neste período, é caracterizado por uma atuação jurisdicional mínima, não intervencionista, calcado na supremacia do positivismo, na igualdade formal, na prevalência da autonomia privada e na grande divisão entre a esfera pública e a esfera privada. Em observância a estas características, percebe-se que este modelo estatal não garantia direitos trabalhistas, mas foi a partir dele que os primeiros movimentos emancipatórios, ainda que tímidos, começaram a surgir.
2.2.1 Segunda Fase
Em 1929, instaurou-se a crise do Estado Liberal. Assim, a fase de institucionalização do Direito do Trabalho firma a sua estrutura jurídica e institucional no ano de 1930 e permeia até 1945 – Ditadura Getulista (DELGADO, 2011).
Delgado caracteriza esse período da seguinte maneira:
“A fase de institucionalização do Direito do Trabalho consubstancia, em seus primeiros treze a quinze anos, intensa atividade administrativa e legislativa do Estado, em consonância com o novo padrão de gestão sociopolítica que se instaura no país com a derrocada, em 1930, da hegemonia exclusivista do segmento agroexportador de café.
O Estado largamente intervencionista que ora se forma estende sua atuação também à área da chama questão social. Nesta área implementa um vasto e profundo conjunto de ações diversificadas mas nitidamente combinadas: de um lado, através de rigorosa repressão sobre quaisquer manifestações autonomistas do movimento operário; de outro lado, através de minuciosa legislação instaurando um novo e abrangente modelo de organização do sistema justrabalhista, estreitamente controlado pelo Estado”. (DELGADO, 2011, p. 107).
Nesta fase, o modelo de Estado vigente é o Social, onde passa a existir um maior intervencionismo estatal a fim de buscar a promoção da igualdade substancial, uma vez que a igualdade meramente formal do Estado Liberal se mostrou incapaz e injusta para normatizar as relações trabalhistas.
O trabalho foi reconhecido enquanto instrumento de promoção pessoal e social, de forma que este se elevou à condição de direito fundamental, social e humano. Dessa forma, os direitos trabalhistas foram vistos como importante instrumento de fortalecimento da cidadania e da produtividade capitalista.
No Estado Social, encontram-se os direitos de segunda geração, resultantes da intolerância quanto à passividade do Estado. É, portanto, nesse período que o Direito do Trabalho se consolida como ramo jurídico autônomo e institucionalizado. Não menos importante ressaltar, a jurisdição muda na medida em que o juiz abandona a postura neutra e passa a se preocupar com a finalidade interpretativa da norma, conforme os valores previstos na Constituição.
2.2.3 Terceira Fase
Esta última fase do Direito do Trabalho brasileiro é conhecida como crise e transição do Direito do Trabalho, onde o modelo justrabalhista tradicional brasileiro sofre um substancial questionamento que acaba por resultar na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (DELGADO, 2011).
Nos ensinamentos de Delgado, entende-se que:
“A existência desse questionamento – e a relativa força com que surgiu e se manifestou – é que permite admitir-se estar-se diante de uma nova fase no Direito do Trabalho do país: uma fase de superação democrática das linhas centrais do antigo modelo corporativo de décadas atrás. Não obstante, a insuficiência desse mesmo questionamento e os resultados tímidos – e muitas vezes contraditórios – alcançados pela Carta de 1988 também não permitem que se apreenda mais do que uma fase de transição no momento presente, já que definitivamente ainda não estão instauradas e consolidadas práticas e instituições estritamente democráticas no sistema justrabalhista incorporado pela Carta Constitucional de 1988. Estar-se-ia, pois, diante de uma fase de transição democrática do Direito do Trabalho do país. Porém, como ver-se-á, logo a seguir, a transição brasileira não se esgota no debate democrático, passando também por um viés desarticulador de todo o ramo jurídico, inspirado em tendências político-ideológicas influentes no mundo capitalista desenvolvido desde a década de 1970”. (DELGADO, 2011, p. 113).
Esse novo modelo de Estado possui como característica o pluralismo cultural e moral, acompanhado da multiplicação de direitos, das ordens normativas e de problemas.
Teodoro preceitua que:
“Um dos primeiros avanços percebidos pela nova Carta Magna foi proporcionar certa autonomia aos sindicatos, vez que retira o controle administrativo que era feito pelo Estado, por intermédio do Ministério do Trabalho, sobre os sindicatos. Além disso, valoriza o sindicato ao exigir sua participação para a realização da negociação coletiva. […]
Outro avanço significativo foi a grande importância dada à negociação coletiva, reconhecendo expressamente os acordos e convenções coletivas como direitos sociais – art. 7, XXVI, CR/88”. (TEODORO, 2007, p. 36).
A multiplicação de direitos é fator relevante que leva ao surgimento dos direitos de terceira geração, caracterizados pelos seus destinatários difusos. É diante desse contexto que nota-se a ascensão do intérprete, na medida em que este conquista a responsabilidade de atuar como instrumento interpretativo a fim de ajustar a norma abstrata à realidade para a realização da democracia e para a efetivação concreta dos direitos previstos na Constituição Federal.
Ainda conforme Teodoro:
“Apesar dos inegáveis avanços realizados pela Constituição de 1988 (ressalvadas suas normas de preservação de um sistema sindical pouco adequado à democracia, conforme exposto), seu papel positivo não foi suficientemente testado e efetivado, uma vez que, já no alvorecer dos anos 90, começo a sofrer assédio das políticas ultraliberalistas. Nesse contexto, o Direito do Trabalho vem sendo transformado para adaptar-se aos interesses do neoliberalismo, com parco poder de defesa por parte dos trabalhadores, tendo em vista o receio do desemprego e as condições atuais de vida […]” (TEODORO, 2007, p. 37).
O extenso rol de direitos previstos na Carta Maior se mostram ineficazes perante a realidade. Portanto, uma vez iniciada a flexibilização dos direitos trabalhistas, o Direito do Trabalho tem seu prestígio abalado devido à precarização das relações laborais, fazendo com que as finalidades das normas trabalhistas constitucionais comecem a demonstrar a identificação do Estado com os valores e anseios apresentados pela sociedade.
2.3. Princípios Constitucionais Trabalhistas Brasileiros
A seguir, serão analisados os princípios constitucionais trabalhistas que integram o ordenamento jurídico brasileiro e que norteiam a atuação do Estado Democrático de Direito.
2.3.1. Introdução
Tendo em vista que o Direito é um fenômeno social, espacial e temporal, sabe-se que o ordenamento jurídico brasileiro é constituído de princípios, regras, doutrina e jurisprudência.
Delgado prescreve que:
“Direito é o conjunto de princípios, regras e institutos voltados a organizar situações ou instituições e criar vantagens, obrigações e deveres no contexto social. Incorporando e concretizando valores, o direito desponta como essencialmente finalístico, isto é, dirigido a realizar metas e fins considerados relevantes em sua origem e reprodução sociais”. (DELGADO, 2001, p. 15).
Os princípios são definidos por Maurício Godinho Delgado (2011) como proposições fundamentais que se formam na consciência das pessoas e grupos sociais, a partir de certa realidade, e que, após formadas, direciona-se à compreensão, reprodução ou recriação dessa realidade.
Nos ensinamentos de Lívia Mendes Moreira Miraglia (2015), os princípios são de suma importância para o ordenamento jurídico, uma vez que auxiliam na interpretação das normas jurídicas, fazendo, portanto, que o sistema jurídico se adeque à realidade espacial e temporal do intérprete.
Por mais que os princípios possuam alto grau de abstração e necessitem de intervenções que os concretizem, é sabido que estes exprimem valores a respeito do ordenamento jurídico como um todo.
No que tange à violação dos princípios, Celso Antônio Bandeira de Mello esclarece que:
“Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e correção de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura neles esforçada”. (BANDEIRA DE MELLO apud MIRAGLIA, 2015, p. 41).
Portanto, na concepção de Miraglia (2015, v. 2, p. 42), os princípios “serão considerados baluartes do ordenamento jurídico pátrio”, ainda que não estejam positivados no texto legal.
2.3.2. Os Princípios Constitucionais Trabalhistas Brasileiros
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 dispõe, em seu art. 6º, que “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 2015).
Os direitos acima explanados nos remetem à ideia de que os direitos sociais, individuais e coletivos do trabalho encontram-se esparsos em todo o texto constitucional.
A saudosa Alice Monteiro de Barros (2006) entende que os princípios constitucionais trabalhistas são aqueles trazidos no próprio corpo da Constituição Federal. Segundo este entendimento, os princípios insculpidos nos artigos 6º a 11º da Carta Magna brasileira são os que tratam determinados assuntos de maneira específica e peculiar.
Na concepção de Lívia Mendes Moreira Miraglia:
“Os princípios constitucionais do trabalho são aqueles que balizam a existência e interpretação do ramo justrabalhista. Constituem-se como normas-base do Direito do Trabalho, pautando a elaboração dos conceitos e a acepção das normas trabalhistas, de modo que não se admite a apreciação dos seus fenômenos em sentido contrário aos princípios constitucionais do trabalho.
Além disso, informam e vinculam tanto a ação estatal quanto a ação privada no âmbito das relações laborais. […]
Cumpre esclarecer também que a análise dos princípios constitucionais do Trabalho se faz à luz da atual Constituição da República Federativa do Brasil, datada de 1988 e constituída sob a égide do Estado Democrático de Direito”. (MIRAGLIA, 2015, p. 42 e 43).
Deste modo, os principais princípios que fundamentam a Constituição da República brasileira serão explanados a seguir.
2.3.2.1. Princípio da Valorização do Trabalho
É através do trabalho que o homem provê seu próprio sustento e o dos seus dependentes, que permite a sua autorrealização, que se inclui socialmente em uma rede de contatos e que se insere no mercado consumidor.
Desse modo, o trabalho, inserido como direito social fundamental da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, deve, a partir de então, ser interpretado sob o princípio da dignidade da pessoa humana, pois o ser humano é o centro do ordenamento jurídico.
Gabriela Neves Delgado aduz que:
“A Constituição Federal de 1988, ao consagrar a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, “[…] reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal”. (SARLET apud DELGADO, 2006, p. 74).
No entendimento de Lívia Mendes Moreira Miraglia:
“[…] Não trata o princípio da valorização de qualquer trabalho. Tal afirmação, inclusive, poderia servir de justificativa para a utilização de práticas contemporâneas de labor em condições análogas à de escravo, sob o argumento de que a concessão de comida e moradia bastaria para a sobrevivência do homem trabalhador.
A interpretação dos princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito Brasileiro não permite o esvaziamento do seu significado.
Desse modo, o princípio da valorização do trabalho deve ser lido como ‘princípio da valorização do trabalho digno’. O sentido real do princípio é possibilitar a efetiva inserção do homem na sociedade e garantir as condições necessárias à vivência (e não mera sobrevivência) digna do trabalhador e de sua família”. (MIRAGLIA, 2015, p. 45 e 46).
Portanto, o Estado, mediante o ramo do Direito do Trabalho, irá regulamentar as condições mínimas das relações de emprego, sob o prisma do princípio da proteção do trabalhador, a fim de que o valor de seu trabalho seja devidamente assegurado perante a sociedade.
2.3.2.2. Princípio da Função Social da Propriedade
A propriedade é o direito individual que assegura ao seu titular o direito de gozar, reivindicar, usar e dispor.
O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 dispõe que:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]
XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;” (BRASIL, 2015).
É possível perceber que a CR/88 positivou o direito de propriedade com o atendimento de sua função social. Assim, firmada como uma das bases socioeconômicas do Estado, a propriedade, a partir de 1988, não é mais concebida como um direito ilimitado, pois nasce o dever jurídico de agir em prol dos interesses coletivos e não somente a satisfação desenfreada e desregulada dos interesses individuais.
Lívia Mendes Moreira Miraglia brilhantemente leciona que:
“Dessa maneira, se, de um lado, reconhece e assegura o direito individual de propriedade privada, de outro, o dispositivo constitucional limita o seu direito de utilização, a fim de garantir a propriedade como instrumento de realização do bem-estar comum.
A propriedade não pode visar tão somente ao interesse de seu proprietário quando se vive em um Estado Democrático de Direito, cujo intuito maior é a efetivação dos direitos sociais em conformidade com os direitos individuais”. (MIRAGLIA, 2015, p. 50).
Portanto, tanto o princípio da livre iniciativa quanto o princípio da função social da propriedade devem caminhar em conjunto para efetivar o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que, em pleno século XXI, os direitos individuais humanos vêm sendo mitigados em prol de interesses particulares, a exemplo do lucro.
2.3.2.3. Princípio da Igualdade e da Não Discriminação
Conforme previamente demonstrado, a Constituição Federal de 1988 procedeu a positivação de vários direitos fundamentais, tais como: a dignidade da pessoa humana, a valorização do trabalho, a liberdade, a igualdade entre todos e a proibição de qualquer tipo de discriminação.
Nos termos do art. 5º, inciso I da CR/88, tem-se que:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;” (BRASIL, 2015).
O princípio da igualdade, durante algum tempo, era visto sob diferentes lentes e aspectos, de forma com que sua eficácia não era plena e causava divergência em sua aplicação.
Na vigência do Estado Liberal, por exemplo, a igualdade que existia era apenas no plano formal, uma vez que no plano material os indivíduos ainda eram tratados de formas desiguais.
A professora Lívia Miraglia ensina que “Assim, a igualdade formal representava privilégio para poucas classes, negando-se às demais categorias sociais o acesso a direitos fundamentais básicos, como, por exemplo, o de ser reconhecido como sujeito detentor de direitos” (MIRAGLIA, 2015, v2, p. 58).
Já na vigência do Estado Social, o princípio da igualdade passou a depender da intervenção estatal em prol de sua efetivação, pois a formalidade da lei não era suficiente para que tal princípio exercesse seus efeitos. Portanto, nesse modelo de Estado, nota-se o surgimento da igualdade material, onde o Estado iniciou a adoção de medidas positivas a fim de concretizar a isonomia entre os indivíduos. Ainda conforme os ensinamentos de Miraglia (2015, v.2, p. 58), “Em um primeiro momento, isso (a igualdade material) implicou a concretização da liberdade positiva e a vedação de tratamentos desiguais a pessoas em situações de igualdade, repelindo-se a discriminação”.
Atualmente, na vigência do Estado Democrático de Direito, a igualdade é concebida sob a forma da lei.
A autora Lívia Miraglia (2015, v2, p. 59) informa que a igualdade “há de ser compreendida como ‘igualdade através da lei’, legitimamente construída pelos seus destinatários, por intermédio de seus representantes democraticamente eleitos”.
No que tange ao princípio da não discriminação, segundo Wandelli (2004), pode-se afirmar que este decorre do princípio constitucional da isonomia e é expressiva manifestação do princípio da igualdade, o qual veda as discriminações injustificadas.
A partir de todo o exposto, os princípios da igualdade e o da não discriminação devem ser interpretados juntamente com os demais princípios constitucionais fundamentais, de forma com que o Estado adote uma postura ativa que permita o exercício e a efetivação de tais direitos.
2.3.2.4 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
O núcleo de princípios aplicáveis ao Direito do Trabalho inicia-se com o princípio da dignidade da pessoa humana. Esse princípio não é aplicado de forma isolada, uma vez que ele integra e norteia todos os demais, a fim de garantir a efetivação de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
O art. 1º da CR/88 dispõe que:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: […]
III – a dignidade da pessoa humana;” (BRASIL, 2015).
O artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) também dispõe que “[…] todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.
Em análise ao artigo anterior, sabe-se que a dignidade da pessoa humana se consolida como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil ao ser elevada ao patamar de direito fundamental constitucionalmente garantido. Este avanço se concretiza graças à afirmação dos diretos fundamentais como núcleo de proteção do ser humano.
Nas palavras de Maurício Godinho Delgado:
“A Constituição Brasileira, como visto, incorporou o princípio da dignidade humana em seu núcleo, e o fez de maneira absolutamente moderna. Conferiu-lhe status multifuncional, mas combinando unilateralmente todas as suas funções: fundamento, princípio e objetivo. Assegurou-lhe abrangência a toda a ordem jurídica e a todas as relações sociais. Garantiu-lhe amplitude de conceito, de modo a ultrapassar sua visão estritamente individualista em favor de uma dimensão social e comunitária de afirmação da dignidade humana. Insista-se que para a Constituição Democrática Brasileira a dignidade do ser humano fica lesada caso este se encontre privado de instrumentos de mínima afirmação social. Enquanto ser social, a pessoa humana tem assegurada por este princípio iluminador e normativo não apenas a intangibilidade de valores individuais básicos, como também um mínimo de possibilidade de afirmação no plano comunitário circundante.” (DELGADO, 2001, p. 121).
Portanto, a dignidade da pessoa humana, tanto em sua dimensão individual quanto social, deve ser a finalística do legislador e dos operadores do direito, a fim de minimizar as situações degradantes e desumanas que comprometam o espírito do atual modelo de Estado em que vivemos.
2.4. A Repersonalização do Direito do Trabalho
Para o autor Norberto Bobbio (2001), a dicotomia entre a esfera pública e a esfera privada reflete a situação de um grupo social onde se diferencia o que pertence ao grupo e o que pertence, individualmente, a cada membro desse grupo.
O filósofo político italiano observa, ainda, que:
“Como se trata de dois termos que no uso descritivo comum passam por ser contraditórios, no sentido de que no universo por ambos delimitado um ente não pode ser simultaneamente público e privado, e sequer nem público nem privado, também o significado valorativo de um tende a ser oposto ao do outro, no sentido de que, quando é atribuído um significado valorativo positivo ao primeiro, o segundo adquire um significado valorativo negativo, e vice-versa” (BOBBIO, 2001, p. 20).
Tal fenômeno constitui etapa do processo de transformação das sociedades industriais mais avançadas no momento em que o Estado consegue perceber a influência da evolução social (BOBBIO, 2001).
De acordo com Judith Martins Costa (2006), a dicotomia do público-privado é pautada no modelo da incomunicabilidade, uma vez que estas esferas se caracterizam como linhas paralelas e sem nenhum ponto em comum. A autora trás, ainda, o exemplo da Constituição Federal e o Código Civil, que somente se tocavam sob o aspecto formal e por força da hierarquia das leis.
Dessa forma:
“Esse modelo de relacionamento entre o público e o privado, típico do Estado liberal de direito, é concebido também como “modelo da incomunicabilidade”, na medida em que a Constituição e o Código Civil se encontravam apenas no aspecto formal e caminhavam paralelamente: a Constituição regrando o Estado e o homem político; o Código Civil como império da sociedade civil e do sujeito proprietário e cidadão, ou seja, o Código civil, fincado na igualdade formal, exigia uma postura omissa do Estado, consagrando liberdades ditas negativas. Em verdade, pode-se dizer que o Código Civil desempenhava o papel de Constituição e estava sempre a favor do valor fundamental do liberalismo: o sujeito livre e (formalmente) igual”. (TEODORO, 2016, p. 148).
Com o passar dos anos, enfrenta-se a transição dos ideais do Estado Liberal para o Estado Social, onde, neste último, então dotado de caráter intervencionista e promotor de políticas públicas, não mais se admite um Direito Civil alheio e incomunicável ao direito público.
Segundo Maria Cecília Máximo Teodoro:
“Não obstante o Estado Social entre em crise, em virtude do neoliberalismo, a rarefação da divisão entre as esferas pública e privada prossegue. Embora esta separação entre o público e o privado seja cada vez menos nítida, o que se percebe é uma continuidade, um progressivo entrecruzamento, mas não se trata, todavia, do desaparecimento desta clivagem, pois a abolição desta divisão é a característica mais forte de um regime totalitário.
Miguel Reale fala em complementaridade para explicar a crescente convergência do Direito Público e do Direito Privado, ressaltando que não há primado de um ou de outro.
E continua: […] pois ambos compõem o processo dialético da positividade jurídica através da história, obedecendo às diretrizes emergentes dos valores eminentes que caracterizam cada civilização, e que formam o que denomino invariantes axiológicas. A principal delas é a idéia (sic) de pessoa humana, em meus livros apresentada como “valor fonte” de todos os valores. Nada de extraordinário que seja ela o valor básico de todo o ordenamento jurídico, sobretudo do civil”. (REALE apud TEODORO, 2016, p. 149).
Assim:
“Com essa interpenetração entre público e privado, alguns institutos de direito civil ganharam status constitucional, como a família. É inegável que a constitucionalização do direito privado alterou a perspectiva do direito, porque os institutos de direito privado passaram a ser interpretados sob a ótica da dignidade.
Trata-se da despatrimonialização e repersonalização do direito privado. Todo o ordenamento jurídico passa a ser orientado pela Constituição, para que a dignidade da pessoa humana seja o centro irradiador do direito”. (VALADÃO; TEODORO, 2015, p. 165-166).
Portanto:
“Houve uma mudança substancial, pois onde antes havia uma disjunção, hoje há uma unidade hermenêutica, pela qual a Constituição apresenta-se como o crivo conformador da elaboração e aplicação da legislação civil. Há ainda uma virada hermenêutica, pois deve o jurista interpretar o Código Civil segundo a Constituição e não a Constituição, segundo o Código, como outrora”. (TEODORO, 2016, p. 149 e 150).
A partir dos extratos acima, é possível verificar que a atual configuração do Estado brasileiro teve influências traçadas no período neoliberal. Ao absorver o espírito democrático tracejado na Carta Republicana de 1988, o Estado assumiu o compromisso de instrumentalizar um sistema de cooperação e integração entre o interesse público perseguido pelos anseios da esfera privada. Assim, grandes partes das relações começaram a ser norteadas pela carga valorativa trazida pelo próprio texto constitucional, destacando-se os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana.
Maria Cecília Máximo Teodoro explana que:
“Dessa forma, como a Constituição e a dignidade da pessoa humana passaram a sustentar todo o ordenamento jurídico, os direitos fundamentais ganharam aplicabilidade também nas relações entre particulares. A força normativa da Constituição determinou que seus valores e princípios devem ser aplicados de forma direta e efetiva nas relações privadas, e não apenas na relação Estado-indivíduo”. (MORAES apud TEODORO, 2015, p. 12).
E ainda:
“Desse modo, o neocontitucionalismo propõe a aplicação direta das normas constitucionais, o que é denominado de eficácia horizontal dos direitos fundamentais. […]
Nesse passo, há incidência imediata dos direitos fundamentais no âmbito privado, porque não apenas o Estado, mas também as pessoas e entidades privadas estão diretamente vinculadas à Constituição. […]
Assim, a irradiação dos princípios e valores constitucionais a todo o ordenamento jurídico tem por conseqüência a aplicação direta da Constituição às relações privadas, conferindo eficácia horizontal aos direitos fundamentais”. (VALADÃO; TEODORO, 2015, p. 167).
A partir das perspectivas acima mencionadas, sabe-se que os sujeitos da relação trabalhista – empregado e empregador – são sujeitos de direitos e deveres, de tal forma que o Direito do Trabalho atua com o intuito de promover a igualdade e o equilíbrio entre as partes.
Ainda na concepção de Maria Cecília Máximo Teodoro:
“No que diz respeito à interpenetração do direito público no Direito do Trabalho, temos que esse fenômeno ainda está sendo gestado. Não obstante, a interpenetração já alcançada propiciou, no contrato de trabalho, a superação da concepção de contratualidade pautada na autonomia da vontade.
Na verdade, o Direito do Trabalho se apresenta como uma atuação estatal direta nas relações de emprego a fim de preservar o interesse público. O grande desafio, porém, que se apresenta, é colocar na centralidade dos estudos e da hermenêutica trabalhistas as questões existenciais do trabalhador, o que significa elevar a sua dignidade humana à máxima potência”. (TEODORO, 2016, p. 150).
Portanto:
“O que se propõe é uma releitura do Direito do Trabalho, à luz dos direitos fundamentais, em tentativa de promover a repersonalização deste ramo do Direito. Assim, com a transferência da dignidade do empregado para o centro do Direito do Trabalho, não mais se admite uma visão meramente patrimonialista dos direitos trabalhistas.
A repersonalização do Direito do Trabalho é tema atual e polêmico no contexto jurídico contemporâneo. Na maioria dos casos, os direitos trabalhistas são interpretados como mera decorrência econômica e patrimonial, de forma que basta o pagamento das parcelas previstas em lei. (…)
Nesse contexto, repersonalizar o Direito do Trabalho é afirmar a pessoa do trabalhador como ocupante de seu eixo de regulação. No Estado Neoliberal, isso implica na vedação de o empregador exercer o direito à propriedade de forma abusiva, na medida em que a propriedade não constitui valor absoluto, pois é preciso privilegiar a dignidade da pessoa do trabalhador. Por isso, ainda que a relação de trabalho situe-se na esfera privada, não se sustenta o desrespeito a direitos fundamentais trabalhistas, pois são inerentes à dignidade”. (TEODORO, 2016, p. 151).
A fim de complementação:
“Nesse contexto, no Estado Neoliberal, é vedado ao empregador exercer o direito à propriedade de forma abusiva, na medida em que a propriedade não constitui valor absoluto, pois é preciso privilegiar a dignidade da pessoa do trabalhador. Por isso, ainda que a relação de trabalho situe-se na esfera privada, não se sustenta o desrespeito a direitos fundamentais trabalhistas, porque são inerentes à dignidade.
Ademais, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais promove a mitigação da autonomia da vontade na celebração do contrato de trabalho. Ainda que as partes sejam livres para contratar, o objeto do contrato deve respeitar não apenas as normas ordinárias de prestação do trabalho, mas principalmente a dignidade dos trabalhadores. […]
Assim, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais é instrumento para a tutela da dignidade do trabalhador. Ainda que a atividade econômica constitua objeto de proteção da Constituição, esse valor não é absoluto, porque é imprescindível a interpretação da norma de acordo com os demais valores insculpidos no texto constitucional. Desse modo, a atividade econômica deve ser explorada como meio de valorização social do trabalho, além de ser desempenhada à luz da dignidade da pessoa humana. […]
Portanto, a busca pela efetivação material dos direitos trabalhistas deve ser perseguida por todos os agentes envolvidos no trabalho, ou seja, pelos trabalhadores, empregadores, sindicatos, juízes, advogados e também pelo Ministério Público do Trabalho.
Por todo o exposto, nas relações de trabalho, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais ganha especial relevância, já que o trabalho atua como instrumento de construção e afirmação social e psíquica do empregado, de forma a influenciar diretamente na dignidade humana.
Dessa forma, haverá efetivação das normas constitucionais, o que atende aos objetivos da República.
A necessidade de releitura do Direito do Trabalho, à luz dos direitos fundamentais, é imprescindível para a despatrimonialização e repersonalização do Direito Laboral. Torna-se necessário abandonar o antigo paradigma de que o Direito do Trabalho é patrimonialista e se preocupa com o pagamento das parcelas previstas em lei.
Ao contrário, a maior preocupação do Direito do Trabalho deve ser a dignidade humana do trabalhador, pois o homem é o centro do ordenamento jurídico. Nesse espeque, com a despatrimonialização e a repersonalização do Direito do Trabalho, é possível o cumprimento da justiça social, por meio da inclusão social e da melhoria da condenação socioeconômica da população, o que atende aos objetivos da República”. (VALADÃO; TEODORO, 2015, p. 168-169).
Isto porque o trabalho escravo apresenta-se como o rebaixamento máximo da dignidade da pessoa humana, retirando-a do centro do ordenamento jurídico e colocando-a no limbo social e jurídico. A escravidão, notadamente a moderna, representa a própria antítese da repersonalização, significando a própria despersonalização do trabalhador.
Assim, o estudo das condições análogas à de escravo e principalmente o seu combate trata-se de uma das vertentes do que se propõe através da repersonalização, na medida em que resgata o trabalhador das profundezas do abismo de desproteção em que foi lançado, devolvendo-lhe a dignidade humana e o status de pessoa humana ocupante do eixo central do ordenamento jurídico-trabalhista.
3. ABORDAGEM HISTÓRICA DA ESCRAVIDÃO
A escravidão é um instituto antigo, extenso e complexo. Por assim o ser, a sua abordagem será realizada de forma simplificada, a fim de preparar a temática para o seu ponto central.
Segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (2016), disponível on-line[1], as definições de escravidão e de escravo são:
“es·cra·vi·dão
substantivo feminino
1. Estado de escravo; cativeiro.
2. [Figurado] Servidão; sujeição; falta de liberdade.
es·cra·vo
substantivo masculino
1. Indivíduo que foi destituído da sua liberdade e que vive em absoluta sujeição a alguém que o trata como um bem explorável e negociável. = CATIVO
2. Súdito de um tirano.
3. [Figurado] Que está dominado por um sentimento, uma ideia. = DEPENDENTE
4. [Figurado] Enamorado.
5. [Portugal: Trás-os-Montes] Maltratado, mal alimentado”. (DICIONÁRIO PRIBERAM DA LÍNGUA PORTUGUESA, 2016).
A exploração do trabalho humano foi considerada uma prática comum e aceitável durante milhões de anos e em todas as partes do mundo. Como se mostrará a seguir, muitos povos, ao longo da história, se beneficiaram desta prática, que somente começou a ser questionada a partir do século XIX.
3.1 Histórico da Escravidão no Mundo
As Eras Históricas permitem uma maior compreensão da evolução do homem, vez que trazem os primeiros fragmentos sociais, artísticos, culturais e políticos da humanidade.
Na Pré-História são constatados os primeiros registros da civilização humana. É neste período, dividido em Paleolítico, Neolítico e Idade dos Metais, que o homem se distingue dos animais e começa a utilizar de sua racionalidade para aprimorar as técnicas alimentares e a convivência em grupos.
Portanto, de acordo com Flávio Filgueiras Nunes (2005), a primeira forma de escravidão foi constatada nesta Era, em que os perdedores das guerrilhas entre tribos eram obrigados a servir os vencedores, então súditos, de forma árdua. Assim, a escravidão era considerada como uma condição natural de vida.
A Era da Antiguidade, ou Idade Antiga, iniciou-se com o desenvolvimento da escrita. Foi neste período que o homem começou a governar os territórios habitados e que nasceram as principais religiões do mundo. Com o advento das civilizações Egípcia, Grega e Romana, a escravidão foi expandida e fortalecida como base da pirâmide social da civilização.
“A escravidão é um tipo de relação de trabalho que existia há muito tempo na história da humanidade. Já na Antiguidade, o código de Hamurabi, conjunto de leis escritas da civilização babilônica, apresentava itens discutindo a relação entre os escravos e seus senhores. Não se restringindo aos babilônios, a escravidão também foi utilizada entre os egípcios, assírios, hebreus, gregos e romanos. Dessa forma, podemos perceber que se trata de um fenômeno histórico extenso e diverso”. (SOUSA, 2016).
A Idade Média teve seu início com o apogeu do Império Romano e seu declínio com a tomada de Constantinopla pelos turcos. Nesta Era, as religiões – principalmente a Católica – desempenharam importante papel de mediadoras dos comportamentos sociais, interferindo nas relações privadas e nas decisões do Estado.
Conforme descreve Nunes (2005), a servidão não surgiu com o feudalismo, mas apenas ganhou força com ele, uma vez que já existia a relação entre o servo e a terra.
Assim:
“As origens do feudalismo remontam ao século III, quando o sistema escravista de produção no Império Romano entrou em crise. Diante da crise econômica e das invasões germânicas, muitos dos grandes senhores romanos abandonaram as cidades e foram morar nas suas propriedades no campo. Esses centros rurais, conhecidos por vilas romanas, deram origem aos feudos medievais. Muitos romanos menos ricos passaram a buscar proteção e trabalho nas terras desses grandes senhores. Para poderem utilizar as terras, no entanto, eles eram obrigados a entregar ao proprietário parte do que produziam, estava instituído assim, o colonato. Aos poucos, o sistema escravista de produção no Império Romano ia sendo substituído pelo sistema servil de produção, que iria predominar na Europa feudal. Nascia, então, o regime de servidão, onde o trabalhador rural é o servo do grande proprietário”. (HISTÓRIA DO MUNDO, 2016).
Nota-se, portanto, que a escravidão antiga é sutilmente transformada no instituto da servidão que, não menos agressiva, ainda sujeitava os servos às vontades de seus senhores.
A Idade Moderna é marcada pela transição do período feudal ao capitalismo. É nesta Era que ocorre importantes movimentos, tais como a expansão marítima e o Iluminismo.
As grandes navegações acarretaram no descobrimento, e consequente colonização, dos continentes africano e americano. Dessa forma, o instituto da escravidão renasceu ainda mais forte na medida em que a exploração da mão-de-obra voltou-se aos negros e aos indígenas. Além disso, os colonizadores, a fim de obter um maior lucro com as atividades comerciais, deram início ao tráfico negreiro, que consistia na importação de mão-de-obra de outros continentes. De acordo com o sítio eletrônico Klick Educação (2016), o Brasil recebeu 38% dos escravos enquanto a América do Norte ficou com apenas 6%.
Por fim, é na Idade Contemporânea, com os ideais da Revolução Francesa e com os anseios da Revolução Industrial, que o instituto da escravidão enfrenta o seu declínio.
No que tange à Revolução Francesa, esta pregava uma filosofia de igualdade, liberdade e fraternidade entre os indivíduos, enquanto a Revolução Industrial mobilizou inúmeros trabalhadores a lutarem por melhores, e mais dignas, condições de trabalho.
Ainda na linha de Flávio Filgueiras Nunes,
“[…] no final do século XIX, quase todos os países do mundo já haviam abolido (formalmente) a escravidão, no entanto, denúncias persistiam, levando a OIT, já no século XX, a elaborar duas convenções – nº 29 de 1930 e nº 105 de 1957, visando a acabar de vez com a exploração desse tipo de mão-de-obra”. (NUNES, 2005, p. 21).
Portanto, percebe-se que tais movimentos contemporâneos desempenharam importante função no processo de abolição da escravatura ao redor do globo terrestre, uma vez que seus ideais revolucionaram a forma humana de pensar, tanto no âmbito individual quanto no âmbito coletivo.
3.2. Histórico da Escravidão no Brasil
No ano de 1500, Pedro Álvares Cabral e sua frota portuguesa desembarcaram, pela primeira vez, em Porto Seguro, na Bahia, onde proclamaram o descobrimento do Brasil.
A colonização brasileira iniciou-se somente em 1534, com a divisão do território nacional em capitanias hereditárias.
O primeiro contato entre os portugueses e os índios foi considerado amigável. A fim de persuadir os indígenas a trabalharem na extração do pau-brasil, os homens brancos davam-lhes objetos como espelhos, cordas e facas. Esse instituto ficou conhecido como escambo.
Contudo, uma vez que a colônia portuguesa tinha grande interesse na exploração agrícola e na produção dos engenhos, os índios começaram a ser escravizados.
Nas observações de Flávio Filgueiras Nunes:
“Ainda na primeira metade do século XV, após os primeiros movimentos de ocupação do território noviço, Portugal iniciou o processo de colonização utilizando a mão-de-obra escrava dos nativos para exportar madeiras e especiarias para a Europa. O escravo nativo possuía algumas peculiaridades que acabavam por contribuir para a seu uso como a facilidade de recrutamento e o baixo gasto em sua manutenção.
Inicialmente, para realizarem as atividades mercantis desejadas, os índios recebiam pequenos bens de origem europeia. A troca da mão-de-obra por objetos era conhecida como escambo. Passada a fase de curiosidade, começou a ficar difícil a obtenção de nativos dispostos a realizarem os trabalhos, fazendo com que os portugueses substituíssem a mão-de-obra nativa pela a do negro africano”. (NUNES, 2005, p. 22).
Assim, muitos indígenas não resistiam ao trabalho escravo imposto pelos colonizadores por conta de sua intensidade e por conta das doenças trazidas, pelos colonos, da Europa. Em observância a este contexto, os negros africanos foram introduzidos no Brasil a fim de atender as necessidades mercantis e de mão-de-obra.
Ainda segundo Nunes:
“Outros fatores como econômico e religioso somaram-se para que fosse substituída a espécie de mão-de-obra explorada. O primeiro era devido ao maior lucro do governo português com a cobrança de tributos referente ao tráfico de escravos advindos do continente africano, uma vez que os impostos devidos internamente na colônia eram comumente sonegados. Entretanto, os lucros não ficavam concentrados apenas na mão do governo português, visto que os traficantes e os comerciantes, também obtinham excelentes vantagens. Já os fatores de ordem religiosa pautavam-se na pressão dos jesuítas para o fim desta exploração, face ao interesse da igreja em catequizar os índios. Como é asseverado por muitos autores, havia ainda por parte da igreja outros interesses, como a aquisição de terras, no entanto, não aprofundaremos os estudos nesta seara por não ser este essencial para o estudo presente.
A partir deste contexto o escravo negro foi inserido no Brasil passando a labutar inicialmente na lavora canavieira nordestina. Posteriormente a mão-de-obra foi utilizada também nas Minas Gerais na extração de pedras preciosas”. (NUNES, 2005, p. 22 e 23).
Com o passar do tempo, o tráfico negreiro tornou-se um negócio interessante e lucrativo para a coroa portuguesa, uma vez que alavancava a vertente da economia brasileira, ganhando, então, cada vez mais intensidade.
Os movimentos culturais e intelectuais do século XVIII exerceram grande influência na população europeia que, por consequência, adotaram um novo estilo de pensamento. Graças a estes ideais, a Inglaterra, em pleno século XIX, tomou frente do processo abolicionista ao redor do mundo.
Conforme os ensinamentos de Leandro Narloch:
“A mobilização começou em 1787, quando 12 amigos criaram a Sociedade para a Abolição do Comércio de Escravos. Para mudar o pensamento da época, usaram armas que depois se tornariam comuns, como a propaganda em panfletos e jornais, os boicotes e as petições públicas. “Foi a mais impressionante campanha de opinião pública que o Ocidente viveu antes do século 20”, afirma Manolo Florentino, historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro”. (NARLOCH, 2007).
Já nos escritos de Nunes:
“Diante do interesse econômico que encontrava disfarce no discurso humanitário, os ingleses iniciaram um processo de difusão da necessidade de todos os países do mundo abolirem a escravidão.
Alguns autores argumentam sobre a existência de outros motivos como o interesse na manutenção da mão-de-obra barata no continente africano para ser utilizada nos empreendimentos britânicos, visto que a Inglaterra possuía várias colônias naquele continente.
Outro argumento utilizado foi que os ingleses tinham interesse no aumento do mercado consumidor que iria ser expandido com o fim da escravidão e o consequente aumento de trabalhadores assalariados. Essa proposição parece um tanto quanto incoerente, visto que, como é sabido, o produto industrializado possuía valores que não era acessível a maior parte da população, mesmo os homens livres e assalariados. Deste modo, a argumentação sobre o interesse expansionista inglês não será aceita neste trabalho.
A interferência britânica no Brasil com o objetivo de dar fim à escravidão iniciou-se ainda nos primeiros anos da independência, pois o governo inglês pôs entre as condições para o reconhecimento da autonomia brasileira a extinção do tráfico de escravos”. (NUNES, 2005, p. 23 e 24).
Foi assim que o Império Britânico marcou um dos mais importantes movimentos sociais do século XIX e semeou a ideia da abolição da escravatura em vários países ao redor do mundo.
No Brasil, o processo de abolição da escravidão foi gradual. No ano de 1850, a Lei Eusébio de Queirós proclamou o fim do tráfico interatlântico de escravos. Apesar de esta lei ter obtido efeitos imediatos, o tráfico interno de escravos aumentou devido à necessidade da manutenção da produtividade das áreas agrícolas. Por pressão da Inglaterra em deter o tráfico interno e a escravidão como um todo, o Brasil apregoou a Lei do Ventre Livre, que considerava livre todos os filhos de mulheres escravas nascidos a partir do dia 28 de Setembro de 1871. Não obstante, em 28 de Setembro de 1885, o Brasil passou a garantir a liberdade aos escravos com mais de 60 (sessenta) anos de idade. Tal medida ficou conhecida como a Lei dos Sexagenários.
As leis supracitadas não foram totalmente eficazes no combate à escravidão. Enquanto os filhos, agora livres, das escravas ficavam dependentes da condição de suas mães, os ex-escravos idosos era despejados sem nenhuma garantia de vida digna. Assim, os próprios escravos passaram a adotar o pensamento de que era mais valioso se sujeitar ao trabalho forçado e ter como garantia um lugar para morar e algumas refeições ao longo do dia, do que ser despejado à sua própria sorte.
Em análise a esse contexto, a Lei Áurea, que extinguiu formalmente a escravidão no Brasil, foi sancionada em 13 de Maio de 1888.
Segundo o seu texto legal:
“A Princesa Imperial Regente, em nome de Sua Majestade o Imperador, o Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembléia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte:
Art. 1°: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil.
Art. 2°: Revogam-se as disposições em contrário.
Manda, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nella se contém.
O secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Comercio e Obras Publicas e interino dos Negócios Estrangeiros, Bacharel Rodrigo Augusto da Silva, do Conselho de sua Majestade o Imperador, o faça imprimir, publicar e correr.
Dada no Palácio do Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1888, 67º da Independência e do Império.
Princeza Imperial Regente.
RODRIGO AUGUSTO DA SILVA
Carta de lei, pela qual Vossa Alteza Imperial manda executar o Decreto da Assembléia Geral, que houve por bem sanccionar, declarando extincta a escravidão no Brazil, como nella se declara.
Para Vossa Alteza Imperial ver.
Chancellaria-mór do Império.- Antonio Ferreira Vianna.
Transitou em 13 de Maio de 1888.- José Júlio de Albuquerque”. (BRASIL, 1888).
Para Nunes:
“Em 1888, chegamos ao nosso marco fim. No dia 13 de maio foi assinada a Lei 3.353 pela princesa Isabel, governante interina do Brasil, abolindo a escravidão no país e tornando proibida a exploração do trabalhador em razão de sua cor, raça ou etnia.
A Lei Áurea criou a ferramenta jurídica necessária para o fim do desrespeito à dignidade, liberdade e igualdade entre os indivíduos do país. O homem deixou de ser tratado como coisa, como bem que incorporava o patrimônio dos escravocratas”. (NUNES, 2005, p. 25 e 26).
Destarte, 128 anos se passaram desde a abolição formal da escravatura. Apesar disto, o problema ainda persiste ao longo do território nacional brasileiro. O que se pretende, nos capítulos a seguir, é demonstrar que assegurar a liberdade a um indivíduo hipossuficiente não é o bastante para inibir condutas que mitigam os direitos humanos e fundamentais. Somente com medidas de políticas públicas eficientes é que conseguiremos construir um modelo trabalhista sustentável que extinga, também materialmente, a persistência da escravidão contemporânea no Brasil.
4. O TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO NO BRASIL
Conforme visto anteriormente, a Lei Áurea, de 1988, extinguiu formalmente a escravidão no Brasil. Contudo, a prática do trabalho escravo nos grandes centros urbanos e rurais ainda é uma triste realidade que assola o nosso país. De acordo com o livro digital “Escravo, nem pensar! – Uma abordagem contemporânea sobre trabalho escravo na sala de aula e na comunidade” (REPÓRTER BRASIL, 2014), 47 mil trabalhadores foram resgatados, de 1995 a 2014, desse tipo de situação.
4.1. Considerações Iniciais
Sabe-se que o trabalho escravo é uma temática aplicada no âmbito do Direito do Trabalho com reflexos do Direito Constitucional e dos Direitos Humanos. Por isso, a própria CR/88 elevou a dignidade da pessoa humana através do trabalho digno como seu pilar constitucional e como direito fundamental. A partir de então, o ordenamento jurídico pátrio passou a vedar qualquer forma de trabalho escravo ou análogo a este, buscando criar e solidificar os institutos das leis, tratados, doutrinas e jurisprudências.
Uma vez que a atuação do Estado não é suficiente para coibir tal prática, particulares e organizações não governamentais (ONGs) se uniram para instruir e educar a sociedade civil quanto a esta questão, buscando proteger a dignidade da pessoa humana e o trabalho digno.
4.2. Conceituação
A conceituação do que é trabalho escravo é complexa, razão pela qual procurar-se-á fazer uma abordagem simples e clara.
“Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague […]
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague
Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague” (BUARQUE, 1971).
Pelas estrofes da música “Deus lhe pague”, de Chico Buarque, é possível extrair que os elementos caracterizadores do trabalho escravo contemporâneo atingem a dignidade e a liberdade do indivíduo, de forma com que seus direitos humanos serão violados quando este tiver a dignidade ferida e/ou liberdade restringida.
O artigo 149 do Código Penal Brasileiro foi alterado pela Lei 10.803/03 para indicar as hipóteses em que se configura a condição análoga à de escravo, pois a expressão “reduzir alguém à condição análoga à de escravo” era tão vaga que permitia ao intérprete aplicar sua própria valoração pessoal, de forma que não era possível alcançar uma segurança jurídica no âmbito desta temática.
Assim, atualmente preceitua o art. 149 do CP de 1940 que:
“Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem”. (BRASIL, 2015).
Percebe-se que a escravidão contemporânea não é caracterizada por meras infrações de cunho trabalhista, mas é, na verdade, um crime contra os direitos humanos e fundamentais que norteiam o Estado Democrático de Direito.
Na concepção de Débora Lopes Rosa (2013), “tem-se por trabalho escravo contemporâneo, o ato de aliciar pessoas à prestação de serviços de forma degradante, com jornadas exaustivas e salários ínfimos. O trabalho escravo em comento envolve cerceamento da liberdade pela dívida, distância, ameaças físicas e morais”.
Para o programa Escravo, nem pensar!, coordenado pela ONG Repórter Brasil, a constatação de um dos quatros elementos abaixo é suficiente para a configuração do trabalho escravo contemporâneo:
“– TRABALHO FORÇADO: o indivíduo é obrigado a se submeter a condições de trabalho em que é explorado, sem possibilidade de deixar o local seja por causa de dívidas, seja por ameaça e violências física ou psicológica;
– JORNADA EXAUSTIVA: expediente desgastante que vai além de horas extras e coloca em risco a integridade física do trabalhador, já que o intervalo entre as jornadas é insuficiente para a reposição de energia. Há casos em que o descanso semanal não é respeitado. Assim, o trabalhador também fica impedido de manter vida social e familiar;
– SERVIDÃO POR DÍVIDA: fabricação de dívidas ilegais referentes a gastos com transporte, alimentação, aluguel e ferramentas de trabalho. Esses itens são cobrados de forma abusiva e descontados do salário do trabalhador, que permanece cerceado por uma dívida fraudulenta;
– CONDIÇÕES DEGRADANTES: um conjunto de elementos irregulares que caracterizam a precariedade do trabalho e das condições de vida sob a qual o trabalhador é submetido, atentando contra a sua dignidade”; (REPÓRTER BRASIL, 2016).
Já na concepção de Lívia Mendes Moreira Miraglia:
“Nessa esteira, pode-se inferir que o trabalho escravo contemporâneo é aquele que se realiza mediante a redução do trabalhador a simples objeto de lucro do empregador. O obreiro é subjugado, humilhado e submetido a condições degradantes de trabalho e, em regra, embora não seja elemento essencial do tipo, sem o direito de rescindir o contrato ou de deixar o local de labor a qualquer tempo”. (MIRAGLIA, 2015, p. 132 e 133).
Nos ensinamentos do professor Sento-Sé, a definição de trabalho escravo seria:
“[…] aquele em que o empregador sujeita o empregado a condições de trabalho degradantes, inclusive quanto ao meio ambiente em que irá realizar sua atividade laboral, submetendo-o, em geral, a constrangimento físico e moral que vai desde a deformação do seu consentimento ao celebrar o vínculo empregatício, passando pela proibição imposta ao obreiro de resilir o vínculo quando bem entender, tudo motivado pelo interesse mesquinho de ampliar os lucros às custas da exploração do trabalhador”. (SANTO-SÉ, 2001, p. 27).
Por fim, de acordo com a Convenção n. 29 da OIT (1946), “a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”.
Por todo o exposto, alguns dos elementos que caracterizam a escravidão contemporânea são as dívidas ilegais, o isolamento geográfico, os alojamentos precários, a falta de saneamento básico e higiene, as jornadas exaustivas, os maus tratos e ameaças, a retenção de direitos e, por fim, a inexistência – ou existência ínfima – de salário. Contudo, há elementos que, isoladamente, não configuram, por si só, a situação de trabalho escravo, como, por exemplo, a falta de assinatura da CTPS, a baixa remuneração, doenças ocupacionais e assédio moral.
Portanto, cada caso é único e merece ser analisado em sua individualidade a fim de evitar generalizações equivocadas.
4.3. Análise da Escravidão Antiga em face da Escravidão Contemporânea
A escravidão contemporânea muito se distingue da escravidão antiga. Apesar da essência de ambas – submeter o indivíduo a um trabalho forçado e degradante – ser a mesma, muitas características se mostram divergentes e peculiares, razão pela qual é possível assimilar que a escravidão praticada nos períodos colonial e imperial do Brasil não é a mesma praticada nos dias atuais.
O livro digital “Escravo, nem pensar! – Uma abordagem contemporânea sobre trabalho escravo na sala de aula e na comunidade” (REPÓRTER BRASIL, 2014) e a cartilha informativa sobre o trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho (MPT, 2015) abordam as diferenças relevantes quanto ao modelo antigo e atual da escravidão. Por isso, tais documentos servirão de base para a elaboração deste tópico.
A diferença básica entre a escravidão antiga e a escravidão atual é que, no primeiro modelo, o indivíduo não era sujeito de direitos, mas tão somente sujeito de deveres. Já no segundo modelo, o indivíduo é formalmente considerado um sujeito de direitos e deveres, tendo suas garantias de liberdade, igualdade e dignidade asseguradas no texto constitucional.
No que tange à propriedade legal, a escravidão antiga permitia, por meio de lei, que determinada pessoa possuísse um escravo, uma vez que este era considerado uma mera mercadoria. Contudo, na escravidão atual, sabe-se que uma pessoa não tem qualquer direito de propriedade sobre outra, pois se trata de seres humanos iguais entre si e perante a lei.
Quanto ao custo de compra, sabe-se que este era alto na escravidão antiga e que a riqueza de uma pessoa era medida na quantidade de escravos que esta possuía. Contudo, a realidade da escravidão contemporânea é que o custo de compra de um escravo é muito baixo ou inexistente, uma vez que sua mão-de-obra é apenas aliciada.
A mão-de-obra no modelo antigo era escassa, uma vez que os proprietários dependiam do tráfico negreiro ou da reprodução de seus próprios escravos. Já no atual modelo escravocrata, a mão-de-obra é descartável, no sentido de que há muitos trabalhadores desempregados e a procura de qualquer negócio para garantir a subsistência pessoal e familiar.
No que diz respeito às diferenças étnicas, estas eram estritamente relevantes na escravidão antiga, sendo os negros e os índios os principais alvos. Já na escravidão atual, tais diferenças raciais deixam de ser importantes, sendo os pobres e miseráveis em geral os principais alvos.
O tempo de relacionamento dos escravos com os seus senhores na escravidão antiga ocorria por um longo período, não sendo surpresa o caso de um escravo que passasse a vida inteira trabalhando em uma mesma propriedade. Contudo, o tempo de relacionamento na escravidão atual se dá por um curto período, sendo o trabalhador escravo mandando embora na medida em que o serviço é terminado.
Os lucros dos proprietários eram baixos na escravidão antiga, uma vez que estes tinham gastos com a manutenção de seus escravos, mas na escravidão contemporânea, os lucros são altos, pois os proprietários cobram dos trabalhadores a sua própria manutenção.
Por fim, uma semelhança aos dois modelos escravocratas diz respeito às técnicas para a manutenção da ordem. Os senhores, tanto os antigos quanto os atuais, utilizam-se de ameaças, violência psicológica, coerção física, punições exemplares e até mesmo assassinatos para educar, domesticar e intimidar os seus escravos.
4.4. Identificação dos trabalhadores e empregadores escravocratas
No Brasil, existe uma grande quantidade de mão-de-obra ociosa que acaba por diminuir o valor de seu serviço. Assim, inicia-se o processo de super-exploração da mão-de-obra não-especializada. Como essa prática ilegal revela situações de extrema vulnerabilidade e miséria, faz-se necessário identificar o perfil das vítimas e dos empregadores escravocratas.
No que tange ao perfil dos trabalhadores escravos, é importante ressaltar que, diferentemente da escravidão colonial e imperial, as diferenças étnicas não mais se fazem relevantes, podendo encaixar-se no perfil de escravo moderno todo e qualquer trabalhador, independente de raça, sexo, nacionalidade e/ou idade.
De acordo com uma pesquisa realizada pelo GPTEC (Grupo de Estudo e Pesquisa sobre o Trabalho Escravo Contemporâneo) e a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), “o trabalhador rural escravizado no Brasil é, quase na sua totalidade, do sexo masculino, não-branco e com nível de escolaridade muito baixo. Cerca de 20% nunca chegou a frequentar escola e geralmente é original da Região Nordeste, sobretudo do estado do Maranhão”. (COMBATENDO O TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO, 2010).
Ainda de acordo com a mesma pesquisa:
“[…] a migração é uma das características mais presentes no trabalho escravo brasileiro. Setenta e quatro por cento das vítimas não vivem no município em que nasceram e 40% moram em estados diferentes do local de origem. A ocupação predominante dos trabalhadores resgatados […] tem sido o trabalho rural temporário sem registro (ou carteira de trabalho). […]
Ainda sobre o perfil da vítima, a pesquisa constatou que a maior parte não tem companheira/esposa. Porém, mais da metade têm filhos e quase a metade declarou ser a única pessoa da família que trabalha. A maioria absoluta não possui pessoas aposentadas entre seus familiares. Com relação à formação profissional, 85% nunca fez nenhum tipo de curso profissional, ainda que 81% tenha declarado que gostariam de fazê-lo”. (COSTA, 2010, p. 69).
Já na concepção do informativo da OIT:
“Os trabalhadores libertados, na grande maioria dos casos, são homens na faixa dos 18 aos 40 anos, que deixam sua terra, principalmente de estados como o Maranhão e o Piauí, na expectativa de encontrar trabalho em outro lugar.
Partem rumo às fazendas que empregam trabalhadores temporários e, com a esperança de conseguir um dinheiro, obter no mínimo o sustento e o pão de cada dia, tornam-se mão-de- obra escrava. Submetem-se à exploração, aceitam condições desumanas de vida. Vivem longe dos familiares e perambulam entre fazendas e cidades em busca de oportunidades”. (SAKAMOTO, 2006, p. 41 e 42).
O anexo II nos mostra o perfil do trabalhador escravo contemporâneo. De acordo com tal, conclui-se que 92,6% dos trabalhadores iniciaram a sua vida profissional antes dos 16 anos e que, por média, começaram a trabalhar aos 11 anos (OIT, 2011). Além disso, a maior parte dos trabalhadores é constituída por homens jovens, uma vez que se buscam pessoas com grande vigor físico para que possam ser exploradas no serviço pesado.
O perfil dos trabalhadores escravos é composto por características comuns e frequentes a um grupo, mas tais características não compõe o universo do trabalho escravo contemporâneo, podendo encontrar casos atípicos de exploração de mão-de-obra.
Segundo a Revista Exame online, “de acordo com o levantamento, em geral, o trabalhador exposto à escravidão contemporânea no Brasil é homem, negro, analfabeto funcional, tem idade média de 31,4 anos e renda declarada mensal de 1,3 salário mínimo. A grande maioria, 77%, nasceu no Nordeste” (LOURENÇO, 2011).
Além disso, de acordo com a OIT, o Movimento Humanos Direitos declarou que:
“De acordo com a pesquisa, 85% dos trabalhadores entrevistados, além de terem baixíssima escolaridade (analfabetos e com menos de quatro anos de estudo), nunca fizeram curso de qualificação. No entanto, 81,2% declararam que gostariam de fazer algum curso, principalmente os mais jovens (95,2% dos que têm menos de 30 anos). A preferência recai nas áreas de mecânica de automóveis, operação de máquinas, construção civil (pedreiro, encanador, pintor) e computação.” (DOCA, 2011).
Com base nesse exposto, uma alternativa viável seria a estimular a educação, investir em cursos de capacitação profissional e a criação de novos empregos.
Portanto, o escravo contemporâneo é assim enxergado:
“O escravo moderno é menos que o boi (que é cuidado, vacinado e bem alimentado), que a terra (que é protegida e bem vigiada) e que a propriedade (sempre defendida com firmeza). Destarte, o trabalhador escravizado, por não integrar o patrimônio do “escravagista moderno”, este não se preocupa com sua saúde, segurança e higidez física e mental, sendo totalmente descartável, utilizado apenas como meio de produção e não ligado ao proprietário por qualquer liame, legal ou social, na visão daqueles que se utilizam da prática ou que pretendem legalizá-la.” (VIEIRA, Jorge Antônio Ramos apud BAZZAN, 2006).
A OIT publicou um estudo chamado ‘Perfil dos principais atores envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil’ em 2011 que revelou que o perfil dos empregadores escravocratas. Com base nesse estudo, nota-se que a grande maioria dos empregadores possui curso superior completo; são pecuaristas, agricultores, fazendeiros, veterinários e administradores; são médios e grandes proprietários; são originais da região Sudeste, mas suas propriedades encontram-se nas regiões, Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país. (REPÓRTER BRASIL, 2014, cap. 1, p. 6).
Segundo a Revista Exame Online:
“Em média, de acordo com o levantamento qualitativo na OIT, os empregadores são homens, brancos, com idade média de 47,1 anos. A maioria nasceu na Região Sudeste e têm ensino superior completo. A atividade econômica da maioria dos entrevistados para a pesquisa era a pecuária. Um dos fazendeiros ouvidos está entre os dez maiores produtores de gado nelore do país.” (LOURENÇO, 2011).
Segundo o Movimento Humanos Direitos:
“[…] A entidade concluiu que a maioria deles nasceu no Sudeste, tem boa formação (curso superior completo) e é filiada a partidos políticos.
Com idade média de 47,1 anos e cor branca, a maioria nasceu em cidades de Rio, Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo e optou por residir próximo às fazendas, nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste.
Formados em Administração de Empresas, Engenharia Agrônoma e Medicina Veterinária, declararam como ocupação serem pecuaristas, fazendeiros, administradores, comerciantes e veterinários. Alguns dos entrevistados informaram ser filiados ao PMDB, ao PSDB e ao PR. A maioria deles disse não acreditar na existência de trabalho escravo no Brasil”. (DOCA, 2011).
Portanto, enquadram-se como empregadores escravocratas aqueles que aliciam a mão-de-obra escrava, aqueles que disponibilizam seus espaços, aqueles que utilizam propriamente do referido tipo de mão-de-obra e até mesmo aqueles que concedem alojamento aos trabalhadores para facilitar o desvirtuamento da mão-de-obra.
Após a identificação dos perfis, conclui-se que:
“Aceitar um trabalho árduo e longe do seu lar, muitas vezes, parece ser a única opção para as pessoas que estão sem nenhum recurso para sustentar a si e a sua família. Além disso, muitas vezes, o trabalhador desde muito cedo está acostumado a condições de trabalho difíceis.
Quando uma pessoa faz uma oferta de trabalho, ele acaba aceitando sem pestanejar. Em alguns casos, é ludibriado; em outros, informa-se mal sobre o trabalho que aceitou.
Geralmente, quem é responsável por esse tipo de proposta são os gatos, ou seja, intermediários do empregador que recrutam migrantes para frentes de trabalho distantes de sua cidade de origem. O recrutamento mediante uma oferta enganosa de trabalho é chamado de aliciamento.
A situação de vulnerabilidade econômica do trabalhador é uma das principais razões para ele acreditar em uma proposta enganosa de emprego e aceita-la. O trabalhador aliciado só percebe que foi enganado quando chega ao local de trabalho”. (REPÓRTER BRASIL, 2014, cap. 1, p. 5).
4.5 Áreas e atividades econômicas em que ocorrem a escravidão contemporânea
Sabe-se que a escravidão contemporânea ocorre em todas as regiões brasileiras, fazendo-se presente tanto na área urbana quanto na área rural. Contudo, há estados em que a ocorrência dessa prática se faz presente de forma mais intensa.
De acordo com as informações do Ministério do Trabalho (BITTAR, 2008), a região Norte é o principal lugar com maior incidência da prática do trabalho escravo, sendo representada pelo Estado do Pará.
Segundo Wilson Prudente, Procurador do Trabalho do MPT – 1ª Região, em entrevista ao portal Amaivos, em 2006 a região Norte:
“[…] é a que registra o maior número de casos de trabalho escravo e degradante no Brasil, principalmente para a derrubada de árvores da floresta Amazônica, atividade que está conectada a crimes ambientais e, possivelmente, a outros atos ilícitos, como aliciamento de mão-de-obra.” (AMAIVOS, 2006).
Em segundo lugar, encontra-se a região Centro-Oeste, então representada pelos estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Segundo notícia veiculada à Câmara dos Deputados, “após o Pará, aparecem os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, com 1.736 e 1.608 trabalhadores resgatados respectivamente no período. O Mato Grosso do Sul também aparece como o segundo maior fornecedor de mão-de-obra escrava”. (BITTAR, 2008).
Assim, “em todos os outros 22 estados brasileiros, mesmo os mais ricos, o fenômeno está presente, embora o maior número de libertados tenha sido nos estados do Pará, seguido por Mato Grosso, depois pelo oeste da Bahia e centro sul de Goiás”. (GIRARDI e outros, 2014).
Ainda de acordo com Girardi, as hipóteses de ocorrência do trabalho escravo nos estados brasileiros supracitados seriam:
“O diferencial das atividades econômicas realizadas em Mato Grosso em relação aos outros três estados poderia ser uma hipótese: o uso de mecanização na produção da soja exige maior qualificação do trabalhador e o desflorestamento já está em estágio avançado. No caso do estado do Pará, a forte produção do carvão vegetal leva a uma maior necessidade de trabalhadores braçais”. (GIRARDI e outros, 2014).
Portanto, os quatro principais estados onde o referido fenômeno ocorre são o Pará, Mato Grosso, Maranhão e Tocantins.
A partir do histórico acima, é importante observar, também, as atividades econômicas que mais se utilizam do trabalho escravo.
Segundo o sítio eletrônico Espaço e Economia, de acordo com os Cadernos de Conflitos no Campo da CPT e de acordo com o Grupo Móvel de Fiscalização do MPT:
“Nota-se que o trabalho escravo ocorre, sobretudo, nas seguintes atividades econômicas: companhias siderúrgicas, carvoarias, mineradoras, madeireiras, usinas de álcool e açúcar, destilarias, empresas de colonização, garimpos, fazendas, empresas de reflorestamento/celulose, agropecuárias, empresas relacionadas à produção de estanho, empresas de citros, olarias, cultura de café, produtoras de sementes de capim e seringais. De fato, as atividades econômicas que se desenvolvem nas microrregiões de maior concentração de trabalho escravo são a produção de carvão (Santa Maria da Vitória, por exemplo), a pecuária (São Felix do Xingu), mineração (Parauapebas), exploração de madeira (Paragominas, Tomé Açu). Há, portanto, aparecimento do trabalho escravo mesmo em segmentos bastante capitalizados e tecnologizados”. (GIRARDI e outros, 2014).
Destarte, de forma gráfica e percentual, as atividades econômicas que mais se utilizam da mão-de-obra escrava, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra e o Programa Escravo, nem pensar! (REPÓRTER BRASIL, 2014), são: mineração (1% – 311), confecção têxtil (1% – 327), extrativismo (1% – 534), reflorestamento (3% – 1.102), desmatamento (5% – 2.095), carvão (8% – 3.294), construção civil (5% – 2.163), cana (25% – 10.709), pecuária (27% – 11.755), outras lavouras (18% – 7.753) e atividades diversas e atividades não identificadas (7% – 3.026).
5. COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO
A escravidão contemporânea não se trata de um acontecimento esporádico. Graças à divulgação midiática, é possível ter ciência de casos atuais ligados à exploração da mão-de-obra humana, tais como a chacina de Unaí (2004), o assassinato da irmã Dorothy Stang (2005), a condenação do ex-senador João Ribeiro por reduzir trabalhadores à condição análoga à de escravos (2005) e o constante resgate de trabalhadores realizados por entidades responsáveis.
Por se tratar de um fenômeno delicado e cada vez mais frequente, nasceu o desafio de adotar medidas preventivas e repressivas, tanto em âmbito internacional quanto nacional, a fim de combater as raízes do trabalho escravo.
5.1. Âmbito Internacional
Durante o século XIX, muitos países, após os movimentos reivindicativos, deram início à abolição formal da escravidão. Contudo, o trabalho escravo ainda é uma infeliz realidade que persiste em vários territórios.
No século XX, ano de 1919, nasceu a Organização Internacional do Trabalho (OIT) como resultado do Tratado de Versalhes, sendo responsável pela formulação e aplicação das normas internacionais do trabalho, de tal modo que suas convenções e recomendações, uma vez ratificadas por decisão soberana de um país, passam a fazer parte de seu ordenamento jurídico. (OIT BRASIL, 2016).
Por conta dessa influência, alguns países elaboraram, no ano de 1926, na cidade de Genebra, a Convenção Sobre a Escravatura, tendo em vista a necessidade de se estabelecer medidas de combate à escravidão.
Em seu artigo 1º, tem-se que:
“Para os fins da Presente Convenção, fica entendido que:
1º A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sôbre o qual se exercem, total ou parcialmente , os atributos do direito de propriedade;
2º O tráfico de escravos compreende todo ato de captura, aquisição ou sessão de um indivíduo com o propósito de escravizá-lo; todo ato de aquisição de um escravo com o propósito de vendê-lo ou trocá-lo; todo ato de cessão, por meio de venda ou troca, de um escravo adquirido para ser vendido ou trocado; assim como em geral todo ato de comércio ou de transportes de escravos.” (CONVENÇÃO SOBRE A ESCRAVATURA, 1926).
Já em seu artigo 2º:
“As Altas Partes contratantes se comprometem, na medida em que ainda não hajam tomado as necessárias providências, e cada uma no que diz respeito aos territórios colocados sob a sua soberania, jurisdição, proteção, suserania ou tutela:
a) a impedir e reprimir o tráfico de escravos;
b) a promover a abolição completa da escravidão sob tôdas as suas formas progressivamente e logo que possível”. (CONVENÇÃO SOBRE A ESCRAVATURA, 1926).
No ano de 1930, a OIT deu luz à Convenção N. 29, que acabou por clarear várias questões relativas ao trabalho forçado e ao trabalho obrigatório. Tal Convenção definiu, em seu artigo 2º, que “a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente” (OIT, 1946).
Em 1948, foi proclamada, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), que tem por objetivo a proteção universal dos direitos humanos. Em seu artigo IV, preceitua que “ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas”. (ONU, 1948).
No ano de 1956, nasceu a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, Tráfico de Escravos e Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, que se compromete a suprimir o trabalho forçado e obrigatório, bem como não recorrer ao mesmo sob forma alguma.
A Assembleia Geral das Nações Unidas lançou, em 1966, o Pacto de Direitos Civis e Políticos que reconhece e protegem os direitos de liberdade, igualdade, dignidade humana e acesso à justiça.
Neste documento, o artigo 8º informa que:
“1. Ninguém poderá ser submetido á escravidão; a escravidão e o tráfico de escravos, em todos as suas formas, ficam proibidos.
2. Ninguém poderá ser submetido à servidão.
3. a) Ninguém poderá ser obrigado a executar trabalhos forçados ou obrigatórios;
b) A alínea a) do presente parágrafo não poderá ser interpretada no sentido de proibir, nos países em que certos crimes sejam punidos com prisão e trabalhos forçados, o cumprimento de uma pena de trabalhos forçados, imposta por um tribunal competente;
c) Para os efeitos do presente parágrafo, não serão considerados "trabalhos forçados ou obrigatórios":
i) qualquer trabalho ou serviço, não previsto na alínea b) normalmente exigido de um individuo que tenha sido encarcerado em cumprimento de decisão judicial ou que, tendo sido objeto de tal decisão, ache-se em liberdade condicional;
ii) qualquer serviço de caráter militar e, nos países em que se admite a isenção por motivo de consciência, qualquer serviço nacional que a lei venha a exigir daqueles que se oponham ao serviço militar por motivo de consciência;
iii) qualquer serviço exigido em casos de emergência ou de calamidade que ameacem o bem-estar da comunidade;
iv) qualquer trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas normais”. (BRASIL, 1992).
No ano de 1969, surge a Convenção Americana de Direitos Humanos, considerada uma das bases do sistema interamericano de proteção dos Direitos Humanos.
Em seu artigo 6º, nota-se que:
“Artigo 6. Proibição da escravidão e da servidão
1. Ninguém pode ser submetido a escravidão ou a servidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas.
2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Nos países em que se prescreve, para certos delitos, pena privativa da liberdade acompanhada de trabalhos forçados, esta disposição não pode ser interpretada no sentido de que proíbe o cumprimento da dita pena, imposta por juiz ou tribunal competente. O trabalho forçado não deve afetar a dignidade nem a capacidade física e intelectual do recluso.
3. Não constituem trabalhos forçados ou obrigatórios para os efeitos deste artigo:
a. os trabalhos ou serviços normalmente exigidos de pessoa reclusa em cumprimento de sentença ou resolução formal expedida pela autoridade judiciária competente. Tais trabalhos ou serviços devem ser executados sob a vigilância e controle das autoridades públicas, e os indivíduos que os executarem não devem ser postos à disposição de particulares, companhias ou pessoas jurídicas de caráter privado;
b. o serviço militar e, nos países onde se admite a isenção por motivos de consciência, o serviço nacional que a lei estabelecer em lugar daquele;
c. o serviço imposto em casos de perigo ou calamidade que ameace a existência ou o bem-estar da comunidade; e
d. o trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas normais”. (CIDH, 1969).
É possível perceber, a partir de toda legislação internacional exposta, que os países do mundo estão unidos para criar regras, de forma conjunta, a fim de prevenir e combater o trabalho escravo.
Portanto, a atuação dos Estados-Membros ocorre de forma multifocal, uma vez que as áreas da prevenção e conscientização, atuação e resgate, bem como combate e punição são enfocadas na luta pela erradicação do referido problema.
5.2. Âmbito Nacional
O governo federal brasileiro, em 1995, mediante o então presidente Fernando Henrique Cardoso, assumiu publicamente a existência do trabalho escravo contemporâneo em território nacional.
De acordo com o programa Escravo, nem pensar!, a nação brasileira foi uma das primeiras do mundo a reconhecer oficialmente a ocorrência dessa chaga em seu território.
A partir de então, o Brasil adotou uma ação de Estado – e não de governo – e vem combatendo, há mais de duas décadas, o trabalho escravo. A atuação brasileira é realizada de forma multifocal, uma vez que as ações compreendem a área legislativa, de recursos humanos, informativa, prevenção e repressão. (SAKAMOTO, 2006).
Segundo a OIT, apesar de todas as dificuldades e desafios enfrentados, o Brasil é referência mundial no combate ao trabalho escravo.
Segundo a notícia:
“A declaração foi feita pelo coordenador do Projeto de Combate ao Trabalho Escravo no Brasil da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Luiz Machado, no 3º Encontro das Comissões Estaduais para a Erradicação do Trabalho Escravo (COETRAES), hoje (10), na capital paulista. “Nós temos mecanismos que não encontramos em nenhum outro lugar no mundo como os grupos especiais de fiscalização que atendem a todo o território”.
Ele destacou, também, o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, do governo federal, com diversas ações, algumas cumpridas, outras em andamento e outras precisando ser aceleradas, “como a prevenção e assistência à vítima, porque precisamos romper o ciclo vicioso da escravidão. O trabalhador, apesar de ser resgatado, continua vulnerável e muitos voltam para a escravidão”. (ALBUQUERQUE, 2014).
Assim, as medidas brasileiras ocorrem no plano estatal e no plano civil. Enfoca-se na criação e adoção de legislações protetivas e punitivas, na formação de lideranças populares, na produção e distribuição de materiais informativos e até mesmo no apoio a projetos sociais.
5.2.1. Medidas Governamentais Brasileiras
Nos tópicos seguintes, analisar-se-ão as medidas que o Estado brasileiro adotou, e ainda vem adotando, para combater esta chaga contemporânea em seu território.
5.2.1.1. Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo
Nas palavras de Flávio Filgueiras Nunes:
“Em 11 de março de 2003, visando atender a compromissos assumidos por governos anteriores, o presidente Luís Inácio Lula da Silva lançou o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo.
O plano foi elaborado pela Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, concentrando em seu bojo 76 medidas a serem tomadas para a erradicação do trabalho escravo no Brasil.
As propostas apresentadas estão alocadas em 7 grupos, divididos em conformidade com a matéria e a área de atuação. Trata-se de medidas a serem cumpridas a curto e médio prazo pelos diversos órgãos dos poderes executivo, legislativo e judiciário, bem como pelo ministério Público e entidades da sociedade civil brasileira”. (NUNES, 2005, p. 58).
Portanto, o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, documento elaborado pela CDDPH, acabou por reunir entidades e autoridades nacionais ligadas a esta temática.
Tal documento atende às determinações do Plano Nacional de Direitos Humanos e indica uma política pública permanente que deverá ser fiscalizada por um órgão ou fórum nacional dedicado à repressão do trabalho escravo. Além disso, indica medidas a serem cumpridas pelos diversos órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, Ministério Público e entidades da sociedade civil brasileira.
Acredita-se que, com o Plano e com o empenho dos órgãos governamentais e da sociedade civil, será possível adotar uma série de medidas que contribuam para a erradicação definitiva de todas as formas de trabalho escravo, forçado, obrigatório e degradante no país.
5.2.1.2. Grupos Móveis de Fiscalização
Nos registros de Analice Matias de Lira Barboza:
“Anteriormente ao ano de 1995, o Ministério do Trabalho atuava esporadicamente, por meio de suas delegacias regionais do trabalho, no combate ao trabalho escravo. Em 1995, o governo federal criou os Grupos Móveis de Fiscalização para averiguar as condições às quais estão expostos trabalhadores, principalmente nos locais mais remotos. Os grupos móveis estão subordinados diretamente à Secretaria de Fiscalização do Trabalho, que tem por finalidade, entre outras, coordenar programas e a ações de diferentes órgãos governamentais destinados a intervir na questão do trabalho forçado e formular novas propostas legislativas. Tem como principais características: a centralização de comando, o sigilo na apuração de denúncias; a padronização de procedimentos e a atuação em parceria com outros órgãos e entidades”. (BARBOZA, 2011, p. 25 e 26).
Assim, de acordo com a Secretaria de Direitos Humanos:
“O Grupo Especial de Fiscalização Móvel constitui um dos principais instrumentos do Governo para reprimir o trabalho escravo. No âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, conseguiu-se um melhor apoio logístico às equipes da Fiscalização Móvel, apoio que se reflete na aquisição de veículos, computadores, rádios comunicadores, entre outros”. (SDH, 2016).
Na concepção do Relatório Global do Seguimento da Declaração da OIT:
“Outra iniciativa do Governo foi a criação de um Grupo Especial de Fiscalização Móvel em âmbito nacional, para atender a denúncias de trabalho forçado. Esse grupo móvel foi criado após a constatação de pressões políticas sobre equipes locais de inspeção regional, que as impediam de reagir adequadamente às denúncias. Inspetores locais do trabalho eram considerados mais vulneráveis a riscos de segurança ao investigarem denúncias de trabalho forçado.
O Grupo Especial de Fiscalização Móvel foi criado no âmbito da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego48. Avaliações regulares das operações desse Grupo têm apontado dois critérios principais para a eficácia: n a organização centralizada e n segredo absoluto no planejamento. Todas as tentativas de descentralizar atividades não foram bem sucedidas, porque as notícias de operações de inspeção aos proprietários de terras, invariavelmente com antecedência, o que lhes permitia dispersar os trabalhadores ou dissimular de uma maneira ou outra a situação.
O trabalho de investigação do Grupo de Fiscalização Móvel tem sido também realizado nos âmbitos locais e estaduais. O Município de Vila Rica, no Estado do Mato Grosso do Sul, criou uma comissão com a participação da Prefeitura e da Câmara municipais, assim como de organizações de produtores agrícolas e de trabalhadores rurais. Após receber denúncias de trabalho forçado, a Comissão negociou com proprietários e intermediários locais. A simples ameaça de chamar a Fiscalização Móvel e a previsão de multas facilitaram as negociações. Só se recorreria ao Grupo se as negociações fracassassem. Os esforços em âmbito estadual no combate ao trabalho forçado têm sido também importantes”. (OIT, 2001, p. 41 e 42).
Dessa forma, é possível perceber a tamanha importância da fiscalização realizada por estes grupos móveis, justamente porque atuam como fiscais das leis trabalhistas e da Constituição Federal, bem como provedores da erradicação do trabalho escravo. Essa é a razão pela qual o Estado brasileiro aumentou a incidência de sua atuação.
5.2.1.3. Lista Suja do Ministério do Trabalho e Emprego
Flávio Filgueiras Nunes nos ensina que:
“Em novembro de 2003, o Ministério do Trabalho e Emprego, atendendo ao compromisso firmado no Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, editou uma lista com o nome de empresários e empresas que utilizam mão-de-obra escrava. O objetivo é informar aos órgãos públicos, entidades civis e à sociedade como um todo, sobre a forma de trabalho utilizada nestas propriedades durante o desenvolvimento de suas atividades econômicas.
Em outubro de 2004, o Ministro do Trabalho e Emprego, Ricardo Berzoini, assinou portaria que criou o cadastro dos empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições semelhantes à de escravo”. (NUNES, 2005, p. 61).
Dessa forma, o Conselho Nacional de Justiça preceitua que:
“O Ministério do Trabalho e Emprego atualiza, semestralmente, o Cadastro de Empregadores, que contém infratores flagrados submetendo trabalhadores a condições análogas à de escravo.
Os procedimentos de inclusão e exclusão são determinados pela Portaria Interministerial n. 2/2011 – MTE/SDH, a qual impõe que a inclusão do nome do infrator no Cadastro ocorrerá após decisão administrativa final relativa ao auto de infração, lavrado em decorrência de ação fiscal, em que tenha havido a identificação de trabalhadores submetidos ao "trabalho escravo".
Por sua vez, as exclusões derivam do monitoramento, direto ou indireto, pelo período de 2 (dois) anos da data da inclusão do nome do infrator no Cadastro, a fim de verificar a não reincidência na prática do "trabalho escravo" e do pagamento das multas resultantes da ação fiscal.
Cumpre asseverar que o MTE não emite qualquer tipo de certidão relativa ao Cadastro, sendo certo que a verificação do nome do empregador na lista se dá por intermédio da simples consulta ao Cadastro, que elenca os nomes em ordem alfabética”. (CNJ, 2016).
Observa-se que tal lista contempla o nome de importantes personalidades, como políticos e empresários conhecidos. Os efeitos da inclusão nominal no cadastro são vários, mas o mais impactante é ter seu nome vinculado a práticas escravocratas. Contudo, tal inclusão não é permanente e, para ser retirada, é necessário que o indivíduo passe por um período de monitoramento de dois anos.
Portanto, essa iniciativa, ao punir o empregador escravocrata de manter relações comerciais com o governo e ao cortar o direito de obtenção de linhas de crédito junto aos fundos de financiamento, faz com que as medidas de combate ao trabalho escravo sejam fortalecidas graças à sua efetividade de punição, tanto perante o comércio quanto à sociedade.
5.2.1.4. Legislação
O artigo 149 do Código Penal Brasileiro foi alterado pela Lei 10.803/03, atendendo ao objetivo traçado pelo Plano Nacional, para indicar as hipóteses em que se configura a condição análoga à de escravo, uma vez que a expressão “reduzir alguém à condição análoga à de escravo” criava lacunas interpretativas e, assim, gerava insegurança jurídica.
Após a reforma, preceitua o art. 149 do CP de 1940 que:
“Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem”. (BRASIL, 2015).
A nova disposição penal delimitou, em seu caput, as ações e as formas que caracterizam o trabalho escravo, além de adequá-lo à realidade contemporânea, permitindo, portanto, uma atuação jurídica efetiva e segura ao combate do trabalho escravo. Contudo, há uma discussão – ainda não solucionada – relativa à competência processual da justiça federal versus justiça estadual para julgar a presente temática.
5.2.1.5. Medidas da Sociedade Civil
Nos tópicos seguintes, analisar-se-ão as iniciativas que a sociedade civil adotou, e ainda vem adotando, para combater esta chaga contemporânea em território brasileiro.
5.2.1.6. Organizações Não Governamentais (ONGs)
As ONGs são organizações formadas pela sociedade civil e sem objetivo de fins lucrativos. Sugiram como forma de suprimir as falhas governamentais com relação à assistência e resolução dos problemas sociais. Por isso, possuem como missão o combate a algum problema da sociedade, seja ele de cunho político, econômico, social, ambiental, etc. Além disso, atuam como fiscalizadores do poder público e como reivindicadores de direitos e melhorias.
No âmbito internacional, uma ONG de destaque é a “Anti-Slavery”. Fundada em 1839, em Londres, pelos abolicionistas britânicos, é a organização internacional de direitos humanos mais antiga do mundo. Atualmente, é a única instituição de caridade britânica que trabalha exclusivamente para eliminar todas as formas de escravidão, além de apoiar causas locais e de facilitar o acesso à educação e justiça.
Em âmbito nacional, as ONGs destaque são “Repórter Brasil” e “Comissão Pastoral da Terra”.
De acordo com o site:
“O programa Escravo, nem pensar!, coordenado pela ONG Repórter Brasil, teve início em 2004, graças a uma parceria com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Sua fundação se deu em resposta às demandas do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, documento elaborado por representantes do poder público, da sociedade civil e de organismos internacionais e lançado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em março de 2003. No 2º Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, de setembro de 2008, o Escravo, nem pensar! foi incluído nominalmente, por decisão unânime dos membros da Comissão Nacional, para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae). A meta de número 41 do Plano estabelece: “Promover o desenvolvimento do programa ‘Escravo, nem pensar!’ de capacitação de professores e lideranças populares para o combate ao trabalho escravo, nos estados em que ele é ação do Plano Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo”. Atualmente, é também meta de planos estaduais do Mato Grosso, Pará, Tocantins e Maranhão.
Assim, ao longo de quase uma década, o programa tem se tornado política pública das esferas municipal, regional, estadual e nacional. Por meio disso, o trabalho escravo tem se consolidado como tema transversal nos currículos das escolas públicas do país.
O programa realiza e desenvolve:
Metodologias específicas em direitos humanos;
Formações de educadores, de gestores públicos de Educação e de lideranças populares;
Materiais didáticos (publicações, planos de aula, jogos etc);
Assessoria técnica e financeira para experiências comunitárias;
Festivais e concursos culturais de âmbito municipal e/ou estadual;
Assessoria para a institucionalização do tema do trabalho escravo e assuntos correlatos em planos de educação.
O programa tem voltado as suas atividades para educadores e líderes populares, cujo perfil multiplicador de informação e conhecimento amplia os efeitos de suas ações.(…)
Assim, as ações do Escravo, nem pensar! geram uma zona de influência, uma vez que mobiliza atores sociais distintos que, juntos, são capazes de compor uma rede engajada de mobilização e de combate ao trabalho escravo.” (REPÓRTER BRASIL, 2016).
Dessa forma, percebe-se que o programa “Escravo, nem pensar!” da referida ONG atua de forma a difundir o conhecimento a respeito do trabalho escravo contemporâneo e a promover o engajamento de comunidades vulneráveis a fim de diminuir a ocorrência dessa chaga.
No que tange à CPT:
“A Comissão Pastoral da Terra (CPT) nasceu em junho de 1975, durante o Encontro de Pastoral da Amazônia, convocado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e realizado em Goiânia (GO).
Inicialmente a CPT desenvolveu junto aos trabalhadores e trabalhadoras da terra um serviço pastoral. Na definição de Ivo Poletto, que foi o primeiro secretário da entidade, "os verdadeiros pais e mães da CPT são os peões, os posseiros, os índios, os migrantes, as mulheres e homens que lutam pela sua liberdade e dignidade numa terra livre da dominação da propriedade capitalista".
Fundada em plena ditadura militar, como resposta à grave situação dos trabalhadores rurais, posseiros e peões, sobretudo na Amazônia, a CPT teve um importante papel. Ajudou a defender as pessoas da crueldade deste sistema de governo, que só fazia o jogo dos interesses capitalistas nacionais e transnacionais e abriu caminhos para que ele fosse superado. Ela nasceu ligada à Igreja Católica porque a repressão estava atingindo muitos agentes pastorais e lideranças populares, e também, porque a igreja possuía uma certa influência política e cultural. […]
Rapidamente, porém, a entidade estendeu sua ação para todo o Brasil, pois os lavradores, onde quer que estivessem, enfrentavam sérios problemas. Assim, a CPT se envolveu com os atingidos pelos grandes projetos de barragens e, mais tarde, com os sem-terra. […]
A CPT também atua junto aos trabalhadores assalariados e os bóias-frias, que conseguiram, por algum tempo, ganhar a cena, mas que enfrentam dificuldade de organização e articulação. Além destes, há ainda os "peões", submetidos, muitas vezes, a condições análogas às da escravidão.
Em cada região, o trabalho da CPT adquiriu uma tonalidade diferente de acordo com os desafios que a realidade apresentava; sem, contudo, perder de vista o objetivo maior de sua existência: ser um serviço à causa dos trabalhadores rurais, sendo um suporte para a sua organização. O homem do campo é que define os rumos que quer seguir, seus objetivos e metas. A CPT o acompanha, não cegamente, mas com espírito crítico. É por isso que a CPT conseguiu, desde seu início, manter a clareza de que os protagonistas desta história são os trabalhadores e trabalhadoras rurais.
Finalmente, os direitos humanos, defendidos pela CPT, permeiam todo o seu trabalho. Em sua ação, explícita ou implicitamente, o que sempre esteve em jogo foi o direito do trabalhador, em suas diferentes realidades. De tal forma que se poderia dizer que a CPT é também uma entidade de defesa dos Direitos Humanos ou uma Pastoral dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras da terra”. (COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, 2010).
Como a CPT está ligada à ideologia católica, a sua atuação referente ao combate ao trabalho escravo no Brasil contemporâneo preza por uma atuação solidária, fraterna e afetiva.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema do presente trabalho foi escolhido devido às frequentes manifestações midiáticas quanto à mitigação dos direitos dos trabalhadores em prol da busca pelo lucro máximo, de tal forma que fosse questionada a credibilidade e efetividade do ramo trabalhista.
Antes de dar início à temática central, foi necessário contextualizar as fases de formação do Direito do Trabalho no Brasil, bem como apontar os princípios que regem o Estado Democrático de Direito brasileiro, a fim de que o estudo fosse preparado e direcionado para uma reflexão crítica.
A partir da abordagem histórica da escravidão em âmbito mundial e nacional, percebe-se que essas práticas fazem parte da realidade brasileira há mais cinco séculos e que estas ocorrem de forma mais frequente e próxima do que se imagina.
Com base nas pesquisas e leituras realizadas, é possível confirmar a relação dos trabalhadores escravizados com a pobreza e a falta de instrução educacional. Esses fatores contribuem para a facilitação da exploração da mão-de-obra humana. No que tange aos empregadores escravocratas, seus perfis identificados estão intimamente ligados às questões agrárias, políticas, sociais e econômicas.
A partir das constatações do parágrafo anterior, nota-se que o trabalho escravo contemporâneo não está mais ligado a questões étnicas e raciais somente, mas sim a fatores sociais e econômicos. Por isso é que a diferenciação da escravidão antiga da contemporânea se fez importante. A violação de direitos constitucionalmente assegurados é a mesma, porém, suas formas e seus atores são diferentes.
O Estado Democrático de Direito brasileiro assegurou a todos os indivíduos, em seu texto constitucional de 1988, o respeito e a efetivação de seus direitos humanos e direitos fundamentais. Contudo, com a frequente ocorrência da exploração da mão-de-obra humana, percebe-se que o Estado tem a sua atuação comprometida e questionada pelo fato de não conseguir dizimar tal prática e de não conseguir efetivar, com excelência, medidas punitivas. Assim, a impunidade e a ausência de medo pelo Estado são graves características presentes neste cenário.
Por se tratar de uma problemática global, organismos governamentais e não-governamentais, internacionais e nacionais, atuam de forma conjunta a fim de combater essa prática desumana mediante a criação de leis, tratados e grupos de ação.
Com base nos preceitos da repersonalização do Direito do Trabalho, algumas hipóteses de solução para este problema seriam: a construção de um modelo trabalhista sustentável, onde haja um equilíbrio das normas jurídicas com o desenvolvimento econômico e social; o investimento na reflexão e conscientização da sociedade civil; e o reposicionamento da pessoa do trabalhador, em sua dimensão ontológica, como figura central do ordenamento jurídico trabalhista, de forma a concretizar seus direitos no decorrer da relação de emprego e não após a sua cessação.
Extrai-se, então, que devemos procurar combater o problema pela raíz, de forma preventiva e punitiva. Talvez, dessa forma, criaremos uma sociedade mais solidária e que procure garantir, por meio da empatia, o mínimo existencial do outro.
Por fim, o trabalho escravo contemporâneo mostra-se uma temática de suma importância, tendo em vista que se trata de uma prática arcaica, ilegal e que ofende, em pleno século XXI, direitos humanos e fundamentais que foram conquistados, por meio de tantas lutas, ao longo dos anos.
ANEXO A – O TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL
Fonte: REPÓRTER BRASIL, 2016.
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Informações Sobre o Autor
Letícia Bittencourt e Abreu Azevedo
advogada graduada em Direito pela PUC Minas e pós-graduanda em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Estácio/CERS