Fiança penal: aplicabilidade, finalidades e a necessidade de sua reestruturação no ordenamento jurídico brasileiro

Resumo: O presente artigo tem o objetivo de refletir acerca da aplicabilidade da fiança e da limitação de seu uso no ordenamento jurídico pátrio, considerando as diversas alterações legislativas que o referido instituto e a liberdade provisória sofreram. Por meio de uma pesquisa bibliográfica, pretendeu-se conceituar a fiança e demonstrar as suas finalidades. Após, buscou-se apontar as principais mudanças na legislação sobre o instituto bem como evidenciar a atual incongruência legislativa acerca do tema, tendo em vista o entendimento de que a liberdade provisória é um direito subjetivo do acusado, inclusive nos crimes inafiançáveis. Concluiu-se pela necessidade de reestruturação legislativa e jurisprudencial do instituto e pela importância da manutenção de sua aplicabilidade como meio de garantia de eventual indenização à vítima do crime e de inibir possível fuga do condenado.

Palavras-chave: Fiança. Aplicabilidade. Finalidades. Legislação. Incongruência.

Sumário: Introdução. A fiança: conceito alterações legislativas e aplicabilidade. A incongruência legislativa acerca da fiança. Conclusão.

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Introdução

O regramento acerca da fiança sofreu várias alterações legislativas no decorrer dos anos, sendo que, com a Lei nº. 6.416/1977 e com a positivação do princípio da inocência na Constituição Federal – o qual recebeu o status de direito fundamental –, houve a implementação de um novo modelo de liberdade provisória sem fiança, que passou a ser utilizado como regra no âmbito processual penal.

Tal fato ocasionou uma normatização incoerente do instituto, uma vez que a concessão da liberdade provisória pela prática de crimes menos graves permaneceu condicionada ao pagamento da fiança, enquanto que, no caso de crimes graves, inafiançáveis, a liberdade provisória com fiança foi vedada, haja vista a inafiançabilidade imposta a esses delitos pela Constituição Federal e pelas leis esparsas.

Entretanto, tendo em vista a natureza da liberdade provisória, ela passou a ser concedida aos delitos graves em questão sem a imposição da fiança, desde que inexistentes os requisitos autorizativos para a decretação da prisão preventiva.

Em consequência dessa disparidade, embora a Lei nº. 12.403/11 tenha expandido as hipóteses de aplicação da fiança – mudando, inclusive, sua natureza jurídica de medida de contracautela substitutiva da prisão em flagrante para medida cautelar autônoma –, seu desuso tornou-se evidente ante a desproporcionalidade acima apontada e a possibilidade da adoção de outras medidas cautelares diversas da prisão para a manutenção da liberdade do indiciado.

Nesse contexto, o objetivo do presente trabalho é demonstrar que a fiança tem outras finalidades importantes além daquelas de possibilitar a liberdade provisória do indiciado e de vinculá-lo ao processo – o que pode ser alcançado, respectivamente, pela concessão da liberdade provisória sem fiança e pela aplicação de outras medidas cautelares diversas da prisão – sendo imprescindível a sua reestruturação legislativa e jurisprudencial com o consequente aumento de sua aplicabilidade.

2 – A fiança: conceito, alterações legislativas e aplicabilidade.

A fiança está atualmente regulada no Código de Processo Penal (CPP) do artigo 321 ao 350. Tal instituto sempre foi atrelado à liberdade provisória, mas que com ela não se confunde, uma vez que esta é um direito do acusado de permanecer em liberdade no curso da persecução penal desde que ele atenda aos requisitos legais e assuma as obrigações impostas.

Já a fiança é uma caução (uma garantia real), prestada em dinheiro, pedras, metais ou outros objetos preciosos, hipoteca ou títulos da dívida pública que tem como objetivos principais colocar o indiciado ou acusado em liberdade e vincular o afiançado ao processo, obrigando-o ao comparecimento nos atos deste ou do inquérito.

Fernando da Costa Tourinho Filho assim a conceitua:

“Fiança, para o legislador processual penal, é uma garantia real, ou caução. É uma contracautela com o objetivo de deixar o indiciado ou réu em liberdade, mediante uma caução que consiste em depósito em dinheiro, pedras, objetos ou metais preciosos, títulos de dívida pública, federal, estadual ou municipal, ou até mesmo em hipoteca escrita em primeiro lugar. Prestada a caução o réu obterá a sua liberdade provisória até o pronunciamento final da causa, em decisão passada em julgado”. (TOURINHO FILHO, 2009, p. 655).

Guilherme de Souza Nucci, por sua vez, afirma que

“Considera-se fiança uma espécie do gênero caução, que significa garantia ou segurança. Diz-se ser a caução fidejussória, quando a garantia dada é pessoal, isto é, assegurada pelo empenho da palavra de pessoa idônea de que o réu vai acompanhar a instrução e apresentar-se em caso de condenação. Esta seria a autêntica fiança. Com o passar dos anos, foi substituída pela denominada caução real, que implica o depósito ou a entrega de valores, desfigurando a fiança. Ainda assim, é a caução real a feição da atual fiança, conforme se vê no Código de Processo Penal”. (NUCCI, 2008, p. 624-625).

O instituto em questão sofreu várias mudanças legislativas no decorrer dos anos, não somente em relação ao seu conceito – de garantia real ou fidejussória – mas também relativamente à sua natureza jurídica e, principalmente, quanto à sua aplicabilidade.

Com efeito, a redação originária do CPP estabelecia a prisão cautelar como regra, sendo que a liberdade provisória, na prisão em flagrante do indiciado, somente poderia ser obtida mediante o pagamento de fiança ou quando pudesse ser comprovado, de plano, que o crime foi acobertado por uma excludente de ilicitude; quando o acusado se livrasse solto pela prática de crime em que não fosse cominada pena privativa de liberdade ou se esta não excedesse a três meses; ou quando ele não pudesse prestar fiança por motivo de pobreza, conforme estabeleciam, respectivamente, os artigos 310, 321 e 350 do CPP.

Assim, sendo inafiançável o crime praticado, o acusado não podia obter a liberdade provisória.

Entretanto, posteriormente, a Lei nº. 6.416/1977 implementou grandes mudanças no CPP sobre a aplicabilidade da fiança, reduzindo-a de forma veemente.

Não obstante tenha aumentado, conforme o art. 323, inciso I, do CPP, as hipóteses de cabimento do instituto – uma vez que foi autorizada a sua concessão nos crimes apenados com reclusão e pena mínima de 2 anos (antes era vedada a concessão de fiança para os crimes cuja prisão era de reclusão) – por outro lado, o diploma legal em questão estabeleceu a possibilidade, no art. 310, parágrafo único, do CPP, de concessão da liberdade provisória quando o juiz não verificasse a presença dos requisitos da prisão preventiva. Assim, concedia-se o livramento sem a prestação da garantia para qualquer crime em que ela não fosse cabível.

Eugênio Pacelli e Domingos Barros da Costa explicam com muita propriedade a mudança legislativa acima apontada:

“Mais adiante, nos anos de 1973 e 1977, a legislação processual penal brasileira deu os primeiros passos na direção da flexibilização da presunção de culpa. Permitiu, primeiramente (Lei nº. 5.941/73), que o réu primário e de bons antecedentes pudesse aguardar o recurso em liberdade, tanto na pronúncia quanto na sentença condenatória (alterando-se o então disposto no art. 408 e no já revogado art. 594). Alguns anos depois, introduziu-se no ordenamento pátrio a liberdade provisória sem fiança, mediante o comparecimento obrigatório a todos os atos do processo, sob penal de revogação (Lei nº. 6.416/77), para todos os crimes, incluindo aqueles então considerados inafiançáveis”.(PACELLI; COSTA, 2013, p. 13).

A concessão da liberdade provisória sem fiança, conforme previsto no art. 310 do CPP, alterado pela Lei nº. 6.416/77, foi corroborada pela promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual estabeleceu, em seu art. 5º, inciso LXVI, que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”. (BRASIL, 1988).

Vê-se, pois, que a lei acima foi um marco na concessão da liberdade provisória sem fiança, acabando por inviabilizar a aplicação da garantia na prática, tendo em vista a incongruência que se implantou no sistema da liberdade provisória.

A possibilidade de concessão da fiança ficou restrita aos crimes cuja pena mínima de reclusão não ultrapassasse a dois anos e àqueles em que o acusado se livrasse solto, enquanto que, no caso da prática de crimes mais graves, que superassem o limite de pena de reclusão acima, poderia ser concedida a liberdade provisória sem fiança, desde que não estivessem presentes os requisitos da prisão preventiva.

Além disso, o ônus imposto ao acusado quando da concessão da liberdade provisória mediante fiança era muito maior do que nos casos em que o aludido livramento era concedido sem a garantia.

Na primeira hipótese, além do implemento financeiro, o afiançado devia comparecer perante a autoridade toda vez que fosse intimado para os atos do inquérito e da instrução processual (art. 327 do CPP) bem como não podia mudar de residência sem a prévia permissão da autoridade competente nem dela se ausentar por mais de oito dias sem comunicar àquela autoridade o lugar em que poderia ser encontrado (art. 328 do CPP).

Já na concessão da liberdade provisória sem fiança, o único óbice era a verificação da inexistência dos requisitos da prisão preventiva, sem olvidar, outrossim, de que, para a concessão da fiança, deveriam ser observadas as restrições contidas nos artigos 323 e 324 do CPP.

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Assim, a fiança tornou-se inaplicável, mesmo nos crimes em que ela era cabível. Segundo Denilson Feitosa (2008), havia o entendimento de que o art. 310, parágrafo único, do CPP, somente poderia ser aplicado aos crimes inafiançáveis, uma vez que, se a fiança coubesse, também, para os crimes afiançáveis, ela estaria inviabilizada, já que seria possível pleitear a liberdade prevista no dispositivo legal citado com o posterior pedido de devolução da importância paga a título de fiança. Foi exatamente isso que aconteceu na prática, com o escopo de não incidir no contrassenso legislativo apontado.

Antônio Scarance afirma que

“Não houve, com as alterações procedidas no Código, preocupação em observar os princípios da adequação e da proporcionalidade, eis que, na prática de crimes mais graves, com pena mínima superior a dois anos poderá o agente ser beneficiado com liberdade provisória sem fiança, com a obrigação de comparecer aos atos do processo, não tendo, todavia, direito a se livrar da prisão mediante pagamento de fiança. Tem o mais e não tem o menos. Perdeu, assim, a fiança muito da sua importância. De regra, aquele que tem direito à liberdade provisória com fiança terá também direito à liberdade provisória sem fiança, e obviamente essa solução, por ser mais benéfica, é a que deve ser acolhida pelo juiz”. (SCARANCE, 2002, p. 316).

Além das alterações efetuadas pela Lei nº. 6.416/77, várias legislações esparsas e a jurisprudência sobre a liberdade provisória também diminuíram o âmbito de aplicação da fiança e aumentaram as disparidades sobre o seu regramento, notadamente quanto aos crimes inafiançáveis estabelecidos no art. 5º, incisos XLII, XLIII e XLIV, quais sejam, a prática de racismo, a tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo, os crimes hediondos e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

Algumas das legislações específicas sobre os crimes acima, originariamente, vedavam a concessão da liberdade provisória, tendo em vista a inafiançabilidade estabelecida pela Lei Maior. Nesse sentido, dispôs o art. 2º, inciso II, da Lei nº. 8.072/1990, Lei dos Crimes Hediondos e Equiparados; o art. 7º da Lei nº. 9.034/1995, Lei do Crime Organizado; o art. 21 da Lei nº. 10.826/2003, Estatuto do Desarmamento, e o art. 44 da Lei nº. 11.343/2006, Lei do Tráfico de Drogas.

 Entretanto, os citados dispositivos legais foram alterados com as reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), declarando a inconstitucionalidade da vedação ex lege da liberdade provisória sem a análise de cada caso concreto, considerando o entendimento de que o mencionado livramento é um direito subjetivo do acusado, não podendo a legislação infraconstitucional impor vedação absoluta ao direito de liberdade.

Dessa forma, para os crimes graves acima, a liberdade provisória passou a ser concedida sem o arbitramento da fiança, conforme já autorizava o art. 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal, desde que ausentes os requisitos para a prisão preventiva, corroborando a discrepância legislativa sobre o tema.

“A grande incongruência gerada com a liberdade provisória mediante o pagamento de quantia em fiança é que a fiança caberá no momento em que não estiverem presentes os requisitos para que se torne prisão preventiva, sendo assim, está apta para ser posta em liberdade, mas mesmo assim é exigida a fiança, enquanto aquele que pratica crime inafiançável, que igualmente não preencha requisito para permanecer preso, seja posto em liberdade sem o pagamento de fiança, podendo ser entendido que será tratado com mais rigor aquele que em tese praticou crime de menor potencial ofensivo à sociedade”. (SILVA JUNIOR, 2008, p. 911).

Após anos de patente desuso, com a aplicação praticamente limitada aos casos em que o acusado se livrava solto, a fiança foi revigorada pela Lei nº. 12.403/2011.

O citado diploma legal ampliou as hipóteses da concessão do instituto pela autoridade policial, que passou para os crimes cuja pena máxima não exceda a quatro anos. Ele também alterou toda a redação do art. 310 do CPP, inclusive a do seu parágrafo único, passando assim a estabelecer:

Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente:

I – relaxar a prisão ilegal; ou

II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou

 III – conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.

Parágrafo único. Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do art. 23 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação”. (BRASIL, 1941).

Vê-se, pois, que o parágrafo único do dispositivo legal acima autoriza a concessão da liberdade provisória sem fiança somente nos casos em que seja verificada uma excludente de ilicitude, voltando à redação anterior à Lei nº. 6.416/77. Assim, ficou vedado o livramento sem a prestação da garantia nos casos em que não estão presentes os requisitos da prisão preventiva, tornando praticamente todos os crimes passíveis de fiança, salvo os inafiançáveis ou nas hipóteses das proibições contidas no art. 324 do CPP.

Além disso, a Lei nº. 12.403/2011 alterou a natureza jurídica da fiança, transformando-a em medida cautelar diversa da prisão. Dessa forma, ela deixou de ser apenas uma providência de contracautela da prisão em flagrante, podendo ser concedida em qualquer fase do inquérito ou do processo até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, conforme dispõe o art. 334 do CPP – “a fiança poderá ser prestada enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória.” (BRASIL, 1941).

Renato Brasileiro ensina que

“A liberdade provisória sem fiança e com fiança sempre foi tratada pelo ordenamento jurídico pátrio como espécie de medida de contracautela, funcionando como substitutivo da prisão em flagrante. Ou seja, nosso sistema nunca admitiu que alguém fosse submetido ao regime de liberdade provisória, com ou sem fiança, sem que estivesse previamente preso em flagrante. Portanto, se o agente estava em liberdade provisória desde o início da persecução penal, não poderia ser submetido ao regime de liberdade provisória, com ou sem fiança, pois esta tinha como pressuposto que o acusado tivesse sido preso em flagrante.

Com as mudanças produzidas no texto do CPP, verifica-se que, a partir da vigência da Lei nº. 12.403/2011, a fiança também poderá funcionar como medida cautelar autônoma, que pode ser imposta, isolada ou cumulativamente, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial (CPP, art. 319, inc. VIII)”. (LIMA, 2012, p. 1451).

 A Lei nº. 12.403/2011 aumentou a aplicabilidade da fiança em várias hipóteses, especialmente naqueles casos em que o delegado de polícia poderá arbitrá-la.

Todavia, as modificações perpetradas pelo citado diploma legal ainda não fez com que o emprego da fiança seja satisfatório, até mesmo para o alcance de todas as suas finalidades e consequentes benefícios para a persecução penal.

Com efeito, mesmo se tratando de medida cautelar autônoma diversa da prisão, a concessão da garantia ainda está limitada aos crimes em que ela é cabível, conforme dispõe o art. 319, inciso VIII, do CPP:

“Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão […]

VIII – fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial […]” (BRASIL, 1941, grifo nosso).

Dessa forma, ainda há grande limitação na aplicação da garantia, especialmente quanto à impossibilidade de seu arbitramento quando da prática pelo acusado de crimes inafiançáveis, restando mantida a incongruência legislativa acerca dessa proibição e a possibilidade da concessão da liberdade provisória sem fiança para os delitos em questão.

“Já fizemos críticas em volume e extensão suficientes sobre a inafiançabilidade prevista na Constituição da República, o que dispensa, aqui, novas incursões “maledicentes”. A expressão, em si, nada significa, senão a proibição de imposição da fiança, absolutamente insuficiente para impedir a restituição da liberdade do preso em flagrante, ainda que com a imposição de outras medidas cautelares.

E nesse ponto, a Lei nº. 12.403/11 mantém o constante paradoxo legislativo que sempre acompanhou o nosso velho Código de Processo Penal […]

[…] veda-se a fiança para crimes muito mais reprováveis pela legislação (ver o rol do art. 323, CPP), ao tempo em que se permite a imposição de regime mais gravoso (incluindo a fiança!) aos demais delitos, de menor gravidade ou, quando nada, de menor censura!” (PACELLI; COSTA, 2013, p. 139-140).

3 – A incongruência legislativa acerca da fiança.

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 João Gualberto Garcez Ramos (1998, p. 220), há quase duas décadas, já afirmava a inconstitucionalidade por omissão do legislador da discrepância legislativa acima apontada, afirmando tratar-se de uma clara violação do direito da coletividade a ter, para os criminosos, tratamento processual penal coerente com a gravidade dos crimes cometidos.

O tratamento legislativo em questão sobre a fiança e a liberdade provisória também viola o princípio da proporcionalidade.

“Ao expor a doutrina de Karl Larens, Coelho esclarece: “utilizado, de ordinário, para aferir a legitimidade das restrições de direitos – muito embora possa aplicar-se, também, pra dizer do equilíbrio na concessão de poderes, privilégios ou benefícios -, o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, em essência, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das ideias de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins; precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive de âmbito constitucional; e, ainda, enquanto princípio geral de direito, serve de regra de interpretação para todo o ordenamento jurídico”. (LENZA, 2008, p. 75).

Além da questão acima, os requisitos a serem observados para o arbitramento da fiança também foram mantidos. Sendo assim, considerando as demais medidas cautelares diversas da prisão, há outras opções disponíveis ao magistrado para a concessão da liberdade provisória ao acusado e para vinculá-lo ao processo que são bem mais fáceis de serem impostas, o que torna inútil o emprego da garantia para tais objetivos.

Contudo, o instituto possui outras finalidades que são importantes para a aplicação da lei penal, como elucida Aury Lopes Jr.:

“Para iniciar, é necessário esclarecer que a fiança criminal é uma garantia patrimonial efetuada pelo imputado e visa assegurar a eficácia da aplicação da lei penal em caso de condenação, servindo ao pagamento das despesas processuais, multa e indenização e também como fator inibidor da fuga”. (LOPES JR., 2016, p. 706).

O art. 344 do CPP estabelece que será perdido, na totalidade, o valor da fiança se, condenado, o acusado não se apresentar para o início do cumprimento da pena definitivamente imposta. Assim, ocorrendo o arbitramento do instituto com um valor elevado, haverá um desestímulo à fuga do réu.

Da mesma forma, sendo uma garantia, nos casos de condenação, a vítima poderá mais facilmente ressarcir-se dos valores correspondentes à indenização e aos danos provocados pelo delito, pelo que, resta evidente que a prestação da fiança deve ser a regra para a concessão da liberdade provisória, sendo imprescindível a sua reformulação legislativa e jurisprudencial.

4 – Conclusão

A fiança é um instituto que sempre foi pensado, primordialmente, como um meio de se colocar o acusado em liberdade e de vinculá-lo ao processo. Por isso, com a possibilidade da concessão da liberdade provisória sem fiança, desde que inexistentes os requisitos da prisão preventiva, a aplicabilidade da garantia foi veementemente diminuída.

Embora a Lei nº. 12.403/2011 tenha remanejado, em vários aspectos, o regramento acerca da fiança, ainda subsiste o contrassenso legislativo sobre a sua inaplicabilidade aos crimes inafiançáveis bem como quanto às outras vedações acerca do instituto contidas no art. 324 do CPP e a possibilidade da imposição de outras medidas cautelares diversas da prisão em substituição.

Tais hipóteses fazem com que o arbitramento da fiança fique praticamente limitado aos casos em que o acusado se livra solto.

Entretanto, é primordial que o instituto em questão seja reformulado e suas finalidades sejam repensadas, principalmente, a partir da possibilidade de sua imposição aos crimes inafiançáveis.

Com efeito, é evidente que a Constituição da República, originariamente, estabeleceu a inafiançabilidade de alguns crimes com o objetivo de impedir a concessão da liberdade provisória a eles, tendo em vista a sua gravidade.

Dessa forma, considerando o atual paradigma acerca da concessão da liberdade provisória, a qual se tornou regra, não sendo possível a vedação absoluta do aludido livramento para qualquer crime, é imprescindível que a aplicação da fiança, ao contrário do que hoje é estabelecido, seja obrigatória para os crimes inafiançáveis, como é, por exemplo, para aqueles estabelecidos na Lei dos Crimes Contra a Economia Popular e de Sonegação Fiscal.

Não há razão – salvo nos casos em que o acusado, por comprovada incapacidade financeira, não possa prestar a fiança – para se vedar a imposição da garantia ao acusado, por exemplo, da prática de tráfico ilícito de entorpecentes ou de homicídio qualificado. Ao contrário, esses crimes, dentre outros, demandam tratamento mais severo, inclusive, com a imposição de valor considerável da fiança – logicamente considerando as condições econômicas do afiançado –, para se evitar a sua fuga e garantir eventual indenização à vítima.

Nesses termos, o regramento acerca da fiança deve ser redefinido, especialmente, sob a ótica de sua constitucionalidade, considerando o princípio da proporcionalidade, bem como com base nas suas finalidades específicas, não alcançadas pelas outras medidas cautelares diversas da prisão.

 

Referências
BRASIL. Decreto-lei 3.689, de 3 de outubro de 1941.Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Brasília, 13 out. 1941. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm>. Acesso em: 05 dez. 2016.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, 05 out. 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 10 dez. 2016.
FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 5 ed. Impetus: Rio de Janeiro, 2008.
FERNANDES, Antônio Scarance. A reação defensiva à imputação. São Paulo: RT, 2002.
FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Manual de processo penal. Saraiva: São Paulo, 2009.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 2 ed. vol. 1. Niterói: Impetus, 2012.
LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
PACELLI, Eugênio; COSTA, Domingos Barros da. Prisão preventiva e liberdade provisória: a reforma da Lei nº. 12.043/2011. São Paulo: Atlas, 2013.
RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no Processo Penal Brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
SILVA JUNIOR, Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: teoria constitucional do processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

Informações Sobre o Autor

Luciana de Oliveira Bottosso Braga

Analista do Ministério Público de Minas Gerais. Especialista em Direito Público pelo Instituto de Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais IEC em Direito de Família pelas Faculdades Integradas de Jacarepaguá e em Direito Empresarial pela Universidade Cândido Mendes


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