Interdisciplinaridade e transdisciplinaridade: um novo paradigma em prol da humanização do ensino jurídico

Resumo: O ensino jurídico no Brasil passa por um momento de crise. O método de ensino positivista ainda presente nas Academias Jurídicas deixa claro a distância entre o novo paradigma humanístico da Constituição Federal de 1988 e a realidade no ensino jurídico no país, o que demonstra a necessidade de alternativas à construção de uma nova prática pedagógica para o Direito. Nesse sentido o presente artigo tem como problema responder: práticas interdisciplinares e transdisciplinares pode ser uma alternativa para a formação humanística no ensino jurídico no Brasil. O método utilizado é o hermenêutico dialético. Como objetivos o artigo discorre sobre o ensino jurídico no Brasil, o novo paradigma do Estado Democrático de Direito que permeia a Constituição Federal de 1988 e apresenta a interdisciplinaridade e transdisciplinaridade como instrumentos de efetivação do ensino jurídico pós-positivista. O artigo se mostra relevante para os estudiosos do Direito e a sociedade em geral em decorrência da crise que perpassa o ensino jurídico na atualidade e do caráter positivista ainda presente na prática dos cursos de Direito no Brasil.

Palavras-chaves: ensino jurídico; interdisciplinaridade; transdisciplinaridade; humanismo.

Abstract: The legal education in Brazil is going through a time of crisis. The positivist teaching method still present in Legal Academies makes clear the distance between the new humanistic paradigm of the 1988 Federal Constitution and the reality in legal education in the country, which demonstrates the need for alternatives to building a new pedagogical practice for the law. In this sense this article is to answer problem: interdisciplinary and transdisciplinary practices can be an alternative to the humanistic training in legal education in Brazil. The method used is the dialectic hermeneutical. As objectives the article discusses the legal education in Brazil, the new paradigm of democratic rule of law that permeates the Federal Constitution of 1988 and presents interdisciplinary and transdisciplinary as instruments of effective post-positivist legal education. The article shows relevant to scholars of law and society in general as a result of the crisis that pervades the legal education today and the positivist character still present in the practice of law courses in Brazil.

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Keywords: legal education; interdisciplinarity; transdisciplinary; humanism.

Sumário: Introdução. 1 A gênese do ensino jurídico no Brasil. 2 O novo paradigma do Estado Democrático de Direito. 2.1 Rupturas e inovações na ordem jurídica. 2.2 O ensino jurídico e o novo paradigma constitucional. 3 Interdisciplinaridade e transdisciplinaridade: por um ensino jurídico humanista. 3.1 Interdisciplinaridade e transdisciplinaridade: um novo olhar ao ensino. 3.2 O ensino jurídico humanista. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

O ensino jurídico é voltado á formação de bacharéis em Direito, egressos que possuem como características essenciais uma atuação crítica e cidadã de aplicação e interpretação das normas vigentes no país, com capacidade de se especializar nas variadas áreas e profissões voltadas à formação jurídica. Esse ensino, no entanto, passa por um momento de crise no qual se questiona o perfil de seus egressos e a compatibilidade desse perfil com as competências necessárias à aplicação das normas no Estado Democrático de Direito.

Com fundamento na realidade acima exposta o presente artigo tem como problema aferir se as práticas interdisciplinares e transdisciplinares podem ser uma alternativa para uma formação humanística no ensino jurídico. Como hipótese visa comprovar que diante da incompatibilidade entre o ensino jurídico tradicional e o paradigma do Estado Democrático de Direito a interdisciplinaridade e transdisciplinaridade se mostram como alternativas á construção de um ensino jurídico mais humanístico.

Como objetivos visa discorrer sobre a gênese do ensino jurídico no Brasil, as inovações implementadas no ordenamento jurídico brasileiro pós Constituição de 1988 e por fim aferir acerca da interdisciplinaridade e transdisciplinaridade como alternativa para uma formação mais humanística e cidadã. O método aplicado será o hermenêutico dialético, por meio do qual será analisada a contradição existente entre o ensino jurídico positivista e o paradigma do Estado Democrático de Direito, apresentando em sua síntese como possível alternativa à humanização do ensino jurídico, a utilização de práticas interdisciplinares e transdisciplinares de ensino.

1 A GÊNESE DO ENSINO JURÍDICO NO BRASIL

O ensino jurídico no Brasil teve inicío em 1827 após a vinda da família imperial. As primeiras faculdades foram implantadas nas cidades de Olinda e São Paulo e suas criações tiveram como objetivo precípuo formar os filhos da elite brasileira para que ocupassem os altos cargos públicos do império.

Com a vinda da família real, fez-se necessário a formação de uma máquina burocrática para auxiliar a administração do novo governo imperial, o que é concretizado por meio da criação dos cursos jurídicos. Nesse viés, na formação dos bacharéis em Direito “não havia uma preocupação real com a sociedade e com os problemas por ela vivenciados” (FRANCISCHETTO, 2011. P.23).

O ensino jurídico se constituiu baseado em um modelo positivista, com uma aula altamente tradicional, revestida de um ritual simbólico que se seguia enquanto o catedrático proferia sua lectio (Bittar, 2006, p.5). Refletia in verbis o texto literal da lei, que parecia tão sagrado quanto as Sagradas Escrituras, devendo ser capturado em seu sentido mais originário possível. Vigia neste período a hermenêutica sagrada do Direito.

O positivismo visava oferecer às ciências jurídicas um método objetivo e seguro para a produção do conhecimento, tratava-se de uma aplicação problemática, que levou a “uma racionalidade teórico-asfixiante que isolava/insulava todo contexto prático de onde as questões jurídicas realmente haviam emergido” (STRECK, 2013, p.165).

Trata-se de um modelo marcado pelo distanciamento dos professores, tapetes vermelhos e rituais acadêmicos pomposos, verticalidade das estruturas burocráticas e um professor que adentra a sala de aula sem desvestir-se da autoridade de seu cargo, as salas “lotadas de pessoas cujas esperanças de ascensão social se depositam sobre o sonho de serem igualmente autoridades, reproduzindo o status quo, em um país onde só se respeita a autoridade do título ou do cargo” (BITTAR, 2006, p.29).

Nesse modelo o professor é o detentor máximo do saber, o cientista que domina a verdade, única e admissível no processo de aprendizagem, por seu turno o aluno é o personagem apático, que deve assimilar todo o conteúdo apresentado, sem quaisquer manifestações críticas.

Baseado em uma perspectiva positivista-liberal o ensino de cátedra nas universidades era pautado pela ideologia da neutralidade da ciência, que exigia uma atuação objetiva e neutra do professor, o qual não poderia influenciar seus alunos com suas opiniões e pensamentos, cabia a este apenas ser um transmissor do conteúdo científico. (CUNHA, 2007, p.12).

O paradigma tradicional também apresenta um viés tecnicista, voltado a profissionais aptos a realizar atividades de caráter mecanicista. A relação aluno-professor nesse modelo ocorre de maneira objetiva, na qual ao professor incumbe a tarefa de transmitir o conteúdo da disciplina e ao aluno compete captar as informações dadas, sem qualquer espaço para discussão ou questionamento crítico do que lhe é apresentado (FRANCISCHETTO, 2011, p.18).

O tecnicismo, baseado na obtenção de melhores resultados de produção, implementou a ideia de especialização e fragmentação do conhecimento, transportando para as instituições universitárias a departamentalização do saber e a introdução de currículos baseados na lógica taylorista, com a separação entre o sujeito e o objeto (KROHLING, 2009, p.139).

As práticas pedagógicas no ensino jurídico brasileiro ainda são, em regra, pautadas pela primazia da leitura fria da lei, com a dissociação entre a norma e a realidade social que a permeia, isolando o conhecimento jurídico de outras formas de saber e encapsulando o aluno no mundo das leis, códigos e manuais, mantendo-o alheio a interrelação entre Direito e sociedade (FRANCISCHETTO, 2011, p.27).

O modelo tradicional positivista de ensino jurídico, no entanto, apresenta conflitos com o novo paradigma que passa a reger o ordenamento jurídico brasileiro após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e vem provocando questionamentos acerca do modelo de ensino das universidades e faculdades de Direito no país.

2 O NOVO PARADIGMA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A Constituição Federal de 1988, após mais de duas décadas de ditadura militar, rompe com a ordem jurídica até então vigente e cria um novo modelo de Estado, o Estado Democrático de Direito cujo fundamento basilar é o princípio da dignidade da pessoa humana.

2.1 Rupturas e inovações na ordem jurídica

A Nova Carta Constitucional passa a apresentar um amplo conteúdo normativo axiológico, com uma gama de princípios e valores que servem de base à atuação dos agentes estatais, irradiando seus efeitos a todo o sistema jurídico.

Cria-se um novo paradigma jurídico “A Carta de 1988 institucionaliza a instauração de um regime político democrático no Brasil. Introduz também indiscutível avanço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e na proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira” (PIOVESAN, 2011, p.84).

Ao erigir a dignidade da pessoa humana a fundamento do Estado, a Constituição está afirmando que a pessoa humana é o parâmetro de todas as condutas estatais, em qualquer esfera jurídica. Ocorre uma ruptura com o modelo patrimonialista existente na ordem anterior, essa mudança de paradigmas impõe uma reinterpretação de todo o sistema jurídico que deve se mostrar compatível com a Lei Maior (BARRETO, 2012, p.55-56).

A ascensão da dignidade da pessoa humana foi uma resposta à crise do positivismo jurídico e a derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares alcançaram o poder baseados na legalidade, pois eram Estados de Direito, no entanto, promoveram a barbárie em nome da lei (PIOVESAN, 2011, p.87).

Os fatos ocorridos na segunda guerra demonstraram que só o Direito não é suficiente, o positivismo jurídico baseado no legalismo estrito e na leitura fria da lei não foi capaz de impedir a reificação da pessoa humana, eis que desconsiderava as análises de conteúdo valorativo que eram relegadas à esfera da ética ou da moral.

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O novo paradigma constitucional que passa a reger todo o ordenamento jurídico a partir da Constituição de 1988 aproxima o direito dos campos da moral e da ética, erigindo os princípios à categoria de norma, e construindo um sistema jurídico mais axiológico e valorativo, voltado á proteção da pessoa humana.

2.2 O ensino jurídico e o novo paradigma Constitucional

Os novos preceitos que fundamentam o Estado Democrático de Direito brasileiro passam a exigir dos profissionais da área jurídica uma atuação mais humanista, crítica e plural, apta a gerir as constantes transformações sociais e auxiliar na efetivação da dignidade da pessoa humana, fim maior do Estado. Essa nova dinâmica social se mostra em conflito com o paradigma tradicional do ensino jurídico.

O ensino positivista é centrado na lei, principal fonte reveladora do Direito, e requer uma atuação neutra e objetiva do operador do Direito, com uma prática voltada à interpretação e aplicação automática da lei, contrario senso, o paradigma do Estado Democrático de Direito impõe uma atuação democrática e plural do agente jurídico, apta a garantir a dignidade humana.

O ensino jurídico atual recebe os reflexos das mudanças sociojurídicas ocorridas no Brasil “Dentro de uma grande transição paradigmática, é de se notar que o ensino do Direito também estaria vivendo mudanças e instabilidades, incertezas e desafios. Mas a realidade de desafios é já uma realidade que prenuncia a oportunidade da mudança, daí a conveniência estratégica de se pensar a partir do estado de crise de um modelo. Será que o modelo instalado atualmente dá conta dos desafios inerentes à realidade circundante? ” (BITTAR, 2006, p.5)

A dogmática é um importante instrumento de estudo e de análise das questões jurídicas e oferece subsídios relevantes ao início das reflexões na seara do Direito, a sua utilização unívoca, no entanto, sedimentou o ensino jurídico, ao ser compreendido como único parâmetro seguro, inquestionável e capaz de apontar as soluções aos conflitos sociais (FRANCISCHETTO, 2011, p.30).

Merece destaque ainda, o atomismo e a fragmentação disciplinar que vem ocorrendo na maioria dos cursos da área de ciências humanas e em especial no curso de Direito, com suas dezenas de disciplinas atomizadas e fragmentadas sem um fio condutor (KROHLING, 2009, p.130).

Conforme preceitua Oliveira (2010, p.35) “O docente do ensino superior tem sido caracterizado como especialista em determinado assunto, mas há muito se percebeu que apenas o conhecimento técnico em determinada área – o conhecimento jurídico no caso desta pesquisa – já não é suficiente para enfrentar a complexidade da docência. Conhecer e discutir a essência desse professor é uma preocupação recente, mas de fundamental importância, para que se possa transcender essa visão do senso comum, sobre o especialista“.

Discutir a essência do professor e das relações que permeiam o processo de ensino-aprendizagem mostra-se de grande relevância, pois impõe uma mudança de paradigmas, também na atuação do professor especialista, incentivando a busca de uma aliança entre o saber técnico e outros saberes, com vistas a uma formação mais plural de seus alunos.

Nesse escopo a unidisciplinaridade e as práticas positivistas vigentes no ensino jurídico brasileiro se apresentam em total dissonância com o novo paradigma do Estado Democrático de Direito, apresentando a urgência de se buscar novos modelos de ensino e novas práticas pedagógicas a serem aplicadas em nosso ensino jurídico.

3 INTERDISCIPLINARIDADE E TRANSDISCIPLINARIDADE: por um ensino jurídico humanista

O paradigma do Estado Democrático de Direito, em razão da elevação da dignidade da pessoa humana a fundamento do Estado, realizou uma ruptura com os modelos anteriormente existentes em nosso ordenamento jurídico. Não obstante acorrência de uma verdadeira revolução copernicana em nosso modelo de Estado, o ensino jurídico ainda se baseia em sua maioria por práticas positivista oriundas do século XIX.

Assim faz-se necessário a busca de novas práticas docentes voltadas a compatibilizar o ensino jurídico com os novos paradigmas que regem o Estado, entre estas alternativas é que se propõe o estudo da interdisciplinaridade e transdisiplinaridade como instrumentos aptos a aproximar o ensino jurídico da realidade social e dos fins almejados pelo Estado.

3.1 Interdisciplinaridade e transdisciplinaridade: um novo olhar ao ensino

A interdisciplinaridade compreende uma ação recíproca, uma interconexão entre duas ou mais disciplinas, visando sair do lugar comum e construir novos saberes em um movimento dialético na relação de ensino aprendizagem. Trata-se de uma relação de busca pela desconstrução e construção de novos saberes, ação impulsionada pela interconexão dos diversos temas existentes nas disciplinas envolvidas na prática interdisciplinar.

Não se configura apenas como uma junção de disciplinas “Se definirmos interdisciplinaridade como junção de disciplinas, cabe pensar currículo apenas na formatação de sua grade. Porém se definirmos interdisciplinaridade como atitude de ousadia e busca frente ao conhecimento, cabe pensar aspectos que envolvem a cultura do lugar onde se formam professores” (FAZENDA, 2008, p.17).

A interdisciplinaridade pressupõe ainda uma perspectiva transcendente da educação, apta a desenvolver novas formas de cooperação entre os atores que permeiam a relação de ensino-aprendizagem, na qual professores e alunos, teoria e prática, se convergem com vistas à construção de novas competências (FAZENDA, 1998, p.12).

A adoção de práticas interdisciplinares requer novas posturas pedagógicas “O primeiro passo para a aquisição conceitual interdisciplinar seria o abandono das posições acadêmicas prepotentes, unidirecionais e não rigorosas que fatalmente são restritivas, primitivas e "tacanhas", impeditivas de aberturas novas, camisas-de-força que acabam por restringir alguns olhares, tachando-os de menores. Necessitamos, para isso, exercitar nossa vontade para um olhar mais comprometido e atento às práticas pedagógicas rotineiras menos pretensiosas e arrogantes em que a educação se exerce com competência” (FAZENDA, 1998, p.13).

Uma postura pedagógica interdisciplinar exige o abandono de posições prepotentes e unidirecionais em prol de práticas de ensino despretensiosas, porém abertas as novas descobertas resultantes da convergência dos diferentes saberes.

A transdisciplinaridade por seu turno se caracteriza pelo reconhecimento da interdependência de todos os aspectos do saber e da realidade, sendo a síntese dialética provocada pela interdisciplinaridade bem-sucedida e pela axiomática comum. É a busca de um novo paradigma por meio da ligação no interior de um sistema total sem fronteiras estáveis entre as disciplinas. (KROHLING, 2009, p.130)

A transdisciplinaridade se efetiva pela ocorrência de uma síntese dialética entre os diversos ramos do saber que juntos vão produzir novos conhecimentos. Trata-se de um importante mecanismo ao ensino jurídico eis que este, deve estar em constante evolução e transformação visando acompanhar as transformações sociais.

Essa prática requer um professor apto a dialogar com seus pares “Qualquer proposta curricular que pretenda uma articulação em torno de um projeto de curso exige a condição do trabalho coletivo. Requer um professor que dialogue com seus pares, que planeje um conjunto, que exponha as suas condições de ensino, que discuta a aprendizagem dos alunos e a sua própria formação; um professor que transgrida as fronteiras de sua disciplina, que interprete a cultura e que reconheça o contexto em que se dá seu ensino e no qual sua produção acontece” (CUNHA, 2007, p.18).

A atuação docente interdisciplinar e transdisciplinar visa romper com o solipsismo do professor do ensino superior, fomentando o diálogo e a construção de novos saberes por meio da interrelação e da interação entre as várias disciplinas. Requer ainda uma atuação pedagógica dinâmica e interativa, na qual o profissional docente atue como um mediador entre as diferentes disciplinas e os novos conhecimentos oriundos da convergência interdisciplinar e transdisciplinar.

Através da relação dialógica e dialética entre as disciplinas busca-se a construção de um ensino mais dinâmico e transformador com a participação ativa de alunos e professores em constante conexão com a realidade social circundante.

3.2 O ensino jurídico humanista interdisciplinar e transdisciplinar

A interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade ao fomentar o diálogo e a construção de novos saberes permite uma formação mais crítica e uma atuação mais participativa dos alunos, que terão a oportunidade de confrontar ideias e pensamentos baseados em diversos saberes e competências. Essa atuação dialética mostra-se imprescindível para a formação e atuação humanística dos egressos do ensino superior e em especial o ensino jurídico, área na qual a formação humanística é imprescindível e indissociável da atuação profissional.

O ensino jurídico não possui como única missão formar um profissional competente em sua área de conhecimento, é necessário ainda que este profissional tenha no desempenho desta profissão um agir comprometido com a realidade social circundante e esteja preparado ao exercício da cidadania, utilizando os seus saberes e práticas para o bem comum e a melhoria de vida de seus concidadãos (ANASTASIOU, 2006, p.30).

Na realidade atual o docente não mais representa o tradicional transmissor de informações e conhecimentos dentro de uma relação hierárquica vertical, sendo essa postura até mesmo incompatível com a revolução tecnológica da atualidade, que requer uma atitude muito mais interpretativa e dinâmica deste profissional, mas sim passa a representar uma ponte entre os conhecimentos científicos e os saberes da prática social do aluno (CUNHA, 2007, p.16).

Nesse escopo mostra-se relevante questionar se “A racionalidade técnica não colabora para a melhoria das condições de análise de nosso tempo. Em poucas palavras, ela é a linguagem da própria dominação, e não condição para sua libertação. Um bacharel altamente especializado em direito processual civil, geralmente, é insuficientemente preparado para a análise de quadros de conjuntura social, política e econômica. A consequência? O próprio bacharel, formado e especializado, deve sobrestar um dia sua marcha e se perguntar: para que tanto conceito processual se metade da população não chega sequer a ter acesso à justiça? ” (Bittar, 2006, p.26).

O conhecimento técnico e especializado faz parte do ensino jurídico, mas não é o seu fim, é apenas um meio para a sua aplicação, devendo em muito momentos até mesmo ser flexibilizado em prol do objetivo principal do Direito que é a Justiça e a tutela da dignidade da pessoa humana.

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Importante salientar que o ensino universitário se faz com base no tripé ensino, pesquisa e extensão, formando profissionais do desenvolvimento humano e não meros técnicos e executores de uma atividade determinada (PIMENTA E ALMEIDA, 2011, p.140).

É nessa seara que a transdisciplinaridade e interdisciplinaridade se apresentam como importante instrumento na busca pela transformação do ensino jurídico. A sua aplicação impõe o diálogo e a troca de saberes entre vários ramos do direito e até mesmo outras ciências. Essa relação dialógica e dialética permite que o Direito conheça outras respostas além da resposta normativa possibilitando assim que alunos e professores possam melhor compreender, questionar e até mesmo transformar conceitos e ideias no ramo jurídico.

Sobre a inserção da interdisciplinaridade no ensino jurídico Francischetto preleciona que “O paradigma positivista terminou por tornar o ensino jurídico unidisciplinar, resumido à ordem jurídica vigente, sem qualquer incursão reflexiva no campo de outros conhecimentos. Foi justamente na tentativa de amenizar tal quadro que a Portaria 1.886/94 e, posteriormente, a Resolução 09/2004 estabeleceram em suas diretrizes curriculares várias disciplinas, que tem o objetivo de inserir o estudo do Direito num campo mais amplo, buscando a contribuição da Filosofia, da Sociologia, da Ciência Politica, da economia, dentre outras. A partir do diálogo entre essas ciências e o Direito é que se almeja inserir no ensino jurídico a interdisciplinaridade” (FRANCISCHETTO, 2011, p.31).

A inserção de disciplinas humanísticas no ensino jurídico, representadas pelas alterações legislativas citadas acima, representou uma tentativa de suplantar o paradigma positivista e fomentar uma compreensão mais crítica e construtiva do Direito. Apesar das reformas curriculares citadas, esse fato por si só não garantiu a efetivação de um ensino humanístico, o que se percebe na prática é um contínuo isolamento dos docentes das disciplinas jurídicas, que não dialogam com outros ramos ou ciências, ainda vige a ideia de supremacia do saber jurídico que impõe ao docente uma postura de encapsulamento, visando manter o status quo do seu conhecimento e de sua autoridade.

É imprescindível que as faculdades de Direito repensem suas práticas pedagógicas, que hoje apresentam a interdisciplinaridade apenas na teoria, é preciso criar uma relação dialógica entre as disciplinas visando pluralizar o conhecimento dos alunos, pois a unidisciplinaridade hoje vigente no Direito impede que os futuros profissionais consigam lidar com as complexas transformações sociais (FRANCISCHETTO, 2011, p.32).

A sociedade atual é marcada pelas grandes e rápidas transformações tecnológicas, vivemos a era da informação que se produz e reproduz de maneira cada vez mais dinâmica e conectada, dentro dessa nova dinâmica social, a prática interdisciplinar e transdisciplinar se impõe como uma necessidade para que o ensino possa estar interrelacionado com as múltiplas interações sociais.

A transdisciplinaridade contribui para a formação de redes do saber “A transdisciplinaridade caminhará formando redes de interdisciplinares entre conteúdos, mas também entre o corpo docente e o discente. Vivemos a era das redes que intensificam a permanente conectividade de todos e em todos os momentos e em todas as etapas dos processos em andamento, seja em termos de busca de dados cognitivos ou práticos, seja na troca e intercâmbio de agentes envolvidos” (KROHLING, 2009, p.147).

O Direito tem como escopo a realização do bem comum e harmonização das relações sociais, para realizar esses objetivos, essa ciência não pode ficar alheia ao mundo, isolada, encapsulada, é mister que esteja em constante interação com a sociedade, do contrário será incapaz de tutelar os direitos daqueles cujos interesses desconhece.

É nesse prisma que a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade apresentam um papel de grande relevância, pois é através do diálogo com a Sociologia que o Direito poderá melhor compreender as dinâmicas e complexidades socias, a Filosofia mostra-se imprescindível para a construção de um saber mais dialético e transformador, a Criminologia permite um estudo do crime de forma mais contextualizada e dinâmica possibilitando ao aluno não apenas conhecer o Direito Penal mais questioná-lo e transformá-lo, e assim ocorre com o diálogo com outras disciplinas, trata-se da efetivação de uma educação cidadã.

A educação cidadã se apresenta como uma conquista de toda a sociedade, como afirma Bittar “ Educação para a cidadania não somente é direito de todos, mas, sobretudo uma conquista de uma sociedade que se quer ver emancipada de suas grades estreitas e restritas, onde prepondera a falta de tecnologia, a falta de informação, a falta de instrumentos de progresso, a falta de consciência para o exercício do voto, a falta de preparo dos eleitos para a condução dos negócios públicos, a falta de interação civilizada e sincronizada entre membros da sociedade civil e associações, a falta de preparo para a filtragem de informações veiculadas pelos mass media…” (BITTAR, 2006, p.55).

A educação cidadã é aquela que auxilia o indivíduo em seu desenvolvimento para a vida, dando-lhe suporte para o exercício de seus direitos civis e poíticos, permitindo o exercício da cidadania ativa, do questionamento da realidade posta e possibilitando a construção de novos direitos, bem como, a luta pela efetivação dos direitos conquistados.

Educação e sociedade se encontram em uma relação de imbricação, na qual os valores sociais se reproduzem no ensino-aprendizado e permitem ações transformadoras que se reinserem nas estruturas sociais.

A uma promoção cultural e dialógica na educação cidadã “A promoção da cultura é função da universidade porque é nela que o patrimônio cultural da humanidade é difundido e transmitido. É tarefa da própria educação a reprodução do legado da sociedade e da cultura dominante, e a universidade faz parte desse processo. A formação da cidadania também acontece na universidade como espaço democrático de diálogo” (OLIVEIRA, 2010, p.23).

O processo de construção e desconstrução é próprio do ser humano e se faz presente na lógica jurídica, produto de interação do homem em sua realidade histórico-cultural, nesse universo o ser humano se impõe como sujeito ativo das conquistas e mudanças sociais.  O processo dialético em que se compõem as transformações sociais pressupõe uma dinâmica de solução de conflitos mais aberta e plural, apta a acompanhar a complexidade das relações sociais.

Importante salientar que a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade não visa o fim do conhecimento especializado, mas apenas a sua interação com outras formas de saber. Na educação existe uma constante tensão dialética entre o estudo generalista, do filósofo e do educador holista e o saber especializado dos peritos em algumas especificidades educacionais, essa tensão dialética é saudável e relevante para o processo de ensino aprendizagem, daí decorre a necessidade do projeto interdisciplinar e transdisciplinar e sua interação com a processo educacional (KROHLING, 2009, p.140).

Afirma ainda Krohling que “Defende-se a transdisciplinaridade como o novo paradigma das ciências humanas, mas não se pretende arvorá-lo com o novo dogma monocrático nem cair na policracia do positivismo. O novo paradigma não pretende ser uma negação pura e simples da superação das disciplinas, mas afirma ser uma etapa superior de integração delas, respeitando a pesquisa e o conhecimento especializado” (2009, p.148).

O projeto de educação interdisciplinar e transdisciplinar se apresenta como uma importante alternativa para a construção de um ensino superior jurídico mais crítico e humanístico, apto a dialogar e transformar a realidade social posta, sua utilização, no entanto, não impede a coexistência com outros métodos pedagógicos, antes visa auxiliar na construção de uma prática dialética e plural na relação de ensino-aprendizagem, voltado à promoção de uma educação cidadã.

A educação cidadã permite a efetivação dos direitos humanos fundamentais em uma dimensão ativa, cívica e libertadora “E, quando se fala cidadania, não se quer falar em mero conjunto de direito e deveres legais ou constitucionais, mas em cidadania ativa e participativa, interativa e crítica, libertadora e autoconsciente, produtiva e dinâmica. Ademais da consciência cívica, para o exercício de direitos e deveres públicos, a educação tem em vista a formação da consciência nacional, uma vez que fortalece os laços históricos, éticos, comunitários, restabelece ligações com o passado e as tradições culturais de um povo” (BITTAR, 2006, p.56).

Essa ruptura de paradigmas, porém é uma tarefa complexa que requer um compromisso por parte do professor e do aluno do ensino jurídico e dos demais membros da sociedade, as rupturas são processos complexos e necessitam de um compromisso ético-político, com a reorganização dos saberes e conhecimentos e a reestruturação das relações professor-aluno e ensino-aprendizagem (CUNHA, 2007, p.17).

Cabe a universidade e em especial ao ensino superior jurídico a tarefa dúplice de educar o seu aluno com formação técnica e humanística capaz, ao mesmo tempo, de auxiliar na compreensão dos conhecimentos instrumentais e ao mesmo tempo incentivar a reflexão crítica, contextualizada e humanística voltada a uma relação dialógica e dialética com o meio social e a interdisciplinaridade e transdisciplinaridade se mostram como instrumentos efetivos nessa jornada pedagógica transformadora (PIMENTA E ALMEIDA, 2011, p.147).

CONCLUSÃO

O ordenamento jurídico brasileiro pós-Constituição Federal de 1988 consolida o paradigma do Estado Democrático de Direito cujo fundamento basilar é a dignidade da pessoa humana, essa nova ordem jurídica se caracteriza pela primazia dos direitos humanos e a busca pela construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária.

Apesar dessa mudança de paradigmas o ensino jurídico ainda se baseia em um modelo positivista com as aulas centradas na figura do professor, considerado o único detentor do saber a quem incumbe à tarefa de transmitir o conteúdo das leis de forma isolada e especializante. Essa realidade mostra-se incompatível como os objetivos e fundamentos que permeiam o Estado Democrático de Direito. Faz-se necessário assim buscar novos caminhos para a transformação do ensino superior jurídico no Brasil, a exemplo da interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, alternativas que visam auxiliar na construção de um ensino jurídico mais crítico e humanístico, construído no diálogo entre diversas disciplinas, não só jurídicas, mas também oriundas de outras ciências.

A pluralidade e complexidade das relações sociais requer um profissional do Direito dinâmico e capaz de se harmonizar com os anseios e as transformações sociais, esse novo perfil só se efetivará se a ciência do Direito sair de seu encapsulamento e abandonar seu ideário de supremacia, buscando se construir e reconstruir com as novas dinâmicas sociais.

Diante disto, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade se mostram como uma alternativa apta a fomentar novas posturas do docente de Direito, retirando-o de seu isolamento e impulsionando sua relação com outros ramos do saber e os demais profissionais docentes, bem como possibilitando uma maior interação com a realidade social.

Essa mudança de paradigmas será um importante passo para a construção de um ensino jurídico mais humanístico e cidadão e, portanto, compatível com os preceitos e valores do nosso Estado Democrático de Direito o que permitirá aos estudantes e agressos dos Cursos de Direito utilizar seus saberes e práticas jurídicas em prol da construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária.

 

Referências
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BARRETO, Rafael. Direitos Humanos. 2ª ed. Salvador: juspodivm. 2012.
BITTAR, E. C. B. Estudos sobre o ensino jurídico: pesquisa, metodologia, diálogo e cidadania. São Paulo: Atlas. 2006.
CUNHA, M. I. Reflexões e práticas em pedagogia universitária. Campinas: papiros. 2007.
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FAZENDA, Ivani. Interdisciplinaridade – transdisciplinaridade: visões culturais e epistemológicas. In: O que é interdisciplinaridade? São Paulo: Cortez. 2008.
FRANCISCHETTO, Gilsilene Passon. As tendências pedagógicas e sua utilização no ensino do Direito. In: Um diálogo entre ensino jurídico e pedagogia. Curitiba: CRV. 2011.
KROHLING, Aloísio. Direitos Fundamentais: diálogo intercultural e democracia. São Paulo: paulus. 2009.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. Ed. 14ª. São Paulo: Saraiva. 2013.
OLIVEIRA, J. F. de. A formação dos professores dos cursos de Direito no Brasil: a pós-graduação “stricto sensu”. Tese de Doutorado. São Paulo: PUC. 2010.
RIOS, Terezinha Azerêdo. Compreender e ensinar: por uma docência da melhor qualidade. 8ª ed. São Paulo: Cortez. 2010.
STRECK, Lênio Luiz. O que isto: decido conforme a minha consciência.  4ª ed. Porto Alegre: livraria do Advogado. 2013.

Informações Sobre o Autor

Ceila Sales de Almeida

Mestre em Direitos e garantias fundamentais – FDV; especialista em Processo Penal e Direito Constitucional UGF; Advogada; Professora de Direito Substituta da Universidade do Estado da Bahia Campus XVIII Uneb


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