A reforma protestante na Alemanha e os reflexos do luteranismo no direito alemão

Resumo: Esse breve artigo pretende mostrar como a reforma protestante na Alemanha, desencadeada por Lutero, viabilizou a ascensão de uma nova doutrina cristã que se opunha à doutrina tradicional católica romana. Em paralelo à contraposição doutrinária, é apresentado também um panorama que ilustra o contraste entre, de um lado, o contexto anterior à reforma, em que a igreja católica romana e o direito canônico comandavam o direito no império alemão, e, de outro, como os delineamentos da nova doutrina luterana tiveram impactos para além da igreja e da religião, influenciando decisivamente uma série de transformações na política, no direito, na educação, nos aspectos sociais, culturais e econômicos. Destacam-se, neste texto, as transformações operadas no mundo jurídico e na ciência do direito, bem como nas reformas operadas nas instituições políticas alemãs.

Palavras-chave: Reforma, Protestantismo, Luteranismo, Direito, mudanças.

Abstract: This brief article aims to show how the Protestant Reformation in Germany, unleashed by Luther, enabled the rise of a new Christian doctrine that opposed the traditional Roman Catholic doctrine. In parallel with the doctrinal opposition, a panorama is also presented which illustrates the contrast between, on the one hand, the previous to reform context in which the Roman Catholic Church and canon law governed law in the German empire and, on the other hand, the outlines of the new Lutheran doctrine that had impacts beyond the church and religion, decisively influencing a variety of transformations in politics, law, education, social, cultural, and economic aspects. In this text, the highlights are about transformations in the legal-juridical field and in the science of law, as well as in the reforms carried out in the German political institutions.

Keywords: Reformation, Protestantism, Lutheranism, Law, changes

Sumário: Introdução. 1. Esclarecimentos preliminares. 2. A situação da Alemanha: linhas gerais do paradigma luterano. 3. A Reforma na Alemanha e as transformações do século XVI. 3.1. Contexto anterior à reforma da igreja e do estado. 3.2 A doutrina luterana e suas implicações. 3.3. As reformas no Direito e na Política. Conclusão. Referências.

Introdução:

Esse breve artigo pretende analisar como a reforma protestante na Alemanha, desencadeada por Lutero, viabilizou a ascensão de uma nova doutrina cristã que se opunha à doutrina tradicional católica romana. É apresentado um panorama em que contextualiza como se dava a relação entre igreja católica romana e o império alemão antes da reforma, com repercussão no sistema jurídico até então prevalecente. Depois, apresentam-se alguns pontos centrais da doutrina luterana. A seguir, a partir dos delineamentos da doutrina luterana então consolidada, analisa-se a sua repercussão para além dos meros domínios de uma igreja, credo ou religião, apontando os impactos também sentidos na política, no direito, na educação, nos aspectos sociais, culturais e econômicos. Há um foco especial nas transformações operadas no mundo jurídico e na ciência do direito, bem como nas reformas operadas nas instituições políticas alemãs.

1. Esclarecimentos preliminares

A Reforma Protestante, movimento inicialmente originado de dentro da igreja, desencadeado no século XVI, protagonizou mudanças para além do domínio estritamente religioso. As suas mudanças foram sentidas também nos aspectos sociais, políticos, institucionais e até mesmo jurídicos. Visando a uma explicação mais breve de como ocorreu tamanha modificação, especificamente na Alemanha, utilizo-me das lições disponibilizadas por Harold J. Berman, em seu livro Law and Revolution, vol. II: the impact of the protestant reformations on the Western Legal Tradition (2003, pela Harvard University Press).

Para tal, apresentarei uma breve contextualização de como era a situação da Igreja Católica Romana e dos alemães antes da Reforma encabeçada por Lutero. Em seguida, apresentarei as ideias fundamentais apresentadas por Lutero, que colidiam com algumas ideias fundamentais da Igreja Católica Romana de sua época. Após isso, apresentarei as consequências de tais reformulações em pontos substanciais da nova religião então nascida, para apontar os impactos de tais variações em outras áreas da vivência humana, a exemplo do convívio social entre as pessoas, a noção de como se deve exercer o poder secular, os avanços no direito e na educação, dentre outros. Ressalto que o texto básico utilizado para esta breve exposição é o livro de Berman que mencionei anteriormente.

Segundo Berman, duas revoluções foram decisivas para a tradição jurídica ocidental: a) a revolução alemã, ocorrida no século XVI, que incluía a reforma luterana como a sua parte mais decisiva; b) a revolução inglesa, ocorrida no século XVII, que incluía a reforma calvinista como a sua parte mais decisiva. Tais revoluções afetaram profundamente não só os conceitos religiosos, mas também as noções referentes a matérias como nacionalidade, governo, instituições econômicas, relações de classe, concepções de história e de verdade. Essas mudanças[1], para além dessas duas nações, também afetaram a Europa.

Para compreender essas mudanças, é importante, primeiramente, entender o que prevalecia antes da deflagração da Reforma. Entre os anos de 1075 e 1122 ocorreu a Reforma Gregoriana, uma revolução papal que criou, nos séculos XII e XIII, o direito canônico (“canon law”) da Igreja Católica Romana (jus novum). Essas inovações coexistiam com as inovações nos âmbitos reais, feudais, urbanos e mercantis. A tese de Berman é no sentido de que a Reforma afetou profundamente a formação da tradição jurídica ocidental.

Para aclarar os conceitos utilizados nesse texto, apresentamos como Berman explicou cada um dos vocábulos que ele utilizou para apresentar sua tese. Por “ocidente”, ele se refere à cultura europeia comum dos séculos XII a XVI, o que incluía também uma estrutura política e legal comum, subordinação à Igreja Católica Romana, bem como os efeitos das revoluções nacionais dos séculos XVI a XX que eram, em parte, também contra a hegemonia da Igreja Católica Romana (aí incluindo a revolução americana do século XVIII). Por “jurídico”, ele se refere ao sistema jurídico como um todo, incluindo o direito constitucional, a filosofia do direito, a ciência do direito, os princípios do direito civil, penal e processual, as leis sociais (que tratam de casamento, família, leis morais, educação, pobreza), desenvolvidos desde o século XII. Apesar das diferenças em cada nação, há um fundo compartilhado comum de conceitos, métodos e fundações históricas. Por “tradição”, ele se refere à continuidade histórica entre passado e futuro (olhando para ambos), e, no âmbito jurídico, refere-se ao desenvolvimento orgânico das instituições jurídicas no decorrer das gerações e dos séculos. Por “revolução” ele compreende a mudança fundamental e violenta no sistema social e político da sociedade, afetando as pessoas em suas atitudes, em suas manifestações de caráter, em seus sistemas de crenças, e, também, afetam profundamente as noções de direito público e de direito privado.

Aqui também há uma pequena distinção a ressaltar: enquanto, de um lado, as revoluções papal, alemã e inglesa invocaram a versão bíblica teísta do novo céu e da nova terra, do outro, as revoluções francesa (século XVIII) e americana (século XVIII) adotaram versões do deísmo. No deísmo destacava-se a supremacia da razão dada por Deus (em vez da supremacia normativa do próprio Deus), o que se reflete na noção de direitos e liberdades humanas inalienáveis. Nisso, portanto, há uma distinção quanto ao teísmo protestante na Alemanha e Inglaterra, em que Deus está acima da razão humana e, de certa forma, interfere nos assuntos humanos terrenos. Há uma distinção ainda mais forte quanto à revolução russa do século XX, que proclama a missão messiânica do Partido Comunista num sistema ateísta.

Esclarecidos esses conceitos iniciais, avanço, mais especificamente, para a Alemanha, no próximo tópico.

2. A situação da Alemanha: linhas gerais do paradigma luterano

A Alemanha estava afetada pela Reforma iniciada por Gregório VII, bem como pelas guerras civis de 1075 a 1122. Adotou-se, ali, a teoria das duas espadas, que separava a jurisdição eclesiástica da jurisdição secular. Proclamava-se, assim, a independência da jurisdição eclesiástica em face da secular, visando liberar a Igreja Católica Romana da subserviência[2] aos imperadores e aos líderes feudais. Assim, a jurisdição eclesiástica criou um corpo sistematizado de direito, que era mais amplo que o direito secular. Também se revitaliza a crença unicamente ocidental no direito (como corpo coerente de regras e princípios) em progresso para as gerações e séculos seguintes. A suprema autoridade política (rei, papa) permite fazer a lei, mas não pode fazê-lo arbitrariamente. Há uma autonomia e supremacia do direito sobre os agentes produtores de normas jurídicas. Prevalece a reconciliação dialética de opostos: o âmbito espiritual e o âmbito secular.

Esse era, portanto, o contexto até então prevalente na Alemanha. Mas, o que ocorreu com o decorrer do tempo? As duas instâncias estavam fracassando, de maneira a haver reivindicações de melhorias, que não eram atendidas nem no âmbito eclesiástico, nem no âmbito secular. Em 1517, Lutero proclamou a ideia da abolição da jurisdição eclesiástica: para ele, a igreja deve ser a comunidade invisível da fé, em que cada membro é cooperador para com os demais membros, cada um é pessoalmente responsável diante de Deus e de sua palavra. Assim, a autoridade política secular deve assumir a responsabilidade legiferante que até então estava com a Igreja Católica Romana. Deste modo, Lutero[3] substituiu a teoria das duas espadas pela teoria dos dois reinos: i) o reino celestial, invisível, regido pela evangelho, focado na salvação das almas; ii) o reino terreno, desse mundo, incluindo a igreja visível institucionalmente, regido pelo direito de competência exclusiva do príncipe.

Lutero tinha também uma filosofia legal positiva e um programa de reforma do direito. Nesse panorama, a lei é reconhecida como necessária para três finalidades: i) para revelar o pecado e conduzir ao arrependimento (finalidade moral); ii) ameaçar sancionar quem tenha conduta antissocial pecaminosa; iii) estipular princípios e procedimentos que educam e guiam pessoas à justiça e ao bem comum. Os políticos luteranos (dos principados alemães), emitiam “ordenanças” regulando as matérias que anteriormente estavam sob autoridade eclesiástica: para a igreja dentro do principado, para relações de família e casamentos, para disciplinar ofensas morais, para orientar a educação pública infantil, para ajudar os socialmente vulneráveis. Diferentemente do método escolástico do período anterior, os juristas luteranos enfatizaram a unidade do corpo jurídico inteiro, dividindo-o em público e privado, e subdividindo este em propriedade e obrigações (decorrentes de contratos, crimes e enriquecimento injusto). Essa nova classificação jurídica se baseia no método tópico de Melanchton, em que se partia de primeiros princípios e se adentrava a subdivisões. Formou-se um novo “jus commune” que abraçava os dois sistemas anteriores de common law: direito romano e direito canônico. Além disso, incorporam-se os traços comuns dos diferentes sistemas de direito real, feudal, mercantil e urbano. Essa reformulação do direito proliferou, posteriormente, pela Europa.

 O pensamento jurídico do sistema luterano incentivou a educação jurídica nas universidades dos futuros políticos (conselheiros de príncipes) e futuros juízes de cortes seculares. Incentivou-se o julgamento dos casos difíceis das cortes alemãs, que eram enviados às universidades de direito para decisões finais. Esse sistema de remessa às universidades é denominado de sistema do Aktenversendung, que perdurou na Alemanha até 1878.

Ressalte-se que no modelo luterano havia também um direito bíblico. Houve juristas que reformularam os ramos do direito de modo a basearem-nos nos dez mandamentos, que, uma vez individualizados, serviam para se extrair os diversos ramos do direito. Os princípios gerais morais teologicamente fundamentos serviam para interpretar as espécies legais subordinadas. Surge uma nova hermenêutica que tratava o Velho e o Novo Testamentos como um todo integrado, que era também aplicável ao direito. Como exemplo dessa nova metodologia houve a produção do Código Criminal Alemão.

Além disso, os juristas luteranos, que sustentavam uma concepção de ciência jurídica que partia da relação entre gênero e espécie, desenvolveram uma nova filosofia jurídica que combinava uma teoria positivista do direito como corpo formal de regras que expressam a vontade do legislador com uma teoria do direito natural de aplicação de regras pelo recurso à consciência divinamente guiada dos juízes luteranos.

Esse sistema luterano repercutiu na Europa: onde triunfou o protestantismo, a exemplo da Inglaterra, introduziu-se uma igreja de estado encabeçada pelo monarca, a quem os membros do reino deviam por lei pertencer. Também nos países que mantiveram o catolicismo romano, a exemplo da França, Espanha, Áustria, o poder real sobre a igreja cresceu significativamente. E, por último, começaram a ser criados sistemas jurídicos nacionais cobrindo o espectro inteiro da jurisdição.

Com isso, pudemos levantar um panorama sucinto do sistema luterano de pensamento, com repercussão em diversas áreas da vivência social. No próximo tópico, analisaremos, com maior nível de detalhamento, os impactos da revolução alemã (pelo menos Berman assim nomeia a Reforma Protestante na Alemanha) nas diversas áreas da vida social.

3. A Reforma na Alemanha e as transformações do século XVI

Lutero vivenciou, em sua vida pessoal e religiosa, uma descoberta enquanto lia a epístola de Paulo aos Romanos, pois a doutrina ali contida era um resumo de toda a doutrina cristã. Ao descobrir, a partir da Bíblia, que o justo deveria viver pela fé, ele se opôs fortemente ao papado em razão da venda de indulgências que Tetzel pregava sob ordens do papa Leão X. Segundo Tetzel, a venda de indulgências serviam para diminuir o tempo das penas a serem cumpridas no purgatório. Em contraste, Lutero sentia o perdão dos pecados como um grandioso favor proveniente da pura graça de Deus. Não havia, para ele, como pagar com dinheiro[4] o que somente Deus era apto a conceder.

Quando a luz do evangelho, por fim, preenche a alma de Lutero e o alivia de seus grandes temores, ele ansiava por conduzir os seus ouvintes a Jesus Cristo, o único que tira todo o pecado do mundo. Assim, Lutero levou o povo a considerar a verdadeira religião não como uma mera profissão de lábios, mas como uma vida propriamente dita[5] e experimentada em Deus. A oração deixava de ser um mero exercício sem sentido para ser encarada como o contato do coração humano com o Deus que cuida de nós mui zelosamente, em um amor abundante.

Essa convicção, de raiz inicialmente religiosa, propagou-se para outras áreas como consequências decorrentes dessa nova perspectiva. Para melhor organizar, vejamos os próximos subtópicos.

3.1. Contexto anterior à reforma da igreja e do estado

A partir do sucinto levantamento dos pontos fundamentais da doutrina luterana, pode-se compreender melhor como se viabilizou outras mudanças para além dos limites da religião. Desse modo, houve profundas alterações tanto[6] na maneira de se encarar a igreja, como na maneira de se encarar o estado.

 Do ponto de vista político, a revolução alemã foi o sucesso dos principados alemães contra o papa e o imperador alemão. Assim consagrou-se aos principados o direito de estabelecer a fé em moldes luteranos (em oposição à fé católica romana propagada pelo papa e pelo imperador), bem como uma engenharia política em que os príncipes locais se tornaram os supremos reguladores dentro de seus territórios.

Do ponto de vista religioso, a revolução alemã implicou a reforma da igreja, uma vez que a revolta contra o poder papal e imperial convergiu com o anseio luterano de reformar a igreja por dentro.

Houve também reformas socioeconômicas[7], culturais e intelectuais, bem como do ordenamento jurídico como um todo. Tais reformas se deram tanto no âmbito individual, quanto no âmbito coletivo. Essas mudanças também se propagaram a outros países e incentivaram a contrarreforma católica.

A Alemanha, até então, era uma nação, um povo, mas não era uma entidade[8] estatal: era governada, de um lado, por leis imperiais, territoriais e urbanas, e, simultaneamente, de outro lado, como parte integrante da cristandade ocidental, era regida pelo direito canônico da Igreja Católica Romana.

Como, então, se dava, em síntese, esse ordenamento jurídico alemão pré-reforma?

Havia, como já ressaltado, a aplicação do direito canônico[9], que era composto das seguintes fontes: decisões judiciais, escritos legais, legislação da igreja romana, incluindo decisões da corte do papa (decretos), tratados, concílios. Havia cortes de bispos, e a jurisdição se estendia a várias matérias. As pessoas voluntariamente submetiam os litígios quanto a seus contratos e suas propriedades às cortes de bispo, para que essas pudessem decidir conforme o direito canônico. Assim, nota-se como, na Alemanha, a jurisdição eclesiástica era amplíssima, abrangente e vigorosa.

Relembre-se, também, que a estrutura política e jurídica alemã era dual: havia uma jurisdição secular e uma jurisdição eclesiástica. Na esfera secular, havia uma pluralidade de jurisdições (locais e centrais). Disso decorriam tensões[10], uma vez que havia uma rivalidade entre a ânsia pelo poder crescente das duas jurisdições, agravada pelo duplo papel do imperador, que era, ao mesmo tempo, líder dos sujeitos imperiais e aliado espiritual do papa. A título de exemplo, editou-se uma dieta em 1495 (Landfriede), que pretendia impor o direito romano como a legislação secular positiva oficial do império.

Contra tudo isto, a doutrina luterana trouxe posicionamentos fortemente divergentes do que até então estava estabelecido. Veremos alguns pontos centrais de sua doutrina no próximo ponto.

3.2 A doutrina luterana e suas implicações

Aqui, convém destacar diversos pontos fundamentais[11] da nova doutrina que passou a ser defendida por Lutero, abaixo resumidos. Ele defendia a extinção integral da jurisdição eclesiástica, tanto no que dizia respeito ao poder de criar normas (similar ao poder legislativo moderno), quanto no que dizia respeito ao poder de julgar conflitos (similar ao poder judiciário moderno), bem como a extinção do poder de executar a impor decisões administrativas (similar ao poder executivo moderno). Assim, há a defesa do esvaziamento do poder eclesiástico, que é transladado para o poder secular.

Para Lutero, não há mediador (como um padre, ou pastor, ou sacerdote) entre Deus e os homens, de modo que nenhum pregador deve promulgar leis para os cristãos; a verdadeira igreja não é legiferante, mas uma comunidade invisível composta por todos aqueles que crêem, em que todos são sacerdotes, servindo uns aos outros, sendo cada um uma “pessoa privada” (sozinha) diante de Deus, respondendo diretamente perante ele, tendo como parâmetro a bíblia, como verdadeira palavra de Deus. Cada crente deve ministrar aos outros, isto é, dedicar-se a orar, a instruir e a servir aos demais, de modo que todos são sacerdotes uns dos outros. Um cristão é uma pessoa privada diante de Deus, responsável perante ele, como também é uma pessoa pública, que serve aos outros; apesar disso, se o poder secular estipular leis contra os preceitos bíblicos, a pessoa pode desobedecê-las.

Houve, como já destacado, a substituição da teoria das duas espadas de Gregório – em que havia um poder secular (estado) e um poder espiritual (igreja) que interagiam um com o outro – pela teoria dos dois reinos: a) de um lado, a igreja, o reino celestial da graça e fé, governada pelo evangelho; b) de outro lado, o reino desse mundo, terrestre, marcado pelo pecado e pela morte, governado pelo direito.

Firmou-se a doutrina da salvação somente pela fé: a depravação total do homem não permite que alguém faça algo para se salvar ou justificar diante de Deus. A salvação só depende da fé, que é uma virtude passiva dada livre e gratuitamente pela graça de Deus aos escolhidos. Diferentemente, a doutrina católica romana dos séculos XII a XV sustentava uma visão mais otimista, em que, a despeito da pecaminosidade, a vontade e a razão são capazes de atingir e obter uma perfectibilidade natural (em vez da sobrenatural).

Nessa perspectiva luterana, o batismo não cancela automaticamente a depravação inerente da natureza humana adâmica, de modo que o perdão só pode vir através da confrontação direta entre o pecador e Deus, pela graça divina, sem regras e procedimentos. Assim, a humanidade, por si só, é incapaz de se levantar deste estado decaído (em clara oposição com a perspectiva iluminista, que acredita no poder da razão e do esforço estritamente humano em prol das causas maiores da humanidade).

Há também a doutrina da presença de um Deus escondido, mesmo diante da pecaminosidade do homem no reino terrestre: o cristão deve fazer o trabalho de Deus no mundo, usar a vontade e a razão (embora altamente defeituosas e falhas) para fazer o bem e ter o entendimento trabalhado o máximo que for possível. Essa postura, para alguns críticos, poderia ser encarada como um certo pessimismo moral.

No modelo luterano, há uma distinção em relação às posturas de Maquiavel e Bodin, no que diz respeito à perspectiva quanto ao príncipe. Para Lutero, o príncipe deve ser guiado pela religião ao regular as relações entre ele e os súditos e as relações entre os próprios súditos. Em outras palavras, não se deveria abandonar o reino terrestre aos traços satânicos, que são destruidores e hostilizantes. Assim, o príncipe, apesar de ser considerado como ordenado por Deus para criar regras e para ter supremacia política em seu território, deve ser sujeito a limites institucionais no seu poder. Ele não deve legislar sozinho, mas com seus conselheiros; deve ser justo e estipular regras sob um espírito de amor e de serviço a seus súditos, como um bom exemplo.

Mantém-se, também, uma conexão entre Direito e Religião. O direito e a política não são encarados como caminhos para a graça e e fé, mas a graça e a fé são caminhos para uma política e uma fé corretas, em busca de ordem e justiça. O direito deveria induzir as pessoas a evitar o mal, bem como a cooperarem e servirem à sua comunidade.

Por último, os fundamentos dessa doutrina abalou os pilares que marcavam a Igreja Católica Romana altamente hierarquizada e institucionalizada, reguladora moral, legisladora, titular das riquezas. Com isso, abriu-se espaço para as novas formas políticas englobando os que estavam insatisfeitos com esse domínio da igreja. Tudo isso serviu para influenciar as mudanças políticas na Alemanha em razão da Reforma.

Assim, percebe-se que a revolução inicialmente doutrinária e religiosa, também se irradiou para outros domínios, como veremos no próximo tópico.

3.3. As reformas no Direito e na Política

As implicações da doutrina luterana, como já enfatizado, alteraram profundamente o modo de se compreender o Direito e a Política[12] no território alemão.

Inicialmente, a oposição à igreja hierarquizada também acompanhou uma rejeição ao direito canônico e à legislação secular que era baseada no direito romano. A postura inicial parecia (do ponto de vista de alguns) desembocar num anarquismo, porém a doutrina luterana de que o reino terrestre, regido pelo direito, é ordenado por Deus, mesmo que seja um reino de pecado em que Deus está escondido, assumiu uma importância política por valorar positivamente as instituições e princípios legais e jurídicos. A aliança entre a teologia luterana com a autoridade civil conduziu a uma nova filosofia do direito e a uma nova metodologia da ciência jurídica, criando uma nova sistematização do direito.

Os ideais fundamentais do luteranismo, junto de seus objetivos sócias e políticos, inauguraram, assim, uma nova ordem jurídico-legal. Exemplificativamente, a conexão da teologia com o governo dos príncipes repercutiu no direito constitucional: elaboração de novos princípios que afetavam as esferas religiosa e secular, novas ordenanças foram lançadas pelos príncipes e isso foi limitando as práticas católicas romanas tradicionais, a exemplo das penitências, da veneração aos santos, indulgências, festivais, feriados.

A jurisdição papal sobre assuntos até então considerados eclesiásticos cedeu espaço à jurisdição secular em matérias de relações familiares e maritais, ofensas morais, educação, assistência aos pobres, dentre outras. Introduziu-se o divórcio por adultério ou abandono. Atitudes como heresia, blasfêmia e ofensas sexuais tornaram-se crimes na nova legislação secular.

Introduziu-se também o controle secular da educação: escolas e livrarias públicas foram instituídas para substituir as escolas das catedrais; as universidades foram colocadas sob a autoridade dos príncipes. Buscou-se instituir a provisão da mais ampla educação elementar possível, para que tanto meninos quanto meninas pudessem ter habilidades para ler a bíblia (algo que antes era um privilégio restrito ao clero masculino). A importância de Lutero para a educação escolar é tamanha, que ainda hoje[13] os livros de história da educação e história da pedagogia destinam parte de suas obras para analisar as propostas e atividades dele na área educacional. No século XIX, ele chegou a ser considerado um “clássico da pedagogia”, um “educador do povo alemão” e um “renovador do sistema escolar”.

Matérias como proteção de viúvas e órfãos, hospitais para velhos e doentes ou inválidos, outras formas de trabalho em prol da caridade, que antes estavam sob jurisdição eclesiástica e sob o direito canônico, foram deixadas às autoridades seculares sob o novo direito secular, confiadas às cortes seculares.

A ascensão dos príncipes e da alta magistratura diminuiu o poder da autoridade eclesiástica, sob cuja autoridade muitos não conseguiam ter voz política. Isso revestiu de poder as novas funções seculares – serviço civil – cujos membros que as exerciam normalmente vinham de universidades e eram de origem humilde. Assim, nota-se uma inclusão social.

O que tradicionalmente era visto como um processo de secularização da lei espiritual deve também ser encarado como um processo de espiritualização do direito secular do estado. A título de exemplo, enxergar o príncipe como pai da nação tornava-o fonte final do direito, mas isso também lhe trazia limites, além de se consagrar o dever de desobediência civil quando o legiferante agisse mal (pois isso pervertia a autoridade que Deus conferiu aos príncipes). O governo humano não deveria ser resistido, mas tolerado.

Dentre os importantes limites – emanados tanto da teologia luterana, quanto da realidade política alemã – que se aplicavam à competência, jurisdição e poder do direito secular e dos príncipes, destacam-se alguns, abaixo listados:

a) o príncipe não deve legislar sozinho, mas através de seus servidores civis, devendo servir ao interesse público; a alta responsabilidade dos servidores concediam-lhe uma independência maior que a de um cidadão comum; os professores das universidades têm uma obrigação de comprometimento maior com a verdade, e não com o príncipe.

b) os servidores civis serviam como limites ao exercício arbitrário do poder pelo príncipe.

c) a confederação de fato (existente na Alemanha) conferiu supremacia e soberania a cada principado em seu território, de maneira a haver a independência de cada um, inclusive em decisões de matéria religiosa: cada principado tinha sua própria lei, escolhia seus servidores ou conselheiros sem pressão papal ou imperial. O fato de haver uma jurisdição exclusiva em cada principado incutia o dever de respeito aos territórios de outros principados em que haviam outros igualmente soberanos.

d) aplicou-se os conceitos de república, bem comum, estado que age conforme o direito (Rechtsstaat) – “law state” – em cada instância de poder. O governo pelo direito é reforçado pela filosofia luterana do direito bíblico revelado (expresso nos dez mandamentos) e no direito natural (correspondente aos dez mandamentos) cujos princípios Deus implantou na consciência de todas as pessoas.

e) o conjunto desses fatores direcionava a Alemanha rumo a uma monarquia constitucional, em vez de uma monarquia absolutista (como sucedeu em outras nações).

f) a abolição da jurisdição católica romana levou à secularização e à sistematização do direito civil, penal, filosofia do direito e ciência jurídica. Surgiram códigos penais territoriais sistemáticos (os primeiros do Ocidente). No direito civil, a sistematização não foi por um código unificado formal, mas por tratados acadêmicos sistemáticos no corpo jurídico inteiro (tanto secular quanto eclesiástico), sendo estes os primeiros tipos tratados no Ocidente. Tais tratados acadêmicos constituíam um corpo de princípios e regras que deviam ser aplicados por juristas treinados e cortes profissionais. Desse modo, as obras, estudos e tratados acadêmicos desempenharam um papel proeminente como fonte principal do direito no novo Rechtsstaat alemão.

g) pela ampla generalidade do direito natural, as leis escritas (positivadas) servem para deter os infratores e as autoridades na inclinação natural de usar arbitrariamente o poder (relembre-se a pressuposição de que a natureza humana é decaída).

h) há uma ênfase nos princípios legais gerais como pontos de partida da análise da lei pelas cortes para os casos concretos (método lógico-dedutivo). Assim, afasta-se da postura escolástica inicial anterior de encontrar o direito por comentários que são indutivos dos resultados concretos para a extração dos princípios mais gerais.

i) a ênfase na metodologia jurídica dedutiva exaltou o papel dos professores: os casos mais difíceis eram submetidos às universidades de direito (século XVI), para que os professores estudassem o caso e o discutissem até atingir um julgamento arrazoado. É o sistema do Aktenversendung (“the sending of the file”), um método procedimental apoiado no conhecimento dos professores. Essa instituição existiu até 1878, tendo exercido uma grande influência na substância e no estilo do direito alemão. Esse método era altamente consumidor de tempo e era bastante lucrativo para os professores. Tal método é parte da tendência alemã de se sistematizar o objeto de estudo em grandes tratados.

Observa-se, assim, que, para além do domínio estritamente religioso, as reforma luterana propiciou profundas modificações nas relações políticas, no serviço civil, um fortalecimento de um direito secular altamente sistematizado, em um método preponderantemente dedutivo.

Conclusão:

Esse breve artigo mostrou como, a partir da reforma protestante na Alemanha, desencadeada por Lutero, houve, de início a ascensão de uma nova doutrina que se opunha à doutrina tradicional católica romana. Porém, para além dos meros domínios de uma igreja, credo ou religião, houve impactos também na política, no direito, na educação, nos aspectos sociais, culturais e econômicos. Diversos avanços foram propiciados pela mudança radical no modo de se enxergar a fé cristã, a partir dos ensinamentos bíblicos diretamente extraídos da escritura.

 

Referências bibliográficas:
BARBOSA, Luciane Muniz Ribeiro. As origens do direito á educação: Martinho Lutero e a Reforma Protestante. Curitiba: CRV, 2017.
BERMAN, Harold J. Law and Revolution, II: the impact of the protestant reformations on the western legal tradition. Cambridge: Harvard University Press, 2003.
BOYER, Orlando S. Heróis da Fé: vinte homens extraordinários que incendiaram o mundo. 15ª ed. Rio de Janeiro: CPAD, 1999.
FARIAS, Ivanildo Mendes.500 anos do protestantismo: uma breve história da reforma. Teresina: INTESI, 2017.
 
Notas
[1]Cf. BERMAN, 2003, pp. 1-4.

[2]Cf. BERMAN, 2003, p.4.

[3]Cf. BERMAN, 2003, pp. 5-8.

[4]Cf. FARIAS, 2017, pp. 62-64.

[5]Cf. BOYER, 1999, p. 21.

[6]Cf. BERMAN, 2003, pp. 29-70.

[7]Cf. BERMAN, 2003, pp. 29-30.

[8]Cf. BERMAN, 2003, pp. 34-35.

[9]Cf. BERMAN, 2003, p. 35.

[10]Cf. BERMAN, 2003, p. 36.

[11]Cf. BERMAN, 2003, pp. 40-45.

[12]Cf. BERMAN, 2003, pp. 62-68.

[13]Cf. BARBOSA, 2017, p. 71.


Informações Sobre o Autor

Pablo Camarço de Oliveira

Doutorando em Filosofia pela UFSC. Mestre em Filosofia pela UFPI. Graduado em Direito pela UFPI. Professor da Escola Superior da Defensoria Pública do Maranhão. Defensor Público do Maranhão


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