Resumo: O presente artigo faz uma análise acerca da legalidade da responsabilização subsidiária dos entes públicos, nos casos de terceirização do contrato de trabalho. O estudo enfatiza a necessidade de um olhar amplificado sobre o tema, englobando princípios fundamentais do direito público, constitucional e do trabalho. Assim como, faz uma análise acerca da aplicação do art. 71 da Lei de Licitações, em face da Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho. O foco do presente estudo está na comparação entre o interesse público sobre o privado e em como um interesse deve ter prevalência sobre o outro. Transcreve-se a evolução histórica da terceirização de trabalho para um melhor entendimento acerca do surgimento deste conceito, em face da necessidade de proteção do interesse público. Em conclusão, trata-se de uma crítica ao caminho que vem sendo traçado sobre o tema pelos operadores do Poder Judiciário. Enfatizando-se quantos princípios e normas fundamentais vem sendo desrespeitadas no atual entendimento jurisprudencial sobre o assunto. [1]
Palavras-chave: Responsabilização Subsidiaria; Entes Públicos; Terceirização de Trabalho; Súmula 331 do TST; art.71 da Lei de Licitações.
Abstract: This article analyses the legality of the subsidiary responsibility of the public entities, in cases of outsourcing of the employment contract. The study emphasizes the need for an amplified look at the subject, encompassing fundamental principles of public, constitutional and labor law. So, it makes an analysis on the application of art. 71 of the Law of Tenders, in the face of Summary 331 of the Superior Labor Court. The focus of the present study is in compare the public interest with the private and the prevalence of one over the other. It transcribes the historical evolution of the outsourcing of work to the better understanding about the emergence of the concept, in the face of the need for protection of the public interest. In conclusion, this is a criticism of the path that has been drawn on the subject for the Judiciary branch. Emphasizing how many fundamental principles and norms have been disregarded in the current jurisprudential understanding on the subject.
Keywords: Subsidiary Responsibility; Public Entities; Outsourcing of Employment; Summary 331 of the Superior Labor Court; art. 71 of the Law of Tenders.
Sumário: Introdução. 1. Conceito e evolução histórica da terceirização de trabalho no Brasil. 2. Princípios do direito do trabalho e princípios constitucionais do direito administrativo. 2.1 Princípios do direito do trabalho. 2.1.1 Princípio da proteção ao Trabalhador. 2.1.2 Princípio da imperatividade das normas trabalhistas. 2.1.3 Princípio da primazia da realidade sobre a forma. 2.2 Princípios constitucionais do direito administrativo. 2.2.1 Princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado. 2.2.2 Princípio da legalidade. 2.2.3 Princípio da finalidade. 3. Art. 71 da Lei de Licitações e os princípios do direito administrativo. 4. Aplicação da Súmula 331 do TST aos entes públicos. 4.1 Culpa in vigilando e o ônus da prova. 4.2 Jurisprudência acerca da aplicação da Súmula 331 aos entes públicos. Conclusão. Referencias.
Introdução
O presente trabalho tem o condão de analisar, a partir dos princípios do direito administrativo e constitucional, a legalidade da aplicação da nova redação da Súmula 331 do Colendo Tribunal Superior do Trabalho.
Não apenas a legalidade, mas também os motivos que levaram à alteração da Súmula e como os tribunais tem aplicado a responsabilização dos entes públicos a partir dessa nova redação.
Não há como uma matéria tão recente ser explorada em sua totalidade e não é esse o objetivo do presente trabalho.
A intenção é apenas a de promover uma reflexão que vá além da leitura da redação da súmula 331 do TST, através de um olhar mais abrangente do ordenamento jurídico administrativo e trabalhista, procurando uma resposta para a legalidade da responsabilização dos entes públicos a partir da aplicação da referida súmula.
1. CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA TERCEIRIZAÇÃO DE TRABALHO NO BRASIL
De acordo com os ensinamentos de Mauricio Godinho Delgado, a palavra terceirização resulta de um neologismo, construído pela área administrativa das empresas e não pelo setor jurídico, tendo como escopo demonstrar a descentralização de certa atividade empresarial para outra empresa. [2]
Trazendo a expressão para o Direito do Trabalho, o referido autor assim conceitua o instituto da terceirização:
“Para o Direito do Trabalho terceirização é o fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente. Por tal fenômeno insere-se o trabalhador no processo produtivo do tomador de serviços sem que se estendam a este os laços justrabalhistas, que se preservam fixados com uma entidade interveniente. A terceirização provoca uma relação trilateral em face da contratação de força de trabalho no mercado capitalista: o obreiro, prestador de serviços, que realiza suas atividades materiais e intelectuais junto à empresa tomadora de serviços; a empresa terceirizante, que contrata este obreiro, com ele os vínculos jurídicos trabalhistas pertinentes; a empresa tomadora de serviços, que recebe a prestação de labor, mas não assume a posição clássica de empregadora desse trabalhador envolvido”
Estabelecido o conceito da terceirização, que é o mesmo em todos os ordenamentos jurídicos, passa-se a análise de sua evolução histórica. Nesse ponto será analisado o desenvolvimento da terceirização de serviços apenas no Brasil, sem adentrar à sua evolução nos demais países.
A terceirização é um instituto ainda novo no Brasil que vem melhor se delimitando nas últimas três décadas. As primeiras demonstrações legais da expressão, se deram através da CLT, que como se sabe, foi expedida na década de 1940.[3]
A Consolidação das Leis do Trabalho tratou de apenas dois institutos de terceirização, conforme destacado pelo autor Mauricio Godinho Delgado:
“A CLT faz menção a apenas duas figuras delimitadas de subcontratação de mão de obra: a empreitada e subempreitada (art. 455), englobando também a figura da pequena empreitada (art. 652, “a”, III, CLT). À época de elaboração da CLT, como se sabe (década de 1940), a terceirização não constituía fenômeno com a abrangência assumida dos últimos 30 anos do século XX, nem sequer merecia qualquer epiteto designativo especial.
A ausência de outros institutos e de maior aprofundamento acerca da terceirização no Brasil, nesse período, se deu devido ao cenário socioeconômico vivido pelo Brasil nas décadas de 1930 e 1940, onde houve grande impulso da industrialização. Ainda em 1950 dominava nas relações de trabalho o modelo clássico de empregador/empregado.” [4]
“Em fins da década de 1960 e início dos anos 70 é que a ordem jurídica instituiu referência normativa mais destacada ao fenômeno da terceirização”. Entretanto, tal referência tratava especificamente do segmento público. É o que se verifica no Decreto-Lei n. 200/67 e na Lei n. 5.645/1970.[5]
Sobre o tema abordado nessas duas normas, assim preleciona Marcos Ribeiro Salvino:
“No campo da evolução legislativa, o Decreto-Lei n. 200/67 foi o primeiro diploma a regular a terceirização, contudo, restrito à Administração Pública. O seu artigo 10, § 7º, estabelecia a faculdade da transferência de serviços operacionais a terceiros, sem caráter deliberativo, como uma forma de descentralização administrativa. Esta forma de regulação adveio da reforma administrativa instituída no âmbito da União a partir de meados da década de 1960. Posteriormente, foi publicada a Lei n. 5645, de 10 de dezembro de 1970, a qual discriminava em seu artigo 3º, parágrafo único, exemplificativamente, as áreas em que a terceirização seria cabível na esfera da União e das autarquias federais, como serviços de transportes, conservação, limpeza, dentre outras.”[6]
O campo privado começou a ter a terceirização regulamentada a partir de 1970, através da Lei do Trabalho Temporário (Lei n. 6.019/74) e posteriormente pela Lei n. 7.102/83e veio a autorizar a terceirização para o serviço de vigilância bancária.
Entretanto, além da evolução legislativa e paralelamente a ela, houve a evolução fática, em que nos últimos 30 anos do século XX, o segmento privado “passou a incorporar, crescentemente, praticas de terceirização de força de trabalho, independentemente da existência de texto legal autorizativo da exceção ao modelo empregatício clássico”. [7]
Verifica-se claramente que com relação a terceirização, o cotidiano prático levou a criação de leis no intuito de disciplinar o novo instituto, nesse sentido Marcos Ribeiro Salvino, assim destaca em seu trabalho “Terceirização de Serviços na Administração Pública e Responsabilidade Trabalhista”:
“O que o legislador intentou, com a elaboração da lei disciplinadora do trabalho temporário, foi legalizar a prática já usual da terceirização no Brasil, e não fazer concorrência com o trabalho permanente, até porque certos trabalhadores não detêm a capacidade de dedicação integral a este, como as donas-de-casa e os estudantes, a título de exemplo. ” [8]
O grande aumento da utilização do instituto da terceirização no país levou diversas situações novas e ainda não abrangidas pela legislação, à apreciação dos Tribunais Trabalhistas nas décadas de 1980 e 1990, que gerou uma infinidade de interpretações jurisprudenciais. Com isso, “ao lado da multiplicidade de interpretações jurisprudenciais lançadas nas decisões ocorridas nas ultimas décadas, o Tribunal Superior do Trabalho editou duas súmulas de jurisprudência uniforme, a de n. 256, de 1986, e a de n. 331, de dezembro de 1993”. [9]
Por ser instituto ainda novo, diversas são as situações em que se deparam os juristas e operadores do direito em relação à terceirização de serviços em que precisam decidir, ou pleitear direitos não adimplidos de seus clientes, porém lhe faltam instrumentos necessários ao bom desenvolvimento da análise do instituto.
Nesse sentido preleciona Mauricio Godinho Delgado, em sua obra:
“Como é comum ao conhecimento acerca de fenômenos novos, certo paradoxo também surge quanto ao estudo do presente caso. É que se tem, hoje, clara percepção de que o processo de terceirização tem produzido transformações inquestionáveis no mercado de trabalho e na ordem jurídica trabalhista do país. Falta, contudo, ao mesmo tempo, a mesma clareza quanto à compreensão da exata dimensão e extensão dessas transformações. Faltam, principalmente, ao ramo justrabalhistae seus operadores os instrumentos analíticos necessários para suplantar a perplexidade e submeter o processo sociojuridico da terceirização às direções essências do Direito do Trabalho, de modo a não propiciar que ele se transforme na antítese dos princípios, institutos e regras que sempre foram a marca civilizatória e distintiva desse ramo jurídico no contexto da cultura ocidental. ”[10]
Bem se sabe, que avanço no Brasil, via de regra acontece primeiramente a esfera privada, seguida então pela esfera pública. Assim, muito do que se discute no presente trabalho é fruto da falta de ferramentas e de uma maior amplitude no raciocínio acerca da responsabilização subsidiaria dos entes públicos, frente ao instituo da terceirização.
A falta de institutos jurídicos é latente, e prejudica a completa visualização e análise do que vem ocorrendo no campo fático. Sobre o assunto assim se manifesta Delgado:
“Uma singularidade desse desafio crescente reside no fato de que o fenômeno terceirizante tem se desenvolvido e alargado sem merecer, ao longo dos anos, cuidadoso esforço de normatização pelo legislador pátrio. Isso significa que o fenômeno tem evoluído, em boa medida, à margem da normatividade heterônoma estatal, como um processo algo informal, situado fora dos traços gerais fixados pelo Direito do Trabalho do país. Trata-se de exemplo marcante de divorcio da ordem jurídica perante os novos fatos sociais, sem que se assista a esforço legiferante consistente para sanar tal defasagem jurídica. “[11]
A ausência de legislação apta a auxiliar na análise e julgamento do instituto da terceirização leva a diversas situações de incerteza, trazendo por muitas vezes a insegurança jurídica nos casos em que é abordado o tema na esfera do Direito do Trabalho. Isso tanto para o âmbito público, quanto para o âmbito privado.
Essa falta de legislação que acompanhe a altura o desenvolvimento da terceirização no Brasil, levou à ainda existente discussão acerca da responsabilização dos entes públicos pelas verbas trabalhistas, nos casos de terceirização de serviços.
2. PRINCÍPIOS DO DIREITO DO TRABALHO E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADMINISTRATIVO
2.1 Princípios do Direito do Trabalho
Nesse tópico serão abordados de forma breve, alguns princípios do Direito do Trabalho que guardam relação com a responsabilização dos entes públicos, quanto às verbas trabalhistas não quitadas pelas empresas por eles contratadas, para a prestação de serviços terceirizados.
Assim, serão conceituados os princípios da proteção, da imperatividade das normas trabalhistas e o princípio da primazia da realidade sobre a forma.
2.1.1 Princípio da Proteção ao Trabalhador
O princípio da proteção ao trabalhador é o mais basilar dos princípios do direito Laboral, ele justifica e dele decorrem todos os demais princípios e institutos jurídicos. Ele é a base primordial da tutela das relações trabalhistas.
César Reinaldo Offa Basile, seguindo esta linha de pensamento, assim dispõe acerca do principio da proteção:
“O principio da proteção é a base de todo o direito do trabalho (“tratar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam”- Rui Barbosa), uma forma de estabelecer equilíbrio à relação laboral diante da força do capital, e se encontra implícito no texto do art. 7, caput, da Constituição da República, na medida em que o legislador define como direitos basilares do cidadão (impassíveis de abolição pela via da emenda) todos aqueles que proporcionem melhoria da condição social do trabalhador.”[12]
Levando em consideração a importância do princípio da proteção ao ordenamento jurídico pátrio no âmbito do Direito do Trabalho, o Professor Renato Saraiva assim conceitua referido princípio:
“O principio da proteção, sem dúvida o de maior amplitude e importância no Direito do Trabalho, consiste em conferir ao polo mais fraco da relação laboral, o empregado, uma superioridade jurídica capaz de lhe garantir mecanismos destinados a tutelar os direitos mínimos estampados na legislação labora vigente.”
A maior parte da doutrina considera que esse princípio se desdobra em três dimensões, quais sejam, a do in dubio pro operário, a da norma mais favorável e a da condição mais benéfica.
Entretanto, Mauricio Godinho Delgado alerta para o fato e que o princípio da proteção abrange quase todos os princípios norteadores do direito Laboral, conforme se destaca:
“Na verdade, a noção de tutela obreira e de retificação jurídica da reconhecida desigualdade socioeconômica e de poder entre os sujeitos da relação de emprego (ideia inerente ao princípio protetor) não se desdobra apenas nas três citadas dimensões. Ela abrange, essencialmente, quase todos (senão todos) os princípios especiais do Direito Individual do Trabalho. (…) Todos esses outros princípios especiais também criam, no âmbito de sua abrangência, uma proteção especial aos interesses contratuais obreiros, buscando retificar, juridicamente uma diferença prática de poder e de influência econômica e social apreendida entre os sujeitos da relação empregatícia.”[13]
Pelos conceitos acima elucidados, ao contrário do que o nome possa sugerir, o princípio da proteção não busca proteger o trabalhador a qualquer custo, mas sim equilibrar a relação havida entre trabalhador e empregador, visto a notória discrepância entre essas duas figuras jurídicas.
2.1.2 Princípio da Imperatividade da Norma Trabalhista
Enquanto no Direito Civil prevalece a livre vontade entre as partes na pactuação de seus negócios, no ordenamento jurídico trabalhista, deve prevalecer, via de regra o disposto nas normas laborais. Trata-se de restrição à autonomia de vontade para preservação de todos os direitos do trabalhador.
Nessa esteira de pensamento preleciona Delgado:
“Informa tal principio que prevalece no segmento juslaborativo o domínio das regras jurídicas obrigatórias, em detrimento de regras apenas dispositivas. As regras justrabalhistas são, desse modo, essencialmente imperativas, não podendo, de maneira geral, ter sua regência contratual afastada pela simples manifestação de vontade das partes. Nesse quadro, raros são os exemplos de regras dispositivas no texto da CLT, prevalecendo uma quase unanimidade de preceitos imperativos no corpo daquele diploma legal.
Para este principio prevalece a restrição à autonomia da vontade no contrato trabalhista, em contraponto à diretriz civil e soberania das partes no ajuste das condições contratuais. Esta restrição é tida como instrumento assecuratório eficaz de garantias fundamentais ao trabalhador, em face do desequilíbrio de poderes inerente ao contrato de emprego. ”[14]
Conforme bem explicitado por Delgado, a imperatividade das normas trabalhistas assegura a justa relação entre as partes. Uma pessoa, que precisa de emprego para seu sustento e de sua família jamais se negaria a assinar um contrato abrindo mão de seu direito ao pagamento de horas extras, por exemplo.
Sua necessidade, com certeza se sobreporia aos seus direitos laborais, criando assim, situação de nítida desvantagem entre as partes, o que não se pode admitir.
2.1.3 Princípio da Primazia da Realidade Sobre a Forma
Esse princípio az de forma inequívoca, grande segurança nas relações trabalhistas, visto que valora a realidade acima da forma, evitando assim, injustiças baseadas em meras formalidades.
Assim, de nada adianta existir documento com determinada previsão, quando a realidade evidencia postura e fatos totalmente discrepantes do que existe no papel. No Direito do Trabalho, sempre prevalecerá a realidade sobre o formalismo.
Sobre o princípio assim leciona Mauricio Godinho Delgado:
“Desse modo o conteúdo do contrato não se circunscreve ao transposto no correspondente instrumento escrito, incorporando amplamente todos os matizes lançados pelo cotidiano da prestação de serviços. O principio do contrato realidade autoriza, assim, por exemplo, a descaracterização de uma pactuação civil de prestação de serviços, desde que no cumprimento do contrato despontem, concretamente, todos os elementos fático-jurídicos da relação de emprego (trabalho por pessoa física, com pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e sob subordinação). ” [15]
E ainda:
“O princípio da primazia da realidade sobre a forma constitui-se em poderoso instrumento para a pesquisa e encontro da verdade real em uma situação de litigio trabalhista. Não deve, contudo, ser brandido unilateralmente pelo operador jurídico. Desde que a forma não seja da essência do ato (ilustrativamente, documento escrito para a quitação ou instrumento escrito para contrato temporário), o interprete e aplicador do Direito deve investigar e aferir se a substância da regra protetiva trabalhista foi atendida na prática concreta efetivada entre as partes, ainda que não seguida estritamente a conduta especificada pela legislação. ” [16]
Assim, o referido princípio não desvaloriza por completo a prova escrita, material, apenas leva o operador do direito à uma análise mais profunda, contrastando a realidade material sobre a fática.
2.2 Princípios Constitucionais do Direito Administrativo
2.2.1 Princípio da Supremacia do Interesse Público Sobre o Privado
Segundo conceito trazido pelo autor Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado é:
“Princípio geral de Direito inerente a qualquer sociedade. É a própria condição de sua existência. Assim, não se radica em dispositivo específico algum da Constituição, ainda que inúmeros aludam ou impliquem manifestações concretas dele, como, por exemplo, os princípios da função social da propriedade, da defesa do consumidor ou do meio ambiente. ”[17]
Para Marçal Justen Filho, “a supremacia do interesse publico significa sua superioridade sobre os demais interesses existentes na sociedade. Os interesses privados não podem prevalecer sobre o interesse público, e é em decorrência da sua supremacia. ”[18]
Ainda que sendo considerado a condição de existência da sociedade moderna, não pode ser utilizado de forma arbitrária e como qualquer outro instituto do Direito, deve submeter-se à Constituição e às leis, nesse sentido assevera Celso Antônio Bandeira de Mello: “o principio cogitado, evidentemente, tem, de direito, apenas a extensão e compostura que a ordem jurídica lhe houver atribuído na Constituição e nas leis com ela consoantes.”[19]
Pelos conceitos elucidados, percebe-se que trata-se de princípio inerente à sociedade e não ao Estado propriamente dito. Sua finalidade é proteger o interesse da coletividade em detrimento do interesse privado.
2.2.2 Princípio da Legalidade
O princípio da legalidade é inerente ao Estado de Direito. Significa que a Administração pública deve agir dentro dos termos da lei. Nesse sentido são os ensinamentos de Celso Antônio ao abordar o princípio da legalidade:
“…é específico do Estado de Direito, é justamente aquele que o qualifica e que lhe dá a identidade própria. Por isso mesmo é o princípio basilar do regime jurídico-administrativo, já que o Direito Administrativo (pelo menos aquilo que como tal se concebe) nasce com o Estado de Direito: é uma consequência dele. É o fruto da submissão do Estado à Lei. É em suma: a consagração da idéia de que a Administração Pública só pode ser exercida na conformidade da lei…”[20]
Como o próprio autor mencionado destaca, esse princípio traz a ideia da soberania popular, ao impedir de per si qualquer poder autoritário, elucidando assim, o que descreve o art. 1, parágrafo único da constituição Federal: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.[21]
2.2.3 Princípio da Finalidade
Para Celso Antonio, o princípio da finalidade não decorre dele, mas é na verdade inerente a ele, conforme se destaca:
“Em rigor, o princípio da finalidade não é uma decorrência do princípio da legalidade. É mais que isto: é uma inerência dele; está nele contido, pois corresponde à aplicação da lei tal qual é; ou seja, na conformidade de sua razão de ser, do objetivo em vista do qual foi editada. Por isso se pode dizer que tomar uma lei como suporte para a prática de ato desconforme com sua finalidade não é aplicar a lei; é desvirtuá-la; é burlar a lei sob pretexto de cumpri-la. (…) Quem desatende ao fim legal, desatende à própria lei.”[22]
Assim, clara está a necessidade de se analisar a finalidade de uma lei, antes de aplicá-la aos entes públicos.
3. ART. 71 DA LEI DE LICITAÇÕES E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E DO DIREITO ADMINISTRATIVO
Ultrapassada a análise de três pilares do Direito Administrativo, quais sejam, a Supremacia do Interesse Público sobre o Privado, a Legalidade e a Finalidade, importante analisar, para a continuidade do estudo, o art. 71 da lei de Licitações, in verbis:
Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.
§ 1o A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis.
§ 2o A Administração Pública responde solidariamente com o contratado pelos encargos previdenciários resultantes da execução do contrato, nos termos do art. 31 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991.[23].[24]
Extrai-se do artigo supramencionado que a Lei de Licitações veda a responsabilização dos entes Públicos pelas verbas trabalhistas inadimplidas pelos seus contratados, não apenas trabalhistas, mas também fiscais e comerciais.
Analisando-se esse artigo, em consonância com os princípios mencionados no item 1, percebe-se que ela protege a supremacia do interesse público sobre o privado.
Daniela Villas Boas Westfahl, em seu artigo “O efeito da ADC 16 no caso típico de inadimplemento dos pagamentos rescisórios trabalhistas pela empresa que presta serviços ao ente público” bem elucida as duas correntes doutrinária acerca da responsabilização subsidiária do Estado, in verbis:
“Trava-se um intenso debate ideológico em torno do tema, desde o seu surgimento. De um lado, estão os adeptos da desoneração do Estado e enxugamento da máquina estatal, que vêem na terceirização um instrumento essencial e não admitem que os cofres públicos paguem duas vezes, uma pelo contrato e outra pelas verbas trabalhistas. Para Brito Junior, “não deve prevalecer o entendimento que favoreça o interesse particular do empregado em detrimento do Poder Público como um todo, sob pena da Justiça Trabalhista causar danos indevidos ao erário e ao interesse público. (…) O Estado não tem meios de evitar o inadimplemento das obrigações trabalhistas das empresas contratadas, podendo apenas aplicar sanções ao contratado, uma vez verificado o desrespeito às mesmas.” [5] De outro lado, estão os defensores da ampliação da responsabilidade do tomador, a fim de se evitar a precarização e o aviltamento do trabalho. Souto Maior entende que: uma terceirização, ou seja, a transferência de atividade que é indispensável à realização empresarial, de forma permanente – seja ela considerada meio ou fim, pouco importa, – não pode, simplesmente, se transferir a terceiro, sem que se aplique a tal negócio jurídico a regra de definição do empregador fincada no artigo 2o., da CLT, isto é, a consideração de que aquele que se utiliza de trabalhador subordinado e que assume os riscos da atividade econômica é o real empregador, sendo este, no caso, evidentemente, a empresa tomadora dos serviços.”
Percebe-se claramente que a discussão envolve leis, princípios e opiniões acerca da Supremacia do Interesse Público sobre o privado e da legalidade, entretanto, na prática verifica-se muitas vezes que as empresas prestadoras de serviços terceirizados, simplesmente desaparecem após o encerramento de seus contratos, sem sequer pagar as verbas rescisórias dos seus empregados.
Empregados esses, cujos serviços beneficiaram a Administração Pública, a qual também cumpriu com sua parte, pagando o valor contratado, começou-se então uma disputa pela valoração dos princípios, buscando-se a justiça em um plano fático.
O TST acabou por consolidar sua jurisprudência a respeito do tema através da Súmula 331. Conforme se demonstra através do incidente de uniformização do Enunciado n. 331, IV do TST, deixou de aplicar a supremacia do interesse público sobre o privado e a legalidade, valorando como princípios maiores o da moralidade pública e o da proteção ao trabalhador. Nesse sentido segue o incidente de uniformização de jurisprudência:
INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA – ENUNCIADO Nº 331, IV, DO TST – RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – ARTIGO 71 DA LEI Nº 8.666/93. Embora o artigo 71 da Lei nº 8.666/93 contemple a ausência de responsabilidade da Administração Pública pelo pagamento dos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato, é de se consignar que a aplicação do referido dispositivo somente se verifica na hipótese em que o contratado agiu dentro de regras e procedimentos normais de desenvolvimento de suas atividades, assim como de que o próprio órgão da administração que o contratou pautou-se nos estritos limites e padrões da normatividade pertinente. Com efeito, evidenciado, posteriormente, o descumprimento de obrigações, por parte do contratado, entre elas as relativas aos encargos trabalhistas, deve ser imposta à contratante a responsabilidade subsidiária. Realmente, nessa hipótese, não se pode deixar de lhe imputar, em decorrência desse seu comportamento omisso ou irregular, ao não fiscalizar o cumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo contratado, em típica culpa in vigilando, a responsabilidade subsidiária e, conseqüentemente, seu dever de responder, igualmente, pelas conseqüências do inadimplemento do contrato. Admitir-se o contrário, seria menosprezar todo um arcabouço jurídico de proteção ao empregado e, mais do que isso, olvidar que a Administração Pública deve pautar seus atos não apenas atenta aos princípios da legalidade, da impessoalidade, mas sobretudo, pelo da moralidade pública, que não aceita e não pode aceitar, num contexto de evidente ação omissiva ou comissiva, geradora de prejuízos a terceiro, que possa estar ao largo de qualquer co-responsabilidade do ato administrativo que pratica. Registre-se, por outro lado, que o art. 37, § 6º, da Constituição Federal consagra a responsabilidade objetiva da Administração, sob a modalidade de risco administrativo, estabelecendo, portanto, sua obrigação de indenizar sempre que cause danos a terceiro. Pouco importa que esse dano se origine diretamente da Administração, ou, indiretamente, de terceiro que com ela contratou e executou a obra ou serviço, por força ou decorrência de ato administrativo.- (IUJ-RR-297.751/1996, Tribunal Pleno, Rel. Min. Milton de Moura França, DJ 20/10/2000).
Entretanto, após anos de discussão acerca da aplicabilidade da Súmula 331, IV do TST aos entes públicos, em vista do art. 71 da Lei de licitações, a matéria chegou ao STF, através da ADC n. 16, de autoria do Governador do Distrito Federal.
O autor trouxe à baila as diversas decisões do C. TST, condenando a administração pública, de forma subsidiária, ao pagamento das verbas inadimplidas pelas empresas terceirizadas, por ela contratadas.[25]
Segundo trechos do próprio julgado, o autor alegou que decisões do Judiciário, especialmente do C. TST vinham negando vigência ao art. 71 da Lei n. 8.666/93 e ainda, que as referidas decisões violavam diversos princípios, como o da legalidade, conforme se destaca:
“Segundo alega o autor, esse dispositivo legal “tem sofrido ampla retaliação por parte de órgãos do Poder Judiciário, em especial o Tribunal Superior do Trabalho, que diuturnamente nega vigência ao comando normativo expresso no art. 71, 1, da Lei Federal n. 8.666/93. Nesse sentido, o TST fez editar enunciado de Súmula da jurisprudência dominante, em entendimento diametralmente oposto ao da norma transcrita, responsabilizando subsidiariamente tanto a Administração Direta quanto a Indireta em relação aos débitos trabalhistas, quando atuar como contratante de qualquer serviço de terceiro especializado. ”(…)
Ainda nos termos da inicial, tal entendimento ofenderia “os princípios da legalidade, da liberdade, o principio da ampla acessibilidade nas licitações publicas e o principio da responsabilidade do Estado por meio do risco administrativo (arts. 5, inciso II e 37, caput, inciso XXI, e parágrafo sexto da Constituição federal. ”[26]
Conforme trecho acima descrito, percebe-se que o autor, Governador do Distrito Federal, embasa sua tese principalmente no princípio da legalidade, que como já visto é um dos princípios basilares do Direito Administrativo.
O intuito daqueles que pleitearam a declaração de constitucionalidade do art. 71 da Lei de Licitações era de não se permitir que fosse sobreposto um entendimento jurisprudencial a uma Lei plenamente em vigor.
Entretanto, ainda há que se considerar que acima dos princípios do direito administrativo, estão os princípios fundamentais, estabelecidos constitucionalmente.
Acerca da sobreposição dos princípios, destaca Arion SayãoRomita:
“Por ter a Constituição de 1988 elevado a dignidade da pessoa humana à categoria de valor supremo e fundante de todo o ordenamento brasileiro, fácil é atribuir aos direitos sociais a característica de manifestações dos direitos fundamentais de liberdade e igualdade material porque, encarados em sua vertente prestacional […], tais direitos têm por objetivo assegurar ao trabalhador proteção contra necessidades de ordem material, além de uma existência digna.”
Marcos Ribeiro Salvino e Simone Rodrigues Ferreira bem destacam em seu trabalho, ideia trazida pelo Procurador do Trabalho Rodrigo de Lacerda Carelli, de que o trabalho não é mercadoria, in verbis:
“O Procurador do Trabalho Rodrigo de Lacerda Carelli bem expõe a questão, ao afirmar, baseado na Declaração de Filadélfia, de 10 de maio de 1944, por intermédio da qual foram estabelecidos os fins e os objetivos da Organização Internacional do Trabalho, que o trabalho não é mercadoria. Esta assertiva traduz um verdadeiro axioma voltado à necessidade de se atribuir ao trabalho a importância que ele merece, com o escopo último de garantir a dignidade da pessoa humana do trabalhador e, por conseguinte, assegurar a cidadania plena. Por esta razão evidente, o trabalho consubstancia valores que transcendem a lógica das leis do mercado. De fato, por trás de cada trabalho executado, por mais simples que seja, há a força despendida por um trabalhador, cuja dignidade deve servir de fundamento à edificação de normas legais que venham a formar todo o arcabouço do sistema de proteção. “[27]
Assim, antes de qualquer analise é preciso ter em mente a valoração dos princípios fundamentais e do principio da dignidade da pessoa humana, que devem ser o ponto de partida de qualquer interpretação e aplicação do ordenamento jurídico, seja constitucional, seja infraconstitucional.
A Constituição Federal dispôs o principio da dignidade da pessoa humana como principio fundamental, conforme destacado por Dinaura Godinho Pimentel Gomes:
“Assim, pelo fato de proclamar a dignidade humana como um valor supremo da ordem jurídica, a Constituição Federal invoca ao incluir, no catálogo de direitos fundamentais, os direitos civis e políticos, acompanhados dos direitos sociais, a manter, assim, o trabalhador sob o manto protetor de suas normas insculpidas nos arts. 7 e 8, no sentido de superar a concepção de que os direitos sociais, econômicos e culturais não serem direitos legais; mas sim, ao contrário, consagra os mesmos, como verdadeiros direitos fundamentais. ”[28]
Por outro lado, no atual ordenamento jurídico brasileiro, os entes públicos tem a função de gerir a coisa pública de forma a zelar pelos interesses dos administrados, da coletividade, esse é o preceito trazido por Marcos Ribeiro Salvino e Simone Rodrigues Ferreira em seu trabalho, conforme se destaca:
“Portanto, diante do contexto normativo-constitucional vigente, o Direito Administrativo, cujo cerne é a função do Estado de Administração Pública, tem o grande desafio de enveredar pelos caminhos que levem à substituição da concepção meramente administrativa da gestão da coisa pública, por um modelo voltado ao interesse dos administrados, salientando a importância que deve ser dada à relação entre o Poder Público e os particulares.
Ainda que a contratação de terceiros pela Administração Pública esteja submetida aos princípios do Direito Administrativo, é comum que a terceirização viole direitos sociais dos empregados da empresa prestadora de serviços. ”[29]
Diante desse cenário e ante a falta de regulamentação através de legislação específica, o Tribunal Superior do Trabalho, diante dos diversos casos de descumprimentos dos direitos trabalhistas dos empregados terceirizados, editou a já citada Súmula 331, a fim de unificar a jurisprudência acerca do tema, não somente quanto aos entes públicos. Súmula esta que se passa a analisar.
4. APLICAÇÃO DA SÚMULA 331 DO TST AOS ENTES PÚBLICOS
Inexistindo artigo de Lei que discipline acerca da responsabilidade sobre as verbas não quitadas pelo empregador direto e considerando-se a redação do art. 9 da Consolidação das Leis do Trabalho, não restou outra alternativa ao Colendo Tribunal Superior do Trabalho, senão emitir verbete capaz de solucionar a problemática existente. Nesse sentido são as palavras de Daniela Villas Boas Westfahl:
“Não há artigo de lei que atribua especificamente responsabilidades sobre os pagamentos frustrados ao empregado quando seu empregador direto “desaparece do cenário jurídico, ou mesmo do mundo fático”[4]. Os dispositivos legais que disciplinaram as diversas formas de trabalho por empresa interposta – artigos 442 e 455 da CLT, Leis 6.019/74 e 7.102/83 – não foram capazes de elencar todas as modalidades daquilo que o artigo 9º da CLT expressa de forma clara: serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação. Cumprindo a garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional, a jurisprudência trabalhista – fiel à tridimensionalidade do Direito – consolidou-se no verbete da Súmula 331, do C. TST.” [30]
Assim, a primeira redação da Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, que surgiu para revisar o conteúdo da então existente Súmula 256, dispunha o seguinte:
SÚMULA N. 331. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (mantida) – Res. n.121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003. I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei n. 6.019, de 03.01.1974).
II – A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da administração pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).
III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei n. 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como de serviços especializados ligados à atividade meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei n. 8.666, de 21.06.1993).
Mauricio Godinho Delgado destaca que a revisão da Súmula 256 pela Súmula 331 deu as respostas necessárias a algumas críticas feitas ao conteúdo da Súmula 256, “assim, incorporou as hipóteses de terceirização aventadas pelo Decreto-Lei n. 200/67 e Lei n, 5.645/70 (…). Ao lado disso, acolheu a vedação constitucional de contratação de servidores (em sentido amplo) sem a formalidade do concurso público”. [31]
Entretanto, o estabelecido no item IV da referida Súmula gerou diversas discussões, na medida em que responsabilizava os entes públicos pelo mero inadimplemento das obrigações trabalhistas por parte do empregador. Conforme bem pontuado por Daniela Villas Boas Westfahl:
(…)delineia-se a espinha dorsal do antigo item IV da Súmula 331 e de todas as decisões que a seguiram: o inadimplemento revela a culpa “in vigilando” da tomadora. Ou seja: o inadimplemento dos encargos trabalhistas, por parte da prestadora, por si só, indica a culpa “in vigilando”. Esta tem sido a orientação dos tribunais trabalhistas, por longo tempo, a ponto de constituir óbice ao prosseguimento de recurso a adoção de tese contrária.[32]
Além disso, para outra corrente, era simplesmente inadmissível responsabilizarem-se os entes públicos, em respeito ao disposto no art. 71da Lei 8.666/93 já analisado no presente estudo.
Desta forma, a redação do inciso IV da súmula 331 e as reiteradas decisões da Justiça do Trabalho acerca da responsabilização dos entes púbicos levou a discussão ao STF, através da ADC 16, proposta pelo Governo do Distrito Federal.
A ementa do julgamento da referida ADC teve a seguinte redação:
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. Subsidiária. Contrato com a administração pública. Inadimplência negocial do outro contraente. Transferência consequente e automática dos seus encargos trabalhistas, fiscais e comerciais, resultantes da execução do contrato, à administração. Impossibilidade jurídica. Consequência proibida pelo art. 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666/93. Constitucionalidade reconhecida dessa norma. Ação direta de constitucionalidade julgada, nesse sentido, procedente. Voto vencido. É constitucional a norma inscrita no art. 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666, de 26 de junho de 1993, com a redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995” (ADC 16, Rel. Min. Cezar Peluso, Plenário, DJe 9.9.2011)
O que se extrai da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADC 16 é que:
1) a responsabilidade objetiva do ente público, fixada no artigo 37, § 6º, da CF, não é aplicável aos contratos de licitação e 2) a isenção de responsabilidade, segundo esses Ministros, é a regra, constituindo exceção os casos em que se demonstre a “culpa in vigilando flagrante”. Nesses termos, sempre que a responsabilidade decorrer do “mero inadimplemento” da prestadora, a decisão do TST será desafiada perante o STF.[33]
O debate para o julgamento da referida ADC, disponível no canal do STF junto ao You Tube, http://www.youtube.com/stf#p/search/2/9dOcrEJQK3U, demostra claramente que ainda que tenha sido julgada procedente a ADC, declarando-se a constitucionalidade do art. 71 da Lei de Licitações, o STF não impediu a responsabilização dos entes públicos mediante a apresentação de outros fatos e fundamentos.
Nesse sentido transcreve-se alguns trechos do voto do Relator, Ministro Cezar Peluso:
“Se o Tribunal (STF) reconhecer a constitucionalidade, a mim me parece que o Tribunal não pode, neste julgamento, impedir que a Justiça do Trabalho, com base em outras normas e outros princípios, e à luz dos fatos de cada causa, reconhecer a responsabilidade da Administração. (…) Isto não significa que eventual omissão da Administração pública na obrigação de fiscalizar as obrigações do contratado não gere responsabilidade à Administração. É outra matéria a ser examinada sob a luz de outras normas constitucionais.”
Assim, com a finalidade de adequar-se ao posicionamento demonstrado pelo STF no julgamento da ADC 16, o Colendo TST revisou a redação da súmula 331, acrescentando o inciso V, com a seguinte redação:
“Os entes integrantes da administração pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n. 8.666/93, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.”[34]
A partir da nova redação da Súmula 331 do TST, os entes públicos serão responsabilizados apenas quando restar comprovada sua conduta culposa no descumprimento da Lei de Licitações, especialmente quanto à fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais pela empresa prestadora de serviços.
Assim, de acordo com o julgamento da ADC 16 e a nova redação da Súmula 331, V, faz-se necessária a comprovação da culpa in vigilando. Nesse sentido são os ensinamentos de Mauricio Godinho Delgado:
Registre-se que o STF, ao julgar a ADC 16, em sessão de 24.11.2010, declarando constitucional o art. 71 da Lei n. 8.666/93, considerou incabível fixar-se a automática responsabilidade das entidades estatais em face do simples inadimplemento trabalhista da empresa prestadora de serviços terceirizados. Nesse contexto, torna-se necessária a presença da culpa in vigilando da entidade estatal, ou seja, sua inadimplência fiscalizatória quanto ao preciso cumprimento das obrigações trabalhistas da empresa terceirizante (responsabilidade subjetiva, derivada de culpa).
Desta forma, afronta não há contra a Lei de Licitações, que também prevê o dever da administração Pública de fiscalizar os contratos administrativos. Entretanto, o que se tem visto no Judiciário é o fato de que os entes públicos, ao invés de cumprirem com sua obrigação quanto à fiscalização dos contratos, permanecem embasando suas defesas apenas na constitucionalidade do art. 71 da Lei de Licitações.
Sim, é constitucional, porém, há um dever legal de fiscalizar os contratos firmados, a fim de preservar os direitos da coletividade, principalmente no que diz respeito a não pagar duas vezes pelo mesmo serviço.
Ferramentas existem que sejam aptas a cumprir com o dever de fiscalização. O que a administração pública não percebe é que está invocando o princípio da legalidade sem, de outro lado cumpri-lo, na medida em que deixa de fiscalizar os contratos firmados.
4.1 CULPA IN VIGILANDO E O ÔNUS DA PROVA
Ultrapassada a questão da possibilidade de responsabilização do Ente Público pelas verbas trabalhistas não quitadas pela empresa contratada, desde que comprovada sua conduta culposa, surge novo ponto de embate, o do ônus probatório.
A quem pertence o ônus de comprovar se a Administração Pública cumpriu com seu papel de fiscalização, à ela ou ao empregado que quer ver quitados seus haveres trabalhistas?
O ônus da prova incumbe a quem alega, segundo estabelecido no art. 818 da CLT, in verbis:
Art. 818. A prova das alegações incumbe a parte que as fizer.[35]
Entretanto, há consolidado na jurisprudência trabalhista situações em que, dada a impossibilidade de produzir a prova por aquele que faz a alegação, é determinada a inversão do ônus da prova.
É o caso, por exemplo da prova acerca do registro de horário. O cartão de ponto em posse do empregador, assim impossível exigir-se do empregado que junte aos autos o cartão, a fim de provar sua jornada.
Há também, a questão da presunção de veracidade quando o cartão de ponto apresenta jornada chamada “Britânica”, ou seja, quando os horários são anotados uniformemente todos os dias.
Assim, apresentando a empregadora um cartão de ponto uniforme, presume-se que não retrata a realidade dos fatos, visto que é impossível que um trabalhador chegue todos os dias no mesmo e exato horário para o qual foi contratado, sem nenhuma alteração, ainda que de minutos.
Demonstrando esse entendimento, foi redigida a Súmula 338 do TST, com a seguinte redação:
Súmula nº 338 do TST JORNADA DE TRABALHO. REGISTRO. ÔNUS DA PROVA (incorporadas as Orientações Jurisprudenciais nºs 234 e 306 da SBDI-1) – Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005
I – É ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT. A não-apresentação injustificada dos controles de freqüência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário. (ex-Súmula nº 338 – alterada pela Res. 121/2003, DJ 21.11.2003)
II – A presunção de veracidade da jornada de trabalho, ainda que prevista em instrumento normativo, pode ser elidida por prova em contrário. (ex-OJ nº 234 da SBDI-1 – inserida em 20.06.2001)
III – Os cartões de ponto que demonstram horários de entrada e saída uniformes são inválidos como meio de prova, invertendo-se o ônus da prova, relativo às horas extras, que passa a ser do empregador, prevalecendo a jornada da inicial se dele não se desincumbir. (ex-OJ nº 306 da SBDI-1- DJ 11.08.2003)[36]
Ainda que considerado o ônus probatório em patamar técnico, Mauricio Godinho Delgado considera ser presumida a culpa dos Entes Estatais quando deixam de cumprir seu dever de fiscalizar e não sendo considerada presumida, defende que cabe à Administração Pública comprovar que fiscalizou, conforme se destaca:
“É bem verdade que a culpa, no presente tema _ caso mantido o debate em patamar estritamente técnico – , desponta como manifestamente presumida, em virtude de haver dever legal de fiscalização pelo tomador de serviços relativamente ao cumprimento e obrigações constitucionais, legais e contratuais trabalhistas pelo prestador de serviços, obrigações em geral vinculadas a direitos fundamentais da pessoa humana (o dever de fiscalização está até mesmo expresso, por exemplo, no art. 67, caput, da Lei de Licitações).
Entretanto, mesmo que não se considere presumida essa culpa, teria o tomador de serviços estatal o ônus processual de comprovar seus plenos zelo e exação quanto ao adimplemento de seu dever fiscalizatório (art. 818, CLT; at. 333, II do CPC)” [37]
Ao tratar sobre o tema, Daniela Villas Boas, ressalta o fato de ser injusto impor-se ao empregado o ônus de provar que o Ente Estatal cumpriu com seu dever de fiscalizar, pois não é detentor e não possui acesso aos documentos comprobatórios, cita ainda de forma assertiva os ensinamentos de Ada Pelegrine, conforme se destaca:
“O ônus de comprovar a “culpa flagrante” do ente público não pode ser imputado ao empregado. Trata-se de prova injusta e fora de sua esfera de possibilidades, não tendo o trabalhador hipossuficiente condições de embrenhar-se nos contratos e comprovantes referentes ao procedimento licitatório e à vigilância do contrato. O critério dinâmico de distribuição do ônus da prova, enunciado por Ada Pelegrina Grinover, no Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos (artigo 10, §1º), afigura-se mais adequado: “sem prejuízo do disposto no artigo 333 do Código de Processo Civil, o ônus da prova incumbe à parte que detiver conhecimentos técnicos ou informações específicas sobre os fatos, ou maior facilidade em sua demonstração. ”(retirado trecho).” [38]
Ora, conforme bem explicitado, o empregado não possui condições técnicas tampouco práticas de demonstrar que a administração publica deixou de fiscalizar os pagamentos, de outro lado, a presunção de culpa levaria novamente à questão do mero inadimplemento, o que já foi rechaçado pelo STF, conforme visto anteriormente.
Ainda demonstrando-se a obviedade da impossibilidade do empregado de fazer prova acerca da culpa na ausência de fiscalização por parte do ente estatal, a questão apresenta controvérsias, tendo em vista que há quem defenda o estrito texto de Lei, que determina que o ônus da prova incumbe a quem alega.
Por se tratar de questão de prova, cabe aos Tribunais Regionais do Trabalho a palavra final acerca da culpa in vigilando, não podendo o TST rever as provas produzidas, entretanto, há que se lembrar que a tero da nova redação da Súmula 331, o ente publico não poderá ser responsabilizado, caso não haja nos autos, prova de sua conduta culposa.
Nesse sentido destaca-se decisão reformada pelo C. TST, justamente por inexistir prova da falha na fiscalização por parte do ente estatal:
O E. Regional consignou: “a tese do Recorrente de que não teria culpa pelo inadimplemento das verbas rescisórias não vinga. Cumpria ao recorrente ter fiscalizado de perto a conduta da prestadora de serviços, inclusive no que tange aos acertos rescisórios de seus empregados (culpa in vigilando); não tendo assim agido, é de se manter a condenação originária na multa por atraso nesse pagamento.” A decisão foi reformada pelo C. TST, pelos seguintes fundamentos: “Assim, não tendo o Regional identificado concretamente, mas apenas de forma genérica, que o Agravante foi omisso quanto ao seu dever de fiscalizar o cumprimento do contrato por parte da prestadora de serviços, incorrendo em culpa in vigilando, não há falar em responsabilidade subsidiária, sendo certo que o reconhecimento de tal responsabilidade afronta o disposto no art. 71, § 1.º, da Lei n.º 8.666/93”. (PROCESSO RR – 146400-92.2008.5.15.0055Data de Julgamento: 30/11/2011, Relatora Ministra: Maria de Assis Calsing, 4ª Turma, Data de Publicação: DEJT 02/12/2011.)
Assim, cabe aos causídicos, bem como aos nobres julgadores atentarem-se para a comprovação da existência da culpa in vigilando, quando o processo ainda estiver na fase probatória, afim de evitar prejuízos ocasionados por questões meramente técnicas.
A questão ainda será muito discutida pelos entes públicos, porém diante das posturas que vem sendo adotadas pelo TST, acredita-se que o ônus da prova vá recair sobre o ente publico, por notória impossibilidade de elaboração da prova pelo empregado.
Isso porque, o direito do trabalho tem como um de seus princípios basilares o da proteção ao trabalhador, que mostra-se perfeitamente aplicável às alegações de que compete a ele comprovar a culpa in vigilando do ente público.
4.2 JURISPRUDÊNCIA RECENTE ACERCA DA APLICAÇÃO DA SÚMULA 331 AOS ENTES PÚBLICOS
Com a finalidade de analisar como os tribunais do estado de São Paulo, quais sejam o Tribunal Regional do Trabalho da Segunda e da Quinta Região, vem decidindo, quais são seus argumentos e visão acerca da responsabilização subsidiária dos entes públicos, destaca-se jurisprudência recente retirada dos respectivos sites.
Jurisprudência do Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região em caso em que o ente público juntou documentação comprovando sua diligência no dever de fiscalizar:
“O Recorrente sustenta que é devida a condenação subsidiária do ente público pois este, ao contratar serviços deve ser diligente não apenas no critério de escolha da empresa, capacidade técnica, econômica e financeira para arcar com os riscos do empreendimento, mas também, na fiscalização do cumprimento das obrigações.
Aduz ainda, para reforçar sua tese, que todo ente da administração pública deve primar pelo estrito respeito às normas trabalhistas, fiscais e administrativas, sob pena de acolher, em seu próprio meio, práticas abusivas e deturpadoras do ordenamento jurídico.
Inicialmente, consigne-se que a segunda reclamada está sujeita aos ditames da Lei 8.666/1993, em especial seu parágrafo primeiro que assim dispõe:
Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.
§ 1o A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis.
Tal declaração de constitucionalidade motivou o C. TST a modificar o enunciado da Súmula nº 331, o qual passou a conter, na parte de relevo para a matéria ora discutida, o seguinte:
IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.
V – Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.
Assim, da simples leitura das normas referidas pode-se concluir que para que se reconheça a responsabilidade subsidiária do ente público, deve estar comprovada a culpa no seu dever de fiscalizar a prestadora contratada. Conforme se depreende do inciso V da Súmula 331 do C. TST, o mero inadimplemento das obrigações trabalhistas pela empresa contratada não basta para configurar a conduta culposa do ente público.
No caso em epígrafe, a 2ª reclamada foi diligente em seu dever de fiscalização, como bem observou o magistrado ‘a quo’. Não há que se falar em culpa in eligendo, por conta da contratação por meio de licitação. Também não há culpa in vigilando, eis que a documentação juntada aos autos comprova a fiscalização da prestação de serviços e o cumprimento do contrato firmado. A tomadora instaurou procedimento administrativo diante do descumprimento das obrigações pela prestadora, procedeu à notificação extrajudicial da 1ª reclamada, enviou ofício a 1ª reclamada exigindo a apresentação de documentos relativos aos contratos de trabalho dos prestadores de serviço, aplicou as penalidades de advertência, multa e suspensão e formalizou em tempo razoável a Documento elaborado e assinado em meio digital. Validade legal nos termos da Lei n. 11.419/2006.
A alegação da Reclamante é genérica, sem especificar a conduta culposa do ente público. Ora, para que se reconheça a culpa é imprescindível o apontamento da conduta culposa, delimitando em quais atos ela se revelou. A simples referência à conduta omissiva, sem qualquer detalhamento, não é suficiente para tal mister. A Recorrente pretende que se imponha responsabilidade subsidiária do ente público pelo simples descumprimento das obrigações trabalhistas pela 1ª Reclamada, não havendo qualquer manifestação acerca dos fatos que demonstrariam a culpa daquela, uma vez que o reclamante nem ao menos os descreveu. Não há como se reconhecer a responsabilidade do ente público sem que exista qualquer demonstração de sua culpa nos autos, caso assim se decidisse restaria afrontada a decisão do Pretório Excelso, que, ao declarar constitucional o dispositivo da Lei de Licitações, pretendeu dar fim a responsabilização subsidiária dos entes públicos decorrente do mero descumprimento de obrigações trabalhistas pelas prestadoras de serviço terceirizadas.
Assim, não tendo sido evidenciada a conduta culposa da 2ª Reclamada, deve ser mantida a sentença que afastou sua responsabilização subsidiária. Mantenho a r. sentença. Nada a reformar.(Acórdão n. 20140063760. Relator: Juiz Jorge Eduardo Assad. 12 Turma. Publicado em 14/02/2014).”
Jurisprudência do Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região, que ressalvado entendimento do relator, afasta a responsabilidade subsidiária do ente público, por aplicação do julgamento da ADC16, declarando a constitucionalidade do art. 71 da Lei de Licitações:
“O instituto da responsabilidade subsidiária tem por objetivo evitar, ou pelo menos amenizar, prejuízos que possam ser causados ao empregado, sendo incabível qualquer limitação, vez que, não obstante seja supletiva, a responsabilidade subsidiária abrange a integralidade da obrigação reconhecida na decisão judicial, na hipótese do devedor principal não promover o pagamento do débito.
Nesta senda, é assente a posição do Colendo TST pela possibilidade de responsabilização subsidiária dos entes integrantes da Administração Pública, direta e indireta, quando evidenciada sua conduta culposa, especialmente na fiscalização da empresa contratada, acerca das obrigações trabalhistas e previdenciárias dos empregados envolvidos na prestação dos serviços. Neste sentido a Súmula 331, itens IV, V e VI:
“Súmula 331 – CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE. (…) IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial. V – Os entes integrantes da administração pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n. 8.666/93, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada. VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.” Observe-se que o enunciado não contempla a responsabilização da Administração Pública baseada na culpa in elegendo, visto que os Entes Públicos agem de acordo com o princípio da legalidade administrativa (art. 37, da Constituição Federal), de sorte que na contratação de prestadores de serviços (inciso XXI do mesmo artigo) se submetem, obrigatoriamente, a procedimento licitatório visando a melhor proposta, não havendo que se falar em falha na eleição do contratado.
Também é certo que o entendimento sumulado não consagrou a transferência à Administração Publica da responsabilidade pelas verbas trabalhistas e previdenciárias devidas ao trabalhador terceirizado em razão da mera inadimplência da empresa terceirizante e, portanto, não viola o disposto no art. 71 da Lei 8.666/93 (Lei de Licitações), sendo imprescindível a configuração da culpa in vigilando, caracterizada pela falha na fiscalização da empresa prestadora de serviços acerca do regular adimplemento das obrigações trabalhistas e previdenciárias dos empregados envolvidos na contratação.
Com efeito, tem-se que a obrigação de fiscalização do ente público resulta da própria Lei 8.666/93, artigos 58, inciso III e 67, posto que pressupõe a prova da regularidade perante o FGTS, bem como da boa situação financeira da contratada, durante toda a execução dos serviços contratados.
Destarte, na mesma trilha da Súmula 331 do Colendo Tribunal Superior do Trabalho, reputo que o invocado art. 71, § 1º, da Lei 8.666/93 não conduz a total irresponsabilidade do ente estatal, devendo ser interpretado em consonância com o conjunto do ordenamento jurídico, inclusive os demais dispositivos dessa mesma lei. A diretriz traçada neste dispositivo somente será aplicável quando o ente público cumprir regularmente o contrato, inclusive no tocante ao seu dever fiscalizatório, não sendo aplicável nos casos em que a Administração incorrer em culpa in vigilando.
Nesta senda, inequívoco que incumbe à Administração Pública, quando tomadora de serviços terceirizados, o ônus da prova quanto à fiscalização das obrigações trabalhistas e previdenciárias da empresa contratada, arcando com o resultado da sua incúria processual.
Todavia, ressalvado o meu entendimento pessoal no sentido da possibilidade de responsabilização subsidiária do ente público pelas obrigações inadimplidas pelo real empregador, uma vez que não demonstrado o cumprimento do seu dever fiscalizatório, curvo-me ao entendimento majoritário desta Egrégia 18ª Turma no sentido de que é perfeitamente aplicável, na hipótese em análise, o disposto no art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93 (Lei de Licitação), em respeito à decisão proferida pelo C. STF na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 16, que declarou a constitucionalidade da referida norma legal (Rel. MIN. Cezar Peluso, j. 24.11.10).
Diante do exposto, confere-se provimento ao presente apelo, para fins de excluir da condenação a responsabilidade subsidiária da segunda ré – SABESP – COMPANHIA DE SANEAMENTO BÁSICO DO ESTADO DE SÃO PAULO -, julgando os pedidos improcedentes em relação à mesma. (ACÓRDÃO Nº: 20140085305 Juiz Relator: RUI CESAR PUBLIO BORGES CORREA. 18 Turma. Publicado em 14/02/2014).”
As duas jurisprudências do TRT2, acima colacionadas demonstram a existência de entendimentos discrepantes acerca da matéria veiculada no presente estudo. Ainda que no segundo caso não tenha havido a juntada de documentos comprobatórios da fiscalização do contrato, a Turma decidiu sem adentrar à questão da culpa in elegendo, ao contrário do que ocorreu no primeiro julgado.
A seguir colaciona-se jurisprudência do TRT15, a fim de verificar argumentos e teses de julgamento que vem sendo adotada por este Tribunal.
“DA RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DA TERCEIRA RECLAMADA
Insurge-se a recorrente contra a decisão de origem que reconheceu ser a mesma parte legítima para integrar o polo passivo desta ação, decretando a sua responsabilidade subsidiária em relação às verbas deferidas à reclamante.Sem razão.
A culpa in eligendo ou in vigilando por parte do tomador de serviços em virtude da inidoneidade econômica da prestadora de serviços implica responsabilidade subsidiária daquele em relação aos direitos trabalhistas dos empregados desta.
A Lei de Licitações, art. 71, não afasta a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços, por força do disposto nos itens IV, V, e VI da Súmula 331, do TST.
Não há dúvida de que o contrato de prestação de serviços entre as reclamadas é perfeitamente lícito, formando-se o vínculo empregatício exclusivamente com o prestador (Súmula 331, III, do TST). Contudo, não menos pacífico é que a responsabilidade que se atribui ao tomador dos serviços independe do vínculo de emprego e tem sua causa na responsabilidade por fato de terceiro, fundada na presunção de culpa in eligendo ou in vigilando. É que, sendo o trabalho desencadeado em benefício do tomador, a ele se impõe o dever de zelar pelo fiel cumprimento das obrigações daí derivadas, dada a prevalência dos créditos trabalhistas na ordem jurídica pátria. Trata-se, pois, de responsabilidade objetiva.
Para que o Ente Público não responda pelos débitos trabalhistas de seus prestadores de serviço, contratados através da Lei 8.666/93, mister se faz que cumpra integralmente os preceitos por ele estabelecidos, dentre os quais o de fiscalizar a saúde financeira dos participantes do processo licitatório, não só no momento preliminar, quando julgará as propostas, como durante toda a vigência do contrato.
Pois bem, da documentação acostada aos autos não se verifica o cumprimento da obrigação contratual de fiscalização da execução do contrato mantido entre os réus. Assim, resta reconhecida a culpa in vigilando da recorrente, tomadora dos serviços da obreira, uma vez que o empregador principal não quitou os haveres trabalhistas, o que atrai a responsabilização subsidiária da ora recorrente, por infração aos artigos 58, inciso III e 67 da Lei de Licitações.
Ora, em que pese, pois, a tomadora de serviços, em princípio, não responder pelos créditos trabalhistas dos empregados da empresa prestadora de serviços, é de se reconhecer a responsabilidade subsidiária daquele, porque também partícipe e real beneficiário das violações dos direitos trabalhistas.
Assim, na qualidade de tomadora dos serviços da autora, a recorrente é parte legítima para figurar no polo passivo desta ação e detém responsabilidade subsidiária pelos créditos deferidos à obreira. Tal entendimento encontra-se consubstanciado na Súmula 331, IV, V, e VI do C. TST. A sua responsabilidade subsidiária refere-se à integralidade do contrato de trabalho da reclamante, abrangendo todas as obrigações de pagar, assim como as obrigações personalíssimas que forem convertidas em indenização.
A presente decisão está fundamentada no art. 71, §1º, da Lei Federal nº 8.666/1993 e nos itens IV, V e VI da Súmula nº 331 do C. TST.
Inexiste afronta à Súmula Vinculante nº 10 do STF. Isto porque o C. TST, ao editar a Súmula nº 331, atribuiu interpretação sistemática ao artigo 71, parágrafo 1º, da Lei nº 8.666/93, observados outros dispositivos da nossa legislação e os fins sociais a que a Lei se dirige (artigo 5º da LICC). Portanto, não foi declarada pela Corte Superior Trabalhista a inconstitucionalidade do dispositivo legal supracitado, inexistindo afronta à Súmula Vinculante nº 10 do STF. (PROCESSO TRT Nº 0000117-92.2013.5.15.0001 Relator(a): HAMILTON LUIZ SCARABELIM. 04 Turma. Publicado em 27/09/2013).”
Conforme se verifica da jurisprudência acima colacionada, a Quarta Turma do Tribunal Regional do Trabalho da Décima Quinta região vem decidindo com base na análise da existência de culpa in vigilando por parte do ente público.
Analisando-se as jurisprudências do TRT15, verifica-se que a maioria absoluta vem decidindo no sentido de responsabilizar o ente público pelas verbas trabalhistas inadimplidas.
Entretanto, ainda há divergência nos tribunais de todo o país acerca do tema e estamos apenas iniciando a caminhada rumo a uma uniformização da jurisprudência de todos os Tribunais do Trabalho.
CONCLUSÃO
Conforme se observa de todo o exposto no presente estudo, não se teve o intuito de esgotar o tema acerca da responsabilização subsidiaria dos entes públicos, tarefa que seria muito difícil, visto se tratar de questão que ainda caminha para um delineamento definitivo.
Porém, conforme restou demonstrado, em que pese a ainda necessária existência de normas mais especificas a tratar da responsabilização da administração publica, percebe-se que o assunto tem caminhado para uma análise mais profunda que a da mera legalidade.
Os tribunais superiores tem aberto o leque em suas decisões olhando para os princípios norteadores do ordenamento jurídico pátrio, muitas vezes de uma forma não tão explícita e ainda receosa por questões políticas porém, abrindo os olhos para a realidade da terceirização.
O fato de inexistir legislação que ampare explicitamente a responsabilização dos entes públicos pelas verbas trabalhistas não pode impedir que um estudo mais abrangente acerca dos pontos basilares da justiça brasileira leve à conclusões coerentes.
Ainda haverá discussão acerca de como vem sendo decidida a questão da culpa in vigilando e como a análise probatória tem sido direcionada, quanto ao ônus da prova e a forma de se desvencilhar desse ônus.
Fato é, porém, que a administração publica, vendo o caminho que vem tomando a jurisprudência pátria, se zela tanto pela primazia do interesse público sobre o privado, deverá passar a adotar posturas de modo a prevenir a má utilização do dinheiro publico, deixando de pagar duas vezes pelo mesmo serviço através do cumprimento da legalidade, ou seja, fiscalizando os contratos firmados.
A terceirização surgiu como uma forma de auxiliar a administração das empresas a focar em suas atividades finais, sem se preocupar e perder tempo com as atividades meio, porém isso não pode significar fraude e desrespeito ao ser humano, trabalhador, ainda que se esteja falando da administração pública.
Informações Sobre o Autor
Daiana Pacheco Espindola Guimarães Santos
Advogada graduada em Direito pela UNICURITIBA 2010 estudante da Pós Graduação em Direito e Processo do Trabalho da Faculdade Legale São Paulo-SP