Resumo: O presente trabalho busca refletir sobre a consolidação da afetividade nas relações familiares com o idoso como valor jurídico em cotejo com a legislação, doutrina e jurisprudência brasileira, bem como a possibilidade, ou não, de repação por dano moral em caso de abandono afetivo do idoso por seus familiares. Para tanto, iniciar-se-á o estudo a partir de perspectivas constitucionais, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana, marco teórico do presente estudo, passando pelos pressupostos da responsabilidade civil e destacando as teorias que tentam explicar a quantificação do referido dano moral. Por fim, abordar-se-á sobre os fundamentos de ambas posições sobre a indenização do abandono afetivo, bem como a posição jurisprudencial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
Palavras chave: Abandono afetivo. Idosos. Dano moral.Reparação.
Sumário: Introdução. 1.o idoso e a afetividade familiar. 1.1 O idoso e a família contemporânea. 1.2 Princípios norteadores da relação familiar com o idoso. 1.2.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 1.2.2 Princípio da solidariedade familiar. 1.2.3 Princípio da afetividade. 2. Responsabilidade civil: análise do dano moral. 2.1 Pressupostos do dever de indenizar. 2.1.1 Conduta ilícita. 2.1.2 Culpa. 2.1.3 Nexo de causalidade. 2.2 Análise instrumental. 2.3 Dano moral e a reparação pecuniária. 2.3.1 Teoria do punitive damage. 2.3.2 Teoria compensatória do dano. 3. Abandono afetivo dos idosos por seus familiares. 3. 1 Dever legal de cuidado. 3.2 Posição jurisprudencial do Tribunal local. Conclusão. Referências
INTRODUÇÃO
Ao Direito, desde os tempos mais longínquos, coube à função ordenadora da sociedade com o fim de manter a convivência harmônica e justa entre os indivíduos. Para além dos aspcetos concernentes ao poder de coação exercido pelo Estado no exercício de seu Jus puniendi, ou das inúmeras contendas civilistas de caráter essencialmente patrimonial, coube ao Direito também assegurar os direitos personalíssimos decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana.
Com efeito, a irradiação de preceitos constitucionais para todas as àreas do Direito resultou na preocupação com o desenvolvimento pleno do indivíduo tomando dimensões até então desconhecidas, inexistindo atualmente barreiras estanques entre direito público e privado.
Por conseguinte, do espírito que consagrou a dignidade da pessoa humana e a solidariedade familiar impulsionou o reconhecimento do valor jurídico das obrigações imateriais que permeiam as relações sociais.
Neste sentido a Constituição Federal de 1988 aborda com veemência a importância social da família, dos adolescentes e idoso, de tal maneira que qualquer afronta a estes direitos consagrados representaria uma ruptura com os valores que representam os pilares da Constituição cidadã.
Não apenas garantindo o direito do idoso em seara constitucional, mas com a entrada em vigor do Estatuto do Idoso, o Estado renovou os votos de seus compromissos com o grupo da terceira idade, convocando juntamente a família e a sociedade para um projeto de proteção integral aos idosos.
Posteriormente, o reconhecimento da afetividade como valor jurídico dotado de exigibilidade, bem como da estreita relação que esta mantém com o princípio da dignidade da pessoa humana pelo julgado Resp. n.º 1.159.242- SP do Supremo Tribunal de Justiça, foi um marco para o Direito brasileiro que não pode ser ignorado.
A partir de então a questão de discussão passou a ser se caberia indenização por abandono afetivo nas relações inversas, ou seja, nas relações dos idosos com seus familiares, considerando que a família assumiu lugar de destaque na promoção de direitos aos idosos, ao ressaltar o caráter eudomonista da família contemporânea.
Assim, cristalino se torna que debater o presente tema se reveste de extrema relevância acadêmica e prática, considerando que o número de idosos em nosso país é crescente, bem como que, juntamente com a família e o Estado, a sociedade também é convidada a responsabilizar-se pela efetivação dos direitos idosos.
Neste ínterim, o presente trabalho objetiva analisar sobre a função da afetividade nas relações dos idosos com seus familiares, os requisitos da responsabilidade civil para configuração do dano moral, os principais critérios adotados no momento do dano moral, findando com a análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina sobre o tema proposto.
Para tanto, serão utilizados os métodos dialético e bibliográfico, desenvolvendo-se o trabalho a partir da análise crítica de doutrinas, legislação e jurisprudência pátria, partindo de premissas gerais para tornar possível a conclusão a respeito do tema proposto.
Inicialmente, no primeiro capítulo discorrer-se-á sobre as expressivas modificações nas instituições familiares dos últimos comungando com consolidação da afetividade familiar e os seus reflexos no trato com os idosos.
Em seguida, discorrer-se-á sobre o dano moral decorrente do abandono afetivo do idoso por seus familiares e os pressupostos elegidos pela responsabilidade civil para a caracterização do dano moral. Ainda, de forma didática, comentar-se-á criticamente sobre as teorias que tentam explicar a quantificação do dano moral.
Para finalizar, pautar-se-á sobre a construção jurídica pátria de proteção à convivência familiar ao idoso e a possibilidadede indenização pelo abandono afetivo decorrente da ausência das referidas relações, bem como tem se posicionado a jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina sobre o tema.
1 O IDOSO E A AFETIVIDADE FAMILIAR
Diante do envelhicimento da população brasileira a efetiva concretização das garantias conferidas às pessoas da terceira idade em nosso país vêm sendo razão para debates jurídicos acalourados, em especial no que tange o direito de convivência familiar.
Ao longo deste primeiro capítulo abordar-se-á sobre a evolução histórica do direito familiar paralelamente à consolidação da afetividade em uma realidade vivenciada pelos grupos familiares com seus idosos, à elevação para condição de princípio a ser observado em nosso ordenamento jurídico, conjuntamente com os princípio da dignidade da pessoa humana e da solidariedade familiar.
1.1 O idoso e a família contemporânea
Nas palavras de Rolf Madaleno, a família é uma construção social organizada através de regras culturalmente elaboradas que conformam um modelo de comportamento[1].
De fato, a família é o primeiro grupo social em que o indivíduo é naturalmente inserido e no qual buscará elementos para desenvolver-se fisiologicamente, psicologicamente, afetivamente e também culturalmente.
É, pois, a família necessária para que o homem natural seja socializado, uma vez que será em seus recônditos que os primeiros traços da personalidade serão formados, bem como onde o afeto, o respeito ao próximo e o espirito de solidariedade devem ser esculpidos, a fim de permitir que os vínculos subjetivos sejam permanentes mesmo ao efeito do tempo[2].
Desde a família patriarcal, que assentava-se no modelo de relações patrimonias chancelada pela Igreja e Estado através do matrimônio, até a democratização do instituto familiar, é possível verificar diversas adaptações ao contexto social atual, mas sem sombra de dúvida, todas as mudanças perpassam necessariamente pela evolução na valorização do indivíduo como pessoa humana[3].
Com efeito, o panorama meramente patrimonialista começou a mudar na medida em que o contexto social também refletiu tais alterações especialmente com a chegada das tecnologias que modificaram incisivamente os modos de produção e a expectativa de vida.
A antiga hierarquia familiar tornou-se duvidosa com o reconhecimento dos direitos da mulher, bem como com o avanço de correntes feministas entre a sociedade mundial. Com a entrada das mulheres para o mundo do trabalho, muitos homens tiveram seus postos perdidos para estas, muitas vezes assalariadas inferiormente, e passaram a cuidar da casa e dos filhos, ou seja, houve uma necessária readequação nos papéis familiares até então delineados.
Ainda, com o fim do caráter meramente reprodutivo e com a visível crescente longevidade alcançados com o aprimoramento de novas tecnologias, as famílias buscaram espaço junto às grandes cidades, próximo de melhores oportunidades de empregos e serviços; o que acabou por refletir indiretamente na necessidade de redução de filhos por casal, em contraponto, fortalecendo os vínculos de convivência familiar[4] .
Todos estes acontecimentos foram substanciais para o antigo modelo de entidade familiar rígido, patriarcal, institucional e matrimonializado chegasse ao fim para inauguração de uma nova fase em que a preocupação maior reside na promoção do bem-estar do indivíduo.
Na mesma toada, com a intenção de ordenar uma sociedade que então se apresentava sedenta por seus direitos fundamentais e estupefata com a falta de democracia nasceu a Constituição cidadã de 1988.
Nossa Carta Magna revelou preocupação em banir discriminações de qualquer ordem, bem como buscou promover a justiça social em cadeia. Pode-se afirmar que a liberdade, a partir de então floresceu na relação familiar e transformou o caráter autoritário patriarcal das relações para consolidar os laços de solidariedade entre os membros, especialmente entre os mais vulneráveis como crianças, adolescentes e idosos [5].
Neste modelo a convivência entre os membros da família toma sentido único, vez que através desta que se constroem vínculos de afeto, estreitam-se os elos de confiança e desenvolve-se o próprio sentido de ser do núcleo familiar.
Em face da garantia à convivência familiar, desde então, há uma tendência de buscar o fortalecimento dos vínculos familiares e da manutenção de seus membros no seio da família, independente da idade ou sexo, prevalecendo o direito a estes ao desenvolvimento integral, bem como, ao mesmo passo, atenta-se à proteção ao idoso[6].
Neste interím, o Estatuto do Idoso (Lei n.º 10.743/2003) igualmente trouxe a positivação do direito de convivência familiar ao idoso, além de resguarda-lo de eventuais atos de negligência pela família, como modo garantir a maior inclusão possível dos mandatos de otimização, trazidos pelos princípios Constitucionais.
A família de hoje é reconhecida como eudemonista por ter este caráter acima delineado de preocupação com o desenvolvimento saudável e ético de seus membros, baseados na dignificação do indivíduo, bem como na construção de relações afetivas.
Pauta-se, assim pela busca da felicidade de cada membro através do envolvimento afetivo e do asseguramento de proteção ao indivíduo na sua totalidade, deslocando o sentido da proteção jurídico da família da instituição para o próprio sujeito.[7]
1.2 Princípios norteadores da relação familiar com o idoso
Com efeito, após a Constituição de 1988 os princípios ganharam relevância no cenário do direito pátrio especialmente com o alargamento das garantias fundamentais para os diplomas infraconstitucionais graças à sua eficácia irradiante.
Os princípios foram fundamentais ao incorporar as exigências de justiça e de valores éticos em nosso sistema jurídico, conferindo coerência interna e estrutura harmônica ao suporte axiológico[8].
Na mesma linha de raciocínio, Robert Alexy afirma que “os princípios são normas jurídicas que se distinguem das regras não só porque têm alto grau de generalidade, mas também por serem mandatos de otimização”. [9]
Indubitavelmente, os princípios revelam um norte a ser seguido pelo operador de direito de modo a contemplá-los na maior efetividade possível na análise do caso concreto.
Desta forma, os princípios estruturam o sistema jurídico, encadeando a ideia principal que dará rumo às demais interpretações possíveis, de forma a manter a coerência na busca pelo ideal de justiça, abrindo os horizontes de aplicação ao operador do direito no ímpeto de otimizar direitos e garantias previstas, sempre à luz da Constituição Federal.
Na visão de Ruy Samuel Espíndola estes designam “a estruturação de um sistema de ideias, pensamentos ou normas por uma ideia mestra, por um pensamento chave, por uma baliza normativa, donde todas as demais ideias, pensamentos ou normas derivam, e/ou se subordinam”. [10]
A Constituição Federal de 1988 inaugura uma nova fase para o direito com a valorização dos princípios, que tiveram a função de impor eficácia às normas definidoras de direitos e de garantias fundamentais.[11]
Nesta toada, Paulo Luiz Neto Lôbo ainda classifica em dois tipos os princípios constitucionais: [12]
“Como se vê, os princípios não oferecem solução única, segundo o modelo das regras. Sua força radica nessa aparente fragilidade, pois sem a mudança ou revogação de normas jurídicas, permitem a adaptação do direito à evolução dos valores da sociedade. (…)
(…) Os princípios constitucionais são expressos ou implícitos, esses últimos podem derivar da interpretação do sistema constitucional adotado ou podem brotar da interpretação harmonizadora de normas constitucionais especificas (por exemplo, o principio da afetividade).”
Desta feita, resta evidente a importância do respeito aos princípios atinentes à matéria em análise para que a operacionalização do direito ocorra de forma eficaz, sem maiores dissintonias.
1.2.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
O princípio da dignidade da pessoa humana está elencado em nossa Constituição Federal no artigo 1º, inciso III , integrando o rol de princípios fundamentais e servindo como alicerce para todos os demais direitos em um Estado Democrático de Direito que parte da primazia do indivíduo.[13]
Com efeito, é o princípio de maior força a ser considerado, vinculando relações públicas e particulares , vez que somente a partir do respeito do mesmo que novos direitos fundamentais são originados.[14]
A dignidade humana é o valor supremo que compreende todos os direitos fundamentais do homem, bem como os direitos sociais, não encerrando-os em um enunciado fechado, mas sim como indicadores de conteúdo normativo eficaz a ser perseguido pelo aplicador do direito ao caso concreto.[15]
Insta destacar que o ser humano é merecedor das garantias decorrentes do princípio da dignidade da pessoa humana justamente por ser pessoa, ou seja, por possui valor moral em si, pois o princípio da dignidade da pessoa humana é inerente à vida, sendo inclusive classificado pela doutrina como um direito pré-estatal. [16]
Ingo Wolfgang Sarlet traz à baila com maestria: [17]
“Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”
Com propriedade, a partir do momento em que o poder constituinte originário consagra o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento constitucional, o Estado passa a ostentar a figura de garante de condições essenciais à integridade física e moral, à vida, ou seja, assume um compromisso ético e moral de respeito ao indivíduo pela sua condição de pessoa.
Por sua vez, a previsão constitucional de proteção ao idoso está umbilicalmente ligado aos direitos fundamentais e, por conseguinte, à dignidade da pessoa humana. Ainda, no mesmo texto Constitucional, atrelou-se à Família, além do Estado e a sociedade, o dever de garantir ao idoso sua dignidade como pessoa humana.[18]
Como preconiza Liane Maria Busnello Thomé :[19]
“O princípio da dignidade da pessoa humana visa a garantir a proteção ao ser humano não apenas para assegurar um tratamento humano e não degradante, mas onde a vulnerabilidade humana se manifestar, de modo que terão procedência os direitos e as prerrogativas de determinados grupos, de uma maneira ou outra, fragéis e que estão por exigir uma proteção especial da lei, como o caso das crianças, idosos, deficientes físicos e os membros da família.”
A lei maior brasileira ao estabelecer direitos aos idosos está, de fato, amparando a dignidade desta parte da população mais vulnerável, no mesmo sentido a Política Nacional do Idoso (Lei 8.842/94) e o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003).
A dignidade da pessoa humana transcende o respeito ao valor humano, para também alcançar suas expectativas quanto à sua realização patrimonial e, sobretudo, existencial[20]. Assim, cabe à família operar como guardiã da preservação e promoção das relações sociais da pessoa idosa através da convivência afetiva entre familiares.[21]
1.2.2 Princípio da solidariedade familiar
A Constituição Federal elegeu como objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. A destempo ao dispor sobre direito de família, crianças e adolescentes e idosos deixou claro o caráter solidário das relações entre sujeitos de direito e entre sujeito e Estado.
Na seara do direito de família, o princípio da solidariedade é oxigênio do direito das construções afetivas, vez que é somente através da compreensão e cooperação mútua que tais relações podem sustentar-se.[22]
Além de prever deveres assistênciais materiais entre os membros familiares, a solidariedade familiar traz estampado o sentimento de fraternidade propício ao desvelo das obrigações imateriais.
Com razão o princípio da solidariedade distingui-se de empatia:[23]
A solidariedade difere da empatia pelo fato de ser proativa. A empatia é o processo pelo qual nos damos conta da situação de outra pessoa. A solidariedade, em contraste, reflete nossa preocupação com o outro e um desejo de fazer com que a situação melhore.
À medida que proporciona um elo de cooperação permanente interpartes, o princípio da solidariedade familiar é pedra de toque para a efetivação dos laços afetivos familiares.
Com efeito, a solidariedade projeta princípios da justiça distributiva e da justiça social ao desenvolver a função social dos direitos subjetivos ao superar o individualismo jurídico.[24]
Por fim, frisa-se que o princípio em comento instinga a compreensão da família contemporânea através da co-responsabilidade, firmando-se um caratér democrático de obrigações recíprocas.[25]
1.2.3 Princípio da afetividade
Com a promulgação da Constituição de l988 novos valores foram incorporados não só ao ordenamento jurídico, mas da própria e na forma da sociedade relacionar-se.
Assim, importante destacar que, muito embora, não esteja de forma explícita consignada na Constituição Federal a proteção à questão afetiva nas relações familiares, nem tampouco haja menção de tal princípio no Estatuto do Idoso ou no Código Civil, a valorização da afetividade está consolidada pelos doutrinadores da matéria, posto o que dispõe o art. 5º, § 2º da Constituição Federal.[26]
Neste sentido, o Constituinte reconheceu a possibilidade de serem elevados a direitos fundamentais outros direitos não elencados como tal na Constituição, com base no regime e nos princípios desta.
Ainda, conforme abordado alhures, consigne-se que o estado é o primeiro a assegurar o afeto aos seus cidadãos quando fixa um rol de direitos e garantias sociais, bem como impõe a si obrigações para com seus cidadãos. [27]
Da análise das relações intersubjetivas no âmbito familiar nos dias de hoje é inconcebível não visualizar a direta ligação que este mantém com os aspectos da afetividade, seja pelo reconhecimento de novas formas de relacionamento baseadas no amor,seja pelo reconhecimento da filiação socioafetiva e o direito de amparo conferido à pessoa idosa.
Neste sentido, ilustra André Luis de Moraes Pinto: [28]
“O afeto ocupa lugar central nos amorosos, trançando cidadania, como ingrediente para a compreensão do outro, vitamina para o desenvolvimento da personalidade dos sujeitos, antídoto contra os defeitos mais perversos e nocivos dos conflitos, tinta para o planejamento do futuro compartilhado e, no crepúsculo da relação, se ele não foi suficiente ou se findou, reveste-se como derradeira gota de expressão de respeito para um desenlace digno e saudável”.
Em verdade, as pontes construídas pela afetividade no direito de família foram essenciais para tornar-se possível a concretização de outros princípios consagrados pela Constituição Federal como a dignidade da pessoa humana e a solidariedade social.
A partir de então, as famílias assumiram o dever constitucional de proporcionar conforto e amparo a seus integrantes em especial para as crianças e idosos, cabendo ao Estado fiscalizar e garantir que tais direitos sejam efetivamente cumpridos.
É a partir da visualização do afeto como princípio norteador das relações familiares que se torna possível questionar a possibilidade do ilícito civil devido ao abandono afetivo, ou seja, devido a omissão de um dever implicitamente constitucionalizado e amplamente aceito pela doutrina e jurisprudência inclusive sob a chamada “teoria do desamor”.[29]
Por fim, como enuncia João Baptista Villela, a teoria e a pratica das instituições familiares dependem da nossa competência em dar e receber amor, pois por mais complexa que se apresente nutrem-se de substâncias triviais e disponíveis a quem delas queira tomar afeto, perdão, solidariedade, paciência, enfim, tudo o que esteja envolvido com a arte de viver em comum[30].
2. RESPONSABILIDADE CIVIL: ANÁLISE DO DANO MORAL
Sem olvidar, da interpretação dos art. 230 da Constituição Federalé possível extrair os ditames que devem orientar a família no trato com seus idosos. Assim, resta evidente que para a redação do artigo em comento foram observados os princípios da dignidade humana, da solidariedade e da afetividade, ainda que de forma implícita, para tutelar ao idoso tratamento digno, resguardando-os de qualquer forma de negligência que possa vir a ofender seus direitos da personalidade. [31]
Com a forte influência da irradiação dos preceitos constitucionais em todos os ramos do direito tornou-se primordial otimizar a eficácia dos direitos fundamentais da pessoa humana, a fim de equilibrar as relações subjetivas evitando possíveis agressões ao titular de direito.
Daniel Sarmento conceitua:[32]
“[…] eficácia irradiante enseja a “humanização” da ordem jurídica ao exigir que todas as suas normas sejam, no momento da aplicação, reexaminadas pelo aplicador do direito com novas lentes, que terão as cores da dignidade humana, da iguldade substantiva e da justiça social, impressas no tecido constitucional.”
Ademais, com a consagração da dignidade humana como fundamento de nosso país, o poder constituinte salvaguardou o direito à indenização decorrente de dano moral sofrido por atentado aos direitos decorrentes da personalidade.[33]
Na classificação de Sérgio Iglesias:[34]
“A personalidade é um complexo de características interiores com o qual o indivíduo pode manifestar-se perante a coletividade e o meio que o cerca, revelando seus atributos materiais e morais. Com efeito, no sentido jurídico, a personalidade é um bem, aliás, o primeiro pertence à pessoa. Entendida como um bem, a personalidade subdivide-se em categorias imateriais de bens: a vida, a liberdade, a honra, a intimidade, entre outros. Em torno destes gravitam todos os bens materiais, dado o caráter de essencialidade e qualidade jurídica atribuida ao ser.”
Na mesma esteira, em decorrência da solidificação da corrente eudemonista entre doutrina e a jurisprudência pátria o eixo da responsabilidade familiar passou a abarcar além de pressupostos patrimoniais, aspectos imateriais como amparo, cuidado, orientação, entre outros.
Nesta mesma senda, partindo do pressuposto constitucional da ampla proteção conferida ao idoso, em 01 de outubro de 2003 entrou em vigor o Estatuto do Idoso que, novamente em seus artigos 3º e 4º caput, asseguraram, pela teoria da proteção integral, o direito de convivência familiar aos mesmos.
Indubitavelmente, o Estatuto do Idoso foi um marco não só para legislação infraconstitucional, mas também para ratificar a responsabilidade material e moral auferida aos familiares no trato com seus idosos na fase mais delicada da vida destes. A Lei n.º 10.741/03 representou a renovação do compromisso do legislador com o princípio da solidariaedade familiar e grande parte da população que já encontra-se excluída da grande massa de produção devido o avançar de sua idade.
Conforme leciona com maestria Ministra Nancy Adrighi[35]:
“Vê-se hoje nas normas constitucionais a máxima amplitude possível e, em paralelo a cristalização do entendimento, no âmbito cientifico, do que já era empiricamente percebido: o cuidado é fundamental para formação do menor e do adolescente; ganha debates mais técnicos, pois não se discute mais a mensuração do intangível- o amor- mas, sim a verificação do cumprimento, descumprimento, ou parcial cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar.”
Em verdade, o referido acórdão foi um divisor de águas para o Direito de Família, eis que consolidou o entendimento de ser exigível juridicamente a reparação em caso de abandono afetivo paternal, em vista do compromisso afetivo que deve guiar as relações familiares.
Todavia os fundamentos utilizados com brilhantismo pela Ministra Nancy no acórdão supramencionado dão azo à proteção por abandono afetivo dos idosos por seus filhos, também conhecido como abandono afetivo inverso, visto que há da mesma forma um dever constitucional de cuidado imposto aos familiares nas relações com seus idosos.
Tratando-se o abandono afetivo do idoso de dano imaterial, a reparação foca-se na tentativa de compensação, de uma função satisfatória, recompensatória do quantum fixado, vez que a vitima em nenhuma possibilidade será restituída integralmente do abalo suportado nem poderá voltar ao se estado original anterior ao dano.[36]
É evidente que, em se tratando de danos extrapatrimoniais, não será possível uma perfeita equivalência entre a lesão e a reparação, eis que no campo do espírito humano sempre estaremos frente do imponderável e da incerteza nos valores individuais.[37]
2.1 Pressupostos do dever de indenizar
O dano moral se justifica a medida que é possível a visualização da lesão a um direito decorrente da personalidade do indivíduo, pois conforme elucida Cavalieri ao citar Kant[38]:
“A dignidade é o valor de que se reveste tudo aquilo que não tem preço, ou seja, que é possível de ser substituído por um equivalente. È uma qualidade inerente aos seres humanos enquanto entes morais. Na medida em que exercem de forma autônoma a sua razão pratica, os seres humanos constroem distintas personalidades humanas, cada uma delas absolutamente individual e insubstituível. A dignidade é totalmente inseparável da autonomia para o exercício da razão prática. A vida só vale a pena se digna”.
Com fundamento, reconhecer que os direitos decorrentes da personalidade podem ser lesados, bem como que há possibilidade de buscar em juízo a respectiva reparação civil, indubitavelmente é forma de expressão da eficácia do princípio da dignidade da pessoa humana como escopo de nosso ordenamento jurídico.
Comungando de tal ideia ilustra Maria Helena Diniz: “A esse respeito é preciso estabelecer que o direito não repara a dor, a mágoa, o sofrimento (RJMS, 117:59) ou a angústia, mas apenas aqueles danos que resultarem da privação de um bem sobre o qual o lesado teria o interesse reconhecido juridicamente”. [39]
A partir dessa ideia abre-se espaço para o reconhecimento da configuração do dano moral em uma infinidade de situações em que se possa prejudicar de alguma forma os direitos da personalidade do individuo, alem de obrigar o agente causador do dano a repara-lo civilmente[40].
De fato, o dano configurado é o primeiro requisito a ser considerado sendo necessariamente seguido de forma positiva pela conduta ilícita do agente, a culpa e o nexo de causalidade.
2.1.1 Conduta ilícita
Pode ser definido como o comportamento humano voluntário exteriorizado através de uma ação ou omissão, capaz de produzir consequências jurídicas[41].
De fato, o pressuposto da conduta está umbilicalmente ligado a um comportamento humano antissocial ativo ou omissivo, caracterizando o ato ilícito, que contaria a ordem constituída e lesa o direito de outrem[42].
Assim sendo, no momento em que o agente através de sua conduta culposa (comissivamente/omissivamente) viola direito de outrem provocando-lhe dano, configurado está o ato ilícito e o dever de indenizar.[43].
No caso do dano moral decorrente do abandono afetivo inverso tem-se em evidência a conduta omissiva do agente, que abstêm-se de agir quando a norma legal lhe impõe um dever imaterial de convívio, zelo e assistência para com o idoso, resultando em prejuízos morais.
É verdadeiro afirmar que a conduta omissiva relevante juridicamente relaciona-se àquela e em que existe um dever legal de ação por parte do agente e este, por sua vez, mantém-se silente, deixando, desta maneira, que o dano ocorra.
Nos dizeres de Cavalieri, citando Paulo José da Costa Jr: “Em casos tais, não impedir o resultado significa permitir que a causa opere. O omitente coopera na realização do evento com uma condição negativa, ou deixando de movimentar-se, ou não impedindo que o resultado se concretize”.[44]
2.1.2 Culpa
Com efeito, a partir da leitura do art. 186 do Código Civil é possível visualizar a predileção do legislador pela responsabilidade subjetiva, ou seja, a responsabilidade civil atrelada à demonstração de culpa, em sentido amplo, do agente em sua conduta, mantendo a responsabilidade objetiva, por sua vez independente de comprovação de culpa, a determinados casos restritos.
Arnaldo Rizzardo na tentativa de melhor definir a culpa lato sensu, assim descreve:[45]
“É a inexecução de um dever que o agente podia conhecer e observar. Se efetivamente o conhecia e deliberadamente o violou, ocorre o delito civil ou, em matéria de contrato, o dolo contratual. Se a violação do dever, podendo ser conhecida e violada, é involuntária, constitui a culpa simples, chamada, fora da matéria contratual, de quase delito”.
De tal sorte a conduta antijurídica do agente divide-se em intencional como no caso da culpa em sentido estrito e a intencional no caso do dolo. Todavia, ambas as condutas possuem o vértice comum na previsibilidade do resultado ou da possibilidade de previsão[46].
Neste sentido, detalha Maria Helena Diniz:[47]
“René Savatier, de modo lapidar, define como a inexecução de um dever que um agente podia conhecer e observar. (…), pois para que alguém pratique ato ilícito e responda pela reparação pelo dano que causou será necessário que tenha capacidade de discernimento, de modo que aquele que não puder ter vontade própria ou for desprovido de entendimento não incorrerá em culpa, por ter inidoneidade para praticar o ato ilícito. Para que haja dever de ressarcir do prejuízo, será preciso que o fato gerador possa ser imputável ao seu autor, isto é, que seja oriundo de sua atividade consciente. Logo, para haver responsabilidade será imprescindível a prática ou a ocorrência de um ato dominável ou controlável do imputado”.
Em verdade, para termos de aferição da existência de culpa pouco importa se esta se manifeste na forma dolosa ou culposa estrita (negligência, imprudência, imperícia), necessário sendo somente que seja exteriorizada pelo agente.
Todavia, o grau de culpa do agente deverá ser considerado no momento da análise do quantum, inclusive pelo caráter pedagógico da condenação.
2.1.3 Nexo de causalidade
O nexo de causalidade é o terceiro pressuposto objetivo do dever de indenizar que deve ser vencido e indica necessariamente a relação guardada entre a ação ou omissão ilícita do agente e o resultado dano.
Assim ilustrado por Sergio Cavalieri Filho:[48]
“Não basta, portanto, que o agente tenha praticado uma conduta ilícita; tampouco que a vitima tenha sofrido um dano. É preciso que esse dano tenha sido causado pela conduta ilícita do agente, que exista entre ambos uma necessária relação de causa e efeito. Em síntese, é necessário que o ato ilícito seja causa do dano, que o prejuízo sofrido pela vitima seja resultado desse ato, sem o que a responsabilidade não correrá a cargo do autor material do fato.”
De fato, insta consignar que nos casos em que o dano é proveniente de uma conduta comissiva do agente que deixou de observar o dever legal, como no caso do abandono afetivo do idoso, têm a doutrina e jurisprudência entendido pela mitigação da comprovação do nexo de causalidade pela parte autora.
Conforme abordado por Cavalieri:[49]
“Provada pela vítima (ônus seu) a ocorrência do fato lesivo e que, de acordo com o juízo abstrato, se apresenta adequado a produção de determinado resultado, presume-se a adequação até prova em contrário. Sobre aquele que praticou o fato lesivo recai o ônus de provar que não houve a adequação entre o fato e o dano (concepção negativa de causalidade).
Na correta lição do Ministro Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, compete ao autor da ação indenizatória demonstrar que o fato imputado ao réu situa-se dentro do leque de condições aptas à provocação dos danos sofridos. Isso demonstrado, ao réu caberá provar que esse fato é causa inadequada dentro do processo causal que culminou com a ocorrência do dano.”
Com efeito, a prova do dano moral necessita ser compreendida diferentemente do dano material. No item a seguir será abordado a análise intrumental do referido dano imaterial.
2.2 Análise instrumental
Diferentemente do dano material que afeta concretamente o patrimônio da vitima provocando prejuízos integrais ou parciais ao mesmo, o dano moral é de singela exteriorização, ponderando, assim, necessariamente a instrumentalidade probatória para demonstração da ocorrência do mesmo.
Nesta forma ilustrada por Silvio de Salvo Venosa:[50]
“A prova do dano moral, por se tratar de aspecto imaterial, deve lastrar-se em pressupostos diversos do dano material. Não há, como regra geral,avaliar por testemunhas ou mensurar em perícia a dor pela morte, pela agressão moral, pelo desconforto anormal ou pelo desprestígio social. Valer-se-á o juiz, sem dúvida, de máximas da experiência. Por vezes, todavia, situações particulares exigirão exame probatório das circunstancias em torno da conduta do defensor e da personalidade da vítima. A razão da indenização por dano moral reside no próprio ato ilícito.”
A produção probatória deverá aprimorar-se na parte tocante a efetiva comprovação da ação negligente /omissão ilícita familiar do abandono afetivo do idoso evidenciado, sendo que, por conseguinte, o abalo suportado pela vitima já é presumido e deve ser analisado a sua extensão através das máximas de experiência e do prudente e razoável juízo do magistrado.
Neste sentido, ressalta-se, a impossibilidade de exigir da vítima a efetiva demonstração do dano moral sofrido por meios probatórios tradicionais ao processo civil, sob pena de ensejar a irreparabilidade do dano imaterial em razão do meio instrumental utilizado.[51]
Comungando do mesmo entendimento, acrescenta Fábio Alexandre Coelho citando Carlos Alberto Bittar:[52]
“A experiência tem mostrado, na realidade fática, que certos fenômenos atingem a personalidade humana, lesando os aspectos referidos, de certo que a questão se reduz, no fundo, a simples prova do fato lesivo. Realmente, não se cogita, em verdade, pela melhor técnica, em prova de dor, ou de aflição ou de constrangimento, porque são fenômenos ínsitos na alma humana como reações naturais a agressões do meio social. Dispensam, pois, comprovação, bastando, no caso concreto, a demonstração do resultado lesivo e a conexão com o fato causador, para a responsabilização do agente”.
De fato, tratando-se de dano extrapatrimonial especialmente causado por omissão do agente a produção probatória necessita ser vista por um olhar flexível em que os clássicos instrumentos de aferição sofrem uma flexibilização, sob pena de tornar-se impossível a aferição do dano moral e de sua liquidação.
2.3 Dano moral e a reparação pecuniária
A reparação pecuniária determinada em face do abandono afetivo do idoso tem se mostrado a maneira mais usual adotada pela jurisprudência brasileira, na tentativa de melhor atender simultaneamente o aspecto punitivo e satisfatório da condenação, quando verificado a impossibilidade da retomada do vínculo afetivo entre as partes.
Assim, explorado por Cavalieri[53]:
“Substitui-se o conceito de equivalência próprio do dano material, pelo de compensação, que se obtém atenuando, de maneira indireta, as consequências do sofrimento. Em suma, a composição do dano moral realiza-se através desse conceito – compensação -, que, além de diverso do de ressarcimento, baseia-se naquilo que Ripert chamava “substituição do prazer, que desaparece, por um novo.”
Sobre o aspecto compensatório nos trás Maria Amália de Figueredo Pereira Alvarenga[54]:
“Não se paga a dor sofrida por ela ser insuscetível de aferição econômica, pois a prestação pecuniária teria uma função meramente satisfatória, procurando tão-somente, suavizar certos males, não por sua natureza, mas pelas vantagens que o dinheiro poderá proporcionar, compensando até certo ponto o dano que foi injustamente causado. Fácil é denotar que o dinheiro não terá na reparação do dano moral uma função de equivalência própria do ressarcimento do dano patrimonial, mas um caráter, concomitantemente, satisfatório para a vitima e lesados, e punitivo para o lesante, sob perspectiva funcional”.
Por sua vez, a ausência da exata avaliação não é peculiar ao dano moral afetivo, podendo ser observada também nos casos de dano material decorrente da diminuição da capacidade laborativa, ou seja, não há razão plausível pela qual exigir uma equivalência matemática, rigorosa em relação aos danos morais[55].
Com fundamento, ensina sobre a importância dos bens imateriais a professora Maria Amália de Figueiredo Pereira Alvarenga[56]:
“Não há dúvida de que a moral e os seus valores estejam acima dos bens materiais apreciáveis em dinheiro ou equivalentes. Daí a indenizabilidade prevista no Direito não possuir uma contrapartida ou um conteúdo realístico, de natureza e valor correspondentes à natureza do dano sofrido, mas um caráter apenas fictício. A ideia de reparação do dano moral é apenas análoga, o esforço do Direito para entender seu princípio de restaurar ou recompor o patrimônio injustamente lesado aos danos de natureza moral. É uma forma indireta de restituição ou compensação. Evita-se assim o iníquo silêncio do Direito ante a perda sofrida e a irresponsabilidade do autor ilícito ou o seu representante em relação à vítima. Trata-se ainda da manifestação da natureza retributiva do Direito (dar a cada um o que é seu)”.
Com razão a injustiça de manter-se silente perante o abandono afetivo a que fora submetido o idoso se sobrepõe a tudo, sendo que a segurança jurídica só pode ser alcançada ao passo que é proporcionado ao lesado os meios eficazes para buscar a justa reparação do abalo moral suportado.[57]
De tal forma, imperativo discorrer acerca da possibilidade de revisão em segundo grau, em sendo verificada a anormalidade na fixação de valores a título de indenização: “O Superior Tribunal de Justiça pode rever o quantum indenizatório fixado a títulos de danos morais nas ações de responsabilidade civil, desde que configurada situação de anormalidade nos valores, para menos ou para mais. Precedentes.”[58]
Assim sendo, as decisões judiciais acabam por revestir-se de maior credibilidade e seguridade para as partes, ante a possibilidade de revisão por órgão superior em caso de visível desproporcionalidade.
Na tentativa de clarear o melhor caminho a ser percorrido pelo operador do direito no momento da quantificação do dano, foram elaboradas teorias calcadas em divergências doutrinarias e jurisprudenciais, que merecem ser abordados, ainda que de forma breve, seja pela sua credibilidade acadêmica como também por sua aplicabilidade prática.
2.3.1 Teoria do punitive damage
A origem da teoria do punitive damage remete ao Direito Inglês, sendo posteriormente trazido à América e conquistado repercussão no direito brasileiro através do instituto do direito comparado.
A função punitiva da teoria do punitive damage refere-se à decisão judicial como instrumento hábil a sancionar o ofensor, de modo que ocorra um desestímulo da conduta danosa, evitando, assim dizer, possível repetição de eventual efeito danoso[59].
Nas palavras de Fabio Alexandre Coelho[60]:
“O dano moral não é suscetível de avaliação em sentido estrito. O que se patenteia é uma punição econômica em reprimenda a conduta antijurídica do agente. Cabe bem essa conotação de castigo, de punição, principalmente em época em que a impunidade desfila ostensivamente em toda parte”.
Assim, assinala-se o sentido direcionado a conscientização através da condenação econômica ao lesionador, de modo a dissuadi-lo ao cometimento de novos atos lesivos.[61]
Clayton Reis relata que o caráter punitivo da indenização representa uma resposta adequada a sociedade que reclama a punição do agente em razão do desequilíbrio social causado pelo dano, assim como explicita na seguinte passagem de sua obra:[62]
“O novo sentido almejado pelo legislador do século XXI sedimenta-se em uma postura em que os homens têm a absoluta consciência no agir não o façam por temor à lei, mas, sobretudo pela exata consciência do dever de agir pelo bem reprimindo o mal. Os cidadãos do futuro, talvez nem precisem de leis, visto que a consciência de cada um, alicerçada na exata compreensão dos fatos da vista será norma reguladora a conduzir as pessoas no equacionamento dos problemas e do comportamento humano”.
É nesse horizonte que repousam as expectativas sociais quanto o abandono afetivo dos idosos por seus familiares: Que o caráter punitivo da condenação, respeitados os princípios da legalidade e do devido processo legal, seja capaz de provocar a reflexão do ofensor a respeito do ato antijurídico praticado bem como, produza efeitos preventivos em todo contexto social dada a inarredável importância da convivência familiar.
2.3.2 Teoria compensatória do dano
A teoria compensatória baseia-se na impossibilidade da equivalência real do preço da lesão sofrida, bem como, a impossibilidade da reparação natural assim descrita pelo jurista Fábio Alexandre Coelho[63]:
“Os interesses cuja a lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podendo ser reintegrados, mesmo por equivalência, ou seja, não visam reconstituir a situação que existiria se não tivesse verificado o evento, mas sim compensar o lesado pelas dores e também sancionar a conduta do lesante.”
Com efeito, de nosso ordenamento jurídico é possível extrair um mandamento de reparação pelo dano, sendo que eventuais dificuldades referentes a sua avaliação ou incertezas legislativas a um caso em específico não justificam a ausência da prestação jurisdicional[64].
Em verdade, a preocupação maior não reside na exata avaliação do dano, até por ser este extrapatrimonial, e, portanto, de difícil aferição precisa, mas sim na possibilidade de proporcionar à vítima um amparo com a condenação, um momento de satisfação pessoal.
Nesta perspecção,Fábio Alexandre Coelho, leciona: “Quem fala de proporção entre indenização e dano não alude à coincidência rigorosa, mas sim a aproximação. O que se colima é a substituição de ritmo da vida, de prazer, de bem-estar psíquico, que desapareceu, por outro que a indenização permite”. [65]
3. ABANDONO AFETIVO DOS IDOSOS POR SEUS FAMILIARES
3. 1 Dever legal de cuidado
Considerando o envelhicemento populacional brasileiro que caminha à largos passos anualmente verifica-se imperiosa necessidade de debater a real eficácia conferida aos direitos dos idosos pelo ordenamento pátrio tanto entre a sociedade como Estado.
Infelizmente, em que pese o progresso na expectativa de vida representar uma conquista à humanidade, ainda há forte resistência social ao processo de envelhecimento, pois muitas vezes a terceira idade é associada a ideia do fim de um ciclo pessoal.
A propósito destaca João Ricardo Moderno:[66]
“O avanço da idade representa um retrocesso nas capacidades físicas do indivíduo, e essa condição é fator de angústias, pois ao mesmo tempo cresce a consciência dos limites do corpo e o anúncio prévio e gradativo da morte. A limitação dos movimentos, a perda substantiva da força, a diminuição das capacidades mentais em geral e o desânimo psicológico remetem os idosos a uma outra condição onoestética do corpo. Todas essas condições são acompanhadas das condições estéticas propriamente ditas, com o envelhecimento do corpo pelas mudanças visuais da pele, o aparecimento de manhcas etc. É preciso uma nova sabedoria para saber conviver com as novas realidades físicas e psicológicas que vão se somando com o passar do tempo”.
Em verdade pelo contexto da etapa de envelhecimento os idosos são em alguns casos vítimas de desdém e descaso pela população em geral e, em casos extremos, por sua própria família. No entanto, é nesta etapa da vida em que a vulnerabilidade é aflorada por aspectos físicos e psiquícos que necessita o idoso de amparo.
A Constituição Federal recomenda que as garantias fundamentais dos idosos operem em todas as formas a fim de proporcionar o devido respeito aos mesmos e impedir que sejam tratados com indiferença, especialmente em âmbito familiar.
De extrema valia são os dizeres de Fabiana Barletta[67]:
“O importante é cuidar da pessoa humana em suas circunstâncias e na medida de suas necessidades. Para o direito não importa se o homem inicia sua vida, encontra-se no ou no final dela. A vida está jungida ao princípio constitucional da dignidade e, para que todos usufruam de igual dignidade social, determinados instrumentos formulados pelo direito para as fases e em que as vulnerabilidades são imanentes à condição humana, contribuem para o alcance da igualdade material entre as pessoas na sua alteridade de fato”.
De tal maneira garantir que o idoso receba o tratamento adequado de sua família não se restringe a aspecto meramente legal imposto pela Constituição Federal e pelo Estatuto do Idoso, mas de função social de um Estado Democrático de Direito que vinculou-se à promoção dos direitos fundamentais decorrentes do princípio da dignidade da pessoa humana.
Ademais, além de ser fruto da consagração do princípio da dignidade da pessoa humana, a obrigação do Estado para com seus idosos decorre da contribuidade social e desenvolvimento nacional realizado pelos idosos.[68]
Nesta toada Maria Berenice elucida:[69]
“A garantia da justiça é o dever maior do Estado, que tem o compromisso de assegurar o respeito à dignidade da pessoa humana […]
O fato de não haver previsão legal específica para determinada situação não significa inexistência de direito à tutela jurídica. Ausência de lei não quer dizer ausência de direito, nem pode impedir que se extraiam efeitos jurídicos de determinada situação fática. A falta de previsão própria nos regramentos legislativos não mais justifica negar a prestação jurisdicional e nem serve de motivo para deixar de reconhecer a existência de direito merecedor da tutela jurídica. O silêncio do legislador deve ser suprido pelo juiz, que cria a lei para o caso que se apresenta a julgamento.”
Com razão a inexistência de previsão expressa sobre a responsabilização civil por abandono afetivo dos idosos por seus familiares não pode ser um entrave para que seja reconhecida tutela jurídica à afetividade familiar aos idosos.
De fato o ordenamento jurídico pátrio prevê que em casos de imprevisão legislativa, deve o magistrado servir-se da analogia, costumes e princípios gerais de direito, como forma de garantir a eficácia do acesso à justiça.[70]
Ainda, giza-se que o descaso nas relações entre pais e filhos deve ser severamente combativo pelo Poder Judiciário não como forma de imposição da obrigação de amar, mas para que se cumpra o estabelecido pela ordem legal sem traumas morais de indiferença ou rejeição.[71]
Outrossim, na mesma linha do Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Federal 10.741/2003, consagrou a teoria da proteção integral ao idoso, ou seja, buscou salvaguardar igualmente a este grupo vulnerável o compromisso com a máxima efetividade das garantias e direitos fundamentais.
Tendo assim dotado a teoria da proteção integral também ao idoso o legislador garantiu que seja dispensado a este parte populacional o mesmo nível de tutela com a promoção de seus direitos e a consequente fiscalização pelo Estado.
A propósito anota Marcelo Moreira dos Santos:[72]
“O sistema jurídico de proteção à velhice é uma nova dimensão de direitos sociais, coletivos e individuais, construídos historicamente. Essas dimensões não se sucedem mas se complementam à medida que aumentam as necessidades resultantes do envelhecimento e do crescimento da população idosa.”
O Estatuto do Idoso, posterior à Política Nacional do Idoso (Lei Federal 8.842/94), foi imprescindível para formação de um arcabouço jurídico forte que estrtutura um programa de proteção proativo envolvendo conjuntamente sociedade, família e Estado.
Com fundamento, ao estampar em seus artigos 3º e 4ª a obrigação da família em proporcionar ao idoso o convívio familiar, bem como colocá-lo a salvo de qualquer negligência, cabendo punição por ação ou omissão que atente aos direitos do ancião, o Estatuto está claramente garantindo ao idoso a afetividade familiar:
“Art. 3o É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
I – atendimento preferencial imediato e individualizado junto aos órgãos públicos e privados prestadores de serviços à população;
II – preferência na formulação e na execução de políticas sociais públicas específicas;
III – destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção ao idoso;
IV – viabilização de formas alternativas de participação, ocupação e convívio do idoso com as demais gerações;
V – priorização do atendimento do idoso por sua própria família, em detrimento do atendimento asilar, exceto dos que não a possuam ou careçam de condições de manutenção da própria sobrevivência;
VI – capacitação e reciclagem dos recursos humanos nas áreas de geriatria e gerontologia e na prestação de serviços aos idosos;
VII – estabelecimento de mecanismos que favoreçam a divulgação de informações de caráter educativo sobre os aspectos biopsicossociais de envelhecimento;
VIII – garantia de acesso à rede de serviços de saúde e de assistência social locais.
IX – prioridade no recebimento da restituição do Imposto de Renda.
Art. 4o Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei.
§ 1o É dever de todos prevenir a ameaça ou violação aos direitos do idoso.
§ 2o As obrigações previstas nesta Lei não excluem da prevenção outras decorrentes dos princípios por ela adotados”
Outrossim, ao co-responsabilizar o Estado pela garantia do efetivo cuidado familiar norteado pelos princípios constitucionais, o legislador automaticamente descreveu ações positivas e negativas de proteção, não cabendo, portanto, ao Estado manter-se silente perante o descumprimento de um dever legal como o abandono afetivo dos idosos.
Ademais possibilitar a indenização ao sujeito da terceira idade que sofreu a violação de seus direitos personalíssimos por seu familiar está em sintonia com os ditames esculpidos na Constituição Federal, no Código Civil e Estatuto do Idoso.
Assim, é cristalina a existência de um dever de cuidado e amparo imposto às famílias nas relações com seus idosos, sendo passível, portanto, responsabilização civil por dano moral consequente do abandono afetivo do idoso por seus familiares, visto que há uma quebra com o dever de cuidado legalmente reconhecido.
Muitas vezes a reparação é vista com maus olhos socialmente e compreendida como acréscimo patrimonial à vítima de um dano não possível de mensuração exata, todavia tais argumentos não merecem prosperar.
Neste ínterim, oportuno salientar que o sistema adotado pela legislação brasileira para aferição do dano moral é o do livre convencimento e arbitramento pelo magistrado, que atentando ao juízo da razoabilidade, proporcionalidade, equidade e justiça, bem como critérios objetivos do caso concreto, definirá o valor da justa indenização.
A possibilidade da fixação pelo livre convencimento do magistrado está a par com estado social e democrático estabelecido por nossa Constituição Federal e todas as garantias individuais dele decorrentes, em razão da existência de um caminho a ser percorrido pelo prudente arbítrio do juiz que terá como premissa fazer justiça ao caso concreto a partir das informações ofertadas pelo próprio problema em sua realidade.
Ademais, o magistrado guiar-se-á fundamentadamente por critérios plausíveis como a condição econômico-financeira das partes envolvidas no litígio, o grau de culpa do ofensor, a extensão do dano, sempre tendo como luz os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade dos interesses.
3.2 Posição jurisprudencial do Tribunal local
Para melhor contextualização passa-se a analisar as decisões do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina sobre o abandono afetivo dos idosos por seus familiares.
Em verdade, pelas buscas realizadas no endereço virtual do TJ-SC destinado à disponibilização de jurisprudências é possível verificar que o número de demandas envolvendo o tema em comento é muito restrito, o que denota ainda o baixíssimo número de ajuizamento de demandas indenizatória afetiva por idosos.
A quase inexistência de ações indenizatória movida por idosos em face de seus familiares em razão do direito de convívio pode estar ligada a recente caminhada jurídica de proteção conferida ao grupo da terceira idade.
Com razão, ainda não há uma cultura madura de litígio deste grupo vulnerável por seus direitos, especialmente no campo do direito de família em que ainda é socialmente questionável pais requererem indenização a seus filhos por abandono afetivo.
Na pesquisa pelo tema “abandono afetivo” são encontradas diversas decisões do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, sendo a maioria relacionadas ao abandono afetivo paternal.
Contudo pelos princípios constitucionais que embasam o abandono afetivo paternal serem muito semelhantes, bem como ter o Estatuto da Criança e do Adolescente adotado a Teoria da Proteção Integral, a jurisprudência catarinense pode ser flexibilizada e estendida ao abandono afetivo dos idosos.
Reconhecendo a adoção da Teoria da Proteção Integral:[73]
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO ACOLHENDO A EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA PROMOVIDA PELAS AGRAVADAS. ALEGAÇÃO DE INTEMPESTIVIDADE. CIÊNCIA INEQUÍVOCA DO PROCURADOR DAS PARTES 60 DIAS ANTES DO OFERECIMENTO DA REPOSTA. PROCURADOR SEM PODERES ESPECÍFICOS PARA RECEBER CITAÇÃO. PRAZO NÃO ESCOADO. AUTOR DA DEMANDA IDOSO E GRAVEMENTE ENFERMO. APLICAÇÃO DA REGRA ESPECIAL PREVISTA NO ESTATUTO DO IDOSO. FORO PRIVILEGIADO EM RAZÃO DA HIPOSSUFICIÊNCIA DEMONSTRADA. CONCRETIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA PROTEÇÃO INTEGRAL, DO ACESSO À JUSTIÇA E DA DIGNIDADE DA PESSOA IDOSA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
Todas as digressões acerca da obediência à regra geral, ditada pelo conteúdo da demanda (art. 94 do CPC), tornam-se demasiadamente frágeis, diante do contexto de hipossuficiência revelado pelo autor, pessoa idosa, quase octogenária, de saúde frágil, e, portanto, de difícil locomoção, atraindo a incidência extraordinária do artigo 80 da Lei 10.741/03, que rege o privilégio do foro do domicílio do idoso. Em que pese ser a referida regra específica para as hipóteses de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos ou indisponíveis, a permanência da tramitação do presente feito no domicílio do idoso é a solução que melhor assegura e realiza os princípios do acesso à justiça e da dignidade da pessoa idosa. Sob essa perspectiva, o Estauto do Idoso deve ser interpretado de forma a concretizar no meio social o respeito à peculiar fragilidade reconhecida em sede constitucional a essa específica faixa etária.“
Com maestria a referida decisão explana sobre a adoção da teoria da proteção integral também aos idosos, refletindo a preocupação com a máxima efetividade na promoção dos direitos de tal parcela populacional vulnerável.
Inclusive é possível verificar a preocupação legislativa com a máxima efetividade dos direitos conferidos aos idosos na recente alteração do Novo Código de Processo Civil que corroborou a competência do domicílio do idoso, já previsto anteriormente no Estatuto do Idoso.
Nesta senda, é cristalina a irradiação dos direitos constitucionais conferidos aos indivíduos da terceira idade em diversos ramos do direito, traço comum ao período neoconstitucionalista pelo qual passa o direito constitucional brasileiro.
Com o propósito de efetivar a à proteção integral aos idosos destaca-se a louvável decisão da Segunda Câmara de Direito Público que destacou o compromisso constitucional do Estado decorrente do artigo 230 da Constituição Federal e do Estatuto do Idoso em atender os direitos aos idosos com primazia e integralidade:
“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DE IDOSA. DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E À SAÚDE. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. (…) OBRIGAÇÃO DE ATENDIMENTO PELA ADMINISTRAÇÃO. FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO E DO ESTATUTO DO IDOSO. ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL. SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE SOCIAL. PREVALÊNCIA DO DIREITO À VIDA E À SAÚDE. POLÍTICAS PÚBLICAS INSUFICIENTES. APLICAÇÃO DO ART. 230 DA CRFB/88 E DOS ARTS. 2º, 3º, 4º E 43 DA LEI N. 10.741/03. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO MANTIDA. APELO DESPROVIDO.
(…) No Estado Constitucional de Direito, que sucede o antigo Estado Legislativo de Direito, não há como se admitir a tese de que as normas constitucionais não são dotadas de normatividade plena. Afinal, hoje a Constituição está no centro de uma estrutura de poder de onde irradia sua força normativa.
É dotada de supremacia formal e material, determina a vigência e a validade das normas abaixo dela e fixa-lhes o modo de interpretação e compreensão. Além disso, se antes, no Estado Legislativo de Direito – e no modelo decorrente do tipo de Constituição que lhe dava sustentação – o que se tinha era um juiz neutro, distante e que só exercia seu papel mediador quando chamado pelas partes, atualmente essa figura desaparece e a concretização das normas constitucionais passa a ser o principal compromisso do Poder Judiciário (…)”[74].
Com efeito, com a superação do positivismo de Kelsen e a centralização da Constituição como norma máxima do sistema jurídico brasileiro, não há que se falar em falta de tutela jurídica por omissão legislativa específica ao caso concreto, vez que o magistrado cumpre igualmente uma função social frente às demandas ao concretizar os direitos e garantias estabelecidas constitucionalmente.
Assim, assinalado o papel do magistrado frente aos litígios que envolvem as garantias legais asseguradas aos idosos conclui-se que as relações afetivas familiares do idoso e sua proteção como pessoa vulnerável merecem chancela pelo Poder Judiciário.
Quanto ao reconhecimento das tutelas jurídicas conferidas à afetividade familiar, oportuno colacionar a decisão da Quarta Câmara Cívil nos autos da Apelação n.0004396-81.2012.8.24.090, que teve como Presidente e Relator o Desembargador Joel Dias Figueira Júnior:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE C/C DANOS MORAIS. RECONHECIMENTO DA FILIAÇÃO POR MEIO DE EXAME DE DNA. OMISSÃO DO GENITOR NO CUMPRIMENTO DOS DEVERES INERENTES AO PODER FAMILIAR. ILÍCITO DENOMINADO "ABANDONO AFETIVO". DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES ATINENTES AO PODER FAMILIAR. DANO MORAL CONFIGURADO. QUANTUM COMPENSATÓRIO. OBJETO DE RECURSO POR AMBAS AS PARTES. OBSERVÂNCIA AOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. JUROS DE MORA. TERMO A QUO FIXADO EX OFFICIO DA DATA DO RESULTADO DO EXAME DE DNA. INTELIGÊNCIA DA SÚMULA 54 DO STJ E ART. 398 DO CC. RECURSO DO RÉU PARCIALMENTE PROVIDO E DA AUTORA DESPROVIDO
I – O ilícito comumente chamado de "abandono afetivo" nada mais é do que a atitude omissiva dos genitores no cumprimento dos deveres de ordem sentimental e moral (não raramente também material) decorrentes do poder familiar legalmente estabelecidos, dentre os quais se destacam os de prestar assistência, educação, atenção, carinho, amor e orientação para a boa formação da criança e do adolescente. O que enseja o ilícito civil e, por conseguinte, a compensação pecuniária, é o descumprimento dos deveres jurídicos do poder familiar, e não a falta de afeto por si só. Assim, por estar devidamente demonstrado, in casu, o abandono afetivo sofrido pela Autora, com o cristalino descumprimento pelo Réu dos deveres inerentes ao poder familiar – dever legal de cuidado lato sensu – a manutenção da sentença que o condenou ao pagamento de compensação pecuniária é medida que se impõe. Não é a falta de afeto (amor) que configura o ilícito civil, mas sim a falta de observância dos deveres paternos atinentes à filiação. O dano é in re ipsa e o nexo de causalidade mais do que evidente, é elementar.
II – Considerando a natureza compensatória do montante pecuniário no âmbito de danos morais, a importância estabelecida em decisão judicial há de estar em sintonia com o ilícito praticado, a extensão do dano sofrido pela vítima, a capacidade financeira do ofendido e do ofensor, bem assim servir como medida punitiva, pedagógica e inibidora. Deste modo, há de ser mantido o valor fixado a título de compensação pecuniária pelos danos morais experimentados pela Autora pois mostra-se razoável e compatível com a gravidade dos fatos e a capacidade financeira das partes.
III – Em se tratando de responsabilidade civil extracontratual, cujo ilícito civil é gerador de dano moral, incidem os juros moratórios a contar do evento danoso, consoante disposto no artigo 398 do Código Civil e na Súmula 54 do STJ.
Em casos em que o Estado-juiz não tem a capacidade de adentrar no foro íntimo de cada cidadão para identificar a data precisa em que o réu teve conhecimento seguro da paternidade, para a definição da data do evento danoso, no caso dos autos há de se estabelecer o termo inicial para a incidência de juros moratórios o momento em que o genitor reconhece formalmente o filho, ou, como na hipótese vertente, o dia em que o genitor teve ciência do resultado do exame de DNA não impugnado.”
Com brilhantismo, o Excelentíssimo Desembargador destacou a diferença entre afeto e amor, atribuindo à afetividade a característica que lhe é peculiar nas famílias contemporâneas: o dever de cuidado.
Por conseguinte, delineou que havendo o descumprimento da afetividade familiar origina-se o dano moral, descrevendo ser este in re ipsa.
Mais adiante ainda em seu voto justificou com fundamento na doutrinária pátria:
“(…)Isso porque a lei obriga e responsabiliza os pais no que toca aos cuidados com os filhos. A ausência desses cuidados, o abandono moral, viola a integridade psicofísica dos filhos, bem como o princípio da solidariedade familiar, valores protegidos constitucionalmente (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 416) (…)
Não se pode obrigar ninguém a amar outrem, mas a relação paterno/materno-filial exige compromisso e responsabilidade e, por isso, é fonte de obrigação jurídica.(…) Á norma jurídica, obviamente deve corresponder uma sanção, sob pena de se tornar mera regra ou princípio moral. Por isso a necessidade de responsabilização dos pais pelo não cuidado, e, principalmente, pelo
abandono dos filhos(…). (in, Revista brasileira de direito das famílias e sucessões. Belo Horizonte: Magister, v.14, n.29, ago/set 2012, p. 7).”
O dever de cuidado se traduz na convivência familiar, no desvelo do trato com o idoso, sendo que sua omissão traduz igualmente o abandono afetivo devido o descumprimento de um dever além de moral, previsto em lei.
O cuidado que deve ser destinado ao idoso é aspecto objetivo, passível de verificação por atos externos e é a ele que o direito se detém, de forma que lhe escapa a regularização de aspectos subjetivos como o amor.
De outra banda, nas buscas jurisprudênciais no mesmo Tribunal de Justiça é possível verificar, com infelicidade, que ainda a reparação pelo do abandono afetivo não é pacífico nem mesmo entre pensadores do direito, sendo que em diversos julgados o direito à indenização não foi reconhecido ao titular de direito:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS POR ABANDONO AFETIVO. DESCENDENTE. COMPENSAÇÃO PRETENDIDA. ALEGADO ABALO EMOCIONAL. AUSÊNCIA PATERNA. FILIAÇÃO DECORRENTE DE RELACIONAMENTO EXTRACONJUGAL. IDENTIDADE DO PAI OCULTADA PELA MÃE ATÉ O FINAL DA INFÂNCIA. POSTULANTE QUE RESIDE NO EXTERIOR HÁ APROXIMADAMENTE 15 ANOS. LAÇO SENTIMENTAL. PLEITO COMPENSATÓRIO AFASTADO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
"O abandono afetivo do pai em relação ao filho não dá direito à indenização por dano moral, eis que não há no ordenamento jurídico obrigação legal de amar ou de dedicar amor, até porque, o laço sentimental é algo profundo que vai se fortalecendo com o passar do tempo, e não será uma decisão judicial que irá mudar uma situação ou sanar eventuais deficiências" (TJSC, Apelação Cível n. 2006.012075-7, de Mafra, rel. Des. Mazoni Ferreira, j. em 4-12-2008).[75]
“APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO INDENIZATÓRIA – DANOS MORAIS POR ABANDONO AFETIVO DE GENITOR – SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA – INCONFORMISMO DO AUTOR – RECLAMO NÃO ACOLHIDO – ATO ILÍCITO NÃO CARACTERIZADO – INEXISTÊNCIA DA OBRIGAÇÃO LEGAL DE PRESTAR AFETO – ABANDONO PATERNO, NADA OBSTANTE, NÃO COMPROVADO NOS AUTOS – INTELIGÊNCIA DO ART. 333, I, DO CPC/1973 – SENTENÇA ESCORREITA – RECURSO DESPROVIDO.
O dever do genitor de prestar afeto e amor à prole não caracteriza um dever impingido por lei, conquanto seja moralmente indispensável. Logo, por não se caracterizar ato ilícito, o abandono afetivo é incapaz de gerar compensação pecuniária por danos morais”.[76]
Data vênia, tais argumentos não merecem prosperar haja vista que o entendimento da afetividade como dever jurídico nas relações familiares já foi solidificado pelo Superior Tribunal de Justiça no Resp. n.º 1.159.242- SP[77]:
“O abandono afetivo decorrente da omissão do genitor no dever de cuidar da prole constitui elemento suficiente para caracterizar dano moral compensável. Isso porque o non facere que atinge um bem juridicamente tutelado, no caso, o necessário dever de cuidado (dever de criação, educação e companhia), importa em vulneração da imposição legal, gerando a possibilidade de pleitear compensação por danos morais por abandono afetivo. Consignou-se que não há restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e ao consequente dever de indenizar no Direito de Família e que o cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento pátrio não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas concepções, como se vê no art. 227 da CF. O descumprimento comprovado da imposição legal de cuidar da prole acarreta o reconhecimento da ocorrência de ilicitude civil sob a forma de omissão. É que, tanto pela concepção quanto pela adoção, os pais assumem obrigações jurídicas em relação à sua prole que ultrapassam aquelas chamadas necessarium vitae. É consabido que, além do básico para a sua manutenção (alimento, abrigo e saúde), o ser humano precisa de outros elementos imateriais, igualmente necessários para a formação adequada (educação, lazer, regras de conduta etc.). O cuidado, vislumbrado em suas diversas manifestações psicológicas, é um fator indispensável à criação e à formação de um adulto que tenha integridade física e psicológica, capaz de conviver em sociedade, respeitando seus limites, buscando seus direitos, exercendo plenamente sua cidadania. A Min. Relatora salientou que, na hipótese, não se discute o amar – que é uma faculdade – mas sim a imposição biológica e constitucional de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerar ou adotar filhos. Ressaltou que os sentimentos de mágoa e tristeza causados pela negligência paterna e o tratamento como filha de segunda classe, que a recorrida levará ad perpetuam, é perfeitamente apreensível e exsurgem das omissões do pai (recorrente) no exercício de seu dever de cuidado em relação à filha e também de suas ações que privilegiaram parte de sua prole em detrimento dela, caracterizando o dano in re ipsa e traduzindo-se, assim, em causa eficiente à compensação. Com essas e outras considerações, a Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, deu parcial provimento ao recurso apenas para reduzir o valor da compensação por danos morais de R$ 415 mil para R$ 200 mil, corrigido desde a data do julgamento realizado pelo tribunal de origem”.
(Informativo 392, STJ)
Nesta senda, restou consagrado para a maioria dos operadores do direito a afetividade como valor jurídico, sendo que considerar a impossibilidade de pleito de indenização pelo abandono afetivo nas relações familiares seria concordar com retrocesso social estabelecido pelo Judiciário, tendo em vista que ocorreria uma diminuição nas garantias fundamentais do titular de direito, em especial ao idoso, por se tratar de pessoa em grupo vulnerável.
Com fundamento, ao ingressar com ação indenizatória pelo abandono afetivo familiar não se está tentanto exigir que o idoso seja amado, ou então que o amor seja quantificado, trata-se de requerer ao Estado para que cumpra sua função como coresponsável pelos direitos assumidos aos idosos, promovendo a justiça social.
CONCLUSÃO
Com efeito, a população brasileira passa por um estágio de envelhecimento populacional graças ao considerando crescente aumento na perspectiva de vida. Indubitavelmente, tal momento reflete-se igualmente no direito à medida que este busca tutelar juridicamente as relações sociais com a finalidade de otimizar a proteção do grupo de pessoas da terceira idade, reunindo como responsáveis neste grande projeto sociedade, Estado e família.
A preocupação em garantir direitos e ferramentas aos idosos condiz com principio da dignidade da pessoa humana e da solidariedade estampados na Constituição Federal. No entanto, mais do que isso, o Estatuto do Idoso solidificou a importância das relações familiares para o idoso.
De fato, o alargamento dos preceitos constitucionais para as demais áreas do Direito foi fundamental para que as obrigações imateriais familiares se corporificassem especialmente em relação aos idosos que assimilaram o princípio da afetividade familiar com tamanha naturalidade.
Assim sendo, especialmente por ser o Brasil um país preocupado com o bem estar social, cabe ao judiciário combater os casos de abandono afetivo dos idosos por seus familiares através de ações indenizatórias observando para tanto critérios estabelecidos pela responsabilidade civil à luz dos ditames constitucionais.
Considerando que a afetividade é elemento indispensável ao desenvolvimento íntegro e saudável do ser humano especialmente no avançar de sua idade, período em que tende a ficar mais vulnerável, bem como esta engloba a própria noção de dignidade da pessoa humana, visível resta a configuração do dano ao idoso pelo não cumprimento das obrigações de cuidadoas pelos familiares que o negligenciam ou abandonam.
O dano que se refere ao tratar do abandono afetivo é o moral, ou seja, aquele que atinge a esfera subjetiva, imaterial do lesado, com previsão de reparabilidade por própria disposição constitucional.
Com razão, a prova do dano moral deve basear-se em pressupostos diversos do dano patrimonial, sendo que o abalo suportado pela vítima já é presumido pela própria comprovação da ocorrência do evento danoso, restando ser analisado pelo magistrado a extensão daquele através das máximas de experiências a partir da análise dos dados do caso concreto.
O sistema adotado pela legislação brasileira do livre convencimento do magistrado possibilita que a análise da extensão do dano não fique adstrito a determinada prova produzida, mas, por outro lado, possa ser feita através dos aspectos objetivos do caso concreto, atentando-se sempre ao juízo de proporcionalidade, equidade e justiça.
Em verdade, nada obstante não haja previsão expressa do principio da afetividade na Constituição Federal, muito embora do artigo 230 é possível depreender o intuito afetivo e solidário que emerge da lei, corroborado com o Estatuto do Idoso, estudiosos do direito possuem arcabouço jurídico sólidos para reconhecer a afetividade familiar como valor jurídico dotado, pois, de exigibilidade devido a sua importância como instituição social.
De igual maneira ainda que não seja tema pacífico no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, bem como a demanda jurídica dos idosos por danos morais em face de seus familiares em razão de abandono afetivo ainda seja mínima ou até mesmo inexistente no referido Tribunal, até a presente data, há de se enaltecer a beleza de grandes julgados que balizam a afetividade como dever de cuidado e põem à salvo o direito à justa indenização pelo ilícito civil, colaborando, assim, para a construção de um direito mais humano.
Informações Sobre o Autor
Patrícia Kapp Lopes
Pós-graduada em Direito Público pós-graduanda em Direito Constitucional Advogada