Resumo: O texto comenta a moralizadora ação recente sobre representações artísticas, exposições de museus e tantas outras obras…. Chegamos até acreditar no crime da arte.
Palavras-chave: Censura. Liberdade de Expressão. Criminalização da arte. Direito e Moral. Queermuseum.
Abstract: The text comments on the moralizing recent action on artistic representations, exhibitions of museums and many other works … We even believe in the crime of art.
Keywords: Censorship. Freedom of expression. Criminalization of art. Right and moral. Queermuseum
A ditadura do “politicamente correto” certamente teria ceifado todas as obras de Nelson Rodrigues, Giovanni Boccaccio, Marquês de Saade e de Vladimir Nabokov além de tantas outras obras de arte.
Entre inúmeras obras proibidas podemos citar: Huckeberry Finn, o Diário de Anne Frank, A Arabian Nights, Alice no País das Maravilhas (Lewis Carroll), O Código Da Vinci (Dan Brown), O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha (Cervantes), A Odisseia (Homero), A Bíblia (traduzida por William Tyndale que foi executado em 1536 e depois queimado em público), O Decameron, A origem das Espécies (Charles Darwin).
E, até Harry Potter e a Pedra Filosofal, de autoria J.K. Rowling, Cinquenta tons de cinza de E.L.James, As vantagens de ser invisível, de Stephen Chbosky, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, 1984, de George Orwell, O Crime do Padre Amaro[1], de Eça de Queirós, Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, Tessa: A gata, de Cassandra Rios.
O termo “politicamente correto” foi usado com parca frequência até a última parte do século XX e, não se relacionava com a desaprovação social geralmente considerada em uso mais recente[2].
Em 1793 o termo surgira na Suprema Corte dos EUA durante o julgamento de um processo político citada por James Wilson que comentou in litteris: “Os Estados e não o povo, para quem os Estados existem, são frequentemente os objetos que atraem e prendem nossa principal atenção… Sentimentos e expressões desse tipo impreciso prevalecem em nossa linguagem comum, como em nossa convivência. Será solicitado um brinde? Os Estados Unidos em vez do provo dos Estados Unidos é o brinde dado. Isso não é politicamente correto”. Chisholm vs. Georgia 2.US (2 Dall) 419 – 1793.
Imaginem, a famosa Dercy Gonçalves[3] com sua verborragia contundente e irreverente, certamente pela ideologia vigente seria arremessada na fogueira assim como o foi Joana D’Arc (Jeanne D’Arc).
A famosa donzela de Orléans (La Pucelle d’Orléans) era ruiva e hoje é considerada heroína francesa e reconhecidamente santa pela Igreja Católica. É a santa padroeira da França e, foi, ainda, Chefe Militar na Guerra dos Cem Anos, quando tomou partido pelos armagnacs, na longa luta contra os borguinhões e seus aliados ingleses[4].
Foi executada por ato de fé feito pelos borguinhões em 1431. Joana era uma camponesa, modesta, analfabeta e considerada hoje mártir francesa e, somente reabilitada vinte e cinco anos após sua morte, em 1456, pelo Papa Calisto III que considerou o processo que a condenou inválido. Finalmente foi canonizada em 1920 pelo Papa Bento XV.
Restou esquecida pela história até o século XIX, conhecido como o século do nacionalismo quando a França veio a redescobrir esta personagem trágica.
Mas, Joana D’Arc não fora aceita pela unanimidade pois Shakespeare a retratou como bruxa e Voltaire dedicou-lhe um poema satírico, onde a ridicularizava.
Somente quinhentos anos depois de sua morte, Joana D’Arc foi canonizada passando então a ser Santa Joana D’Arc pois enfim tal canonização traduzia o desejo da Santa Sé de estabelecer laços com a França republicana, laica e nacionalista.
Quero chamar a atenção da condenação até a canonização quantos anos foram precisos e como as conclusões foram diametralmente opostas.
A Santa Joana é sincretizada nas religiões afro-brasileiras com a orixá Obá.
A noção de pedofilia, zoofilia, pornografia e blasfêmia foram promovidas à alta categoria de crime contra a família, moral e aos bons costumes e, finalmente, considerada como delito hediondo a merecer a reprimenda mais expressiva, capaz de impor a censura, a mordaça e, fatalmente, o silêncio. Limitando-se a liberdade de expressão, de ir e vir e de crença.
No dia 03 de agosto de 1988 é celebrado o fim da censura[5] em nosso país, quando o direito à liberdade de expressão fora expressamente admitido e garantido conforme consta do artigo 5º, inciso IX do vigente texto constitucional brasileiro.
O polêmico episódio sobre o cancelamento da exposição Queermuseum patrocinada pelo Santander Cultural na cidade de Porto Alegre (RS) chegou a ser noticiado pelo famoso jornal Washington Post.
A mesma exposição foi formalmente recusada no MAR – Museu de Arte do Rio por decisão do atual prefeito Marcelo Crivella (PRB) e os debates abriram uma crise entre o museu e a prefeitura.
Mas, antes, em 14/09/2017 a polícia brasileira apreendeu o quadro intitulado “Pedofilia” da artista plástica Alessandra Cunha que estava em exposição no MARCO (Museu de Arte Contemporânea) devido à pressão de deputados estaduais do Mato Grosso do Sul.
Afinal o direito pátrio também tutela a liberdade de expressão artística? Pois o quadro apreendido pela polícia devido a Boletim de Ocorrência na Delegacia Especializada de Proteção à Criança e Adolescente e pediram ainda a inclusão da artista no cadastro geral de pedófilos. A apreensão em comento se deu apenas após quatro dias do polêmico cancelamento da exposição Queermuseum no Santander Cultural, em Porto Alegre.
Cogitou-se de crime de apologia criminosa, mas se formos ortodoxos como entender a novela de Glória Peres, na rede Globo, de 2017, intitulada “A Força do Querer” apesar de ser obra de ficção?
Lembremos que os crimes previstos no ECA – Estatuto da Criança e Adolescente exigem integralmente o envolvimento direto da criança ou do adolescente, e, não apenas de representações, tais como: desenhos, gravuras, pinturas e, etc…mesmo que em atividades sexuais explícitas ou implícitas.[6]
Aliás, se ainda acreditássemos em apologia ao crime, o que comentar sobre a protagonista dessa mesma novela das oito, onde a Bibi Perigosa[7] fez literalmente de tudo: trai, trafica, mate e até chega criminosos, além de expor o próprio filho (uma criança) a toda sorte de perigos concretos e reais?
Aliás, ao representar o drama da pedofilia, o quadro apreendido agita uma denúncia contundente que não encontra atendimento ou escuta atenta por boa parte da sociedade contemporânea.
É preciso que se entenda que juridicamente não há crime, seja na produção ou exposição do quadro. Afinal, trata-se de representação artística[8].
Quanto se definir o quadro é bom ou ruim, se é belo ou horrendo, isso se trata de juízo estético. E mesmo em eventual discussão moral possível escapa ao âmbito jurídico.
Há de se alertar quanto a exigência da classificação indicativa de faixa etária, também para exposições públicas de obras de artes, cinema, teatro e televisão conforme indica a Portaria 368/2014 do Ministério da Justiça[9].
Porém, quanto aos museus e a literatura não vige qualquer limitação deste tipo. Mas é possível uma adequação preservando-se a constitucional liberdade de expressão vigente na ordem jurídica brasileira.
A capacidade de interpretar exige a prática de suspensão dos preconceitos e pré-juízos. Conclui-se que a hermenêutica é interpretar. A própria raiz do grego hermeneueuin é traduzida para o verbo interpretar. Já hermeneia traz a fonte de Hermes,
Deus grego que se encarregava de traduzir as mensagens dos Deuses aos homens, uma vez que era proibido a estes se comunicarem diretamente com aqueles, sendo Hermes, então, o mensageiro que trazia a palavra traduzida e interpretada aos mortais.
A partir do conceito da expressão interpretar, foram criadas formas de interpretação, onde podemos indicar a autêntica (aquela que provêm do legislador, que demonstra no texto legal a mens legis), a doutrinária (baseada na doutrina produzida), a jurisprudencial (com bases nas decisões reiteradas de uma matéria pelos Tribunais), a literal (que busca o sentido do texto normativo, com base nas regras comuns da língua), a histórica (que visa buscar a interpretação com base no contexto fático em que foi criada a norma), a teleológica (que busca a intenção do legislador) as mais conhecidas no nosso sistema jurídico.
Todo o busilis reside no sentido que se atribui ao fato. O quadro apreendido representa a forma de promover a reflexão sobre determinado tema que é a pedofilia. Mas isso, não significa necessariamente que o pintor ou pintora seja pedófila.
O Ministério Público do Mato Grosso teve um parecer lúcido quando reconheceu que a apreensão do quadro “Pedofilia” representou uma agressão indevida à arte e à cultura.
Tanto que dois dias depois da apreensão da obra o quadro voltou a ser exposto na exposição denominada Cadafalso. Aliás, a coordenadora MARCO, Lucia Montserrat comemorou o retorno da obra e lembrou que a intenção da artista plástica é provocar reflexão. A própria artista alertou que a exposição é forma de alertar sobre crimes sociais e, enfim, provocar reflexão.
Pois, é óbvio, a obra além de promover o debate sobre o delicado tema, não tinha como escopo promover o incentivo para que as crianças ou adolescentes fossem vítimas desses crimes.
Essa tentativa vã de recolonização do Direito pela Moral pode resultar na criminalização da arte[10], negando-se toda a conquista civilizatória representada pela secularização. Além disso, com a placa indicativa do conteúdo a ser exposto, vai à exposição quem quiser. Ninguém é obrigado ou forçado a fazê-lo.
Também Bertold Brecht[11] não escaparia da cruzada moralizante e condenaria os seus “poemas eróticos” ou ainda quando condenou a indiferença deferida contra negros, judeus, ciganos e comunistas e, que resultou em silentes massacras regidos pelo poder constituído e totalitário.
Imaginem se algum professor em suas cotidianas aulas evocasse a reflexão sobre certos aspectos sociais e culturais e, por isso, fosse julgado como traidor e subversivo. Foi exatamente o que aconteceu com Sócrates pois com sua maiêutica que buscava o conhecimento e verdade. Então fora condenado à morte, por ingestão cicuta.
Afinal, fora acusado de desvirtuar a juventude do culto às divindades. Indico a leitura de um antigo escrito meu e da professora Denise Heuseler, que modestamente aborda a intrincada questão do julgamento de Sócrates. Vide no link https://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13294.
Cumpre ainda esclarecer que a incitação ao crime que é previsto no artigo 286 do Código Penal Brasileiro significa o incentivo, o persuadir uma pessoa a prática de um crime, sendo indispensável que se faça a propagando do crime que está se incitando[12].
É indispensável ainda que ao realizar a apologia ao crime, sempre o faça de forma dolosa. E, tanto o crime de apologia ao crime como o de incitação ao crime representam delitos contra a paz pública, tendo como sujeito passivo, toda a coletividade
Enfim, na incitação configura-se quando o incentivo dirigido à pessoas indeterminadas para pratique crimes. Já no crime de apologia, o delito já se concretizou, e há a propaganda exaltando o criminoso de o fato típico, ilícito e culpável. Ao passo que na incitação, o crime ainda não aconteceu, mas há o franco incentivo por meio de propaganda.
Quero deixar bem claro que eu como pessoa, professora, mãe, não levaria meus filhos menores à referida exposição do museu. Mas, defendo veementemente a liberdade de outros pais e demais responsáveis principalmente diante da sinalização e advertência sobre o conteúdo da exposição.
Carrego conscientemente o fardo de ser uma pessoa conservadora e, entendo que é uma representação artística que posso abdicar naturalmente de ver, mas não credencio ao Estado por meio de suas autoridades prover a censura e a realizar a escolha por mim.
Lamentavelmente vivenciamos um franco retrocesso pois há pouco fora aprovada pelo Congresso Nacional a Emenda da reforma política que permite a censura a internet durante as eleições, credenciando a qualquer usuário a obter a suspensão do conteúdo de discurso de ódio, divulgação de informações falsas, contendo ofensas em desfavor de partido político ou de candidato sem a necessidade de ordem judicial.
Então todas as plataformas de redes sociais serão obrigadas pela lei brasileira a retirar o conteúdo do ar, por simples notificação, através de notificação em até vinte e quatro horas.
Friso que a referida Emenda foi aprovada em 05.10.2017 apesar do Marco Civil da Internet que prevê expressamente que a remoção do conteúdo só era exigível por ordem judicial.
Deflagra-se nitidamente o ressurgimento da censura no Brasil o que nos leva a dois aspectos que torna ainda mais preocupante a situação. O primeiro aspecto que consiste na judicialização da censura.
Assim é o juiz, em última análise, que está determinando o que se pode ver, analisar e apreciar a guisa de entretenimento.
E, o derradeiro aspecto crucial que é a espetacularização desses processos. Então se proíbem programas de televisão, novelas, peças teatrais e exposições. A cultura da censura brasileira vem de longa data e cada vez mais é temerosa da necessidade que existe de debater, de conviver com posicionamentos ideológicos adversos ou simplesmente diferentes. A luta é imprescindível[13].
Corrompendo totalmente a essência e o funcionamento de uma autêntica democracia[14].
Enfim, vivemos incrivelmente o tempo que há o crime da arte!
Informações Sobre o Autor
Gisele Leite
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.