Resumo: Este artigo discute a existência de um direito público colonial, a partir da análise do privatismo característico da sociedade brasileira. Defende-se que o Brasil tornou-se ambiente favorável à formação de um direito periférico devido à existência de uma espécie de “imunidade de fato”, como se cada latifúndio estivesse coutado, ou seja, coberto com imunidade à intervenção das autoridades.
Palavras-chave: Direito. História do Brasil. Brasil Colônia.
Sumário: 1. Senhorios, coutos e honras. 2. O direito Público colonial. Conclusão. Referências.
1. Senhorios, coutos e honras
Os senhorios, estabelecidos por homens ricos desde a fundação de Portugal até o século XVIII, foram contemplados por numerosos privilégios de isenção real, em virtude dos quais era vedado aos corregedores penetrar em suas terras isentas. Mesmo que para muitos clássicos da historiografia portuguesa e espanhola, a influência do direito feudal não atingiu em profundidade as instituições peninsulares[1], é certo que, nas terras dos senhores, que por graça do rei as consideravam imunes, o nobre era quem exercia poderes jurisdicionais. “A imunidade ou cout consistia em os habitantes da terra só ficarem sujeitos ao senhor e só a ele pagarem tributos. Os funcionários régios não podiam, portanto, lá entrar para fazer cobranças. Portanto, também era o senhor que julgava as reclamações surgidas da cobrança, e se constituía juiz para essas e outras questões contenciosas” (CAETANO, 1941, p. 151).
A partir do século XI, muitas concessões de imunidade fiscal foram estabelecidas em favor de donatários, que superintendiam em seus coutos e honras a administração da justiça e da polícia.[2] Todavia, “o rei reservava para si a justiça maior ou o direito de julgar sempre que os senhores recusassem fazê-lo” (Ibid, p. 152).
A partir das mudanças nas instituições de direito público, sobretudo de meados do século XIII até o século XV – período que contempla a influência do direito justinianeu – a jurisdição senhorial foi constantemente disputada pelos reis, que se defendia por meio dos direitos de confirmações e inquirições (direitos de Coroa) contra os abusos que os potentados cometiam nas terras a eles concedidas ou por eles usurpadas. Muitas confirmações e inquirições reconheceram a supremacia da jurisdição régia em antigos coutos e honras e algumas leis chegaram até mesmo proibir novas concessões de imunidade.
Apesar da tendência dos reis em limitar o poder senhorial, quando dos descobrimentos e conquistas ultramarinas um novo problema se levantou: como remunerar os serviços dos vassalos no povoamento desses territórios? Assim, as imunidades, antes tendentes à extinção, continuaram a fazer parte do quadro do direito público, sobretudo nos territórios ultramarinos.
Assim, em 1433, o rei Dom Duarte fez doação ao Infante Dom Henrique do senhorio das Ilhas da Madeira, Porto Santo e Deserta, para povoá-las e dilatar o território português. Foi conferida jurisdição cível e criminal, salvo sentença de morte ou talhamento de membro, reservado o direito de recurso à Casa do Cível em Lisboa. Em 1457, fez-se doação à Dom Fernando das ilhas que descobrisse por seus navios e servidores e, depois do falecimento de Dom Henrique em 1460, doou o rei as ilhas de Madeira, Porto Santo, Açores e outras que tinha o falecido (GAMA BARROS, 1896, p. 292), invertendo a tendência de extinção das imunidades em território português.
Esses fidalgos, vassallos d’el-rei, da mesma forma que o costume sempre dispunha, foram privilegiados por coutos. Assim, poderiam cometer violências ou dar proteção à delinquentes dentro de seus domínios. Apesar de, desde o primeiro quartel do século XIV, as violências inatas ao viver da fidalguia tenham diminuído, não podemos nos iludir sobre uma possível transformação no costume. Segundo Gama Barros (1885, p. 432), “o imenso poderio dos privilegiados e a superioridade da sua importância política sobre a do elemento popular” fizeram com que os senhores continuassem à opor-se às leis. “Os ricos-homens, os prelados, abades, cavaleiros e outros privilegiados diziam os concelhos ao rei em 1331, acolhiam e traziam na sua comitiva degredados e outros malfeitores, não deixando que as justiças entrassem nos coutos e honras para prender criminosos. Clamores análogos se repetem em 1371 contra os grandes senhores, que faziam bairros coutados não só das casas que tinham para sua pousada nos lugares e vilas, mas também de quaisquer outras onde se aposentavam, deixando-as servir para refúgio aos malfeitores e quantos eram vazeiros em transgredir as posturas municipais, sem que os oficiais do rei ou do concelho se atrevessem a ir buscar os delinquentes à guarida, onde os acobertavam às imunidades dos seus protetores” (Ibid, p. 432).
Apesar das tentativas, desde o século XIII de coibir esses excessos, não foi fácil acabar com os abusos profundamente radicados. Mesmo requerendo o povo que a “justiça não tivesse senhores”, as circunstâncias dos novos povoamentos não poderiam deixar de contemplar o poder senhorial nas terras ultramarinas. Assim, a força da nobreza, tão ligada à posse da jurisdição, foi largamente confirmada pelas cartas que concediam terras coutadas.
O direito de couto concedido por Dom João à Pero Góis, primeiro capitão-mor do litoral brasileiro, assim como aos demais donatários, se encontra expressamente previsto na carta régia de 1536. “D. João, etc. A quantos estas minha carta virem faço saber e por bem e me apraz que daqui em diante para sempre quaisquer pessoas de qualquer qualidade e condição que sejam que andarem homiziados ou ausentes por quaisquer delitos que tenham cometido, não sendo por cada um destes quatro casos seguintes, a saber, heresia, traição, sodomia e moeda falsa; que estes tais, indo-se para o dito Brasil a morar e povoar a capitania do dito Pero de Góis não possam lá ser presos, acusados, nem demandados, constrangidos, nem executados por nenhuma via, nem modo que pelos casos que cá tiveram cometido até o tempo em que se assim foram para o dito Brasil, posto que já sejam sentenciados e condenados à morte natural” (apud VIANNA, 1999, p. 218).
Mesmo nas terras não imunes por título legítimo, os privilegiados tornavam-na imunes por sua própria conta, arrogando para si os direitos senhoriais, sobretudo a jurisdição. A tolerância desses privilégios por parte da Coroa variava. Mas, em geral, em se tratando de terras ultramarinas, a força da ação régia era limitada pela distância e pelo interesse no povoamento. Assim, multiplicaram-se as imunidades, que para fins deste artigo as chamaremos de “imunidades de fato”, inseridas em um novo direito público costumeiro desenvolvido nos domínios além-mar. [3]
2. O direito público colonial
Não restam dúvidas quanto ao transplante da experiência europeia para as terras americanas. Os portugueses trouxeram com eles a língua, os costumes, as formas de vida cotidiana e as instituições. Porém, as vicissitudes da conquista da terra dificultaram a organização judiciária da forma como era em Portugal, por isso, muitas vezes, o direito acabou nascendo com a espada.
Repetiu-se no Brasil as instituições administrativas portuguesas, isto é, os órgãos eletivos para a administração local. Desde logo, era patente a debilidade da administração real longínqua e mal representada por donatários gananciosos e indiferentes a tudo que não fosse percepção de proveitos pecuniários. Assim, muitas matérias relativas aos negócios públicos eram resolvidas nas câmaras, que legislavam sobre quase todos os assuntos governamentais, apesar de, em Portugal, já terem perdido a maior parte de sua importância no século XVI.
Apesar da tradição municipalista portuguesa, não se conseguiu transplantar para o Brasil o seu caráter popular. O sistema judiciário comunitário, organizado por conselhos locais de justiça, foi, na prática, suplantado pela ordem privada da Casa-Grande. A associação comunal, composta por suas câmaras, foi apenas uma assembleia dos senhores fazendeiros, “nobres da terra que reivindicavam verdadeiro privilégio de serem os únicos eleitos” (DUARTE, 1939, p. 141).
A burocracia real, de caráter essencialmente fiscal e fiscalizador, concentrava suas atividades basicamente no litoral. No interior, ela contava com a ajuda dos grandes proprietários, que mantinham suas milícias particulares e dominavam os conselhos de “homens bons” (COSTA, 1999, p. 237). Face à vastidão territorial do Brasil, os senhores rurais passaram a gozar de independência quase que absoluta em seus domínios, estendendo seus poderes às zonas urbanas próximas, que se integravam à clientela dos fazendeiros (Ibid, p. 250). Ao invés dos representantes da Coroa portuguesa litigarem contra esses domínios ilegítimos, optavam, na maioria das vezes, pela conciliação.
O privatismo característico da sociedade colonial brasileira encontrou na organização familiar a “única ordem perfeita e íntegra que essa sociedade conheceu” (Ibid, p. 123). A partir de 1532, a colonização portuguesa do Brasil caracterizava-se pelo domínio quase exclusivo da família rural. A sociedade se organizou em famílias extensas que, segundo Freyre (2003, p. 81), foi o grande fator colonizador. Sobre a base econômica da riqueza agrícola e do trabalho escravo, a família colonial reuniu uma variedade de funções sociais. Essa força social, que se desdobra em política, contribuiu com o império das relações privadas, principalmente no âmbito da justiça e da polícia.
As famílias aparentadas apresentavam alto grau de solidariedade, que se sentiam unidas pelas lutas privadas. Reinavam até mesmo espécies de vinganças e duelos de famílias. Essa característica não teve como causa primeira a tradição peninsular, mas seguramente os perigos que cercavam as primeiras instalações desbravadoras e colonizadoras das terras tropicais. A concentração familiar, provocada pelo perigo comum, facilitava o enfretamento dos riscos do povoamento. Portanto, para a colonização, a parentela tinha que ser grande.
Cientes das vantagens que as famílias grandes teriam no processo de povoamento, para a concessão das sesmarias era sempre dada preferência às pessoas que pudessem não só cultivar terrenos, mas povoar. O primeiro monumento da sesmaria no Brasil, uma carta patente dada a Martim Afonso de Souza, em 1530, foi bem claro quanto a isso. “Dom João […], etc. A quantos esta minha carta virem, faço saber, que as terras que Martim Affonso de Souza do meu conselho achar e descobrir na terra do Brasil, onde o envio por meu capitão mór, que se possa aproveitar por esta minha carta lhe dou poder para que ele dito Martim Affonso de Souza possa dar às pessoas que conseguiu levar e às que na dita terra quiser viver e povoar, aquela parte das ditas terras que lhe parecer, e segundo lhe o merecer por seus serviços e qualidades, e das terras que assim der será para eles e todos os seus descendentes […]” (apud, LIMA, 1933, p. 35-36).
Era necessário que fossem pater familias, assim como no antigo direito foraleiro português, cujo homem só era considerado cidadão dos conselhos, com direito às magistraturas, se “casado e com família estabelecida ou cercado de familiares – ‘arraigado’, como então se dizia” (VIANNA, 1999, p. 230). Como a família já veio formada de Portugal sob o império do homem, no Brasil se exaltou a autoridade do marido, o que explica a condição de inferioridade e sujeição da mulher colonial brasileira.
O grupo familiar crescia e se expandia na colônia, ao mesmo tempo em que uma importante instituição, saída do tipo social do padrinho, de base religiosa, foi se configurando: o compadrinho. Essa instituição gerava um código de dever moral com pessoas que não eram do mesmo sangue. Assim, qualquer família se obrigava moralmente a prestar ao senhor, pela relação de compadrinho, sua solidariedade, engrossando o fluxo de elementos estranhos ao grupo familiar.
A partir do entrelaçamento das famílias pela afinidade de sangue ou pelo compadrinho, novos tipos sociais característicos foram se consolidando na Colônia, como o “régulo” ou “senhor-de-engenho ou fazenda, poderoso pelos seus escravos ou pela sua ‘cabrada’”; e o “capanga” ou “cabra matador”, que se organizava ao lado do potentado fazendeiro para a sua defesa pessoal e de seu domínio, e que não se abstinham do uso de recursos como morticínios, deprecações e incêndios contra os senhorios vizinhos (Ibid, p. 252).
As organizações parentais, poderosamente apoiadas, atravessaram o período colonial influindo tanto na vida privada, quanto na vida pública, inclusive no êxito das leis régias. Por exemplo, entre os senhores de latifúndios tinham os pastorais, que também estabeleceram uma tradição de violências, pilhagens e destruições recíprocas, chamadas, naquele tempo, de “saltadas” (Ibid, p. 211). Roubavam gado, depredavam fazendas, acoutavam delinquentes e negros foragidos das fazendas vizinhas, expropriavam pela força os proprietários mais fracos, abusando do poderio do seu clã de escravos e criminosos sobre as propriedades dos demais senhores de engenhos e senhores pastorais convizinhos, expandindo pelo meio ilegal da violência seus imensos latifúndios.
Os pequenos proprietários viviam na periferia dos latifúndios, os meeiros lavravam a terra de seus senhores, os escravos eram suas propriedades, ou seja, todos, de alguma forma, ligavam-se aos grandes fazendeiros. “As relações pessoais de parentesco, clientela, patronagem e as formas autoritárias de poder geradas pelo regime de propriedade […] reforçam o caráter absoluto do poder do grande proprietário rural” (COSTA, 1999, p. 237).
Esses mecanismos de força davam aos proprietários um formidável prestígio na região, que até faziam recuar, muitas vezes, as próprias autoridades da Coroa. Na verdade, era como se cada um dos latifúndios estivesse coberto com uma espécie de “imunidade de fato” à intervenção das autoridades, ou estivessem coutadas suas terras.
Os famigerados senhores poderosos impunham tanto respeito, que muitas testemunhas se recusavam a depor nas devassas, muitas vezes, sequer apreciadas por falta de prova. Até mesmo as justiças ordinárias, isto é, aquelas eletivas, temiam penetrar em seus domínios, o que em muitos momentos chegou a inquietar as autoridades régias.
Lamego (1945) relata o drama que se desenrolou na planície Goitacá, nos primeiros séculos de colonização. A luta pela posse do solo fértil de Campos, dominada pela família Asseca, é registrada em seus pormenores históricos. Ninguém protestava contra a Casa do Visconde Asseca, que armava seus filhos de poderes ditatoriais. Promoviam cargos de justiça e da milícia, perseguiam, prendiam, soltavam a seu bel prazer, julgavam causas cíveis e criminais, sentenciam e aplicavam pena de degredo.
Nem mesmo o governador do Rio de Janeiro, inimigo primeiro dos Assecas, conseguia se impor contra a casa do Visconde. De nada servia nomear capitão-mor para seus domínios, pois o morgado o destituía. Ou mesmo prender os juízes da vila, pois, no fim, o fidalgo só se enchia de furor diante de sua prepotência, como pudemos verificar em um se seus relatos: “Se os juízes e oficiais voltarem a seus cargos, ponho fogo nas minhas fazendas, nos engenhos e partidos de canas, reduzindo toda a capitania a um montão de ruínas, porque um fidalgo como eu não fica sevandijado pela ralé” (MARTIM CORREIA apud LAMEGO, 1945, n. p.).
Mesmo com as revoltas do povo contra o donatarismo, os debates cobiçosos entre os também grandes senhores de terra e o desacato contra o governador e o próprio rei, no fim, a fraqueza real sempre sucumbia. No caso da planície Goitacá, foram cem anos de “invulgar iniciativa de uma gente acorrentada a grande senhores, com a posse aleatória de glebas aforadas sem garantia de continuidade e a mercê das desavenças políticas entre potentados de ambição desmedida. Cem anos de demandas, de rixas, de motins, de devassas, de repressões, e assassinatos, de flagícios, de exílios e sob a rapina das dízimas, das fintas, das derramas e dos confiscos oriundos do capricho indiscutível e da vontade momentânea de amos absolutistas” (LAMEGO, 1945, n. p.).
Dentro desse complexo social se constitui a ordem jurídica na colônia. Foi na Casa-Grande, de que Gilberto Freyre fala, que a função de mando e disciplina era estabelecida. Toda a paz da sociedade se assegurava com tolerância do Estado para com a Casa-Grande.
Além disso, um reforço vindo do rei logo no início da colonização, que foi o estabelecimento do direito de couto, permitiu a consolidação dessa função de mando e disciplina na Casa Grande. Foi como se, a partir da primeira carta régia em 1536 que concedia direito de couto e homizio à Pero Góis, essa “imunidade de direito” se transformasse em uma faculdade extensiva aos senhores de engenho e donos de sesmarias (“imunidade de fato”). Podiam condenar escravos e até mesmo homens livres às penas que entendiam cabíveis, assim como absolvê-los. Por isso, a “imunidade de fato” não conseguiu se extinguir tão facilmente, nem mesmo com as correições régias.
É certo que, apesar de termos a sensação de contemplarmos ainda nos dias presentes espécies de “imunidade de fato”, esta só iniciou seu processo de desaparecimento a partir de 1888, com o fim da grande propriedade escravagista, que mudou radicalmente as instituições de direito público no Brasil. As Memórias de Julio Belo não nos deixam mentir, ao recorda o respeito com que as autoridades policiais tinham diante do domínio dos senhores de engenho ainda no período do Império. “As autoridades e a polícia respeitavam os engenhos – informa Júlio Belo – algumas vezes coitos de criminosos defendidos e inatingíveis como tabus sagrados. Certos senhores arrogantes não perdoavam a mais razoável visita da polícia às suas propriedades. Reputavam-na um ultraje, de que cuidavam desafrontar-se, fosse como fosse” (apud VIANNA, 1999, p. 215).
Isso acontecia ainda no Império, porque a economia social se organizava na família e no campo. O centro de gravitação era o senhor de escravo e a base era o escravo, que concorreu com o “sadismo do mando, disfarçado em ‘princípio de autoridade’ ou ‘defesa da ordem’” (FREYRE, 2003, p. 114).
Essa chefia dispersa, que assumiu caráter patriarcal, “identificável no mando do fazendeiro, do senhor de engenho e nos coronéis” (FAORO, 2001, p. 872), foi se apropriando das oportunidades econômicas, numa invasão do público pelo privado, expediente denominado patrimonialismo. “Representando […] o único setor onde o princípio de autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a ideia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens. O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família” (HOLANDA, 1995, p. 82).
Excedendo o “gosto de mando” (FREYRE, 2003, p. 114) à vida doméstica, a família acaba por invadir as próprias funções do Estado. Por exemplo, durante os anos de escravidão, coexistiu o poder punitivo privado e a pena pública. Na verdade, na sociedade brasileira, a pena pública foi instituída com o modo de produção escravista. O senhor tinha o direito privado de castigar fisicamente o escravo, ou seja, aplicar a disciplina punitiva doméstica. Deixar o escravo à justiça não caia bem para a fidalguia do senhor. Assim, a solução judicial foi convivendo com o poder punitivo privado.
Nesse raciocínio, foi no caráter patriarcal que se redundou a doutrina do exercício privado da justiça e violência com o fim de correção. Como vemos no artigo 6º do Código Criminal Imperial, se o escravo deve obediência ao senhor, porque não o filho, a mulher, o discípulo. O respeito à hierarquia já era um direito público costumeiro na sociedade colonial, que foi legitimado, posteriormente, com a formação do arcabouço jurídico nacional.
Tomás Alves Junior, em Annotações theoricas e práticas ao Código Criminal, destaca esse respeito pela coerção privada como um direito advindo de um poder legítimo. “O exercício do poder legítimo arrasta à necessidade de fazer mal para reprimir o mal. O poder legítimo divide-se em político e doméstico. O magistrado, ou pai, ou aquele que o representa, não podia fazer respeitar sua autoridade, um no Estado, outro na família, se não estivessem armados de meios coercitivos contra a desobediência. O mal que eles infligem tem o nome de pena ou castigo. Para estas vias de fato só procurarão obter o bem da grande como da pequena sociedade, e não é preciso dizer que o exercício de sua autoridade legítima é um meio completo de sua justificação, pois que ninguém quereria ser pai se não tivesse toda a segurança no emprego de seu poder. […] Não se pode, pois, duvidar do direito que existe no pai, no senhor e no mestre de castigar o filho, o escravo e o discípulo” (apud MALERBA, 1992, p. 41).
O direito de uso da violência privada pelo senhor é uma extensão do poder patriarcal. No direito moderno europeu, o monopólio legítimo da violência é do próprio Estado. Na sociedade patriarcal, é reservada ao pater. Esse uso da violência privada pelo pai e senhor, que exercia, sobretudo, o papel de magistrado, foi largamente utilizado para manter a ordem na Colônia. Isso refletiu na própria concepção hierárquica dos demais dependentes, penetrando no universo dos brancos livres. Assim, a obediência passiva, ou o “masoquismo” de que Freyre fala, e subordinação dos inferiores hierarquicamente era como uma condição da vida social na Colônia, que se estendeu nos anos do Império.
Todavia, não podemos negligenciar a centralização política a administrativa a partir do século XVIII que levou à decadência as autoridades locais, isto é, das câmaras municipais, afetando profundamente a justiça privada da Casa Grande. Nesse período, todas as capitanias já tinham voltado ao domínio direto da coroa, sendo governadas por funcionários nomeados pelo rei.
Esse processo absorvente da justiça foi muito sensível no Brasil. Os antigos donatários das capitanias foram cada vez mais subordinados aos governadores nomeados pelo rei, que restringiam seus poderes e jurisdição, restando apenas os direitos pecuniários auferidos de suas capitanias.
Nessa nova ordem instituída em meados do século XVII, os representantes diretos do poder real reivindicaram aos poucos para si toda a autoridade e acabaram transformando as câmaras em executoras de suas ordens. No que concerne ao poder punitivo, a introdução dos juízes de fora no Brasil em substituição dos juízes eleitos popularmente, segundo Caio Prado Júnior (1961), foi um dos maiores golpes desferidos nas franquias locais, porque se criou um choque entre o poder punitivo senhorial e a pena pública, uma vez que os magistrados, antes, eram ligados à Casa Grande.
Porém, essa tentativa de monopólio estatal da violência legítima que se iniciou no Brasil, em especial a partir do século XVII, não foi suficiente para alterar a prática punitiva colonial, uma vez que, até 1888, a sociedade ainda tinha sua estrutura fundada na herança rural, ou seja, no latifúndio agrário e no trabalho escravo. Por isso, Comparato (1999, p. 173) nos alerta de nunca nos esquecermos de que os instrumentos públicos de coação monopolizados pelo Estado advieram de uma estrutura social privatista e sempre pertenceram, de fato, às classes dominantes, inclusive no Império, quando da criação do arcabouço jurídico nacional.
Conclusão
Com a pesquisa levantada, conclui-se que no Brasil houve uma tentativa de repetição das instituições administrativas portuguesas. Ocorre que a tradição municipalista portuguesa foi, na prática, suplantado pela ordem privatista, o que refletiu no direito público colonial brasileiro. Assim, enquanto a burocracia real concentrava suas atividades basicamente fiscais no litoral, no interior do Brasil ela contava com a influência social, política e econômica das lideranças locais, isto é, grandes proprietários de terras, fortemente marcada pelo privatismo. E é justamente essa carta branca da metrópole que garantia a autonomia extralegal dos chefes locais, que decidimos chamamos de “imunidade de fato”, que não conseguiu se extinguir tão facilmente, nem mesmo com as correições régias. Foi dentro desse complexo que nasceu o direito público colonial brasileiro e toda a sua ordem jurídica.
Informações Sobre o Autor
Maiara Caliman Campos Figueiredo
Bacharel em Direito pela Faculdade Casa do Estudante e mestrado em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo